Comentário de J.W Scott: Deuteronômio 1:6-46

comentário bíblico do livro de deuteronômio
II. PRIMEIRO DISCURSO DE MOISÉS. Dt 1.6-4.40.

II.a Panorama retrospectivo (Dt 1.6-3.29).

1. A NOMEAÇÃO DOS CAPITÃES OU CHEFES (Dt 1.6-18). O primeiro discurso de Moisés (Dt 1.6-4.40) começa com uma revisão dos acontecimentos narrados em Nm 10-32. Em virtude das lições que encerram, tais narrações constituem uma característica das Sagradas Escrituras (cf. Sl 106; At 7). Isto só vem provar o interesse que Moisés tinha pelo seu povo.

À montanha, e ao vale, e ao sul (7). A Palestina a ocidente do Jordão divide-se naturalmente no "vale" (Shephalah) que se estende para o mar, na "montanha" que desde a Hebrom corre para norte, elevando-se por vezes a mais de 600 metros acima do nível do mar, e finalmente na parte "sul" (negeb) que se alarga para a região de Gaza e para a banda do Egito. O Líbano e o grande rio (o Eufrates) formam os limites naturais ou ideais da Terra Santa, para além da qual ficam situados as grandes reinos do Oriente (cfr. Ap 16.12). Amorreus... Cananeus (7). Desde longe que a Palestina era conhecida simplesmente por Canaã, e portanto os habitantes seriam cananeus (Gn 10.19; Gn 12.6). Os amorreus ou amurru aparecem já em monumentos que remontam ao terceira milênio A.C. Penetraram em Canaã pela norte e ocuparam a zona montanhosa nas margens da Jordão. O termo cananeu é por vezes usado para todos os habitantes da terra (Gn 12.6 nota) e não raro, como aqui, para os que vivem na planície, Cfr. 7.1 nota.

Eu a dei (8). Cfr. 1.25 nota. Entrai e possui (8). Cfr. Dt 1.21. O Senhor jurou a vossos pais (8). A promessa aos pais, confirmada por um juramento (Gn 22.16) é de novo referida em Dt 1.35; Dt 4.31; Dt 6.10,18,23; Dt 7.8,12; Dt 8.1,18; Dt 9.5; Dt 10.11; Dt 11.9,21; Dt 13.17; Dt 19.8; Dt 26.3,15; Dt 28.11; Dt 29.12; Dt 30.20; Dt 31.7,20-21,23; Dt 34.4. Vejamos um comentário inspirado a este passo em Hb 6.13-20. Moisés lembra constantemente ao seu povo que o amor de Deus não é devido a qualquer mérito pessoal (Dt 7.7; Dt 9.4), mas parte dum dom gratuito de Deus e da Sua antiga promessa. Os elementos dessa promessa, que são a semente, a terra e a bênção, encontram-se aqui de novo mencionados.

Não poderei levar-vos (9). O Senhor tomou a Seu cargo o que excedia as possibilidades de Moisés (Dt 32.11). Cabeças (13). A palavra aqui aplica-se a todo a chefe que tem uma posição de destaque. Quem primeiro aconselhou à nomeação destes chefes ou guias foi Jetro (Êx 18.19), mas supõe-se com a aprovação de Deus. O certo é que daí em diante essa nomeação faz parte da legislação permanente (Dt 16.18). Capitães (15). Em hebraico shoterim. No Egito estes "oficiais" (Êx 5.6) eram uma espécie de escritores subalternos que vigiavam a conta dos tijolos. Daí a designação de capitães, não já para a escravidão, mas para a vitória e para a justiça (Dt 16.18; Dt 20.5,8-9; Dt 29.10; Dt 31.28). Cfr. 6.9 nota. Juízes (16). Cfr. 4.1 nota. Nomeação e obrigações vêm descritas mais amplamente em: Dt 16.18; Dt 17.9; Dt 19.17-18; Dt 21.2; Dt 25.1. O estrangeiro (16). Cf. 10.18 nota; Êx 12.19 nota; Lv 16.29 nota. Na organização política de Israel destacavam-se quatro classes: os descendentes dos patriarcas, incluindo os "anciãos" e "príncipes"; os "estrangeiros" (heb. ger), quando provenientes de outras nações passavam a residir entre o povo eleito; os "peregrinos" (heb. toshab), geralmente provenientes de povos conquistados; e, finalmente, os "servos", que podiam ser comprados ou nasceram na casa. Além destes, contavam-se ainda os "estrangeiros" (heb. nokhri, cfr. Dt 17.15) que só temporariamente habitavam entre as israelitas para comércio ou outros negócios. Seja como for, o estrangeiro devia ser tratado como um irmão. O cuidado por todos aqueles cuja posição podia ter sido motivo de humilhação é uma das características mais acentuadas do Deuteronômio. Que contraste entre os códigos do Egito e da Babilônia. Cfr. 10.18-19 notas.

2. MISSÃO DOS ESPIAS (Dt 1.19-46). Grande e tremendo deserto (19). Cfr. 1.1 nota. Todos os viajantes concordam com esta descrição da vastidão de areia e rocha ao norte do Monte Sinai, onde as montanhas parecem queimadas com fogo e a terra coberta de pedra escura e penetrante. São raros os oásis com poços ou nascentes de água. Mas, após as chuvas, alguns dos vales cobrem-se de verdura, o que naturalmente deu para comer ao gado israelita. Várias vezes no Deuteronômio se faz referência a este "deserto". Que vistes (19). Moisés apela para a experiência pessoal dos israelitas. Sobe, possui-a (21). Cfr. 1.8 nota. É esta uma das frases características para indicar a entrada na Terra da Promissão. Os inimigos do povo de Deus não lhe resistirão (Dt 7.2), mas é sempre conveniente encorajá-lo a "possuir" aquilo que lhe fora prometido. A palavra yarash significa entrar na posse duma terra ou duma propriedade, expulsando os seus primitivos ocupantes, quer por conquista, quer por herança. É um termo que aparece no Deuteronômio nada menos que cinqüenta e duas vezes, por exemplo em Dt 19.2,14 e Dt 23.20. Traduz-se por "herdar" em Dt 2.31 e Dt 16.20, mas, embora o seu significado venha anexo ao de herança (cf. 1.38 nota), é no entanto distinto dele. Não temas, e não te assustes (21). O temor do Senhor fez desaparecer o temor dos homens (Dt 3.2,22; Dt 20.3-4; Dt 31.6,8; Js 1.9). Vós vos chegastes a mim (22). Embora os novos dos seus ouvintes tivessem nascido depois dos espias terem sido enviados, Moisés identifica-os com os mais velhos que se encontravam presentes quando eram mais novos. Escol (24). Era um vale situado ao sul e famoso pela sua fertilidade (cf. Nm 13.23). Boa é a terra que nos dá o Senhor nosso Deus (25). Muitas vezes Moisés no seu discurso se refere ao fato de ser "boa" a terra (Dt 3.25; Dt 4.21-22; Dt 6.11,18; Dt 8.7,10; Dt 9.6; Dt 11.17); o ser um dom extraordinário de Deus é idéia freqüente em todo o livro e faz parte essencial da sua mensagem. Respeitar-se-ão, todavia, as antigas fronteiras (Dt 19.14) e a santidade do lugar (Dt 21.23), mas não serão esquecidas as promessas da vitória (Dt 27.2-3), as bênçãos (Dt 15.4), e mesmo avisos de vários gêneros (Dt 28.52). A palavra hebraica nathan, traduzida aqui e em cerca de 60 textos por dar, treze vezes tem o significado de "entregar" (Dt 1.27; Dt 2.30,33,36; Dt 3.2-3; Dt 7.2,16,23-24; Dt 19.12; Dt 20.13; Dt 21.10). Fortificadas até aos céus (28). Escavações recentes vieram demonstrar que na Palestina muitas eram as cidades anteriores ao período mosaico, fortificadas com altas muralhas, a que dava acesso uma única entrada construída em declive. Filhos dos gigantes (28). Cf. 2.11,21 nota. Tanto as muralhas como os gigantes têm uma contraparte na vida cristã (Ef 6.12). Não vos espanteis (29). O desânimo origina o pecado da descrença (32) e, portanto, a indignação do Senhor (34). Moisés procura aproveitar o passado para dar lições para o futuro. Como um homem leva seu filho (31). Encantadora comparação, a que provavelmente Paulo se refere em At 13.18! Cfr. Dt 32.11-12. O Senhor... indignou-se (34). Tanto no Velho como no Novo Testamento (por exemplo Rm 1.18) as alusões à "ira de Deus" não podem facilmente ser modificadas ou suprimidas, sem alteração evidente do texto. Tal como aqui se apresenta o castigo, foi um processo de que o Senhor Se serviu para mostrar a Sua repulsa pelo espírito de revolta que grassava entre o povo e cujas conseqüências iriam sofrer as gerações futuras.

Calebe (36). O pensamento de Moisés dirige-se agora para dois dos seus contemporâneos que foram fiéis até ao fim-Calebe e Josué. A história de Calebe (Nm 13; Nm 14; Js 14; Js 15.13-18; Jz 1.12-15) pode perfeitamente servir de exemplo a todos aqueles que querem consagrar-se totalmente ao Senhor. O fato de vir mencionado em primeiro lugar deve-se talvez à sua idade e à posição que ocupava, como o principal dos intérpretes. O Senhor se indignou contra mim por causa de vós (37). Cf. 3.26 nota. Sendo imparciais os juízos de Deus, não admira que a rebelião de Moisés provocasse também a ira do Senhor. Não se define com exatidão a natureza do seu pecado (Nm 20.7-13; Dt 32.51; Sl 106.32-33), mas, quer na transgressão, quer no castigo, identificou-se com a geração anterior. Os vers. 36-38 ligam-se perfeitamente, não pela unidade do tempo, mas pela identidade de pensamento. Depois de aludir à pessoa de Calebe que, pela sua perseverança (36), entraria na terra prometida, Moisés ressente-se por ser excluído de tal privilégio (37), mas, por outro lado, consola-o a idéia de ter em Josué um digno sucessor e continuador (38). Esforça-o (38). Com que admirável abnegação Moisés se desempenhou dessa missão! (Dt 3.23-28; Dt 31.3-23). Herdar (38). A palavra hebraica nahal (cfr. 1.21 nota) aplica-se também à terra. O seu significado corrente encontra-se em Dt 12.12 e Dt 21.16, mas a maior parte das vezes anda ligada à concessão de terra feita por Deus. Cfr. Dt 3.28; Dt 4.21,38; Dt 12.9-10; Dt 15.4; Dt 19.3,14; Dt 20.16; Dt 21.23; Dt 24.4; Dt 25.19; Dt 26.1; Dt 29.8; Dt 31.7. Cfr. ainda 4.20 nota. E vossos meninos (39). Moisés continua a pensar naqueles que terão o privilégio de entrar na Terra da Promissão.

Não estou no meio de vós (42). Cfr. Jo 15.5. Amorreus (44). Em Nm 14.43 são chamados cananeus (cfr. 1.7 nota). Hormá (44). É uma palavra que significa "destruição", derivada do vocábulo hebraico herem. Cfr. 2.34 nota. Como foram várias as destruições, assim conhecemos mais de uma localidade com o nome de Hormá. Cf. Êx 17.7 nota. Muitos dias (46). Cf. 2.1,14 nota. Difícil de saber-se o que sucedeu durante estes anos, passados parte em Cades, parte no deserto. Cf. Nm 20