A Autoridade das Escrituras

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Ao pretendermos abordar o assunto da autoridade e da inspiração da Sagrada Escritura, convém não esquecer que é na própria Bíblia que freqüentemente se alude ao fato de se tratar duma mensagem diretamente outorgada por Deus. Vamos, de seguida, aprofundar a questão, não obstante as dificuldades que possam surgir.

Quando se fala da autoridade da Bíblia, poderemos sem mais nem menos apelar para o testemunho da mesma Bíblia, a confirmar a nossa afirmação? Não será demasiado recorrer logo de início a tal argumento com que possivelmente teremos de terminar, supondo a Bíblia "juiz em causa própria"? Não irão porventura julgar-nos a pressupor uma coisa que se pretende explicar?

A primeira resposta leva-nos naturalmente a confessar, que o recurso à Bíblia visa apenas uma informação e não a uma prova cabal. Poderiam ser apresentados argumentos racionais a favor duma autoridade da Escritura, mas em última análise aceitamos a autoridade que se baseia na fé. Mas só a aceitamos enquanto a mesma Bíblia a supõe. Por outras palavras, se a inspiração e a autenticidade do testemunho fizerem parte, - e parte integrante-da revelação, nada obsta a que a Bíblia se nos apresente como regra de fé e de vida. Se assim não for, em vão será a nossa fé no Livro Sagrado; em vão a confiança que depositamos nos seus ensinamentos. Considerando-o, porém, como autêntica Palavra de Deus, a reclamar por si própria uma autoridade decisiva, nada obsta a que nela depositemos toda a confiança, aceitando essa Palavra e a autoridade que ela implica.

Mas, dar-se-á o caso que seja a própria Bíblia a reconhecer essa autoridade? Caso afirmativo, no que implicará essa afirmação? No primeiro caso é tão vasta a resposta, que dificilmente a poderemos abranger. Tanto no Velho como no Novo Testamento, não raro se alude implicitamente a uma autoridade mais que humana e, em muitos passos, até se vislumbram alusões claras e diretas. Diz-se, por exemplo, que Moisés recebeu de Deus não só as tábuas da Lei, mas ainda outras recomendações rituais relativas à manutenção do tabernáculo. É notória a insistência dos profetas em afirmarem que não são autores daquilo que pregam, mas que se trata duma mensagem recebida diretamente de Deus. Jesus Cristo falou com autoridade, porque tinha a consciência de agir como Filho Eterno de Deus, e não apenas como um pregador vulgar. Os apóstolos não duvidaram da autoridade das suas decisões, quer no que se referia a Cristo, quer no que importava à expansão do Cristianismo sob a orientação do Espírito Santo.

Poderá julgar-se que a maioria destes casos supõe uma autoridade apenas a favor duma mensagem recebida e não dum testemunho escrito, em que a mensagem nos é entregue. É talvez o caso de os profetas ou Jesus Cristo falarem com autoridade divina; mas, por vezes, as suas palavras não chegaram até nós em primeira mão. Essa espécie de inspiração não é, todavia, a mesma que se supõe nos compiladores do testemunho da sua atividade e das suas doutrinas. Nesse caso, não se pode garantir que o conteúdo da Bíblia seja uma exposição literal e perfeita das mensagens que na realidade foram comunicadas.

Contra esta objeção seja-nos lícito afirmar que, sobretudo no Novo Testamento e em referência ao Velho, exige-se uma autoridade definida para os escritos bíblicos. É doutrina que facilmente se depreende dos ensinamentos do próprio Cristo. Recorde-se como peremptoriamente responde ao tentador com o tríplice "está escrito". No Monte da Transfiguração faz ver aos discípulos que está escrito do Filho do Homem ter de sofrer muito e até ser reduzido ao nada. Aos judeus, que se embrenhavam nas Escrituras, lembra-lhes que estas "testemunhavam d’Ele". Logo após a ressurreição e em sessão magna com os discípulos, alude a todos os passos das Escrituras que a Ele faziam referência, "Na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos", insistindo no cumprimento das profecias. Estas e outras afirmações levam-nos à conclusão de que Jesus Cristo aceitou a inspiração e a autoridade da Bíblia, sobretudo quando davam testemunho profético da Sua Morte e Ressurreição. Depreende-se ainda de Jo 14.26 e Jo 16.13 que o Senhor prometeu semelhante inspiração no caso do testemunho apostólico, que iria continuar.

Ao lermos os escritos dos apóstolos, de igual modo se verifica que admitiram o testemunho da autoridade divina. Em todos os Evangelhos é dado certo relevo às profecias inspiradas da Obra e da Pessoa de Cristo. Paulo cita com freqüência o Velho Testamento, a cujas profecias recorre para provar aos judeus que Cristo é o verdadeiro Messias. Vejamos como 2Tm 3.16 resume toda a doutrina de Paulo, levando-nos a supor que, tendo em mente o Velho Testamento, considera-o, sem dúvida, inspirado por Deus. Outros escritos dos apóstolos aludem inúmeras vezes ao Velho Testamento, servindo de exemplo frisante 2Pedro seguindo na esteira de 2Timóteo no mesmo testemunho a favor da inspiração da Bíblia. Em 2Pe 1.21, por exemplo, diz que a palavra da profecia provém do seu autor originário-o Espírito Santo: "Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo". Do mesmo Apóstolo em #2Pe 3.16 parece provável uma alusão à autoridade divina das Escrituras, de que nos devemos aproximar com reverência e humildade. Trata-se dum versículo particularmente interessante, pois coloca em paralelo as Epístolas de Paulo com as outras Escrituras, o que significa que os autores apostólicos agiam conscienciosamente ao completarem o Cânon autorizado do Velho Testamento.

Rigorosamente, é certo serem pouco numerosas as alusões diretas à inspiração das Escrituras, e nenhuma se refere com precisão à autoridade de cada um dos livros em particular. Por outro lado, se excetuarmos Esdras, Neemias, Ester, Eclesiastes, Cantares de Salomão, Obadias, Naum e Sofonias, observamos que todos os livros do Velho Testamento são diretamente citados no Novo; e quando se toma em consideração a atitude do Novo Testamento em tais citações, poucas dúvidas nos restam de que expressões como esta: "Assim diz o Senhor", que encontramos na boca dos profetas, eram aplicadas aos testemunhos da atividade profética, assim como às mensagens orais proferidas em determinadas ocasiões. A palavra escrita era tratada como forma categórica e inspirada em que se exprimia e transmitia o conteúdo da revelação divina.

Quando se nos apresentam objeções a este testemunho, convém precisar os seguintes pontos básicos: -Antes de nada mais, queremos frisar que não se trata duma teoria específica acerca da inspiração. De Jo 14.26 e 2Pe 1.21 fácil é descobrirmos uma dupla atividade: a do autor humano dum lado e de outro, a do Espírito que inspira, orienta e dirige. Por certo que ninguém duvida que no fim de contas a supremacia é do Espírito; mas também é de admitir que não se verifica qualquer alteração da personalidade e da individualidade do autor humano. Em seguida, repare-se que a inspiração é considerada pelos escritores do Velho Testamento em atenção, sobretudo, à futura atividade de Deus. O profeta prevê, não há dúvida; mas a última prova da profecia era a exatidão com que a enquadrava no futuro plano divino. Já no Velho Testamento caía em descrédito o profeta que não previa com a devida exatidão, e no Novo, o valor do Velho é precisamente o testemunho profético que se dá de Jesus Cristo. Se é verdade que esse testemunho apóia as prerrogativas messiânicas de Jesus, também é verdade que a obra messiânica de Jesus supõe e exige a autenticidade das profecias do Velho Testamento. Uma grande porção das citações desta parte da Bíblia relaciona-se com as diferentes formas daquele testemunho profético.

Em terceiro lugar, aceita-se geralmente como autêntico, o entrecho histórico do Velho Testamento. Jesus Cristo, por exemplo, alia Moisés à Lei e atribui a Davi o Sl 110. Os apóstolos aceitaram todos os acontecimentos de vulto do Velho Testamento desde Adão e da queda (1Tm 2.13-14) até à travessia do Mar Vermelho (1Co 10.1), desde a história de Balaão (2Pe 2.16) e da queda de Jericó (Hb 11.30) à libertação sob os Juízes (Hb 11.32) e aos milagres de Elias (Tg 5.17). Em presença de testemunho tão evidente, há quem afirme que Nosso Senhor e os apóstolos nada mais fizeram que limitar-se aos costumes do tempo, servindo-se dos acontecimentos históricos apenas para melhor explicarem a sua doutrina. Não se pode pôr de parte a idéia de que no Novo Testamento a crença na autoridade do Velho implica a aceitação da verdade histórica, religiosa e doutrinal desse Livro Sagrado.

Mas é justo lembrar também, que, se essa aceitação se refere só à intervenção sobrenatural do Deus Onipotente, em parte alguma teremos mais vivo exemplo de tal intervenção do que nos fatos centrais do Evangelho cristão, tais como a Vida, a Morte e a Ressurreição de Jesus Cristo.

Chama-se, por vezes a atenção para a aparente liberdade ou até arbitrariedade do Novo Testamento nas citações que apresenta do Velho. Por um lado, utiliza-se e vulgarmente a edição grega dos Setenta (a Septuaginta), o que não raro implica sérias divergências do texto hebraico massorético. Por outro, os versículos do Velho Testamento referem-se, com freqüência, profeticamente a Cristo, quando uma interpretação atenta lhes dá uma aplicação original completamente diferente. A razão baseia-se no fato de que esta liberdade sugere um conceito de inspiração mais amplo do que aquele que tradicionalmente anda associado à Bíblia e aos seus autores. Lembre-se, todavia, o seguinte: Quanto à Septuaginta é muito provável que em certos casos a tradução grega seja mais pura e fiel ao original do que o texto massorético. Em seguida, o principal objetivo duma tradução não se limita a apresentar equivalências literais, mas sim manter o sentido original. Logo, em presença de diferenças inevitáveis na estrutura lingüística, é possível que uma tradução mais livre seja mais fiel do que a literal. Na Septuaginta os autores do Novo Testamento utilizaram na tradução uma terminologia especial, familiar a uma grande parte dos seus leitores. Finalmente, nalguns casos, o Espírito Santo pode ter-se servido da Septuaginta para apresentar novos aspectos da Verdade divina, ou então dar-lhes uma aplicação mais enfática. Se necessário for, certamente que não devem ser menosprezados os mais leves pormenores do texto original (cf. Gl 3.16).

O problema dos testemunhos proféticos não é menos importante, uma vez que, parece que se alteraram por completo o significado e a aplicação. Com efeito, houve quem lembrasse que, conscienciosa ou inconscienciosamente, os versículos não foram devidamente utilizados na intenção de procurar provas pormenorizadas da profecia do Cristo-Messias. À primeira vista é racional a objeção, já que no seu contexto original muitos dos versículos parecem não ter a mínima referência àquela prerrogativa de Jesus. Mas, embora seja uma compilação de diferentes obras, a Bíblia mantém-se como livro uno e único em que o contexto pode ter um sentido imediato e outro mais amplo. Ultimamente toda a história de Israel se concentra em sua plenitude no único verdadeiro Israelita, podendo-se observar através de toda aquela história os mesmos modelos da atividade divina. Para além da referência aparentemente artificial em Mt 2 à Raquel do Velho Testamento, fácil é descobrir um movimento de agressão, de morte e de exílio. Este, um exemplo entre muitos. Tomados meramente como textos comprovativos, as citações podem não ser convincentes, mas no contexto mais amplo dos divinos arcanos, põem-nos em presença de tipos e modelos que só encontram a sua plenitude na história de Jesus Cristo.

Cuidado, porém, com a leitura desses textos, para que não se ultrapassem os limites impostos pela realidade. Com respeito a autores e a datas, por exemplo, é uso recorrer-se à tradição oral, quando a Bíblia não se pronuncia. É por vezes surpreendente a extensão do silêncio bíblico! Pouco se sabe acerca da compilação dos livros históricos do Velho Testamento; nada de concreto sobre a data e circunstâncias dalguns livros proféticos, como Malaquias; desconhece-se o autor de muitos salmos e do livro de Jó; não sabemos se foi Paulo o autor da Epístola aos Hebreus; se Lucas escreveu o terceiro Evangelho e os Atos; se o quarto Evangelho pertence ao Apóstolo João, etc. Embora legitimamente se possa inferir a autoria, por exemplo, de Lucas e João, todavia só dos textos nada se depreende. Não se esqueça, porém, da existência duma linha entre o testemunho direto da Bíblia e a evidência segura da tradição. De resto não é difícil identificar a autoridade da Escritura com a das citações históricas, já que são bem diferentes os seus objetivos.

Há ainda a acrescentar, que a Bíblia não cessa de insistir na origem e na autoridade divinas, afirmando claramente que a sua mensagem é de Deus. Embora através de instrumentos humanos, o autor é apenas o Espírito Santo. Admite-se o sobrenatural tanto nas falas proféticas como nos acontecimentos históricos. Nada há de distinções artificiais entre o conteúdo interior da Palavra de Deus e a sua forma exterior. Ao apresentar-se-nos como a autêntica Palavra de Deus, a Bíblia põe-nos diante dum problema: ou cremos ou não cremos. Se bem que outras dificuldades possam surgir em ulteriores contatos com a Bíblia, o problema básico fica de pé, e por certo que ninguém pode ignorá-lo.