Fundo Histórico do Evangelho de João

LIVRO DE JOÃO, ESTUDO BIBLICO, FUNDO HISTÓRICO, TEOLOGICO
Fundo Histórico do Evangelho de João

O evangelho de João não se distingue somente pela linguagem com características semíticas, pelo estilo de meditação e pela forma de pensar em círculos. O seu conteúdo está relacionado a diversos movimentos religiosos do contexto da igreja primitiva.

Bem presente está a influência do AT. É verdade que o número de citações do AT não está acima da média. Mas estão distribuídos de forma equitativa por todo o evangelho. Às vezes são estabelecidas ligações surpreendentes com o AT (cf. Jo 10.34). Em outros trechos, mesmo sem citar uma passagem específica, são feitas alusões ao AT (por exemplo, Jo 1.45; 2.22).

O argumento principal para a escolha de citações do AT é a importância cristológica. O que interessa é demonstrar que Jesus é o Messias prometido. Nele se cumpriu o que o AT diz, por exemplo, sobre o cordeiro pascal (Jo 19.36; cf. Êx 12.46). Essa forma de interpretação do AT, que denominamos tipológica, é encontrada também em outros trechos do evangelho de João.

Além das citações, há algumas expressões que fazem lembrar o AT. Quando Jesus chama Natanael de verdadeiro israelita “em quem não há dolo” (Jo 1.47), somos lembrados de Salmos 32.2. Quando Jesus diz que o Pai “lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do homem”, (Jo 5.27), vemos por trás disso a visão de Daniel 7.14,22. Quando os fariseus dizem ao cego de nascença: “Tu és nascido todo em pecado, e nos ensinas a nós?” (Jo 9.34), eles aludem a Salmos 51.7.

Também as imagens características nos discursos de Jesus vem do AT: pão e luz, pastor e rebanho, videira e galhos. Todas estão relacionadas à tradição de esperança do AT. As correspondências apontam para uma direção: esse evangelho tem a sua origem no AT. Mas esse não é o único pano de fundo histórico-religioso.

Há também uma relação bem definida com o judaísmo da época.

Com isso queremos dizer o judaísmo do tempo em que se originou o NT. Nele algumas vertentes precisam ser analisadas: o judaísmo helenístico, como o encontramos principalmente em Filo de Alexandria; o judaísmo da Palestina, cujos representantes eram os fariseus e rabinos; as seitas judaicas, das quais principalmente os essênios de Qumran, têm certa proximidade com o evangelho de João.

Queremos apresentar suscintamente as influências dessas diversas linhas. C. H. Dodd e C. K. Barrett consideram especialmente grande a influência do judaísmo helenístico. Barrett escreve: “Poderíamos esperar que o judaísmo helenístico estivesse em relação paralela íntima com a obra de João; e isso se comprova na prática”.

O fato é que no evangelho de João aparecem várias possíveis alusões a Filo de Alexandria. Isso vale sobretudo para o prólogo e nele especialmente para a apresentação de Jesus como o logos (Jesus como a Palavra: Jo 1.1-14), mas também para a compreensão da natureza de Deus (Deus é espírito: Jo 4.23s; Deus é luz: 1Jo 1.5; só Deus é verdadeiro: Jo 17.3; não é possível compreender a Deus: Jo 1.18).

Também as figuras simbólicas (fonte da vida, caminho, pastor e rebanho) podem ser achadas em Filo. Mesmo assim, permanecem diferenças consideráveis em relação ao judaísmo helenístico. Enquanto a interpretação do AT no evangelho de João é tipológica, em Filo encontramos uma explicação filosófico-alegórica do AT. Sobretudo faltam no evangelho de João conceitos do helenismo como imortalidade, incorruptibilidade, alegria, piedade, virtudes e outros.

Evidentemente precisamos contar com certa abertura do quarto evangelho em relação ao judaísmo helenista (cf. Jo 7.35; 12.20s.), mas é quase impossível falar de influência decisiva a não ser no prólogo.

Que peso tinha a influência do judaísmo da Palestina? Enquanto P. Billerbeck e A. Schlatter crêem que tinha peso considerável, W. G. Kümmel e A. Wikenhauser discordam. R. Schnackenburg acha que deve ser levado em consideração pelas seguintes razões:

Como tora no judaísmo da Palestina, também nomos é designação, por um lado, da lei mosaica (Jo 1.17; 7.19,23), e, por outro, de todo o AT (Jo 1.45; 8.17 e outros). Além disso, a interpretação que os rabinos davam à lei, tem influência sobre alguns textos desse evangelho: a circuncisão no sábado (Jo 7.22), carregar cargas no sábado (Jo 5.10), ouvir um acusado antes de condená-lo (Jo 7.51) etc. Encontramos regras rabínicas de intrepretação de textos em várias passagens: 6.31ss; 7.23; 8.56; 10.34; 12.41. A conversa de Jesus com Nicodemos está marcada pela arte rabínica do debate.

Todas essas observações isoladas confirmam que o evangelho de João vive de tradições que têm a sua origem no judaísmo da Palestina. Mas não é possível comprovar a influência significativa desse judaísmo sobre o evangelho de João.

E com a seita de Qumran é diferente? Na época da publicação dos primeiros manuscritos de Qumran, havia grande esperança de novas revelações. K. G. Kuhn mostra isso quando escreve: “Nesses novos textos estamos tocando o solo original do evangelho de João e esse solo original é … uma religiosidade judaico-palestina de uma seita de estrutura gnóstica.”11

Não demorou para que surgisse uma explicação biográfica. A suposição sugerida foi de que João teria sido um membro da seita de Qumran. O seu estilo de vida marcado pelo ascetismo, a pregação no deserto e o seu chamado claro ao arrependimento eram provas dessa teoria. João, filho de Zebedeu, era discípulo de João Batista, conclusão tirada de Jo 1.35-42. Como autor do quarto evangelho, teria transmitido essa influência de Qumran. Essa explicação biográfica está baseada em número exagerado de suposições.

Mais evidentes que isso são os paralelos entre o texto do evangelho e os escritos de Qumran. Tanto em um como em outro prevalece o mesmo dualismo luz-trevas (Jo 1.5; 3.19); verdade-mentira (Jo 8.44s); espírito-carne (Jo 3.6; 6.63); de baixo-de cima (Jo 8.23; 3.13,31); terreno-celestial (Jo 3.12); Deus-mundo (Jo 3.16; 8.23). Na seita de Qumran existe uma consciência muito clara de eleição, como mostra a regra da seita12 e o livro da adoração13: Os filhos da luz e os filhos das trevas são firmados por Deus nos seus caminhos. Isso nos faz lembrar os paralelos em Jo 8.23,44-47.

O assunto do Espírito Santo também é ensinado em Qumran de forma semelhante ao evangelho de João: os filhos da luz são plenos do Espírito. Ele é ativo e presente. Ele media o acesso a Deus pela verdade. Ele é o intercessor, defensor e consolador. De acordo com Qumran, no entanto, esse Espírito já foi dado sempre ao homem e só precisa de liberdade para se desenvolver. No evangelho, o Espírito é concedido aos discípulos após a partida de Jesus. A maior diferença, no entanto, é a base para a eleição: em Qumran a pureza e rigidez na observação da lei são decisivas. No evangelho de João é a fé em Jesus Cristo (Jo 5.40-44 e outros).

Essas observações levam às seguintes conclusões:

“Esses exemplos podem ser suficientes para justificar a afirmação de que há pontos de interseção significativos entre o evangelho de João e Qumran, mas é difícil provar no evangelho uma incorporação irrestrita das convicções de Qumran.”

“Precisamos concluir disso que o evangelho de João e a comunidade de Qumran provavelmente tenham tido o mesmo pano de fundo comum, mas também que o pensamento de Qumran não pode ter sido o solo original sobre o qual foram edificadas as formas de pensamento de João.”

Entre os estudiosos do NT do século XX tornou-se predominante a convicção de que o pano de fundo religioso do evangelho de João é sobretudo o gnosticismo. A dificuldade maior dessa posição está no fato de que não temos escritos que provem a existência de um gnosticismo gentio na época do surgimento do NT. Os documentos do gnosticismo gentio mais antigos que temos datam do século VII ou VIII. São os escritos dos mandeus. R. Bultmann foi o que mais se baseou neles no seu comentário sobre o evangelho de João. De fato, há semelhanças surpreendentes entre eles e o evangelho de João. Neles encontramos o mesmo dualismo luz-trevas, de cima-de baixo, morte-vida, Deus-mundo. O conceito da verdade tem importância especial nesses escritos. Descreve o relacionamento com o ser supremo e também com as outras pessoas, e pode também se tornar o poder de salvação personificado. Impossível não pensar nas palavras de Jesus: “Eu sou a verdade” (Jo 14.6). O mais surpreendente nesses escritos é que eles também falam de um personagem de salvação, um enviado celestial, que desce como a revelação, atrai as centelhas de luz divina e as leva de volta para Deus. O paralelismo com o prólogo de João não pode ser ignorado.

Por conseguinte, a pergunta fundamental é: Quem é dependente de quem? O evangelho de João foi escrito no mais tardar no final do primeiro século e os textos dos mandeus no século VII ou VIII. Continua valendo a afirmação de C. Colpe, quando diz que um personagem de salvação, como aparece nos escritos gnósticos, não pode ser comprovado em épocas pré-cristãs. Esse fato e as outras diferenças que podem ser observadas entre João e as convicções dos mandeus levaram W. G. Kümmel à conclusão de que o evangelho de João não pode ter sido influenciado pelos escritos dos mandeus. Segundo ele não é possível estabelecer uma relação entre o evangelho de João e círculos dos mandeus ou mesmo de outros círculos. A semelhança seria explicada pelo fato de que os escritos dos mandeus são testemunhas de um gnosticismo judaico, que também é o pano de fundo intelectual do evangelho de João. E será que há fontes para esse gnosticismo judaico?

As Odes de Salomão poderiam ser esse tipo de fonte. Aceita-se que foram escritas na primeira metade do século II d.C. Provavelmente se originaram no contexto sírio. Há muitas dúvidas ainda sobre esses escritos, mas provavelmente são gnósticos. Neles encontramos conceitos que, segundo o evangelho de João, são gnósticos: luz, vida, verdade, água viva, Espírito Santo, conhecer, crer, alegria, amor … . Mas há também outras expressões que não têm paralelo no evangelho de João, como leite, carta, imagem de luz … .

A dificuldade reside também na pergunta quem depende de quem. Schnackenburg acredita poder demonstrar por meio de exemplos que as Odes de Salomão são dependentes do evangelho de João. Isso o leva à seguinte conclusão: “Podemos concluir que as Odes de Salomão são importantes como ilustração da temática e linguagem figurada gnóstica, mas não podem ser consideradas pano de fundo concreto do evangelho de João. A dependência inversa é mais provável.”

Digno de nota nesse contexto são também os escritos de Nag-Hammadi. Em 1945 nesse lugar na região de Chenoboskion no Egito foram encontrados 50 tratados gnósticos em língua copta. Entre eles estavam o Evangelho de Tomé, o evangelho da Verdade (Evangelium Veritatis) e o apócrifo de João. Para a relação com o evangelho de João, o evangelho da Verdade é importante. Surgiu por volta de 150 d.C. Nele são discutidas as questões da salvação do homem e da origem do salvador. O homem vem de Deus e está destinado a voltar para Deus. O salvador abre esse caminho para a volta, ao revelar Deus e possibilitar o conhecimento de Deus. A salvação acontece por meio do conhecimento da revelação divina.

Apesar de algumas semelhanças conceituais, o caminho da salvação no evangelho de João é descrito de forma totalmente diferente. Base para a salvação não é somente a revelação de Deus, mas a encarnação do filho de Deus até o ponto da morte substitutiva (Jo 1.29). O caminho da salvação é achado por aqueles que crêem nesse salvador: João 3.16. A questão gnóstica é respondida de forma antignóstica: Salvação só é possível por meio da associação com Jesus de Nazaré, o filho de Deus que entrou na história da humanidade.