Teologia do Livro de Deuteronômio
Teologia do Livro de Deuteronômio
R. K. Harrison (2008)
Eugene Merrill indicou que Deus utilizou, como principal instrumento para Sua auto-revelação, Seus atos poderosos, eventos históricos que a comunidade da fé pôde reconhecer como divinos. Ele afirma: “Enquanto que no Antigo Testamento o ato fundamental de Deus é a própria criação, aqui o assunto é menos cósmico; o foco de Deuteronômio não são as preocupações universais de Deus, mas Seus propósitos especiais para Seu povo”.7
Essa concentração no relacionamento suserano-vassalo sem dúvida contribuiu para que Deuteronômio se tornasse um favorito entre o povo de Israel, o livro mais citado, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. O Senhor Jesus citou Deuteronômio para triunfar sobre Satanás (Mt 4.1-11) e para defender Sua autoridade messiânica, ao definir qual a parte mais importante da Lei (Mt 22.34-40).
O livro é a fonte de exortações proféticas no Antigo Testamento, o parâmetro pelo qual a sociedade de Israel era medida e, na maioria das vezes, condenada. Acima de tudo, porém, Deuteronômio foi fundamental para a geração que crescera no deserto e precisava pensar corretamente a respeito de Yahweh, para obedecer-Lhe na hora crítica da conquista e desfrutar as bênçãos divinas na Terra Prometida.
Yahweh está próximo
Este conceito é apresentado quando Israel recebe a ordem de obedecer aos decretos de Yahweh (cap. 4). A proximidade de Deus é relacionada tanto à oração quanto à obediência, de modo que Israel pudesse entender que a presença de glória de Yahweh em seu acampamento, ou melhor, agora na terra, tornava-O acessível em graça e misericórdia apenas quando a obediência era o estilo de vida da nação.
A proximidade de Yahweh era entendida por intermédio das teofanias, que “contribuíam para a Sua aura de majestade e poder e, portanto, persuadiam o povo de Sua dignidade e autoridade” 8. Quase sem exceção, essa manifestação se dava por meio de fogo e escuridão (cf. 1.33; 4.11, 2, 33, 36; 9.10, 15; 33.2). O fogo falava de poder e imanência, da possibilidade de Yahweh ser conhecido, ainda que parcialmente. A escuridão lembrava que Ele ainda era um Deus misterioso, que o homem era incapaz de absorver e controlar. Em boa linguagem teológica, Yahweh era o Deus absconditus.
Yahweh é singular
O famoso dito hebreu שְׁמַע יִשְׂרָאֵל יהוה אֱלֹהֵינוּ יהוה אֶחָד (šema ʿyiśrāʾēl ʾăḏōnāy ʾĕlôhênû ʾăḏōnāy ʾeḥāḏ, “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”), o credo compacto de Israel (6.4), tem sido de há muito objeto de grande debate. Alguns entendem o versículo como uma afirmação da unidade de Deus (que Ele é um), enquanto outros falam de sua unicidade (que Ele é um só). Os hebreus, entretanto, tinham mais em vista a singularidade de Deus (isto é, que Ele não tinha igual); seu Deus era um Deus único, sem igual, sem paralelo, que jamais poderia ser igualado, comparado ou emulado. Esse versículo parece ter sido um antídoto, ou melhor, uma vacina contra o sincretismo que infestava Canaã. Não havia possibilidade de associação entre Yahweh e Baal; Yahweh era singular e nenhuma confusão se deveria fazer entre Ele e os falsos deuses das nações que circundavam Israel.
Sob outro ângulo, Deuteronômio 4.15-19 distingue Yahweh de Sua criação. Em 10.14, Deus é designado como possuidor dos corpos celestes adorados pelos vizinhos pagãos de Israel. Deuteronômio 12.4 proíbe a adaptação, a contextualização, por assim dizer, de Yahweh e Seu culto às práticas corruptas e corruptoras dos cananeus (cf. ainda 12.29-32). O sincretismo na adoração levaria inevitavelmente à confusão com respeito à natureza e caráter de Yahweh, e isto à corrupção moral, que acabaria por trazer a disciplina prevista na aliança.
Yahweh é ciumento
Este atributo divino manifesta-se mais claramente quando se trata de repartir com qualquer outro deus seu lugar peculiar de devoção no coração de Seu povo. O capítulo 4 indica que desde o principio Yahweh admoestara Israel a não tratar levianamente Seu zelo por Sua honra e reputação. A idolatria era zombaria contra Yahweh e exigia castigo e correção. Sua muita bondade era equilibrada por um zelo que não admitia competição pela lealdade de Seu povo (cf. 4.24; 5.9; 6.15; 13.2-10; 29.20). O ciúme de Yahweh é um subproduto direto de Sua singularidade (4.35; 6.4), e Israel não podia se beneficiar de sua relação peculiar com Yahweh enquanto negava a singularidade do Deus ao Qual alegava estar relacionado em aliança.
Yahweh é amoroso
O amor é um conceito crucial em Deuteronômio, como também é o elemento que mantém a aliança em funcionamento. O amor tem sua origem em Yahweh (4.37) e foi expresso em um ato volitivo pelo qual Yahweh determinou relacionar-se a um povo e, sem qualquer mérito da parte desse povo (cf. 7.7-11; 10.14-22), ativamente concretizar aquilo que serviria para o seu bem último. Isso incluía tanto libertação quanto disciplina (cf. 4.20 e 8.5), tanto promessa quanto preceito (7.11-16).
O amor de Yahweh por Israel é descrito como um relacionamento entre pai e filho (cf. 1.31), bem à maneira em que eram redigidos os tratados entre suseranos e vassalos no antigo Oriente Médio (cf. 2 Rs 16.7). Particularmente importante neste contexto era a palavra hebraica חֶסֶד [ḥeseḏ] (“amor leal”), um termo característico da aliança que significa a fidedignidade pactual de Yahweh, o Deus que graciosamente se comprometeu com o bem de Seus escolhidos (cf. 5.10; 7.9, 12; 33.8).
Este relacionamento exigia uma resposta volitiva que podia, como tal, ser ordenada (6.5; 10.12; 11.1, 13), um amor que se expressava em obediência aos mandamentos de Yahweh (6.1, 17; 7.11; 8.1) e envolvia a pessoa como um todo (6.5) e toda a comunidade (29.17[18]; cf. Hb 12.15). A mesma reação foi exigida pelo Senhor Jesus Cristo. “Se me amardes, guardareis os meus mandamentos” (Jo 14.15).
Yahweh disciplina Seu povo
O livro de Deuteronômio está repleto de referências à disciplina divina. A própria experiência de Moisés, resultado de seu ato de arrogância, é relatada diversas vezes como prova inquestionável de que Israel não escaparia ileso caso se desviasse do caminho pactual que fora apresentado à nação. Bênção (às vezes identificada como vida) e maldição (ou morte) eram alternativas que Yahweh não apenas previu, mas preordenou para Israel, prevendo cativeiro e exílio (caps. 4 e 28), mas também restauração (4.29-31).
É importante observar, mais uma vez, que essa disciplina não é uma fúria caprichosa em operação, mas a conseqüência de um acordo feito entre as duas partes de uma aliança. Os termos da disciplina estavam relacionados às bênçãos propostas na aliança, as quais eram a posse da terra e uma vida de fertilidade e produtividade ali. A imutabilidade do caráter de Yahweh era a garantia de que ambas, bênção e disciplina, aconteceriam, dependendo da resposta de Israel. Aquela geração, como também cada geração subseqüente em Canaã, precisava obedecer aos preceitos da aliança mosaica para desfrutar os benefícios temporais da aliança abraâmica. Caso contrário, seu destino seria a disciplina de Yahweh.
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Notas
[7]Eugene H. Merrill, “A Theology of the Pentateuch”, em A Biblical Theology of the Old Testament, p. 63.
[8] Ibid., p.64.