Formas de Poesia Bíblica


Formas de Poesia BíblicaFormas de Poesia Bíblica


As duas características da poesia bíblica são: o ritmo do pensamento e o ritmo do som. Quanto a este último, é o que normalmente se usa na nossa língua, e que aparece quase sempre na forma regular de sílabas acentuadas ou não, numa ou várias linhas, chamados versos, as mais das vezes rimadas. Na poesia bíblica, o ritmo do som depende quase exclusivamente da seqüência regular de sílabas acentuadas. No que respeita às não acentuadas, é difícil pronunciarmo-nos, pois se desconhece que papel poderiam desempenhar essas sílabas. “A questão mais difícil da métrica hebraica”, escreve o douto A. Bentzen, “é o problema do número de sílabas não acentuadas permitidas num texto”. Aquilo a que chamamos rima é largamente compensado na poesia hebraica por outra espécie de ritmo - o ritmo de pensamento ou de sentido, que é o paralelismo, já utilizado pelos poetas do Egito, da Mesopotâmia e de Canaã. 

São clássicas duas obras de autores ingleses que, como ninguém, aprofundaram este assunto. Trata-se de Leituras acadêmicas sobre a poesia sagrada dos hebreus, obra publicada em latim em 1753 por Robert Lowth, professor de poesia em Oxford e mais tarde bispo de Londres; e Formas da poesia hebraica, devida a Jorge Buchanan Gray, professor de hebraico no Colégio Mansfield, e que apareceu em 1905. 

O paralelismo hebraico toma várias formas, que só exemplos práticos poderão demonstrar. Seja o primeiro caso o do paralelismo perfeito, que se dá quando uma linha ou dístico se compõe de duas partes perfeitamente correspondentes. Repare-se em 

“Israel não tem conhecimento, 
O meu povo não entende” (Is 1.3), 

Onde Israel corresponde a meu povo e não tem conhecimento a não entende. Como as duas partes são sinônimas, tem esta forma de paralelismo o nome de paralelismo idêntico. Outro caso é o paralelismo antitético, em que uma das partes é contrária à outra. Pv 15.20 apresenta-nos um exemplo concreto. 

“O filho sábio alegrará a seu pai, 
Mas o homem insensato despreza a sua mãe.” 

Outro caso de paralelismo é o chamado “simbólico”, porque uma das partes utiliza o sentido literal e a outra o figurado. Veja-se o Sl 103.13 (com três sílabas acentuadas em cada parte): 

“Como um pai se compadece de seus filhos, 
Assim o Senhor se compadece daqueles que O temem”. 

Podemos ainda considerar um outro paralelismo, mais extenso, cruzado ou quiástico, como no Sl 30.8-10: 

“A Ti, Senhor clamei, e ao Senhor supliquei. Que proveito há no meu sangue quando desço à cova? Porventura Te louvará o pó? Anunciará ele a tua verdade? Ouve, Senhor, e tem piedade de mim, Senhor; sê o meu auxílio”. 

Aqui, a primeira parte corresponde à quarta, e a segunda à terceira. É o que mais ou menos se verifica nas palavras de Jesus, a que Mt 7.6 faz referência: 

“Não deis aos cães as coisas santas, Nem deiteis aos porcos as vossas pérolas, Não aconteça que eles (os porcos) as pisem com os seus pés, E, voltando-se, eles (cães) vos despedacem.” 

Citamos apenas casos de paralelismo perfeito, de versos com o mesmo número de sílabas acentuadas. Mas há que admitir ainda o paralelismo imperfeito, onde, por exemplo, uma das unidades de pensamento numa parte não tem correspondência na outra. Vejamos o caso do Sl 1.5, em que o verbo “não subsistirão” da primeira parte não tem correspondência na segunda: 

“Pelo que os ímpios não subsistirão no juízo, 
Nem os pecadores na congregação dos justos”. 

Conserva-se, todavia, o número de sílabas acentuadas, porquanto “juízo” tem uma sílaba nessas condições, e “congregação dos justos” duas. Do mesmo modo em Is 1.3: 

“O boi conhece o seu possuidor, E o jumento a manjedoura do seu dono”, 

Onde, na segunda parte não há correspondência do verbo da primeira, mas dá-se a lei da compensação, pois, enquanto “manjedoura do seu dono” tem duas sílabas acentuadas, “o seu possuidor” não tem mais que uma. Este fenômeno, também chamado “paralelismo imperfeito com compensação”, é com freqüência usado na poesia bíblica. Por vezes o paralelismo é tão imperfeito, que nos fica apenas a compensação, ou melhor, como lhe chama Lowth “o paralelismo sintético” ou, no dizer de Gray, “paralelismo formal”. 

Na realidade não se trata de qualquer paralelismo; há somente ritmo de som e não ritmo do pensamento. Sirva de exemplo o Sl 27.6: 

“Também a minha cabeça será exaltada. Sobre os meus inimigos que estão ao redor de mim”.

Neste caso são três as sílabas acentuadas em cada parte, mas sem qualquer espécie de paralelismo de sentido. De outras vezes, com o paralelismo imperfeito e sem compensação, são de observar os versos de extensão desigual, seguindo, no entanto, determinadas regras, mais ou menos equivalentes à nossa métrica e em que as sílabas acentuadas se alternam na razão de 4 por 3. É o que podemos constatar na descrição do caos em Jr 4.23-26: 

“Observei a terra, e eis que estava assolada e vazia; 
e os céus, e não tinham a sua luz. 
Observei os montes, e eis que estavam tremendo; 
e todos os outeiros estremeciam. 
Observei e vi que homem nenhum havia, 
e que todas as aves do céu tinham fugido. 
Vi também que a terra fértil era um deserto, 
e que todas as suas cidades estavam derribadas diante do Senhor”. 

Mas a forma mais corrente do “paralelismo imperfeito sem compensação” é a que alterna 3 por 2 versos, e toma o nome de qin’ah ou métrica “de endecha”, freqüente no livro das Lamentações. Admire-se o seguinte caso em Lm 3.1: 

“Eu sou o homem que viu a aflição 
pela vara do seu furor”. 

Mas não se limita só a este tipo de poesia, pois pode servir para exprimir uma esperança confiante, como no Sl 27.1: 

“O Senhor é a minha luz e a minha salvação; 
A quem temerei? 
O Senhor é a força da minha vida; 
de quem me recearei?” 

Nas palavras de Jesus não raro se encontram casos destes.  Há ainda a considerar o “paralelismo gradativo”, quando um membro (ou parte dum membro) duma linha é repetido na outra, sendo este, ponto de partida para um novo membro. Veja-se como se iniciam os primeiros versículos do Sl 29, com a repetição do “Dai ao Senhor”, ou ainda o Sl 92.9: 

“Pois eis que os teus inimigos, Senhor, eis que os tens inimigos perecerão; serão dispersos todos os que praticam a iniqüidade”. 

Este caso não deixa de ter um interesse particular, pela semelhança que apresenta com o poema épico dedicado a Baal, descoberto entre as inscrições do Ras Shamra: 

“Eis que os teus inimigos, ó Baal, eis que os teus inimigos destruirás, eis que tu destruirás os teus inimigos”. 

Há um autor que a este propósito cita um trístico do poema de Aqhat ou Dan’el, cujo conteúdo lembra o do Sl 21.4: 

“Pede vida a Aqhat, meu filho; pede vida e eu ta darei, Vida imortal, e eu ta concederei”. 

O caso do Sl 92.9 é digno de registro, não só como exemplo de paralelismo gradativo, mas como modelo de trístico e não dístico. O esquema rimático é 3 por 3 por 3. É o que se dá no Sl 24.7-10: 

“Levantai, ó portas, as vossas cabeças; 
Levantai-vos, ó entradas eternas, 
E entrará o Rei da Glória...” 

Apresenta-se-nos aqui uma série de quatro trísticos, formando duas curtas estrofes. A presença de estrofes na poesia bíblica tem sido muito discutida, pelo fato de se encontrarem aqui e ali vestígios duma disposição estrófica. É o caso dum estribilho repetido, como no Sl 42 e no Sl 43 (que em princípio formavam um só), mostrando que as estrofes terminam respectivamente nos versos 5 e 11 do primeiro e no 5 do segundo. Outro exemplo é a profecia de Is 9.8; Is 10.4 (com Is 5.25 e segs.), onde se destaca o estribilho: “Com tudo isto não se apartou a Sua ira, mas ainda está estendida a Sua mão”. Também nas palavras de Jesus poderíamos encontrar exemplos deste caso. A disposição estrófica é também freqüente noutros esquemas acrósticos da poesia bíblica, como no Sl 119, que consta de vinte e duas estrofes, tendo cada uma oito “dísticos”.