Comentário de Romanos 2:1-29 (J. W. Scott)

Comentário de Romanos 2:1-29 (J. W. Scott)

Comentário de Romanos 2


Romanos 2

Tal como a “justiça” do mundo pagão, a dos judeus é também uma miserável quimera e fracasso. Detentores de maiores privilégios do que os gentios, os judeus, nada, obstante, não alcançaram a justificação. Antes de entrar na acusação de Israel, o apóstolo apresenta dois princípios preliminares-o juízo imparcial de Deus (Rm 2.1-11) e a universalidade da obrigação moral (Rm 2.12-16).

1. O JUÍZO IMPARCIAL DE DEUS (Rm 2.1-11) - O vers. 11 sumariza o primeiro princípio sobre que Paulo baseia seu libelo contra o seu próprio povo. Quando os judeus assumem o papel de censores da justiça, o que sempre fazem, condenam-se a si mesmos, porque tais juízes cometem as mesmas coisas por eles condenadas. É um postulado de Paulo, que todos os judeus concordam relativamente à justiça indiscutível de Deus em julgar (ver vers. 2). Daí vem que o veredito divino está de acordo com a realidade moral (verdade) do caso, fora de privilégio ou profissão de fé. O apóstolo desfaz a falsa pretensão de estar o povo judeu isento do juízo universal, à base de integridade, ou por ser menos pecador do que o mundo pagão. Mesmo o fato de serem privilegiados como nação está longe de eximi-los do juízo (cfr. Mt 3.9; Jo 8.33; Gl 2.15). Se este juízo ainda não caiu sobre os judeus praticantes dos mesmos pecados, como aconteceu com os pagãos, deve-se isto somente à tolerância divina (4). A aparente indiferença de Deus em face do pecado é inteiramente devida à Sua longanimidade, cujo alvo é induzir ao arrependimento. O cabedal da graça a riqueza da sua bondade -e o cabedal de ira - acumulas contra ti mesmo (5) -são postos em solene contraste. Toda pessoa será julgada segundo suas obras, judeus e gentios, por igual. Dura impenitência é um investimento de ira divina com juros, a serem realizados no dia da Ira (5). Cfr. Is 13.6; Ez 30.3; Sf 1.7; ver também referências no Novo Testamento ao “dia do Senhor” (At 2.20; 1Co 1.8; 2Co 1.14; 1Ts 5.2). Nesse dia, a justiça divina do julgamento manifestar-se-á rigorosamente justa, a recompensar cada pessoa segundo suas obras. Se estas forem o fruto de paciente bem-fazer, à procura de glória, honra e incorrutibilidade, o resultado será a vida eterna (7). Mas o espírito faccioso, a desobediência à verdade, e obediência à injustiça culminarão em ira e agitação, em perplexidade e angústia, para todos quantos fazem o mal, particularmente o judeu (que deveria conhecer melhor), mas também o grego (8-9). Assim se demonstra a imparcialidade do juízo divino. Ninguém ficará isento.

2. A UNIVERSALIDADE DA OBRIGAÇÃO MORAL (Rm 2.12-16) – Todos são responsáveis perante Deus em juízo, quer, como os judeus, possuam a lei mosaica, quer, como os gentios, a lei “natural”, escrita na consciência de todos os homens, criados que são à imagem divina. Todos têm um padrão válido por onde serão julgados, porque não é aquele que possui a lei que é considerado justo, mas o que a pratica. Os judeus não se podem orgulhar de sua Torá, porque não importa se alguém tem ou não tem uma lei. Nossas ações fornecem o critério para o julgamento. Todo homem tem uma consciência (15; gr. syneidesis), percepção moral, um conhecimento que julga entre o ato e o seu valor ético, ou entre o homem e Deus como verdade ou realidade última. (Paulo emprega o termo ainda em Rm 9.1 e Rm 13.5 desta epístola e várias vezes nas outras cartas). Se ele atende a essa consciência, ela infalivelmente o acusará ou o inocentará, particularmente quando, no dia de Deus, todos os segredos forem descobertos e julgados por Jesus Cristo (16). O evangelho de Paulo é outra vez aqui declarado cristocêntrico, o que é, com efeito, sua principal característica.

3. LIBELO ACUSATÓRIO CONTRA OS JUDEUS (Rm 2.17-29) - Estando já assim preparado o caminho, por afirmar a imparcialidade e a universalidade do juízo divino, o apóstolo agora procede à acusação específica da pretensa justiça dos judeus. Estes, tanto quanto os gentios, não têm vivido de acordo com as luzes que possuem, sendo que as suas são maiores do que as destes últimos. De fato, a revelação, como dom divino outorgado aos judeus, foi reconhecida como regra privilegiada de vida, tanto como patrimônio deles. Paulo refere a duas coisas de que os judeus se orgulhavam, a lei (vers. 17-24) e a circuncisão (vers. 25-29), se bem que nem obedecessem à lei, nem fossem realmente circuncidados de coração. Tu que tens por sobrenome judeu (17); ou antes, “trazes o nome de judeu”, ou “dizes que és judeu”. A ênfase é na nacionalidade deles. O nome “hebreu” fala de origem e idioma; “israelita” lembra a relação com Deus e a religião; “judeu” alude à raça, para distingui-los dos gentios. A enumeração que se segue, das vantagens incluídas na outorga da lei, é algo satírica, porque o apóstolo dá a entender que os judeus perverteram seus privilégios. Repousas na lei (17). A palavra aqui empregada epanapausis sugere complacência. Os judeus eram escolhidos de Deus; a outorga da Torá era uma prova desse fato. Vinha daí considerarem esse patrimônio como bastante, sem preocupações com a sua prática. Glorias-te em Deus (17). São acusados de ter uma ideia errônea da relação em que estão para com Deus. É certo que se devem gloriar no Senhor (cfr. Jr 9.24), porém não arrogantemente. A atitude deles era ditada pela consciência que tinham de uma superioridade sobre as demais raças, por eles havidas como espécies inferiores, sem lei. Pretendiam estar em tão íntimas relações com Deus, em virtude de possuírem a lei, que conheciam qual era a vontade divina. Aprovas as coisas excelentes (18); lit. “julgas as coisas que divergem”. O sentido é que os judeus pretendiam ser capazes de discernir entre o certo e o errado, bem como os matizes do valor moral entre um bem menor e outro maior (cfr. Fp 1.10). Por causa de todas estas vantagens da lei, os judeus orgulhavam-se da habilidade que tinham de ensinar, orientar e julgar os outros. Guia dos cegos (19; cfr. Mt 15.14; Mt 23.16) era provavelmente uma frase proverbial. Instrutor de ignorantes (20); isto é, de crianças em conhecimentos religiosos, como os gentios pareciam aos olhos dos judeus. Tais pretensões soberbas baseavam-se na posse da forma da sabedoria e da verdade que tinham na lei (20). Significaria Paulo que os judeus possuíam realmente o segredo do Senhor, a fonte de toda sabedoria e verdade, visto que o termo forma (no gr. morphosis) implica esboço, delineamento, “a perfeita corporificação”, da forma essencial (gr. morphe; cfr. Fp 2.6-7)? Ou dá a entender, como o contexto poderia sugerir, que os judeus tinham apenas a aparência da verdadeira morphe, em virtude do seu fracasso em cumpri-la? O apóstolo usa o termo morphosis apenas nesta passagem e em 2Tm 3.5, onde é posto em contraste com dynamis, “poder”. Certo que o dom da revelação era real; mas a questão era que o judeu, por sua obediência, podia ter mais perfeita compreensão daquela revelação, e, a despeito de sua jatância, era na realidade um pobre guia e deficiente luz retificadora e mestre dos pagãos.

A isto segue, nos vers. 21-24, uma exposição corajosa da injustiça dos judeus. “Bem, Professor-dos-Outros, o Sr. ensina-se a si mesmo? O Sr. prega contra o furto, e o Sr. mesmo é ladrão?” etc. Cometes sacrilégio? (22); ARA “Roubas os templos?” Era este evidentemente um crime pelo qual os judeus algumas vezes foram censurados (cfr. At 19.37). “A pessoa que abomina os ídolos não deve furtar os sacrários deles, fazendo assim da cobiça um ídolo” (Ward). No vers. 24, Paulo cita livremente Is 52.5 (LXX). Concorre para a desonra do nome de Deus entre os pagãos a falta de coerência judaica entre a profissão e a prática, sua jatância de gozar do favor de Deus, ao passo que desconsidera completamente o padrão divino de moralidade. A circuncisão tem valor (25). Paulo admite as vantagens deste rito peculiar e distintivo, no qual os judeus se vangloriavam, e pelo qual os gentios os desprezavam. A circuncisão tem suas vantagens, mas somente se a lei for observada. Se for transgredida, então a circuncisão torna-se incircuncisão. Semelhantemente, se o incircunciso observa as exigências da lei, sua incircuncisão neste caso deve ser-lhe creditada como circuncisão? O homem incircunciso por natureza (como os não judeus) que cumpre a lei, julgará o judeu transgressor dela. Paulo declara sem tergiversar que o gentio correto, em seu estado de incircuncisão, é tão bom quanto o judeu desobediente, ainda que circunciso. Letra (27- 29); gr. gramma. No primeiro caso a referência pode ser à letra da circuncisão, o mandamento literal; mas, provavelmente, significa a letra da lei, que é claramente o sentido no vers. 29, assim acentuando a exterioridade da lei. Paulo tem aqui em mente “a palavra escrita como autoridade externa, em contraste com a influência direta do Espírito como manifesta no novo concerto” (G. Abbott-Smith, Greek Lexicon). Paulo emprega o mesmo contraste em Rm 7.6 e 2Co 3.6; cfr. At 7.51. A idéia de circuncisão do coração (29) pertence também ao Velho Testamento (cfr. Dt 10.16; Jr 4.4; Jr 9.26; Ez 44.7). Daí, não é judeu quem o é apenas exteriormente (28). Assim Paulo põe abaixo, inequivocamente, a alegada justiça do judeu.

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