Comentário de F.F Bruce: Romanos 1:16-17

LIVRO DE ROMANOS, ESTUDO BIBLICO, TEOLOGICOO EVANGELHO SEGUNDO PAULO (1:16-11:36).

1. O Tema do Evangelho: A Justiça de Deus Revelada (1:16,17).

“Creiam-me”, prossegue Paulo, “não tenho motivo para ficar envergonhado com o Evangelho que prego. Não mesmo! Ele é o poderoso meio que Deus emprega para a salvação de todos os que crêem — primeiro do judeu, e do gentio também. E por que é assim? Porque neste Evangelho está a revelação da forma divina da justiça — forma da justiça que se baseia no princípio da fé e que é apresentada aos homens para que a aceitem pela fé. Foi dessa justiça que o profeta disse: “Aquele que é justo pela fé viverá.””

Para entender o sentido em que se diz que o Evangelho revela a justiça de Deus é preciso ter em mente alguns fatos relacionados com o conceito de justiça no Velho Testamento, conceito que forma o principal cenário de fundo do pensamento e do linguajar de Paulo.

“As idéias de certo e errado entre os hebreus são idéias forenses. Isto é, o hebreu sempre pensa no certo e no errado como se houvessem de ser resolvidos diante de um juiz. Para o hebreu, justiça é mais um estado legal do que uma qualidade moral. A palavra “justo” (Hebr.: saddtq) significa simplesmente “certo”, e a palavra “ímpio” (Hebr.: rasha') significa “errado”. “Desta vez pequei”, diz Faraó, “Jeová está certo (AV: “é justo”), e eu e o meu povo estamos errados (AV: “somos ímpios”), Êx 9:27. Jeová está sempre certo, pois Ele não somente é soberano, mas também é coerente consigo mesmo. Ele é a fonte da justiça (...) a vontade coerente de Deus é a lei de Israel.” Deus é justo. E os homens e mulheres que estão “certo” em relação a Deus e à Sua lei são justos. Portanto, quando a justiça de Deus se revela no Evangelho, revela-se de maneira dupla: O Evangelho nos diz primeiro como os homens e mulheres, pecadores como são, podem vir a estar “corretos” com Deus. Segundo, como a justiça pessoal de Deus é vindicada no próprio ato de declarar “justos” os homens e mulheres pecadores. Este segundo aspecto da matéria em foco não é tratado imediatamente, mas o primeiro é expandido o suficiente para mostrar que o princípio pelo qual Deus coloca as pessoas na relação certa com Ele é o princípio da fé, e para esta afirmação, a autoridade do Velho Testamento é acrescentada, nas palavras de Habacuque 2:4: “o justo viverá pela sua fé”. Habacuque 2:4 pode ser chamado o “texto” desta epístola; o que vem a seguir é em grande medida uma exposição das palavras do profeta.

1.16 Não me envergonho do evangelho. Algumas versões acrescentam “de Cristo”. Mas o genitivo “de Cristo” não consta do texto mais bem documentado (ver RV, RSV, NEB). “Não me envergonho” é um exemplo da figura de linguagem chamada litotes — afirmação pela negação do contrário. O que Paulo quer dizer é que ele se gloria no Evangelho e considera alta honra proclamá-lo.

1.17 Visto que a justiça de Deus se revela no evangelho. Notável antecipação deste duplo sentido da “justiça de Deus” — (a) Sua justiça pessoal e (b) a justiça com a qual Ele justifica os pecadores a partir da fé — aparece na literatura de Qumran. “Sua justiça apaga o meu pecado. ... Se tropeço devido à iniquidade da carne, o meu julgamento está na justiça de Deus que estará firme para sempre. ... Por Sua misericórdia Ele fez que eu me aproximasse e por Sua amável bondade traz para perto dele o meu julgamento. Por Sua justiça verdadeira me julga, e por Sua abundante bondade faz expiação de todas as minhas iniquidades. Por Sua justiça me limpa da impureza que mancha os mortais e do pecado dos filhos dos homens — para que eu louve a Deus por Sua justiça e ao Altíssimo por Sua glória.”


De fé em fé. NEBmg.: “Baseia-se na fé e se dirige para a fé” parece preferível ao texto de NEB: “Um caminho que parte da fé e na fé termina.” Conforme J. Murray, o propósito para o qual Paulo repete isto aqui e em 3:22 (“mediante a fé em Jesus Cristo, para todos (...) os que crêem”) é “acentuar o fato de que a justiça de Deus não somente age salvadoramente em nós pela fé, mas também age salvadoramente sobre todo aquele que crê”. [4]

O justo viverá por fé. Estas palavras oriundas de Habacuque 2:4 (onde TM registra: “... por sua fé”) já tinha sido citada por Paulo em Gálatas 3:11 para provar que não é pela lei que o homem é justificado perante Deus. Elas tornam a aparecer, juntamente com parte do seu contexto, em Habacuque 10:38 para incentivar os leitores daquela epístola a perseverarem e a não retrocederem. O hebraico emunuh, traduzido “fé” em Habacuque 2:4 (LXX pistis), significa “perseverança” ou “fidelidade”. Na passagem de Habacuque esta perseverança ou fidelidade baseia-se numa firme confiança em Deus e Sua Palavra, e é esta firme confiança que Paulo compreende pelo termo.

Habacuque, clamando a Deus contra a opressão sob a qual seu povo gemia (no século sétimo a. C, recebeu de Deus a segurança de que a impiedade não triunfaria indefinidamente, a justiça seria finalmente vindicada, e a terra se encheria “do conhecimento da glória do Senhor, como as águas cobrem o mar” (He 2:14). Esta visão poderia demorar a realizar-se, mas se cumpriria com toda a certeza. Enquanto isso, os justos resistiriam até o fim, dirigindo as suas vidas por uma lealdade a Deus inspirada pela fé em Sua promessa.

No comentário de Habacuque achado em Qumran, este pronunciamento divino é aplicado a “todos os cumpridores da lei na casa de Judá, os quais Deus salvará do lugar do juízo por causa do seu serviço e da sua fidelidade ao Mestre de Justiça” (ver G. Vermes, op. cit., p. 237). No Talmude (TB Makkoth 24a) “o justo viverá por sua fé” é citado ao lado de Amos 5:4: “Buscai-me, e vivereis”, como exemplo de como a lei toda pode ser resumida em uma só sentença. “Será que 'buscai' (em Am 5:4) significa 'buscai a Torah inteira'?”, per- guntou o rabi Nachman ben Isaque. “Não”, foi a resposta do rabi Shimlai; “Habacuque veio depois dele e a reduziu a uma sentença, como está escrito: “O justo viverá pela sua fé.””

Quando Paulo focaliza as palavras de Habacuque e vê nelas a verdade central do Evangelho, parece atribuir-lhes este sentido: “aquele que é justo (justificado) pela fé é que viverá.” Os termos do pronunciamento divino mediante Habacuque são gerais o bastante para permitir a aplicação que Paulo faz deles — aplicação que, longe de fazer violência à intenção do profeta, expressa a permanente validez da sua mensagem.

Para Paulo, como para muitos outros judeus, “vida” (principalmente vida eterna) e “salvação” eram praticamente sinônimos. Se o fato de Paulo denominar-se a si mesmo “hebreu de hebreus” (Fp 3:5) significa (o que é provável) que era filho de pais de língua aramaica, e que foi criado falando essa língua, muito provavelmente empregaria — quando estivesse falando em sua língua natal — a mesma palavra hayyeb para dizer tanto “vida” como “salvação”, “aquele que é justo (justificado) pela fé é que viverá” significa, pois, “aquele que é justo (justificado) pela fé é que será salvo.” Para o apóstolo, a vida, no sentido de salvação, começa com a justificação, mas vai além dela (ver 5:9s.). Inclui a santificação (assunto dos caps. 6-8) e se consuma na glória final (5:2, 8:30). Neste compreensivo sentido, “salvação” bem pode ser considerada como a chave “para abrir as câmaras da teologia de Paulo”.


Fonte: Epistle of Paul to the Romans de F. F. Bruce. M.A., D.D. Catedrático de Crítica Bíblica e de Exegese Bíblica na Universidade de Manchester (Rylands)