Teologia do Livro de Jó
Teologia do Livro de Jó
R. K. Harrison (2008)
Dois problemas principais para uma elaboração da teologia de Jó são o papel e a natureza do adversário (o Satã) de Deus no prólogo e o uso de elementos mitológicos no livro. No primeiro problema, os intérpretes são tentados a fazer uma, de duas coisas: (a) descartar todo o prólogo como uma produção posterior, incompatível com os estágios preliminares da revelação aos quais pertence a história de Jó; ou (b) sobrepor conceitos neotestamentários à narrativa.
Nos capítulos 1 e 2 de Jó, (o) Satã ainda não é apresentado, como no Novo Testamento, como o arquiinimigo de Deus, no entanto, procura solapar a autoridade e a integridade moral de Yahweh. Ele está presente entre os “filhos de Deus” (1.6; 2.1), mas é sutilmente distinto deles. Tem poder para gerar calamidade e mal, mas sua autoridade está claramente delimitada (1.12; 2.4), o que elimina a possibilidade de uma teologia dualista (algo que os defensores de uma data recente geralmente presumem haver no livro). Pode-se dizer com segurança que ao incluir Satanás em seu enredo o autor tencionou indicar que o relacionamento entre Deus e o homem não é nem exclusivo nem fechado. Um adversário poderoso se esforça por desafiar a autenticidade tanto da benevolência de Deus quanto da grata adoração humana, complicando não apenas a vida do homem, mas sua compreensão dela.
O segundo problema não é tão sério quanto os adeptos de uma evolução religiosa em Israel querem fazer parecer. A menção e o uso de elementos mitológicos no desenvolvimento de um livro não implicam crença na realidade de tal sistema religioso. É comum para o homem moderno usar a palavra “nêmesis”, por exemplo, para indicar uma punição incessante, sem que isso indique o menor traço de crença em uma deusa grega da vingança sempre prestes a cortar o fio de vida de alguém.
As criaturas aparentemente mitológicas mencionadas em Jó, “beemote” e leviatã (40.15-24; 41.3-14) são mais bem entendidas no contexto dos discursos divinos como animais gigantescos já extintos, cujo tamanho e/ou ferocidade incomuns os fazia úteis como material mitológico para as religiões pagãs do antigo Oriente Médio e, como tal utilizados por autores mais recentes nos salmos e nos profetas.
Outra dificuldade teológica do livro é o significado de 19.25-27. Basta dizer aqui que a confiança de Jó estava posta no próprio Deus como Aquele que o vindicaria. Embora a linguagem seja antropomórfica, quando fala que Deus “se levantará sobre a terra” para defender a causa de Jó, ela é também capaz de um referencial mais amplo, encontrando assim cumprimento literal na encarnação.
Além disso, esses versículos apresentam um reluzente lampejo de esperança escatológica. Isso é fato quer se interprete a preposição hebraica מִן (min) no sentido de “em”, de modo a entender que Jó vislumbrava a esperança de ressurreição, quer prefira-se entendê-la em seu sentido mais comum de “fora de, sem”, em cujo caso Jó poderia estar falando de existência consciente post-mortem. A possibilidade de um homem na época patriarcal em que Jó viveu ter tal percepção espiritual só é problema para quem insiste em uma visão evolutiva da religião em Israel. Literariamente, é notável que quando a atitude de Jó chegou no ponto mais baixo, Deus lhe tenha concedido tamanho reforço à fé.