Deus Pode Nos Tentar?

JESUS CRISTO, LONGANIMIDADE, ESTUDO BIBLICOS, TEOLOGICOS
É muito comum ouvirmos essas expressões: “O Senhor me colocou à prova”, “Deus colocou essa tentação para ver se eu seria leal.” Como podemos entender essas expressões apropriadamente? Na verdade, a pergunta é: “Deus nos prova, ou nos tenta”?

A palavra que o N.T usa para “tentar”, ou “por à prova”, é πειραζω (Gr.: peirazo), que ocorre cerca de 35 vezes no Textus Receptus, assim como no texto grego de Westcott e Hort. No A.T a palavra é נסה (hebr.: nasah), que na LXX é vertida pela palavra πειραζω neotestamentária, em Gênesis 22:1.

Em Gênesis 22:1 nos é informado que Deus externa e literalmente colocou seu servo Abraão à prova, para testar a sua fé. Interessante que a palavra usada na LXX é a mesma que em alguns contextos significa “tentar internamente, por meio de inclinação pecaminosa”. Com isso em mente, parece uma contradição entre Gênesis 22:1 e Tiago 1:13-15.

Vamos tentar responder biblicamente a pergunta feita no início, assim como esclarecer essa suposta contradição.

A palavra πειραζω vem de πειρα (gr.: peira) que significa “um teste, um experimento, uma prova.” É usada apenas duas vezes no N.T, em Hebreus 11:29 para se referir a tentativa dos Egípcios de atravessarem o Mar Vermelho atrás dos hebreus. A outra ocorrência de πειρα é no versículo 36 do mesmo capítulo, que menciona as provações que os servos de Yahweh enfrentaram no A.T.

Basicamente, o sentido de πειραζω é de tentação por influência ou situações externas ou internas, o que Vine chama de “bom e mal sentido”. (Veja Dicionário Expositivo de Vine, “Tentar”.) Isso fica bem claro nos Evangelhos. Vamos analisar todos os versículos no N.T onde essa palavra ocorre e ver, pelo seu contexto, o seu sentido.

A palavra πειραζω é usada de Jesus sendo tentado pelo diabo (Mat. 4:1); do diabo como “o tentador” (Mat. 4:3); dos Fariseus testando o conhecimento de Jesus para O enlaçar (Mat.16:1); testando Jesus para saber o que Ele iria dizer (Mat. 19:3); fazendo uma armadilha doutrinária (Mat. 22:18; 35; Mar 8:11; 10:2; 12:15; Luc. 11:16; 20:23) O próprio Cristo colocando à prova seus discípulos (Jo. 6:6; 8:6); de por o Espírito Santo à prova (At. 5:9), por Deus à prova (At. 15:10); de tentar fazer algo, no sentido puro de tentativa (At. 16:7; 24:6); de ser tentado internamente por meio de impulsos (1Cor. 7:5); de por Deus à prova (1Cor. 10:9); de provações no geral (1Cor. 10:13); de provar à nós mesmos, fazendo um escrutínio pessoal (2Cor. 13:5); de provação comum a todos os homens, inclusive aos que auxiliam os que estão sendo provados (Gal. 6:1); do “tentador” (1Tess. 3:5); de Cristo sendo tentado assim como nós (Heb. 2:18); de Deus tentado pelos antepassados (Heb. 3:9); Cristo tentado em todos os sentidos, como nós mesmos. (Heb. 4:15); de Abraão provado no caso do sacrifício de Isaque (Heb. 11:17); de servos de Yahwe para passarem provações externas (Heb. 11:37); de provações internas (Tg. 1:13; 1:14); de provar os falsos apóstolos (Ap. 2:2); de provação externa, na “prisão” (Ap. 2:10); de grande provação externa com todos os seres humanos (Ap. 3:10)

Fica muito claro a partir da maioria desses versículos, que não podemos definir o verbo πειραζω (tentar) apenas no sentido de uma inclinação pecaminosa interna, paixões pecaminosas, uma vez que essa mesma palavra grega é aplicada à Deus, Jesus, e ao Espírito Santo. Então, nesse caso, ser Deus, Jesus, ou o Espírito santo “tentado”, ou “posto à prova”, só pode significar algo além de tentação pecaminosa interna, como a temos devido à nossa imperfeição. Estes [i.e, Deus, Jesus e o Espírito Santo] são perfeitos no mais elevado grau imaginável.

Mas vamos nos concentrar no tópico de nossa postagem.

Poderia dizer que existem três tipos de provações:

1. Nossa inclinação interna.
2. Situações permitidas por Deus.
3. Situações criadas por Deus.

1. Considere 1 Coríntios 7:5, Gálatas 6:1 e Tiago 1:13-15 como excelentes exemplos de como as Escrituras usam πειραζω para se referir a tentações que brotam em nossas mentes e corações devido a nossa constituição pecadora e imperfeita.

2. No caso de Atos 8:1 e Hebreus 11:37, vemos o caso de coisas muito ruins que ocorreram com servos de Deus no passado, que colocaram a fé desse homens à prova, sendo essas provações causadas externamente por homens maus, ou um proceder contrário ao de Deus, pela perseguição devido à fé. (Mt. 5:11, 12) Essas provações, ou situações que nos põem à prova, não são causadas por Deus. Quando lemos Hebreus 11:36-38, nós percebemos que é inconcebível, pelo menos da minha parte, acreditar que Deus é o causador desses sofrimentos apenas para “testar” a fé do Seu povo. Estas provações, assim como as de Jó, foram apenas permitidas por Deus.

3. Em Gênesis 22:1, Êxodo 16:4, João 6:6 e 8:6, vemos casos onde provações são criadas diretamente, ou por Deus, ou pelo Seu Filho. Uma leitura devocional e com oração nos fará ver claramente que existe uma doçura nessas provações, que estas não causaram dano, nem sofrimento em ninguém envolvido. Mesmo no caso de Abraão, Yahweh jamais permitiria que fosse feito “mal ao menino”. (Gn. 22:12) Desde o princípio já estava estabelecido na mente de Deus que aquilo serviria apenas de ilustração prefigurativa do que Yahweh faria no futuro, ao dar Seu filho como sacrifício em benefício da humanidade. (João 3:16) Existe até mesmo na declaração de Davi uma expressão sublime de devoção à Yahweh, quando ele diz:

“Examina-me, ó Jahweh, e põe-me à prova;
Refina-me os rins e o coração.” (Salmos 26:2)

No caso de Davi, percebemos uma relação que ele faz entre ser posto à prova e ser refinado, ou seja, melhorar o amor dele à Deus. Então, nesse caso, não é uma provação de sofrimentos e angustias, pois nenhum homem poderia pedir à Yahweh em sã consciência: “me faça sofrer e assim me refine”.

Tendo esses três fatores em mente, vamos primeiro resolver a suposta contradição entre Gênesis 22:1 e Tiago 1:13-14. A compreensão é bem mais simples do que parece. Apesar de a mesma palavra ser usada nos dois casos, ambas estão em contextos diferentes.

Em Gênesis 22:1, Yahweh prova beneficamente a Abraão. Como foi mencionado, essa prova de fé não era algo mal. Querendo ou não, ninguém seria sacrificado, tudo aquilo era ilustrativo. Se Abraão dissesse que não iria sacrificar seu filho, isso mostraria que sua fé e amor à Deus eram limitados, e assim Isaque continuariam vivo. Se Abraão aceitasse a ordem de Deus e estivesse até mesmo DISPOSTO a sacrificar seu filho, Isaque também continuaria vivo, assim como de fato ocorreu. Nesse caso, Yahweh literalmente pôs Abraão à pronta no bom sentido da palavra, sem causar nem dor, nem sofrimento para ninguém. Como visto nos três fatores acima, esse é o tipo de “provação” que Deus pode fazer, pois tem bons objetivos, objetivos nobres e ninguém sai prejudicado com isso. Nesse caso evita-se a expressão “tentar” devido a sua conotação pecaminosa.

Já em Tiago 1:13-14, embora se use o mesmo πειραζω, há um sentido diferente. Como indicado pelo versículo 15, ali se refere a “por à prova”, ou “tentar”, no íntimo, ao inclinar alguém a fazer algo que é mal, a cometer uma transgressão da lei divina, transgressão essa que causará danos a si mesmo e a outros. Assim, Deus jamais põe à prova nesse sentido; ou seja, Ele jamais influência as pessoas para o mal, jamais incentiva a prática do pecado, ao invés disso, Ele nos “livra da tentação”, e não nos conduz à ela. (Cf. Mt. 6:13)

Em Mateus capítulo IV nós vemos as duas ideias opostas juntas. (Cfr. Mateus 4:1) O Espírito de Deus leva Jesus ao deserto para ser “tentado”. Na leitura de Mateus uma pessoa pode chegar a entender quase que uma “cooperação” entre dois espíritos tão opostos um ao outro. Longe disso! O Espírito Santo e Perfeito de Yahweh conduziu Jesus para o deserto apenas como alusão aos sacrifícios no antigo Israel. (Lv. 16:21) Os Evangelhos de Marcos e Lucas apenas dizem que Ele foi “para o ermo”. Provavelmente além do contexto tipificativo messiânico, Cristo foi ao ermo também para pensar em sua Comissão sagrada de levar as boas novas do Reino. (Cf. Gl. 1:18) Nessa ocasião, o diabo APROVEITOU A OPORTUNIDADE para tentar Jesus. Isso fica bem evidente em Lucas 4:13, que ao terminar de relatar as provações e tentações sofridas por Jesus no deserto, diz:

“Assim, o Diabo, tendo terminado com toda a tentação, retirou-se dele até outra OCASIÃO CONVENIENTE.”

Assim vemos que, embora Gênesis e Tiago usem a mesma palavra, cada um dos relatos tem um ideia diferente, separada. Portanto, não há contradição entre as duas passagens.

Por último, chegamos à resposta a nossa pergunta inicial: “Deus nos prova, ou nos tenta”?

A resposta é sim e não, dependendo do contexto. Vamos responder dentro dos 3 fatores mencionados no início do nosso estudo:

1. Deus pode, por exemplo, permitir que adversidades nos atinjam, podemos sofrer devido a alguma injustiça, uma doença, ou qualquer outra situação lastimável. Ao PERMITIR que isso ocorra, Yahweh nos põe à prova, na linguagem patriarcal, e nesse sofrimento podemos ver até onde vai nosso amor por Deus.

2. Nos tempos modernos, eu, particularmente, não acho que Deus crie literalmente situações só para que possa ver até onde somos leais. Os poucos exemplos que vemos nesse respeito nas Escrituras havia uma questão profética envolvida. Acho que deve existir coisas mais importantes para Ele, do que ficar criando situações só para ver se vamos obedecer ou não.

3. E a resposta também é conclusivamente NÃO no que diz respeito à influência para o pecado. Assim como é IMPOSSÍVEL alguém tentar a Deus para fazer algo mal, assim é impossível da mesma forma Ele tentar alguém, como disse Tiago. (1:13)


Outros estudos bíblicos que estão relacionados com este assunto:

Cf. Teologia da Carta de Tiago
Cf. Comentário da Carta de Tiago
Cf. Introdução Literária à Epístola de Tiago
Cf. Palavra no Original para Pecado
Cf. As Consequências do Pecado