Comentário de John Murry: Introdução aos Romanos

Comentário de John Murry: Introdução aos Romanos

Comentário de John Murry: Introdução aos Romanos


É indiscutível que o apóstolo Paulo escreveu a carta aos Romanos, e, por esse motivo, conforme um dos mais recentes comentadores declarou, trata-se de “uma proposição que não precisamos discutir”.[nota:1] Todavia, devemos reconhecer a importância da autoria paulina, quando a relacionamos ao conteúdo da carta.

Ao lermos a carta, não podemos escapar à ênfase que recai sobre a graça de Deus e, mais especificainente, sobre a justificação pela graça, mediante a fé. Para este evangelho, Paulo fora separado (1 .1). Quando ele diz “separado”, dá a entender que todos os interesses e apegos estranhos a promoção do evangelho haviam sido rompidos, arrancados e que o evangelho o tornara cativo. Este amor e dedicação devem ser considerados à luz daquilo que) Paulo fora anteriormente. Ele mesmo testificou: “Vivi fariseu conforme a seita mais severa da nossa religião” (At 26.5). [Nota: 2] O seu farisaismo o constrangeu a pensar consigo mesmo: “Muitas coisas devia eu praticar contra o nome de Jesus, o Nazareno” (At 26.9). Paulo tornara-se o arquiperseguidor da igreja de Cristo (cf. At 26.10-11, I Tm 1.13). Por trás desta oposição, havia o zelo religioso em busca de uma maneira de ser aceito diante de Deus; isto era a antítese da graça e da justificação pela fé.

Portanto, ao escrever esta grandiosa e polêmica obra, a respeito da exposição e defesa do evangelho da graça, Paulo a fez como alguém que conhecera plenamente, nas profundezas de sua própria experiência e devoção, caráter daquela piedade que agora, na qualidade de servo de Jesus Cristo, se via obrigado a caracterizar como religião de pecado e morte. O farisaísmo era uma religião de lei. Seu horizonte era definido e circunscrito pelos recursos da lei e, por conseguinte, pelas obras da lei. O encantamento do farisaismo foi decisivamente quebrado por ocasião do encontro de Paulo com Jesus, na estrada para Damasco (cf. At 9.3-6; 26.12-18). Por isso, o apóstolo escreveu: “E o mandamento que me fora para vida, verifiquei que este mesmo se me tornou para morte” (Rm 7.10); “Porque eu, mediante a própria lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus” (GI 2.19); “Vista que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado” (Rm 3.20). Ao esclarecer a antítese entre a graça e a lei, a fé e as obras, Paulo escreve sobre uma antítese que se refletia no contraste entre os dois períodos da história de sua própria vida, os quais estavam divididos pela sua experiência na estrada de Damasco. Esse contraste torna-se ainda mais significativo no caso de Paulo, pois o zelo que o caracterizou, em ambos os períodos, foi insuperável quanta a seu fervor e intensidade. Ninguém foi capaz de conhecer melhor a autocomplacência da justiça da lei, por um lado, e a glória da justiça de Deus, por outro.

A importância da autoria paulina não deve ser apreciada somente por pertencer ao tema central da carta; existe outra característica notável vinculada ao fato de que Paulo é o seu autor. Os leitores da carta podem, em algumas ocasiões, indagar a si mesmos qual a relevância dos capítulos 9 a 11. Estes capítulos parecem perturbar a unidade e a sequência lógica do argumento. A inclusão deles, na verdade, tem sua explicação em algo muito mais importante do que na identidade de Paulo. Mas tal fator não pode ser negligenciado. Paulo era judeu. E não apenas isto; era um judeu que se convertera daquela mesma perversão que caracterizava o povo judeu como um todo, na época em que Ele escreveu esta carta. Paulo conhecia a mentalidade judaica como nenhuma outra pessoa. Sabia qual a gravidade das questões debatidas na incredulidade de seus compatriotas segundo a carne. Avaliou a desonra que essa incredulidade trazia a Deus e ao seu Cristo. “Porquanto, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vem de Deus” (Rm 10.3). “Deus lhes deu espírito de entorpecimento, olhos para não ver e ouvidos para não ouvir, até ao dia de hoje” (Rm 11.8). Em seus labores missionários, Paulo encontrou muito dessa hostilidade judaica contra o evangelho (cf. At 13.45-47; 14.2,19; 17.5-9; 18.6,12 e 19.9). Porém, essa hostilidade e a perseguição por ela engendrada não apagaram a intensidade do amor por seus compatriotas, um amor que o constrangeu a proferir aquelas palavras que dificilmente acham correspondentes no restante das Escrituras: “Porque eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor . de meus irmãos, meus compatriotas, segundo a carne” (Rm 9.3). A extensão envolvida no grandioso tema da carta, juntamente com o pecado característico do povo judeu, pecado do qual o apóstolo acusa diretamente os judeus, em Romanos 2.17-29, torna inevitável, por assim dizer, que Paulo tivesse expressado o ardente desejo de seu coração em favor da salvação de seus irmãos — “A boa vontade do meu coração e a minha súplica a Deus a favor deles são para que sejam salvos” (Rm 10.1).

Existe outra consideração relacionada à autoria paulina que nos convém observar. Paulo era, eminentemente, o apóstolo dos gentios (cf. At 13.47,48; 15.12; 18.6,7; 22.21: 26.17; G12.2,8; Ef 3.8 e 1 Tm 2.7). Em Romanos, encontramos não somente referências expressas a isso (11.13; cf. 1.13), mas a própria redação da carta derivou-se do seu sentimento de comissão e dever, associado àquele fato. O apóstolo envidou esforços especiais para assegurar aos cristãos de Roma que por diversas vezes se propusera a ir lá (1. 11-13; 15.22-29). Impedido de cumprir o seu desejo, escreveu a carta em cumprimento de sua comissão apostólica. Enquanto a lemos, precisamos levar em conta o zelo missionário e o propósito pelo qual Paulo se deixava animar na posição de apóstolo dos gentios; essa consideração está intimamente ligada às complexidades da igreja de Roma e ao seu lugar naquela região que Paulo reputava preeminente em seus labores apostólicos.



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NOTAS
1 C. K. Barrett, The Epistle to the Romans, Nova Torque, 1957, p.1.
2 O termo “fariseus” vem de palavras semíticas que transmitem a idéia de “os separados”. Se há qualquer alusão a isso no uso que Paulo fez do termo “separado”, em Romanos 1.1, quão diferente era a abrangência de sua separação e da direção a qual apontava, bem como aquilo para o que fora separado.


FONTE: Comentário Bíblico Fiel: John Murry