Estudo sobre Mateus 5:1-48

Estudo sobre Mateus 5:1-48

Estudo sobre Mateus 5:1-48


por William Barclay



 O SERMÃO DA MONTANHA 

Tal como já o vimos, em seu evangelho Mateus segue um plano bem estruturado. Em sua história do batismo de Jesus nos mostra isso a este tomando consciência de que tinha chegado sua hora, de que lhe tinha chegado o chamado da ação e de que devia iniciar sua cruzada. Na história das tentações nos mostra como Jesus escolheu deliberadamente os métodos que usaria para executar sua tarefa, e como rechaçou deliberadamente aqueles métodos que considerava opostos à vontade de Deus.

Se alguém se propõe levar a cabo uma tarefa importante, necessita ajudantes que o secundem. Por isso Mateus segue nos mostrando como Jesus seleciona aos que seriam seus colegas de trabalho e compartilhariam sua missão. Mas para que os ajudantes desempenhem inteligentemente sua parte na tarefa mais vasta, é necessário capacitá-los. Agora, pois, no Sermão da Montanha, Mateus mostra a Jesus dando instrução a seus discípulos na mensagem que eles deviam transmitir a todos os homens. Na apresentação do Sermão da Montanha que encontramos em Lucas todo isto fica muito mais de manifesto, porque segue a seguir do que poderíamos denominar a nomeação oficial dos doze (Lucas 6:13 ss.). 

Por este detalhe é que um grande erudito chamou o Sermão da Montanha "O sermão de ordenação dos doze". Da mesma maneira que todo jovem ministro no momento de sua ordenação é confrontado com as dimensões da tarefa que lhe corresponderá desempenhar, os doze apóstolos receberam de seu Jesus "sermão de ordenação" antes de ser enviados. 

Outros estudiosos intitularam de diferentes maneiras este "sermão". Foi denominado "O compêndio da doutrina de Cristo", "A Carta Magna do Reino", "O manifesto do Rei". Todos coincidem em que no Sermão da Montanha temos a medula e a quintessência do ensino de Jesus ao círculo íntimo dos que tinha eleito. 



O Resumo da Fé


Em realidade esta denominação se ajusta mais à autêntica natureza do Sermão da Montanha do que poderia parecer à primeira vista. Referimo-nos ao "Sermão" da Montanha como se fosse um sermão que Jesus tenha pregado, mais ou menos na forma em que nós o temos, em alguma ocasião particular. Mas é muito mais que isto. De fato, é uma síntese dos distintos sermões que pregou durante o seu ministério.

(1) Qualquer que o escutasse em sua forma atual ficaria exausto antes de chegar a seu fim. Há muita riqueza de conteúdo para que se possa escutar de uma só vez. Outra coisa, muito distinta, é lê-lo, e deter-se para meditar em seus conceitos cada vez que for necessário; seria completamente distinto escutá-lo pela primeira vez. Além disso, quando o lemos, fazemo-lo com o ritmo a que estamos acostumados, é-nos mais fácil, e em geral conhecemos por leituras anteriores a maioria das palavras que o compõem. Se o escutasse em sua forma atual pela primeira vez, antes de chegar ao fim o ouvinte ficaria empanturrado pela abundância de luz. 

(2) Há certas porções do sermão que aparecem repentinamente, sem advertência alguma; quer dizer, não mantêm relação com o que vem antes nem com o que vem a seguir. Por exemplo, Mateus 5:31-32 e Mateus 7:7-11 estão bastante desconectados de seu contexto. Não são a conseqüência lógica do que antecede nem resolvem em sua continuação. O Sermão da Montanha é desconexo em várias de suas partes. 

(3) O mais importante de tudo é isto. Tanto Mateus como Lucas nos dão cada um uma versão do Sermão da Montanha. Na versão do Mateus há 107 versículos. Destes 29 estão em Lucas 6:20-49, como uma unidade; 47 não têm paralelo na versão de Lucas e 34 estão dispersos, em distintos contextos, com o passar do evangelho de Lucas. Por exemplo, o símile do sal está em Mateus 5:13 e em Lucas 14:34-35; o símile da candeia está em Mateus 5:18 e em Lucas 8:16; o dito a respeito de que nenhum jota e nenhum til da Lei passarão está em Mateus 5:18 e em Lucas 16:17. Quer dizer, algumas passagens que em Mateus aparecem como consecutivas estão separados, inclusive em diferentes capítulos, no evangelho de Lucas. Para pôr outro exemplo, o dito sobre o cisco no olho do irmão e a trave no nosso está em Mateus 7:1-5 e Lucas 6:37-42; a passagem em que Jesus convida aos homens a procurar, porque assim encontrarão, está em Mateus 7:7-12 e Lucas 11:9-13. Se comparamos toda esta informação veremos o problema com maior clareza:

Mateus 5:13 = Lucas 14:34-35 
Mateus 5:15 = Lucas 8:16 
Mateus 5:18 = Lucas 16:17 
Mateus 7:1-5 = Lucas 6:37-42 
Mateus 7:7-12 = Lucas 11:9-13 

Como já se assinalou, Mateus é essencialmente o evangelho didático. Uma de suas características é que coleciona os ensinos de Jesus sob títulos bastante gerais, e é muito mais lógico pensar que Mateus tenha colecionado os ditos de Jesus que compõem o Sermão da Montanha em uma grande unidade, que pensar que Lucas tenha tomado essa unidade e a tenha fragmentado em partes que se localizou tudo ao longo de seu evangelho. O Sermão da Montanha não é um só sermão que Jesus tenha pregado em uma ocasião concreta, a não ser o epítome, a quintessência, o resumo ou síntese dos ensinos que em diversas oportunidades repartiu a seus discípulos. 

Foi sugerido que, quando Jesus finalmente terminou de escolher os doze apóstolos, deve tê-los levado a algum lugar tranqüilo durante uma ou duas semanas para lhes ensinar o essencial da mensagem que teriam que anunciar aos homens. O Sermão da Montanha é o resumo desse ensino. 





A introdução de Mateus 


A fórmula introdutória usada por Mateus sugere tudo isto ao leitor atento. 


Vendo a multidão, subiu ao monte; 
E sentando-se, vieram a ele seus discípulos. 
E abrindo sua boca lhes ensinava, dizendo: 


Nestes breves versículos há três chaves importantes que podem nos ajudar a compreender o significado do Sermão da Montanha: 

(1) Jesus começou a ensinar depois de haver-se sentado. A postura de ensino do rabino judeu era sentado. Ainda falamos da "cadeira" (cadeira) de um professor; o Papa fala ex-cathedra, ou seja desde sua cadeira. Muito freqüentemente os rabinos comunicavam alguns de seus ensinos enquanto caminhavam com seus discípulos, ou estando de pé; mas os ensinos que verdadeiramente ditava como professor profissional os repartia sentado. Por isso a sugestão de que Jesus se sentou para ensinar estas coisas, é uma indicação importante do caráter fundamental do que segue a seguir: é a "versão oficial", por assim dizê-lo, a própria essência de sua doutrina. 

(2) Mateus diz, além disso, que ensinava abrindo sua boca. Esta frase não é uma figura redundante do autor, uma ornamentação do texto que quer significar simplesmente "E disse". Em grego a expressão "abriu a boca" tem pelo menos dois significados. (a) É usada como prefácio de alguma declaração particularmente solene ou importante. É usada, por exemplo, antes de reproduzir os pronunciamentos de um oráculo. É o prefácio lógico de qualquer declaração de peso. (b) Usa-se, além disso, para referir-se às afirmações de uma pessoa que verdadeiramente está abrindo seu coração e mostrando os conteúdos mais íntimos de sua mente. Quer dizer que o ensino que se pronuncia deste modo é direta, sem barreiras na comunicação. Este segundo significado da expressão também assinala que o material do Sermão da Montanha não é um ensino qualquer de Jesus. É o pronunciamento grave e solene das coisas fundamentais; nestes ensinos Jesus está abrindo seu coração àqueles homens que seriam seu braço direito no cumprimento da missão. 

(3) As versões correntes dizem que Jesus "ensinava-lhes, dizendo". Em grego se usam dois tempos pretéritos diferentes, um dos quais não existe em português e que, portanto, é muito difícil de traduzir, o tempo aoristo. O aoristo expressa uma ação que foi iniciada e completada no passado. Se disséssemos "Ele fechou a porta" em grego, teríamos que usar o aoristo, porque esta oração descreve uma ação concluída no passado. Além disso, existe o tempo imperfeito, também um passado, que descreve a ação que se repete, é contínua ou habitual, efetuada no passado. Se disséssemos "Seu costume era ir à Igreja todos os domingos", em grego, "era ir" se diria mediante um só verbo em tempo imperfeito, porque descreve uma ação contínua e repetida freqüentemente que se executava no passado. Na oração que estamos estudando o verbo "ensinava" não está, em grego, em aoristo, mas está no imperfeito, e portanto descreve uma ação habitual, repetida de Jesus, e portanto a tradução deveria ser: "Isto é o que costumava lhes ensinar." O que diz Mateus em grego, com toda a clareza com que se pode expressar nesse idioma, é que o Sermão da Montanha, que segue em continuação, não é um sermão específico, que Jesus pregou em certa oportunidade particular, mas o resumo, a essência, o núcleo do que Jesus ensinava continuamente e de maneira habitual a seus discípulos.

O Sermão da Montanha é algo muito maior e importante do que em geral pensamos. Mateus, nestas breves palavras introdutórias, quer nos fazer notar que se trata da "ensino oficial de Jesus", que nestas palavras Jesus está abrindo seu coração a seus discípulos, e lhes comunicando o mais profundo de seu pensamento; e que é o resumo dos ensinos que Jesus costumava a transmitir ao círculo mais íntimo de seus seguidores. O Sermão da Montanha não é outra coisa que a evocação concentrada de muitas horas de comunhão íntima entre os discípulos e seu Mestre. 

Ao começar nosso estudo do Sermão da Montanha usaremos para cada uma das bem-aventuranças o texto que encontramos na versão de uso mais corrente nas Igrejas evangélicas, a Revista e Atualizada (revisão 1995), mas ao concluir cada estudo procuraremos ver o que significam essas palavras em português contemporâneo. 96 



A SUPREMA BEM-AVENTURANÇA 




Estudo sobre Mateus 5:3


Antes de entrar no estudo detalhado de cada bem-aventurança se impõem duas observações de ordem geral. 

(1) Pode perceber-se que todas as bem-aventuranças possuem a mesma forma. No original em grego não aparece o elo que une, em português, as duas partes de cada bem-aventurança. Por que é assim? Jesus não pronunciou as bem-aventuranças em grego mas em aramaico, que era a classe de hebreu que os judeus falavam naquela época. Em aramaico e hebreu há uma expressão muito corrente, que é uma espécie de interjeição e que significa: "Que feliz é...!" Esta expressão (em hebreu clássico asheré) é muito comum no Antigo Testamento. Por exemplo, o Salmo 1 começa com essa expressão, e quer dizer literalmente: "Que feliz o homem que não andou acompanhado nem obedeceu o conselho dos maus!" (Salmo 1:1). Esta é a mesma forma que Jesus utiliza nas "bem-aventuranças". As bem-aventuranças não são simples afirmações, são exclamações enfáticas: "Que feliz é o pobre de espírito...!" 

Isto é muito importante, porque significa que as bem-aventuranças não são piedosas exclamações de esperança no que poderia chegar a ser; não são profecias brilhantes com um halo de glória futura em algum céu distante; são exclamações de alegria por algo que já é, que já existe. São felicitações. A bem-aventurança que recebe o cristão não é uma bem-aventurança posposta para um estado futuro de glória celestial, a não ser algo que já existe aqui e agora. Não é algo que o cristão receberá, mas algo que já recebeu. Certamente obterá a plenitude de cada dom quando puder gozá-lo na presença plena de Deus, mas enquanto isso cada dom é algo que já, aqui e agora, pode-se desfrutar. 

As bem-aventuranças, com efeito, dizem: "Que felicidade é ser cristão! Que alegria seguir a Cristo! Que alegria conhecer a Jesus como Mestre, Salvador e Senhor!" A forma mesma das bem-aventuranças nos indicam que são exclamações de gozosa surpresa e radiante felicidade pela realidade da vida cristã. Em face das bem-aventuranças se faz impossível toda interpretação do cristianismo como uma religião triste e carente de entusiasmo contente.

(2) A palavra "bem-aventurados", que se usa em cada uma das bem-aventuranças, merece uma atenção muito especial. Em grego é a palavra makários, que em geral se usa para descrever aos deuses. Na fé cristã há um prazer e alegria que são divinos. O significado de makários poderá entender-se melhor a partir de um de seus usos comuns na literatura daquela época. Os gregos sempre chamaram a ilha de Chipre "je makária" (a ilha feliz) porque acreditavam que era uma terra tão bela, tão rica, tão fértil que ninguém precisava transpor suas linhas costeiras para viver uma vida feliz, posto que nela havia todo o necessário para uma existência perfeita. Tinha tal clima, tais flores, frutos e árvores, tais minerais, tais recursos naturais, que continha em si tudo o que era necessário para uma felicidade perfeita. Makários então descreve uma alegria auto-suficiente, que possui em si mesmo o segredo de sua própria irradiação, essa alegria sereno, intocável e autônomo que não é afetado pelas diferentes circunstâncias da vida. A felicidade humana depende das ocasiões e circunstâncias cambiantes da existência, algo que a vida pode dar ou pode tirar. A bem-aventurança cristã está livre de qualquer risco ou ardil. Nada pode tocá-la ou atacá-la. "Ninguém vos tirará vossa alegria", disse Jesus (João 16:22). As bem-aventuranças nos falam dessa alegria que sai a nosso encontro até no meio da dor, aquela alegria que não podem manchar nem o sofrimento, nem a tristeza, nem o desamparo, nem a perda de algo ou alguém que queremos muito. É a alegria que brilha através das lágrimas e que nada, nem na vida nem na morte, pode arrebatar. 

O mundo pode ganhar e, da mesma maneira, perder suas alegrias. Uma mudança na fortuna, um colapso da saúde, a desilusão que nos ocasionam as ambições que não podemos cumprir, até o mau tempo pode nos privar dessa migalha de alegria que o mundo pode dar. Mas o cristão possui essa alegria sereno e intocável que provém de andar sempre na companhia de Jesus e estar sempre em sua presença.

O maior das bem-aventuranças é que não são visões esperançadas de alguma realidade futura; nem são promessas douradas de glórias distantes; são exclamações triunfais ante a realidade da alegria permanente que nada no mundo pode tirar. 


A BEM-AVENTURANÇA DOS DESTITUÍDOS 
Estudo sobre Mateus 5:3 (continuação)


É surpreendente que se comece a falar da felicidade dizendo: "Bem-aventurados os pobres de espírito." Há duas formas de entender o significado da palavra "pobres". Tal como nós as temos, as bem-aventuranças estão, originalmente, no idioma grego, e a palavra que se utiliza para dizer "pobres" é ptojói. Em grego há duas palavras que designam a pobreza. Uma delas é penés. Penem é o homem que tem que trabalhar para ganhá-la vida, aquele que se serve a si mesmo atendendo suas necessidades com suas próprias mãos (autodiákonos). Penés é o homem de trabalho, o operário, que não tem nada que o sobre, o homem que não é rico mas que tampouco sofre miséria. Mas, como já o vimos, na bem-aventurança não se usa a palavra penem, a não ser ptojós, que descreve a pobreza absoluta e total de que está fundo na miséria. Está relacionada com a raiz ptoséin que significa agachar-se ou encolher o corpo; descreve, portanto, a pobreza do que não pode levar a frente em alto e pede, ajoelhado, encolhido, que lhe ofereça uma esmola para aliviar sua situação. Como dissemos, penés descreve ao homem que não tem nada supérfluo; ptojós, em troca, descreve o homem que não tem nada. Tudo isto faz que a bem-aventurança seja até mais difícil de entender. O homem que não tem nada, diz-nos, que sofre a mais abjeta miséria, é um bem-aventurado. Bem-aventurado o homem que está na pobreza mais absoluta. 

Tal como o vimos anteriormente, as bem-aventuranças, entretanto, não foram pronunciadas originalmente em grego, a não ser em aramaico. Os judeus usavam a palavra "pobre" com um sentido muito especial. Em hebreu as palavras que significam pobre são 'ani e ebion. Estas duas palavras sofreram, na evolução do idioma hebreu, uma quádrupla mutação de significado. (1) A princípio significavam simplesmente pobre, e portanto, sem poder, ou prestígio, e influência. (2) Portanto, porque se sofria de pobreza, carecia-se de influência, poder. ou prestígio. (3) Em terceiro lugar significaram carecer de poder, ou influência, e portanto, oprimido, explorado ou avassalado pelos capitalistas. (4) Por último deveram significar ao homem que, por não possuir nenhum recurso terrestre, coloca toda sua esperança e confiança em Deus. De maneira que em hebreu a palavra "pobre" designava ao homem humilde que põe toda sua confiança em Deus. É com este sentido que o salmista usa a palavra quando escreve: "Este pobre clamou, e lhe ouviu Jeová, e o livrou de todas suas angústias" (Salmo 34:6). Nos Salmos o que é pobre neste sentido recebe a misericórdia e o amor de Deus, "Pois o necessitado não será para sempre esquecido, e a esperança dos aflitos não se há de frustrar perpetuamente" (Salmo 9:18). Deus liberta os pobres (Salmo 35:10). "Em tua bondade, ó Deus, fizeste provisão para os necessitados" (Salmo 68:10). "Salvará os filhos do necessitado, e esmagará ao opressor". (Salmo 72:4). "Levanta da miséria ao pobre, e faz multiplicar as famílias como rebanhos de ovelhas" (Salmo 107:41). "A seus pobres saciarei de pão" (Salmo 132:15). Em todos estes casos o pobre é o homem humilde e impossibilitado, que colocou sua esperança e confiança em Deus. 

Reunamos agora os dois aspectos deste termo; o grego, por um lado, e o aramaico, pelo outro. Ptojós descreve ao destituído total, ao homem que não possui nada; 'ani e ebion descrevem ao pobre, ao humilde, ao impotente, que colocou sua esperança em Deus. portanto, "Bem-aventurados os pobres" significa:


"Bendito e feliz é o homem que tomou consciência de sua 
total necessidade, e que colocou sua confiança em Deus." 


Se alguém se fizer consciente de sua total destituição e põe toda sua confiança em Deus entram em sua vida dois elementos que são as caras opostas de uma mesma realidade. Em primeiro lugar, muitas coisas lhe serão indiferentes, porque saberá que não pode receber felicidade nem segurança das coisas; por outro lado, em segundo lugar, sentirá que Deus, no fundo, é verdadeiramente a única coisa que lhe importa. Porque saberá que Deus é o único que pode lhe oferecer ajuda, esperança e fortaleza. O "pobre em espírito" é o homem que se deu conta que as coisas não significam nada, e que Deus o significa tudo. 

Não devemos pensar que esta bem-aventurança é um elogio da pobreza material. A pobreza não é boa. Jesus nunca teria qualificado de "bem-aventurada" a condição de quem vive em vilas miseráveis ou tugúrios e não têm o suficiente para comer e são acossados constantemente pelas enfermidades, porque tudo está contra eles. O evangelho cristão tem como um de seus objetivos a eliminação desta classe de pobreza. A pobreza bem-aventurada é a do "pobre em espírito", a do espírito que reconhece sua própria falta de recursos para fazer frente às exigências da vida e encontra a ajuda e a fortaleza que necessita em Deus. 

Jesus diz que a estes pobres pertence o Reino dos céus. Por que tem que ser deste modo? Se tomarmos duas das petições do Pai Nosso e as lermos juntas, "Venha seu Reino, seja feita a tua vontade assim na terra como no céu", obtemos a seguinte definição: "O Reino dos céus é uma sociedade na qual a vontade de Deus se faz na Terra do mesmo modo que no céu". Isto significa que somente aquele que faz a vontade de Deus na Terra é cidadão do Reino dos céus; e somente podemos fazer a vontade de Deus quando nos damos conta de nossa própria total impotência, de nossa própria total ignorância e de nossa própria total incapacidade para responder satisfatoriamente às exigências da vida, e quando, portanto, pomos toda nossa confiança em Deus. A obediência sempre se baseia na confiança. O Reino de Deus é a posse inalienável dos pobres em espírito, porque os pobres em espírito hão, tomado consciência de sua destituição total e aprenderam a confiar e obedecer.

De maneira que a primeira bem-aventurança significa: 


“Quão feliz é o homem que se deu conta de sua total 
destituição e pôs toda sua confiança em Deus, porque 
somente deste modo pode oferecer a Deus essa perfeita 
que o converterá em cidadão do Reino dos céus!”



A BEM-AVENTURANÇA DOS DE CORAÇÃO QUEBRANTADO 
Estudo sobre Mateus 5:4


A primeira coisa que deve destacar-se ao estudar esta bem-aventurança é que a palavra grega que significa "chorar" é o termo mais forte que pode encontrar-se nesse idioma para denotar dor ou sofrimento. Usa-se para falar de quem chora a morte de um ser querido, para designar o lamento apaixonado de que amou a alguém que já não vive. Na Septuaginta, a versão grega do Antigo Testamento, é a palavra que designa a lamentação de Jacó quando acreditou que José, seu filho, tinha morrido (Gênesis 37:34). Define-se como essa classe de dor que se apodera de um homem ao ponto em que este não pode escondê-lo ou contê-lo. Não se trata somente da dor que nos faz doer o coração, é a dor que faz subir até nossos olhos lágrimas incontidas. Aqui temos, então, uma forma muito curiosa de bem-aventurança e felicidade: 

Feliz o homem que chora como se chora por algum ser querido que morreu.

Há três maneiras de entender esta bem-aventurança: 

(1) Pode interpretar-lhe literalmente: Feliz é o homem que suportou a mais amarga tristeza que a vida pode trazer! Os árabes têm um provérbio que diz: "Se o sol sempre brilhar, teremos um deserto." A terra onde o sol sempre brilha depois de pouco tempo se converte em uma zona árida onde não cresce nenhum fruto. Há certas coisas que somente a chuva pode produzir, e certas experiências que somente foram vividas por quem padeceu sofrimentos. A dor pode fazer duas coisas a nosso favor. Pode nos revelar, como nenhuma outra experiência da vida, a bondade essencial de nossos semelhantes; e pode nos ajudar a compreender, como nenhuma outra circunstância, as dimensões do consolo e a compaixão divinas. Mais de uma pessoa no momento de dor descobriu como nunca antes em sua vida o que os amigos e o amor de Deus podem significar. Quando todo marcha bem se pode viver durante anos sem penetrar além da epiderme das coisas; mas quando vem a dor somos arrastadas para as profundezas da vida, e se aceitarmos o sofrimento, uma nova beleza e fortaleza, crescerão em nossa alma.


Caminhei um quilômetro com o prazer 
e me proveu bate-papo todo o tempo, 
mas quando nos separamos 
não me havia dito nada importante. 
Caminhei um quilômetro com a dor 
e não se trocou palavra entre nós, 
mas quantas coisas aprendi dela 
quando compartilhamos nosso caminho! 


(2) Algumas pessoas interpretaram esta bem-aventurança com este significado: Bem-aventurados os que se sentem desesperadamente entristecidos por toda a dor e sofrimento que há no mundo. 

Quando estudávamos a primeira bem-aventurança vimos que sempre convém conceder pouca importância às coisas, mas nunca é bom conceder pouca importância aos seres humanos. Este mundo seria um lugar muito menos habitável se não houvesse tantos que estiveram profundamente preocupados com as tristezas e os sofrimentos de outros. 

Lorde Shaftesbury provavelmente foi um dos homens que mais tem feito pelos homens, mulheres e meninos que sofriam. Tudo começou de maneira muito singela. Quando era muito jovem, na cidade do Harrow, um dia ia caminhando pela rua e cruzou com o enterro de um pobre. O ataúde era uma gaveta rústica e mal feita, e em vez de carro fúnebre era transportado em um carrinho de mão. Este carrinho de mão era empurrado por um quarteto de homens bêbados, que enquanto cumpriam sua triste tarefa iam cantando canções picantes, gracejando e rindo. Quando chegaram a um pendente a gaveta caiu do carrinho de mão e se abriu, rompendo-se. Alguns poderiam pensar que a situação era cômica; alguns teriam se afastado do lugar com nojo; alguns teriam encolhido os ombros pensando, ao mesmo tempo, que não era um problema deles, embora era triste que coisas assim acontecessem. O jovem Shaftesbury viu essa cena e pensou: "Quando crescer ocuparei minha vida em cuidar para que coisas como esta não venham a acontecer." E, efetivamente, dedicou sua vida a preocupar-se com os outros. O cristianismo é uma preocupação por outros. Esta bem-aventurança significa:


"Bem-aventurado o homem que se preocupa intensamente pelos 
sofrimentos, tristezas e necessidades de outros." 


(3) Sem lugar a dúvida as duas interpretações anteriores formam parte desta bem-aventurança, mas a principal idéia, a idéia central de seu conteúdo é indubitavelmente a seguinte: Bem-aventurado o homem que está desesperadamente triste por seu próprio pecado e indignidade. Como vimos, a primeira palavra da mensagem de Jesus era "Arrependei-vos". Ninguém pode arrepender-se a menos que esteja triste por seus pecados. A experiência que verdadeiramente transforma o homem é aquele momento em sua vida quando se encontra face a face com seu próprio pecado e se dá conta do que o pecado pode fazer nele. Um jovem ou uma jovem podem viver a vida sem preocupar-se com os efeitos ou conseqüências do que estão fazendo; mas chega o dia quando algo muito grave acontece e percebem pela primeira vez o gesto de dor no rosto de seu pai ou de sua mãe; e então, repentinamente, dão-se conta da magnitude de seu pecado. Isso é o que a cruz faz por nós. Quando olhamos a cruz podemos dar-nos conta de quais são as conseqüências de nosso pecado. O pecado pode arrancar uma das vidas mais belas que jamais vivida, e destroçá-la contra uma cruz. Uma das grandes virtudes da cruz é que abre os olhos de homens e mulheres a todo o horror do pecado. E quando alguém percebe verdadeiramente todo o horror do pecado, não pode menos que experimentar um intenso sofrimento por seu próprio pecado.

O cristianismo começa com a consciência do pecado. Quão feliz é o homem que sente profunda dor por seu pecado, o homem que sente que seu coração se rompe ao dar-se conta do que fez com sua vida, contra Deus e Jesus, o homem que fica atônito ante o desastre que o seu pecado pôde ocasionar! 

Quem tem esta experiência será verdadeiramente consolado; porque se trata do que habitualmente denominamos penitência, ou arrependimento, ou contrição, e Deus nunca desprezará ao que tem o coração contrito e humilhado (Salmo 51:17). O caminho que conduz à alegria do perdão atravessa, necessariamente, pela tristeza desesperadora do arrependimento. 

O verdadeiro significado da segunda bem-aventurança é: 


Quão feliz é o homem cujo coração sofre pelo sofrimento 
do mundo e por seu próprio pecado, porque é a partir deste 
sofrimento que encontrará a alegria de Deus!


A BEM-AVENTURANÇA DA VIDA GOVERNADA POR DEUS 
Estudo sobre Mateus 5:5 

Em nosso idioma português moderno a palavra "manso" não é precisamente uma das que usaríamos como qualificativo elogioso a respeito de ninguém, implica um matiz de servilismo com o que ninguém se sentiria honrado, e uma certa passividade e não agressividade que de muito pouco servem em nosso mundo moderno. Pinta-nos a imagem de uma criatura submissa e muito pouco executiva. Mas em grego a palavra praus (equivalente a "manso") era um dos termos mais elevados do vocabulário ético.

Aristóteles fala extensamente sobre a virtude da mansidão (praotés). Uma das características metodológicas de Aristóteles, em sua ética, era definir cada virtude como o meio termo entre dois extremos. Por um lado estava o extremo por defeito e pelo outro o extremo por excesso. Em metade de caminho entre ambos se localizava a virtude, justamente o meio. Para dar um exemplo, em um extremo está o esbanjador, no outro o avarento, no meio está o homem generoso. Aristóteles define a mansidão como o justo meio entre a ira excessiva e a falta absoluta de ira, ou passividade. A mansidão é o meio termo entre o excesso de ira e a muito pouca ira. Portanto, a primeira tradução possível desta bem-aventurança é: 

Bem-aventurado o homem que sabe zangar-se na hora certa, e que nunca se zanga quando não é o caso. 

Se nos perguntarmos qual o momento exato de zangar-se e quando não é, podemos estabelecer como regra geral que nunca é hora de zangar-se pelos insultos ou as ofensas que nós mesmos recebamos; os cristãos nunca devem resistir aos que querem ofendê-los; mas é o momento certo de zangar-se quando se ofende a outros. A ira egoísta sempre é um pecado, a ira altruísta pode ser uma das grandes molas morais da dinâmica moral de nosso mundo. 

Mas a palavra praus tinha outro significado corrente em grego. Era o termo que se usava, como em português, para designar o animal domesticado, que tinha sido educado para que obedecesse a voz de seu dono, que respondeu às indicações das rédeas. É a palavra que corresponde ao animal que aprendeu a aceitar o controle do homem. Portanto a segunda tradução possível desta bem-aventurança é: 

Bem-aventurado o homem cujos instintos, paixões e impulsos 
estão sob controle; bem-aventurado o homem que aprendeu 
a dominar-se. 

Mas logo que terminamos que dizer estar palavras, damo-nos conta que não são exatamente o que Jesus teria dito. Não se trata da bem-aventurança do homem que sabe controlar-se a si mesmo, porque tanto autodomínio é um ideal moral que está além das possibilidades do comum dos mortais, a não ser a bem-aventurança do homem dirigido por Deus, porque somente no serviço de Deus encontramos a perfeita liberdade, e no cumprimento de sua vontade nos apropriamos de nossa paz. Mas ainda há uma terceira via de acesso a esta bem-aventurança. Os gregos sempre contrastavam a mansidão com o orgulho. A mansidão é uma autêntica humildade que descarta por completo o orgulho.

Sem humildade não pode aprender-se nada, porque o primeiro passo para a aprendizagem é a humildade em reconhecer nossa ignorância. Quintiliano, o grande mestre de oratória romano, disse a respeito de alguns eruditos, que "sem lugar a dúvida seriam excelentes meus alunos, se não estivessem tão convencidos de tudo o que sabem." Ninguém pode ensinar ao que pensa que sabe tudo. Sem humildade não pode haver amor, porque o princípio do verdadeiro amor é o sentimento de indignidade. 

Sem humildade não pode haver verdadeira religião, porque toda religião começa com a consciência de nossa debilidade e necessidade de Deus. O homem só alcança a estatura perfeita de sua humanidade amadurecida quando aprende que é uma criatura e que Deus é seu Criador, e que sem Deus não há nada que ele possa fazer. 

"Mansidão" descreve a humildade, a aceitação da necessidade de aprender e da necessidade de ser perdoado. Descreve a única atitude possível do homem para com Deus. Portanto, uma terceira possível tradução desta bem-aventurança, seria: 


Bem-aventurado o homem que possui a suficiente humildade 
para dar-se conta de sua ignorância, sua debilidade e sua 
necessidade de ajuda. 


Esta humildade, ou mansidão, diz Jesus, herdará a Terra. É um fato demonstrado pela história que os que podem exercer o controle de si mesmos, os que aprenderam a disciplinar seus instintos, paixões e impulsos, são aqueles que possuíam verdadeira grandeza. O livro de Números diz a respeito do Moisés, maior o líder e legislador que a história já viu: "e aquele varão Moisés era muito manso, mais que todos os homens que havia sobre a terra" (Números 12:3). Moisés não possuía um caráter submisso, não era servil, podia chegar a manifestar de maneira tremenda sua ira, mas exercia controle sobre esta paixão, e a manifestava só quando era o momento apropriado. O autor de Provérbios diz: "Melhor é o que demora para irar-se que o forte; e o que se domina o seu espírito, do que o que toma uma cidade" (Prov. 16:32). 

Foi a ausência desta qualidade o que constituiu a ruína do Alexandre o Grande, quando, por exemplo, em um ataque de ira, em meio de uma bebedeira, arrojou uma lança e matou a seu melhor amigo. Ninguém pode governar a outros até não ter aprendido a governar-se a si mesmo; ninguém pode servir a outros até que não aprendeu a controlar-se e sujeitar-se a si mesmo; ninguém pode controlar a outros até que não sabe controlar-se a si mesmo. Mas o homem que se entrega plenamente ao controle de Deus obterá a mansidão que vai capacitá-lo a herdar a Terra. 

É evidente que a palavra grega praus, significa muito mais do que significa a palavra portuguesa "manso". Não há uma palavra em nosso idioma que possa traduzi-la sem perda de significado. A tradução completa da terceira bem-aventurança diria, então: 

Quão feliz é o homem que sabe quando expressar a ira e que nunca se zanga fora de tempo, que aprendeu a controlar seus instintos, impulsos e paixões, porque pôs sua vida sob o governo de Deus, e que tem a suficiente humildade para reconhecer sua própria ignorância e debilidade, porque o homem que possui tais virtudes é rei entre os homens! 


A BEM-AVENTURANÇA DO ESPÍRITO FAMINTO 
Estudo sobre Mateus 5:6


As palavras não existem no vazio. Possuem uma história inscrita nas experiências e no pensamento de quem as usa. O significado de cada palavra está condicionado pela experiência da pessoa que a usa. Esta afirmação geral se cumpre, de maneira particular, no caso desta bem-aventurança. Alguém que a escutasse pela primeira vez receberia uma impressão muito distinta da que produz em nós. 

A verdade é que muito poucos, entre nós, dadas as condições modernas de vida, sabem o que significa ter fome ou sede. No mundo antigo era muito diferente. O salário de um operário, naquela época, era o equivalente a 8 centavos de dólar, e ainda considerando o maior valor aquisitivo do dinheiro naquela época, não havia muito que se pudesse fazer com essa soma. Na Palestina se comia carne somente uma vez por semana, e o operário estava permanentemente por um fio bordo da inanição ou seja da verdadeira fome, que pode chegar a ocasionar a morte. Muito mais grave era o problema da bebida. Na antiguidade a maioria das pessoas não dispunha de água corrente em suas casas. Quem saía de viagem podia a qualquer momento ser surpreendido por uma tormenta de ar quente. Não havia nada que pudesse fazer, exceto envolver a cabeça em seu turbante, dar as costas ao vento e esperar que passasse a tormenta, enquanto a areia entrava pelo nariz e a boca ao ponto em que só podia respirar e crescia nele uma imperiosa sede que não podia satisfazer. Nas condições da vida moderna, no mundo ocidental, não há paralelos que possam servir como comparação de situações como estas. 

De modo que a fome desta bem-aventurança não é um "apetite" que pode satisfazer-se comendo um bocado na metade da manhã; e a sede não é a que se sacia com uma bebida refrigerante. É a fome do homem que durante toda sua vida não comeu o suficiente para satisfazer-se e além disso, possivelmente, há vários dias que não tem nada para comer, é a sede do homem que morrerá a menos que encontre água para beber.

Sendo assim, esta bem-aventurança é em realidade uma pergunta e um desafio. Em efeito, o que pergunta é: Até que ponto você deseja a justiça? Você a quer na medida em que o faminto deseja algo para comer, ou o sedento algo para beber? Em outras palavras, qual é a intensidade verdadeira do desejo de justiça que nos anima? 

Há muitos que experimentam um desejo instintivo de justiça, mas é um desejo nebuloso e generalizado antes que agudo e concreto. Quando chega o momento de tomar uma decisão não estão preparados para o esforço. Não estão dispostos a fazer o sacrifício que a justiça demanda. Há muitos que sofrem do que Robert Louis Stevenson chamava "a enfermidade de não querer". É evidente que o mundo mudaria radicalmente se quiséssemos a justiça mais que nenhuma outra coisa. 

Quando enfocamos esta bem-aventurança deste ponto de vista, é verdadeiramente a mais exigente e terrível de todas as bem-aventuranças. Mas não somente é a bem-aventurança que mais exige do homem, mas também a que mais consolo lhe oferece. Seu pano de fundo é que o homem que recebe a bem-aventurança não é o que obtém a justiça e a bondade mas sim o que as deseja de todo o seu coração. Se a bênção de Deus descansasse somente sobre o que é justo ou bondoso, ninguém seria digno de bem-aventurança alguma. Mas a bem-aventurança é recebida pelo homem que, apesar de seus fracassos e limitações, segue desejando apaixonadamente a perfeição espiritual e moral. H. G. Wells observava em certa oportunidade que "pode-se ser mau músico, mas estar apaixonadamente apaixonado pela música". 

Robert Louis Stevenson falou dos que "mesmo tendo se afundado muito profundamente no pecado, aferram-se à pouca justiça que resta, como sua posse mais apreciada, no prostíbulo, no patíbulo". 

Sir Norman Birkett, o famoso advogado e juiz no campo criminal, falava de sentenciados que tinha conhecido em sua experiência profissional, e dizia que sempre fica em qualquer homem, por mais baixo que tenha caído, uma inextinguível fome de algo, e se referia à bondade como esse "caçador que nunca se cansa de nos perseguir". Até o pior dos homens "está condenado a alguma forma de nobreza".

A verdadeira maravilha em relação aos seres humanos não é que sejam pecadores mas sim, até sendo-o, sempre desejam, em maior ou menor grau, a justiça, e que mesmo estando inundados no barro não perdem a visão das estrelas. Davi sempre quis construir o Templo de Deus, mas nunca conseguiu fazê-lo; foi-lhe proibido e negado que cumprisse sua ambição maior. Mas Deus lhe disse: "Já que desejaste edificar uma casa ao meu nome, bem fizeste em o resolver em teu coração" (1 Reis 8:18). 

Em sua misericórdia Deus não nos julga somente por nossos logros mas também por nossos sonhos. Até se alguém não obtém totalmente a justiça que deseja, até se quando está a ponto de pôr-se o sol de sua vida ainda, continua experimentando fome e sede dessa justiça, não fica excluído da bem-aventurança. 

Há outro aspecto desta bem-aventurança, que somente podem percebê-lo os que têm acesso ao texto em grego. Uma das regras do idioma grego é que os verbos como "ter fome" ou "ter sede" sempre estão seguidos de um substantivo em caso genitivo. O caso genitivo é a forma gramatical que em português se constrói com a preposição de. A palavra "homem" em caso genitivo é "do homem". O genitivo que vem depois de verbos como os que se citaram se denomina em grego "genitivo partitivo", ou seja o genitivo das partes. Se dissermos, por exemplo, "tenho fome de pão", não se trata de todo o pão, mas sim do pão necessário para acalmar a fome e possivelmente um pouco mais. Se disser "Tenho sede de água", não é toda a água que há no rio, ou no poço, mas sim de um pouco de água. Mas nesta bem-aventurança a palavra "justiça" não está, como corresponde, em caso genitivo (partitivo) mas em acusativo, algo muito pouco comum em grego. Quando verbos como "ter fome" ou "ter sede" vão seguidos de um acusativo, o significado da oração é que se tem fome ou sede da totalidade do objeto ou objeto direto do verbo. Dizer "Tenho fome de pão" com "pão" em acusativo, significa "Quero comer todo o pão". Dizer "Tenho sede de água" com "água" em acusativo, significa "Quero tomar toda a água que há na jarra". Portanto a tradução correta desta parte da bem-aventurança seria:


Bem-aventurados os que têm fome e sede de toda 
a justiça, da justiça total, da justiça absoluta. 


Isto é algo que em geral muito poucos experimentam. Contentam-se em ter alcançado um pouco de justiça. Alguém pode ser um homem bom no sentido que por mais que alguém o proponha e procure nele, não pode atribuir-lhe mal algum. Sua honestidade, sua moralidade, sua respeitabilidade estão além de qualquer questionamento; mas, ao mesmo tempo, ninguém pode ir a esse homem com tristeza e chorar sobre seu peito, porque imediatamente se retrairia. Pode haver justiça acompanhada de dureza, de um espírito de censura, de falta de simpatia. Esta justiça não é autêntica bondade moral, é uma justiça parcial. Por outro lado, possivelmente haja outro homem, suscetível a muitas formas de pecado; possivelmente beba, diga más palavras, jogue por dinheiro e perca as estribeiras co muita freqüência; e entretanto quando alguém junto a ele passa por um momento difícil, é capaz de lhe dar até o último centavo que tem em seu bolso, e de tirar o casaco para abrigá-lo. Mas esta também é uma justiça parcial. O que esta bem-aventurança afirma é que não basta satisfazer-se com uma justiça parcial. É bem-aventurado aquele que tem fome e sede de uma justiça total. Não basta a conduta moral impecável sem compaixão, nem a mais apaixonada solidariedade humana sem uma vida reta. 

De maneira que a tradução da quarta bem-aventurança, seria como segue: 
Quão feliz é o homem que deseja a justiça total do mesmo modo 
como o que tem fome deseja o alimento, ou o que morre de sede 
deseja a bebida, porque este receberá a satisfação de seu desejo! 



A BEM-AVENTURANÇA DA PERFEITA SIMPATIA 
Estudo sobre Mateus 5:7


Tal como as lemos em nossas Bíblias, estas palavras são um grande ensino que apenas requerer pouca explicação. É a afirmação de um princípio que está presente em todo o Novo Testamento. O Novo Testamento afirma que para ser perdoados é necessário ser perdoadores. Tiago o diz com transparente clareza: "Porque julgamento sem misericórdia se fará com aquele que não fizer misericórdia; e a misericórdia triunfa no juízo" (Tiago 2:13). Jesus conclui a história do devedor que não usou de misericórdia, advertindo: "Assim também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão" (Mateus 18:35). O Pai Nosso está seguido por dois versículos que explicam e sublinham o significado da petição que diz "Perdoa-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos a nossos devedores": "Porque se perdoardes aos homens suas ofensas, também vos perdoará o pai celestial; mas se não perdoardes aos homens suas ofensas, tampouco vosso Pai vos perdoará vossas ofensas" (Mateus 6:12, 14-15). O ensino constante de todo o Novo Testamento é que só os misericordiosos receberão misericórdia. 

Mas o ensino da bem-aventurança não se esgota nesta interpretação. A palavra grega que significa misericordioso é eleemón. Entretanto, tal como dissemos repetidas vezes, o grego do Novo Testamento é, por sua vez, a tradução de originais (escritos ou verbais) em hebreu e aramaico. A palavra hebraica que quer dizer misericórdia é chesedh; é uma dessas palavras que não se podem traduzir. Não significa somente simpatizar com alguém no sentido corrente do termo; não significa somente sentir-se triste pela desgraça de outros. Chesedh é a capacidade de entrar em outra pessoa até que virtualmente podemos ver com seus olhos, pensar com sua mente e sentir com seu coração. Evidentemente isto é muito mais que sentir piedade pelo outro. É simpatia no sentido original desta palavra. "Simpatia" deriva de duas palavras gregas, syn, que significa "junto com", e paschein, que significa "experimentar" ou "sofrer" "Simpatia" significa experimentar algo em total identificação com outra pessoa, passar por quão mesmo essa outra pessoa está passando.

Isto é precisamente o que a maioria das pessoas nunca nem sequer procuram fazer. A maioria está tão preocupada com seus próprios sentimentos que não tem tempo nem energias disponíveis para preocupar-se com os sentimentos de outros. Quando sentem tristeza por alguém, tal atitude é, por assim dizer, externa; não fazem o esforço deliberado para identificar-se em mente e coração com a outra pessoa, até ser capazes de ver e sentir as coisas tal como as vê e as sente o outro. 

Se fizéssemos este intento deliberado, e se chegássemos a esta forma de identificação com o outro, nossas vidas, e as de outros, seriam muito diferentes. (1) Isso nos libertaria de todas as formas falsas de bondade. No Novo Testamento há um exemplo bem claro de bondade mal entendida e mal dirigida. Trata-se da história que nos conta a visita de Jesus à casa da Marta e Maria, em Betânia (Lucas 10:38-42). Quando Jesus fez esta visita, faltavam muito poucos dias para que se produzisse o trágico desenlace de sua vida. Tudo o que queria era uma oportunidade para poder estar cômodo e contente entre amigos, e assim poder descarregar as terríveis tensões de seu doloroso ministério. Marta amava a Jesus, este era seu hóspede mais honrado; e precisamente porque o amava tanto, desejava poder lhe oferecer a melhor refeição que sua casa podia pôr diante de um convidado especial. Por isso andava ocupadíssima de um lado para outro, fazendo muito ruído na cozinha e no refeitório; cada instante dessa correria era uma tortura para os nervos tensos de Jesus.

Tudo o que queria era tranqüilidade. Marta tinha planejado ser bondosa com Jesus, mas não poderia ter-lhe infligido maior crueldade. Mas Maria compreendeu que a única coisa que Jesus queria era um momento de paz. Ocorre muitas vezes que quando queremos ser bondosos a única bondade que somos capazes de oferecer é a que nós pensamos mais adequada, e a outra pessoa tem que agüentar isso goste ou não. Nossa bondade seria muito melhor, e estaria livre de tanta crueldade involuntária, se apenas pudéssemos fazer o esforço para ver e sentir as coisas do ponto de vista da outra pessoa.

(2) O perdão e a tolerância seriam muito mais fáceis. Há algo muito importante que habitualmente esquecemos – sempre há uma razão para que a pessoa pensar e agir da maneira em que o faz, e se nós conhecêssemos essa razão nos seria muito mais fácil simpatizar com outros, compreendê-los e perdoá-los. Se alguém, segundo nosso ponto de vista, está equivocado no que pensa, é possível que suas experiências, a forma em que foi educado, ou suas normas de vida, o levam a pensar dessa maneira e não como nos parece mais correto. Se alguém agir de maneira irritada ou pouco cortês, é possível que esteja atravessando por um momento de preocupação ou até que esteja sofrendo por alguma causa que nós desconhecemos. Tal como o afirma o provérbio francês, "Saber tudo é perdoar tudo" mas nunca chegaremos a saber o tudo até fazermos o esforço deliberado de introduzir-nos na outra pessoa a fim de compreender suas motivações mais profundas. 

(3) Em uma última análise, não é isto precisamente o que Deus fez em Jesus Cristo? Em Jesus Cristo, no sentido mais literal possível, Deus entrou dentro do homem. Veio aos homens como homem, veio para ver as coisas com os olhos dos homens, a sentir com o coração dos homens, e a pensar com a mente dos homens. Deus sabe como é a vida, porque viveu a vida. 

A Rainha Vitória da Inglaterra e Grã-Bretanha era íntima amiga do Tulloch, decano da Universidade de Saint Andrews, e de sua senhora. O Príncipe Alberto morreu e Vitória ficou sozinha. Quase ao mesmo tempo morreu Tulloch, e sua esposa também ficou sozinha. Sem haver-se anunciado por antecipado, a rainha Vitória visitou a senhora Tulloch, e a encontrou descansando em um sofá, em sua habitação. Quando a viúva se deu conta que a rainha estava em seu quarto, fez um esforço para levantar e fazer uma reverência. A rainha Vitória, entretanto, se adiantou, e disse: "Querida amiga, não se levante. Hoje não venho a você como rainha a um súdito, mas sim como uma mulher que perdeu seu marido a outra na mesma condição." É exatamente o que Deus fez; veio até os homens, mas veio não como um Deus majestoso, longínquo, remoto, indiferente, mas veio como homem. A suprema instância da misericórdia é a vinda de Deus aos homens em Jesus Cristo.

Somente os que demonstram esta misericórdia receberão esta misericórdia. Ocorre assim com o homem, porque uma das grandes verdades da vida é que em outros homens sempre vemos o reflexo do que nós mesmos somos. Se formos distantes, e não manifestarmos interesse algum neles, eles agirão do mesmo modo. Se virem que nos interessamos neles, eles se interessarão em nós. E o mesmo vale, de maneira suprema, com Deus, porque aquele que é capaz de agir segundo sua misericórdia obteve nada menos que ser como Deus. De maneira que a tradução da quinta bem-aventurança poderia ser: 


Quão feliz é o homem capaz de entrar em outros e sentir 
como eles, ver com seus olhos, pensar seus pensamentos, 
porque quem pode identificar-se deste modo com os outros 
verá que os outros farão o mesmo com ele e saberá que 
isso mesmo é o que Deus fez por ele em Jesus Cristo! 



A BEM-AVENTURANÇA DO CORAÇÃO LIMPO 
Estudo sobre Mateus 5:8


Estamos perante a bem-aventurança que exige de todo o que a lê parar, pensar e auto-examinar-se. A palavra do idioma grego que significa puro é kázaros, e possuía vários significados e usos diversos, cada um dos quais adiciona um matiz à concepção da bem-aventurança que envolve a pureza na vida cristã.

(1) Em seu sentido original, significava simplesmente limpo, e podia usar-se, por exemplo, em relação à roupa suja depois de ter sido lavada. 116 

(2) Era usada normalmente para designar o trigo que foi separado da palha. Com o mesmo significado, prega-se de um exército do qual se eliminaram todos os soldados descontentes, covardes, mal dispostos e pouco eficazes em sua missão, e que portanto constitui uma força militar integrada somente por combatentes de primeira qualidade. 

(3) Aparecia freqüentemente em companhia de outro adjetivo grego – akératos. Esta palavra pode ser empregada, por exemplo, para designar o vinho ou o leite que não foram adulterados mediante a adição de água, ou o metal puro, sem mescla de liga alguma. 

O significado de kázaros, portanto, é sem mescla, não adulterado, sem liga. É por isso que a bem-aventurança envolve uma exigência tão formidável. Poderia traduzir-se da seguinte maneira: 


Bem-aventurado é o homem cujas motivações são 
sempre integras e sem mescla de mal algum, porque 
este é o homem que verá a Deus.


É muito raro que realizemos até nossas melhores ações a partir de uma motivação absolutamente pura. Se ofertarmos com generosidade e desinteresse a favor de alguma boa causa, é possível que no fundo de nosso coração estejamos sentido o prazer de nos sentir bem sob a luz de nossa própria aprovação, ao mesmo tempo que desfrutamos do prestígio e a gratidão a que nos conduz nossa "generosidade". Se fizermos algo belo, que exige algum sacrifício de nossa parte, é possível que não estejamos totalmente livres do sentimento de querer que outros homens vejam em nós algo de heróico ou que nos considerem como mártires. Até o ministro do Deus mais sincero não está totalmente livre do perigo de sentir-se satisfeito consigo mesmo ao ter pregado um bom sermão. Não foi João Bunyan quem ao dele se aproximar alguém um dia para lhe dizer que tinha pregado um bom sermão replicou: "O diabo já me disse isso, enquanto descia do púlpito"? 

Esta bem-aventurança nos exige a mais meticulosa vigilância e auto-exame. Que atitude guia nossas ações: a vontade de servir a outros, ou o desejo de receber uma retribuição? Oferecemos nossos serviços desinteressadamente, ou porque procuramos a melhor maneira de nos exibir? Trabalhamos na Igreja por amor a Cristo ou para manter nosso prestígio?

Nossa fidelidade na assistência ao culto dominical, parte do desejo de ir ao encontro de Deus, ou é simplesmente o cumprimento de um costume ou a forma de obter a mais convencional das respeitabilidades? Até nossas orações e nossas leituras da Bíblia, são o resultado de um desejo sincero de andar em companhia de Deus, ou no fundo o que nos move é o prazer de nos sentir melhores que outros, que não manifestem tais demonstrações de piedade? É nossa religião algo no qual somos conscientes nada menos que da necessidade de ter a Deus em nosso coração, ou algo que nos permite pensar placidamente em nossa própria piedade? 

Examinar as motivações mais profundas é uma empresa árdua e que muitas vezes nos envergonha, porque há muito poucas coisas que até os melhores dentre nós façamos por motivações completamente puras. Jesus prosseguiu dizendo que somente os de puro coração verão a Deus. Um dos fatos mais simples da vida é que vemos somente aquilo que somos capazes de ver. Este asserção não vale somente no sentido físico, mas em qualquer outro sentido possível. Se uma pessoa comum sair em uma noite estrelada, a única coisa que verá é uma enorme quantidade de manchinhas luminosas que cintilam no firmamento; vê aquilo que está capacitado a ver. Mas em idênticas circunstâncias o astrônomo poderá nos dizer o nome de cada estrela e planeta, e passeará seu olhar pelas constelações como se fossem suas velhas conhecidas. Sob o mesmo céu, um navegante lerá os sinais que podem conduzir sua nave ao porto desejado através dos mares nos quais não há caminhos nem rotas demarcadas.




A pessoa comum pode caminhar pelo campo, e a única coisa que verá na margem do atalho é um matagal de seixos e flores silvestres; mas o botânico saberá o nome e uso de cada planta e até possivelmente seja capaz de descobrir alguma raridade ou curiosidade de alto valor científico, porque para isso seus olhos estão capacitados a ver. Levemos duas pessoas a um museu cheio de quadros antigos. Quem não tiver a formação necessária não será capaz de distinguir a obra autêntica da imitação fraudulenta, enquanto que o crítico de arte poderá distinguir entre muitas telas de menor importância artística aquela que, sendo obra de algum grande mestre, vale uma soma enorme. Há pessoas de mente suja que em qualquer situação vêem a oportunidade para debulhar uma anedota picante ou uma brincadeira suja. Em qualquer esfera da vida vemos somente aquilo que somos capazes de ver.

É neste sentido que Jesus afirma que somente os limpos de coração verão a deus. É muito importante recordar, como advertência, que se mediante a graça de Deus conservamos limpos os nossos corações, ou mediante o pecado os enchemos de sujeira, estamos determinando nossa futura capacidade ou incapacidade para ver a Deus. Esta sexta bem-aventurança, portanto, poderia ler-se:


Quão feliz é o homem cujas motivações são absolutamente puras, 
porque este homem algum dia será capaz de ver a Deus! 



A BEM-AVENTURANÇA DE UNIR OS HOMENS 
Estudo sobre Mateus 5:9


Devemos começar nosso estudo desta bem-aventurança investigando alguns dos problemas com que nos confronta. (1) Em primeiro lugar está a palavra paz. Em hebraico a paz nunca é um estado negativo; nunca significa somente a ausência de conflitos; em hebraico "paz" significa tudo aquilo que contribui ao bem-estar supremo do homem.

No Oriente, quando duas pessoas se encontram, saúdam-se desejando-se mutuamente "paz" – shalom – e isto não significa que se deseje para o outro simplesmente a liberação de todo mal, mas sim a presença em sua vida de todas as coisas boas e desejáveis. Na Bíblia "paz" não envolve só a ausência de conflitos, mas sim a alegria de todo o bem.

(2) Em segundo lugar deve notar-se cuidadosamente o que diz em realidade esta bem-aventurança. A bênção recai sobre os que fazem a paz, e não simplesmente sobre os que amam a paz. 

Ocorre muito freqüentemente que se alguém ama a paz mas não sabe como "produzi-la", a única coisa que conseguirá é aumentar os conflitos e criar mais problemas dos que existem. Podemos, por exemplo, permitir que se desenvolva uma situação potencialmente ameaçadora ou perigosa, alegando que por não alterar a paz preferimos não fazer nada. Há muitas pessoas que se acreditam amantes da paz, mas em realidade a única coisa que fazem é acumular situações conflitivas que explorarão no futuro, ao negar-se a enfrentar a realidade com a ação decisiva que esta requer. A paz que na Bíblia qualifica de "bem-aventurada" não provém da evasão dos problemas; é conseqüência da atitude decidida de quem os enfrenta, luta e vence. O que exige esta bem-aventurança não é a aceitação passiva de qualquer situação porque temamos fazer algo que provoque reações ou conflitos, ao que ela nos convida é a enfrentar o mal, a fazer a paz, embora isso signifique lutar. 

(3) A expressão filhos de Deus é uma forma tipicamente hebraica de designar os "pacificadores". O idioma hebreu não possui muitos adjetivos, e muito freqüentemente quando quer descrever as qualidades de algo se usa a expressão "filho de...", completada com o correspondente essencial abstrato. Assim, por exemplo, o homem pacífico se denominará filho da paz. Barnabé era apelidado filho da consolação em lugar de consolador. Essa bem-aventurança diz que os pacificadores são benditos porque serão chamados filhos de Deus, o que significa que são benditos porque fazem algo que é tipicamente o que Deus faz. O homem que faz a paz realiza a obra na qual está comprometido o Deus de paz (Rom. 15:33; 2 Cor. 13:11; 1 Tess. 5:23; Heb. 13:20). 

Tem-se buscado o significado desta bem-aventurança segundo três possíveis linhas de interpretação. (1) Alguns sugeriram que, sendo "paz" tudo aquilo que contribui ao bem-estar humano, "pacificador" é o homem que busca, de todas as maneiras possíveis, fazer com que o mundo seja um lugar onde todos os homens possam ser felizes.

Abraão Lincoln disse em certa oportunidade: "Quando eu morrer gostaria que os homens dissessem de mim que ali onde vi uma erva má, arranquei-a, e plantei em seu lugar uma flor, se crer que uma flor poderia crescer nesse lugar." Esta, em tal caso, seria a bem-aventurança de todos os que têm feito algo, por pequeno que seja, a favor da condição humana. 

(2) A maioria dos primeiros eruditos da Igreja interpretavam esta bem-aventurança em um sentido puramente espiritual, e sustentavam que seu significado era: Bem-aventurado o homem que faz a paz em seu próprio coração e em sua alma. Em todos nós há um conflito interior entre o bem e o mal; sempre nos sentimos arrastados em duas direções opostas; cada ser humano é, pelo menos em certa medida, uma guerra civil ambulante. Verdadeiramente feliz é o homem que conquistou a paz interior, no qual terminou a luta interior e entregou todo o seu coração a Deus.

(3) Mas há outro significado da palavra paz, ao qual os rabinos judeus davam ênfase e que, quase com certeza, é o que Jesus tinha em mente ao pronunciar a bem-aventurança, Os rabinos do judaísmo sustentavam que a tarefa mais elevada que qualquer homem podia realizar era o estabelecimento de relações justas entre seus semelhantes. Isto é o que Jesus quis dizer. Há pessoas que sempre são o centro de conflitos, tormentas e lutas. Em qualquer lugar que apareçam, serão vistos implicados em disputas, ou sendo a causa de lutas com outros. São briguentos. Há pessoas, deste tipo quase em toda sociedade e em toda igreja, e pode afirmar-se sem vacilação que servem ao diabo. Por outro lado, graças a Deus, há pessoas em cuja presença a inimizade não pode prosperar, que salvam os abismos, fecham as brechas e adoçam a amargura. Estes fazem a vontade de Deus, pois o plano divino consiste em estabelecer a paz entre o homem e Deus e entre o homem e seu semelhante. O homem que divide os homens é um agente do diabo; o homem que os une está fazendo a obra de Deus.

De modo que esta bem-aventurança poderia ler-se: 


Quão feliz é aquele que cria relações justas e sadias 
entre os homens, porque sua ação é obra de Deus!



A BEM-AVENTURANÇA DE QUEM SOFRE POR CRISTO 
Estudo sobre Mateus 5:10-12


Uma das qualidades mais destacadas de Jesus era sua absoluta honestidade. Nunca deixou lugar a que os homens se equivocassem com respeito à sorte que podiam esperar se escolhiam segui-lo. Sempre deixou claro que "não tinha vindo para tornar fácil a vida, mas para tornar grandes os homens". 

É-nos muito difícil entendermos os sofrimentos que tiveram que suportar os primeiros cristãos. Em todos os aspectos de sua vida precisaram suportar incríveis dificuldades. (1) Sua fé podia ser motivo de que perdessem seu trabalho. Imaginemos alguém que fosse pedreiro. Uma profissão ao que parece inocente. Mas a empresa para a qual trabalhava o enviasse a levantar as paredes de um templo pagão. Qual devia ser sua atitude? Ou possivelmente se tratasse de um alfaiate: qual devia ser sua atitude se lhe encarregavam de confeccionar as vestimentas litúrgicas de um sacerdote pagão? Em uma situação tal como aquela em que se achavam os primeiros cristãos, dificilmente haveria algum trabalho no qual não tivessem que enfrentar vez por outra conflitos entre seus interesses econômicos e sua lealdade a Jesus Cristo. A Igreja não duvidava de qual era a obrigação de seus membros. Quase cem anos depois alguém se aproximou de Tertuliano para lhe expor este mesmo problema: "O que posso fazer? Tenho que viver!", disse depois de ter exposto sua situação. E Tertuliano lhe respondeu: "Realmente tem que viver?" Se a alternativa era entre ser leal a Cristo e a vida, o verdadeiro cristão sabia qual era sua obrigação.

(2) Sua fé, é obvio, perturbava sua vida social. No mundo antigo a maioria das festas eram realizadas no templo de algum deus. Muito poucos eram os sacrifícios em que os animais se queimavam totalmente no altar. Em alguns casos somente se ofereciam, de maneira simbólica, alguns cabelos cortados da cabeça da vítima; parte da carne ficava para os sacerdotes, a modo de pagamento, e o resto era devolvido ao adorador. Com esta parte ele oferecia uma festa para seus parentes e amigos. Uma das divindades mais populares, a que se ofereciam sacrifícios freqüentemente, era Serapis. E quando se mandava um convite para participar da festa que seguia inevitavelmente à cerimônia religiosa, a forma do texto dizia: 


"Convido-o a compartilhar comigo a mesa de nosso Senhor Serapis..."


Podia um cristão participar de uma festa que se celebrava no templo de uma divindade pagã? Não somente isto, mas sim qualquer refeição comum, até nas casas particulares, começava sempre com uma libação, um copo de vinho que se derramava em honra de algum dos deuses. Era como "dar graças a Deus" antes das refeições. Podia um cristão participar de tal ato de adoração pagã? A resposta, também neste caso, era bem clara. O cristão devia separar-se de seus semelhantes em vez de aprovar com sua presença atos dessa natureza. Para ser cristão era necessário estar disposto a isolar-se de outros e ficar sozinho. 

(3) Pior ainda, o cristão devia, em alguns casos, aceitar a ruptura de sua vida familiar. Com freqüência ocorria que um dos membros da família se convertia ao cristianismo, enquanto outros seguiam sendo pagãos. Possivelmente a esposa se tornasse cristã, mas seu marido não. 

Um filho ou uma filha aceitavam a fé, enquanto seus pais e irmãos permaneciam no paganismo. Imediatamente se produzia uma divisão na família. Freqüentemente a porta do lar se fechava para sempre na cara daquele membro da família que tinha abraçado a fé cristã. O cristianismo não contribuía para a união da família, mas sim era como uma espada que vinha para dividi-la em duas partes. Era literalmente certo que o cristão devia estar disposto a amar mais a seu Senhor que a pai, mãe, esposa, irmão ou irmã. Naqueles dias a fé cristã muito freqüentemente significava ter que escolher entre Cristo e os seres mais queridos e próximos do crente. Mais ainda, as sanções legais das que se fazia passível o cristão eram muito mais drásticas do que podemos imaginar. Todo mundo sabe que os cristãos eram jogados aos leões ou queimados na estaca. Mas estas eram mortes misericordiosas. Nero envolvia os cristãos em breu e os usava como tochas para iluminar seus jardins; costurava-os em peles de animais selvagens e lançava aos cães de caça para que lhes rasgassem a carne a dentadas. Eram torturados no cavalo de madeira, rasgados com tenazes; vertia-se chumbo derretido sobre seus corpos; eram-lhes postos pranchas de bronze aquecidas como brasa sobre as partes mais delicadas do corpo. Era-lhes arrancados os olhos. Cortavam-lhes partes do corpo que eram assadas em sua presença. As mãos e os pés eram queimados, enquanto eram banhados em água fria, para prolongar a agonia. Não são coisas agradáveis de mencionar, mas para tudo isto, devia estar preparado aquele que aceitava a fé cristã.

Podemos nos perguntar por que os romanos perseguiram o cristianismo. Pareceria extraordinário e incrível que alguém acreditasse necessário e correto submeter à perseguição e morte aos que levavam piedosas vidas cristãs. As principais razões são duas: 

(1) Havia rumores caluniosos com respeito aos cristãos, que circulavam por todo o império, e os judeus eram, em parte, responsáveis por esta difamação. (a) Acusava-se os cristãos de canibalismo; tomavam literalmente as palavras da instituição da Ceia – "Isto é meu corpo", "Este cálice é a nova aliança no meu sangue" – e corria a história de que os cristãos em seu culto sacrificavam crianças e as comiam. (b) Acusava-se os cristãos de práticas imorais e os rumores enfatizavam que suas reuniões semanais fossem orgias de desenfreada concupiscência. O culto semanal que celebravam os cristãos era denominado Ágape, ou seja "festa de amor", e este termo era interpretado da maneira mais grosseira possível. Os cristãos se saudavam entre si com o beijo da paz, e este gesto também servia como base de tergiversações para os caluniadores da nova fé. (c) Acusava-se os cristãos de ser incendiários. É certo que com muita freqüência falavam do fim do mundo, e que revestiam a mensagem de sua fé com as imagens de uma linguagem apocalíptica, segundo o qual as chamas consumiriam todas as coisas. Os críticos do cristianismo distorciam esta terminologia, transformando-a na ameaça de uma incendiária plataforma revolucionária, no sentido político deste termo. (d) Acusava-se os cristãos de perturbar as relações familiares. O cristianismo, de fato, produzia divisões nas famílias, como vimos; por esta razão era representado como uma fé que dividia o marido da esposa, e transtornava a vida da família. As mentes maliciosas tinham suficiente material para inventar suas infundadas calúnias.

(2) Mas o principal motivo das perseguições era de natureza política. Pensemos na situação do Império Romano que naquela época incluía quase todo mundo conhecido, das ilhas britânicas até o Eufrates, e desde a Germânia até o norte da África. Como se podia fazer para que esta enorme amálgama de nações e povos tivesse algum reflexo de unidade política? Onde se poderia descobrir um princípio unificador? No princípio foi encontrado no culto da deusa Roma, o espírito tutelar do império. As províncias do vasto império aceitavam prazerosas esta divindade, porque o governo de Roma havia lhes trazido a paz e a ordem pública, a legalidade e a justiça. Ficaram livres de assaltantes as estradas e os mares estavam livres de piratas; o despotismo e a tirania dos soberanos autocratas tinha sido deslocado pela imparcial justiça romana. O habitante da província estava bem disposto a participar da adoração do espírito do império que tanto tinha feito por ele. 

Mas a adoração de Roma avançou um passo mais. Havia um homem que personificava o Império, um homem que podia oferecer-se como encarnação de Roma, e este homem era o imperador. Portanto o imperador chegou a ser considerado um deus, rendendo-se a ele honras dignas de um deus e construindo-se templos dedicados à sua divindade. O governo romano não foi o iniciador deste culto; de fato, no princípio fez todo o possível por desalentá-lo. O imperador Cláudio disse que desprezava a tributação de honras divinas a um homem. Mas com o correr do tempo os romanos descobriram que esse culto do imperador podia servir como princípio unificador do enorme Império Romano; ali estava o centro comum ao qual todos podiam acudir. Deste modo finalmente a adoração do imperador deixou de ser voluntária e se tornou obrigatória.

Uma vez por ano todos os varões do Império deviam ir ante uma imagem de César e queimar um pingo de incenso, dizendo: "César é o Senhor." E isto, precisamente, era o que os cristãos se negavam a fazer. Para eles o Senhor era Jesus Cristo, e não estavam dispostos a oferecer a nenhum homem o título que correspondia a Ele. 

Pode perceber-se imediatamente que a adoração de César era mais que nada uma prova de lealdade política. De fato, quando alguém cumpria o ato de adoração que se descreveu, recebia um certificado, o libellus, no qual se estabelecia que o possuidor tinha comprido o seu dever como habitante do Império Romano, e que portanto podia adorar a qualquer outro deus que quisesse, sempre que seu culto não interferisse com a ordem pública nem atentasse contra a decência. Os cristãos se negavam a aceitar esta norma. Confrontados pela alternativa de escolher entre Deus ou César, sem vacilar preferiam seguir a Cristo. Negavam-se a entrar em acordos de qualquer espécie. O resultado era que por melhor pessoa e melhor cidadão que fosse, o cristão ficava, automaticamente, fora da lei. O vasto Império Romano não podia permitir-se alojar redutos de deslealdade, e isso era precisamente o que significava cada congregação cristã, segundo o ponto de vista das autoridades. Um poeta se referiu a: 


"O rebanho temeroso e angustiado cujo crime era Cristo."


O único crime dos cristãos era colocar a Cristo acima de César; e por esta lealdade suprema os cristãos morreram aos milhares e enfrentaram incríveis torturas. 






A BEM-AVENTURANÇA DO CAMINHO MANCHADO DE SANGUE 
Estudo sobre Mateus 5:10-12 (continuação)


Quando nos damos conta de qual foi a origem das perseguições, percebemos também em todo seu esplendor a glória do caminho que os mártires seguiram. Pode parecer injurioso referir-se à "bem-aventurança dos perseguidos", mas para os que têm olhos para ver mais além do presente imediato, e podem compreender a nobreza dos problemas envoltos, esse caminho manchado de sangue é verdadeiramente um caminho glorioso. 

(1) A perseguição era uma oportunidade para demonstrar a lealdade para com Jesus Cristo. Um dos mártires mais famosos foi Policarpo, o ancião bispo da Esmirna. A multidão enfurecida o arrastou ao tribunal do magistrado romano. Foi-lhe oferecida a opção iniludível de sacrificar diante de César ou sofrer a pena de morte. "Durante oitenta e seis anos", foi a imortal réplica, "servi a Cristo, e ele nunca me fez mal algum. Como posso agora, na minha idade, blasfemar de meu Rei, que me salvou?" De modo que o levaram até a pira para queimá-lo vivo, e sua última oração foi: "Ó Deus Onipotente, Pai de seu bem amado e bem-aventurado Filho, por quem recebemos o conhecimento de seu nome, dou-te graças por me haver considerado digno deste momento e desta hora." Esta era a suprema oportunidade para demonstrar a lealdade a Cristo. 

Muitos de nós jamais tivemos que fazer um verdadeiro sacrifício por amor de Jesus Cristo. Aqueles momentos em que nossa fé pode chegar a nos custar algo são os momentos em que nos é dado demonstrar nossa lealdade a Jesus Cristo, de maneira tal que todos possam ser testemunhas da fé que professamos. (2) Sofrer a perseguição, conforme disse o próprio Jesus, é transitar pelo mesmo caminho que tiveram que percorrer os profetas, os santos e os mártires. Sofrer pela justiça é participar por direito próprio em uma grande e honrosa sucessão de homens excepcionais. O homem que deve sofrer de alguma maneira por causa de sua fé, pode erguer a cabeça e dizer:


"Irmãos, pisamos no mesmo caminho que os santos pisaram."


(3) Sofrer perseguição é participar de uma grande ocasião. Sempre é emocionante estar presentes na grande ocasião em que acontece algo memorável e crucial. Mas mais emocionante é ter uma participação, embora seja humilde, no próprio fato. 

Quando alguém é convocado a sofrer de algum modo por sua fé em Cristo trata-se de uma grande ocasião, de um momento crucial em sua vida e na história: trata-se do choque entre Cristo e o mundo; é um momento do drama da eternidade. Poder participar de tal circunstância não é um castigo, mas uma glória. “Regozijai-vos e exultai”, diz Jesus, “porque é grande o vosso galardão nos céus”. A palavra grega que em nossas versões se traduz regozijai-vos é um derivado de dois termos que significa literalmente saltar muito alto. É o prazer de quem salta de alegria. Como alguém afirmou, é o prazer do alpinista que chegou à cúpula da montanha, e salta de alegria porque conquistou sua meta. 

(4) Quem sofre perseguições contribui ao bem-estar dos que virão depois. Hoje desfrutamos de liberdade e paz porque houve homens e mulheres no passado que estiveram dispostos a conquistá-las para nós a custo de sangue, suor e lágrimas. Graças as coisas são mais fáceis para nós, e nós por meio de nossa firme fidelidade a Cristo podemos fazer com que sejam mais fáceis para os que virão depois. No grande projeto do dique Boulder, nos Estados Unidos, muitos homens perderam sua vida em uma tarefa que teve como resultado converter uma extensa zona desértica em terras férteis para a lavoura. Quando a obra foi terminada, o nome de todos os que tinham morrido durante os trabalhos de construção foram inscritos em uma placa que foi colocada sobre o grande muro do dique. Nela pode ler-se a inscrição: "Estes morreram para que o deserto pudesse regozijar-se e florescer como uma rosa." Quem trava sua batalha junto com Cristo sempre contribuirá para facilitar as coisas para as gerações futuras. Estas tropeçarão com menos obstáculos ainda.

(5) Por outro lado, nunca, ninguém, está sozinho ao sofrer perseguição, quer esteja chamado a suportar perdas materiais, a traição de seus amigos, a calúnia, o isolamento ou até a morte por amor de seus princípios, não estará sozinho, pois Cristo estará mais perto de si nesse momento que em qualquer outra circunstância de sua vida. 

A antiga história de Daniel nos conta como Sadraque, Mesaque e Abede-nego foram lançados em um forno incandescente por eles se terem negado a renunciar sua fidelidade a Deus. Os membros da corte observavam. "Não lançaram a três varões atados dentro do fogo?", foi a pergunta do Nabucodonosor. A resposta foi afirmativa. E então ele disse: "Eu, porém, vejo quatro homens soltos, que andam passeando dentro do fogo, sem nenhum dano; e o aspecto do quarto é semelhante a um filho dos deuses" (Daniel 3:19-25). 

Quando alguém deve sofrer algo por sua fé, é quando experimenta mais intimamente a companhia de Cristo. 

Só nos resta uma pergunta – por que é tão inevitável esta perseguição? É inevitável porque a Igreja, quando é verdadeiramente a Igreja, tem que ser a consciência da nação e da sociedade. Quando se faz o bem, a Igreja deve elogiar a seus autores; quando se faz o mal, a Igreja deve condenar – e inevitavelmente os homens procurarão silenciar a incômoda voz da consciência. Não é dever cristão individual reprovar, criticar ou condenar, mas bem pode ser que sua mera forma de agir seja uma silenciosa condenação das vidas pecaminosas de outros, e não poderá evitar o ódio deles. 

Não é provável que devamos sofrer a morte por causa de nossa lealdade a Cristo. Mas sempre há um insulto preparado para o homem que se propôs viver segundo a honra de Cristo. A zombaria é o destino de quem pratica o amor e o perdão cristãos. É bem possível que haja uma verdadeira perseguição contra o operário que se propõe cumprir meticulosamente com suas obrigações de trabalho. Cristo ainda necessita testemunhas; hoje possivelmente necessite mais dos que estejam dispostos a viver por Ele, que a morrer por Ele. Ainda há lugar para a luta e a glória do cristianismo.


O SAL DA TERRA 
Estudo sobre Mateus 5:13


Quando Jesus pronunciou estas palavras usou uma expressão que depois se tornou o maior elogio que se pode oferecer a homem algum. Se desejamos sublinhar a solidez, utilidade e valor de alguém podemos dizer: "Pessoas assim são o sal da Terra." 

Na antiguidade o sal possuía um valor muito grande. Os gregos costumavam dizer que o sal era divino. Os romanos, em uma frase que em latim era algo como uma das rimas comerciais da atualidade, diziam: "Nada é mais útil que o sol e o sal" (Nil utilius sole et sale). Na época de Jesus o sal era associado com três qualidades especiais: 

(1) O sal se relacionava com a idéia de pureza. Indubitavelmente sua faiscante brancura fazia com que a associação fosse fácil. Os romanos diziam que o sal era o mais puro do mundo porque procedia das duas coisas mais puras que existem: o sol e o mar. O sal é a oferenda mais antiga dos homens aos deuses, e até o final do culto sacrificial judeu toda oferenda era acompanhada de um pouco de sal. Portanto, para que o cristão seja o sal da Terra, deve ser um exemplo de pureza. Uma das características do mundo em que vivemos é a diminuição das exigências morais. No que respeita à honradez, a diligência no trabalho, a retidão, a moral, todas as normas estão sofrendo um processo de relativização e rebaixamento. O cristão deve ser aquele que mantém no alto os ideais de uma pureza absoluta na linguagem, na conduta e até no pensamento. 

Certo escritor dedicou seu livro a J. Y. Simpson: "Aquele que faz com que o melhor seja verossímil". Nenhum cristão pode apartar-se das normas de uma estrita honestidade. Nenhum cristão pode aceitar a relativização das pautas morais em um mundo em que as ruas de qualquer grande cidade são um permanente e deliberado convite ao pecado. Nenhum cristão pode permitir ocorrências de duplo sentido que hoje formam parte da conversação habitual em muitos meios sociais. O cristão não pode separar-se do mundo mas, como o afirma Tiago, deve "guardar-se sem mancha do mundo" (Sant. 1:27). 

(2) No mundo antigo o sal era o mais comum de todos os preservadores, Usava-se para impedir que os mantimentos, e outras coisas, apodrecessem ou se corrompessem, para deter o processo de putrefação. Plutarco diz tudo isto de uma maneira extremamente curiosa: "A carne – afirma – é um corpo morto, e forma parte de um corpo morto, e se for deixada entregue a si mesma muito em breve perde a frescura; mas o sal a preserva e impede sua corrupção." Portanto, sempre segundo Plutarco, o sal é como uma nova alma inserida no corpo morto. De maneira que o sal impede a corrupção. Para que o cristão seja o sal da Terra deve cumprir uma certa função anti-séptica na vida. Sabemos muito bem que há certas pessoas em cuja companhia fica fácil ser bons, e que também há outras junho às quais não é difícil rebaixar nosso comportamento. Há pessoas em cuja presença fica fácil contar um "conto verde" e há outras em cuja presencia a ninguém pensaria, sequer, fazer uma alusão de duplo sentido. O cristão deve ser o elemento anti-séptico e purificador em qualquer grupo em que se encontre presente. Deve ser a pessoa que por sua simples presença derrota a corrupção e faz com que para outros seja mais fácil ser bons. 

(3) Mas a qualidade mais evidente e principal do sal é que dá sabor. A comida preparada sem sal é tristemente insípida e até pode chegar a ser repulsiva. O cristianismo é para a vida o que o sal é para a comida. Amadurece a vida. A desgraça é que haja tantos que o associaram precisamente com as características opostas. Associaram a fé de Cristo com tudo aquilo que tira o gosto à vida. Assim o afirma, por exemplo, o poeta inglês Swinburne:


"Venceste, pálido galileo, o mundo 
tornou-se cinzento perante teu fôlego."


Depois que Constantino aceitou a religião cristã como religião do Império Romano, outro imperador, Juliano, quis voltar atrás e restituir a vigência dos antigos deuses. Sua queixa, tal como a representa Ibsen, era: 

"Você prestou atenção nestes cristãos? Os olhos fundos, as bochechas pálidas, estão toda sua vida refletindo, não os move ambição alguma; o sol brilha sobre suas cabeças mas não o vêem nem se comovem, a Terra lhes oferece sua plenitude, mas não a desejam; tudo o que ambicionam é ter que sacrificar-se e sofrer para morrer e ir ao céu." 

Segundo Juliano, o cristianismo desprezava os dons da vida. Oliver Wendell Homes disse, em certa oportunidade:

"Eu teria sido pastor, se a maioria dos pastores que conheci em minha juventude não tivessem tido o aspecto de empregados de funerárias e agido como tais." 

Robert Louis Stevenson certa ocasião declarou em seu jornal, como se se tratasse de um fato extraordinário: "Hoje fui à Igreja e não me sinto deprimido." 

Os homens precisam redescobrir o brilho e a alegria perdidos da fé cristã. Em um mundo angustiado o cristão deveria ser o único que consegue manter a serenidade. Em um mundo deprimido, o cristão deveria seguir sendo o único inundado pelo prazer de viver. A vida cristã deveria ser algo radiante. Infelizmente, com muita freqüência, o cristão se veste como um dos parentes que assiste a um funeral, e em uma festa é como um espectro vindo de outro mundo. Em qualquer lugar que o cristão esteja deve ser o sal da Terra, o difusor da alegria. Jesus prossegue dizendo que se o sal perder seu sabor, somente serve para ser lançado fora para ser pisado pelos homens. Isto é de difícil compreensão, porque o sal não perde seu sabor, nunca deixa de ser salgado.

E. F. Bishop, em seu livro Jesus of Palestine menciona uma explicação muito verossímil dada por uma senhorita F. E. Newton. Na Palestina a maioria das casas têm um forno ao ar livre, perto da mesma, construído com pedras sobre uma base de lajes. Nesses fornos, "a fim de manter o calor, coloca-se uma grossa capa de sal, sobre as lajes. Depois de algum tempo, esse sal deixa de servir ao seu propósito. Então se tiram as lajes e o sal se atira e se derruba no caminho... perdeu seu poder servindo de elemento refratário ao calor e portanto já não serve." É muito possível que esta seja a imagem que Jesus tem em mente. Mas o ensino é independente da imagem, sendo um tema que no Novo Testamento se repete uma e outra vez: a inutilidade acarreta graves conseqüências. Se o cristão não cumprir o seu objetivo como cristão, vai por mau caminho. Estamos destinados a ser o sal da Terra; se não levarmos à vida a pureza, o poder anti-séptico, a alegria e o esplendor que são nossa possibilidade e obrigação como crentes, devemos ater-nos a sofrer as conseqüências. 

Deve notar-se, para terminar, que a Igreja primitiva fazia um uso muito estranho deste texto. Na sinagoga, entre os judeus, existia o costume de que se um judeu apostatava de sua fé e depois, arrependido, desejava voltar para ela, tinha que deitar-se atravessado na porta e permitir que todos outros pisassem sobre ele, como se fora uma soleira, quando entravam nela. Algumas Iglesias cristãs adotaram este costume, e quando algum cristão era expulso disciplinarmente da Igreja, para poder voltar para ela devia fazer quão mesmo o judeu apóstata e dizer a seus irmãos: "Pisem-me, porque sou o sal que perdeu o seu sabor."






A LUZ DO MUNDO 
Estudo sobre Mateus 5:14-15


Pode dizer-se perfeitamente que este é o maior elogio que jamais se pronunciou com respeito ao cristão, pois nestas palavras Jesus ordena a seu seguidor que seja o que ele mesmo afirmou ser. Ele disse: "Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo" (João 9:5). E quando ordenou a seus seguidores que fossem a luz do mundo não fez senão dizer-lhes que deviam ser o que ele era, nada menos. 

Ao usar esta expressão, Jesus estava dizendo algo que devia ser familiar a seus contemporâneos judeus. Costumava-se dizer que Jerusalém era "a luz dos gentios", e havia um rabino famoso cujo apelido era "a lâmpada de Israel". Mas a forma em que os judeus usavam esta expressão pode nos dar a chave do que Jesus quis dizer ao usá-la. De uma coisa os judeus estavam seguros – ninguém era capaz de acender sua própria luz. Jerusalém podia ser a luz dos gentios, mas "Deus tinha aceso a lâmpada de Israel". A luz com que brilhavam a nação ou o homem de Deus era luz emprestada. Do mesmo modo seria com o cristão. A exigência de Jesus não é que nós produzamos nossa própria luz. Devemos brilhar com o reflexo da Sua luz. O resplendor que emana do cristão foi aceso pela presença de Cristo em seu coração. Com freqüência dizemos que uma noiva "está radiante". Mas essa "radiação" é a que nasce de seu coração aceso em uma chama viva pelo amor que sente com relação ao seu noivo. 

O que Jesus quis dizer ao afirmar que o cristão devia ser a luz do mundo? 

(1) Uma luz é, acima de tudo e em primeiro termo, algo cuja razão de ser é que seja vista. O interior das casas palestinenses era muito escuro, pois tinham apenas uma abertura circular, de uns trinta ou quarenta centímetros de diâmetro, como única fonte de iluminação durante o dia. As lâmpadas que se usavam eram recipientes de barro, com a forma de molheiras, cheias de azeite no qual flutuava a mecha. 

Antes de existissem fósforos não era muito fácil reacender um abajur quando apagava. Quase sempre o abajur estava colocado sobre um candelabro, que na maioria dos casos não era mais que um tronco de madeira rusticamente trabalhado. Mas quando se saía da casa, por razões de segurança, o abajur era colocado, aceso, debaixo de uma vasilha, também de barro; deste modo se assegurava que não produziria um incêndio durante a ausência dos donos de casa. A missão primitiva da luz do abajur era ser vista por todos. 

Do mesmo modo o cristianismo está destinado a ser visto. Como foi dito com grande acerto, "Não pode haver tal coisa como um discipulado secreto, porque ou o segredo destrói o discipulado, ou o discipulado destrói o segredo." O cristianismo de uma pessoa deve ser perfeitamente visível para todos os que a rodeiam. Mais ainda, deve ser uma profissão de fé que não somente fique de manifesto na Igreja. Um cristianismo cuja influência se detém na porta da igreja, não tem grande valor para ninguém. Deve ser mais visível até nas atividades mundanas que na Igreja. Nosso cristianismo deve ficar de manifesto na maneira de tratar o empregado que nos atende em um escritório ou em um comércio, no modo de pedir o que desejamos comer quando vamos a um restaurante, em nossas relações com os que trabalham sob nossas ordens, ou com os que nos empregam ou ordenam, na maneira de dirigir nosso automóvel e estacioná-lo, na atitude que assumimos quando jogamos e nos divertimos. O cristão deve ser cristão na fábrica, na oficina, no laboratório, na escola, no sala de cirurgia, na cozinha, na quadra de esportes de futebol, na praia, ou na Igreja. Jesus não disse: "Vós sois a luz da Igreja"; disse: "Vós sois a luz do mundo", e isto significa que a fé que um homem ou mulher professa deve ser visível para todos em sua vida no mundo. 

(2) A luz serve de guia. No estuário de qualquer rio pode ver-se a fila de luzes, colocadas em bóias, que marcam o canal por onde os navios podem navegar sem percalços durante a noite. Sabemos quão difícil era transitar mesmo pelas ruas das cidades quando não tinha iluminação pública. A luz ilumina o caminho. Do mesmo modo, o cristão deve iluminar o caminho de seus semelhantes. Isto significa que necessariamente deve ser exemplo para os outros.

Uma das coisas que este mundo em que vivemos necessita desesperadamente são pessoas que estejam dispostas a concentrar em sua vida e atitudes a bondade e a virtude que tanto escasseiam. Suponhamos que há um grupo de pessoas, e que alguém propõe que se faça algo de duvidosa qualidade moral. A menos que outro dos membros do grupo eleve sua voz de protesto não pode nos caber a menor dúvida de que a maldade proposta se fará. Basta que um só diga: "Eu não participarei desta ação", para que outro, e outros mais acrescentem: "Eu tampouco." Se alguém não tivesse tomada a iniciativa, estes últimos teriam ficado calados. Há muitas pessoas neste mundo que carecem da coragem e da postura moral para defender sozinhos o que acreditam ser uma atitude correta. Mas se algum outro o faz, eles o seguirão; se podem apoiar-se em alguém suficientemente forte, procederão bem. É dever do cristão iniciar a ação justa e boa que seus irmãos mais fracos possam imitar, erigir-se no guia que os menos valorosos possam seguir. O mundo necessita luzes que guiem seu caminho. Há multidões que desejam ver alguém disposto a dirigi-los naquelas coisas que eles mesmos não se animariam a realizar por conta própria. 

(3) Uma luz freqüentemente serve como advertência. Quando há algum perigo no caminho, e é de noite, acende-se uma luz para nos advertir e fazer com que nos detenhamos. Muitas vezes o dever do cristão é advertir a outros do perigo que os espreita. Isto é muito delicado, e às vezes é tremendamente difícil saber como transmitir a advertência para que produza o bem desejado; mas uma das tragédias mais amargas é quando um jovem, especialmente, aproxima-se de nós e nos diz: "Eu nunca teria me encontrado na situação em que estou se alguém me tivesse advertido a tempo do perigo." 

Diz-se que Florence Allshorn, a famosa professora, diretora de escola e mística cristã, quando tinha a obrigação de repreender a alguma de suas alunas, o fazia "com seu braço sobre os ombros da transgressora". Se transmitirmos nossas advertências sem nos zangar nem nos mostrar irritados, sem a vontade de ferir, sem uma atitude crítica ou condenatória, mas com amor, obteremos nosso objetivo.

A luz que fica visível, a luz que adverte do perigo, a luz que indica o caminho, estas são as classes de luz que deve ser o cristão. 


BRILHEMOS PARA DEUS 
Estudo sobre Mateus 5:16


Aqui há duas coisas de suma importância: 

(1) Os homens devem ver nossas boas ações. No idioma grego há duas palavras que designam o bem: a palavra agazós, mediante a qual se define a bondade direta de alguma coisa; kalós, que quer dizer que algo não somente é bom mas também belo, atrativo, elegante. A palavra que se usa neste versículo é kalós. As boas ações do cristão não devem ser somente boas; também devem ser atrativas. Deve haver uma certa superioridade na bondade cristã. O mal de muitas pessoas que acreditam ser boas, é que sua atitude se apresenta fria, dura e excessivamente austera. Há uma bondade que atrai e uma bondade que repele. Há na bondade cristã certo encanto que a torna bonita. 

(2) Mas também deve notar-se que nossas boas ações não têm o propósito de atrair a atenção de outros sobre nós, e sim sobre Deus. Estas palavras de Jesus são uma proibição absoluta do que alguém chamou "a bondade teatral". 

Em uma conferência a qual tinha sido convidado D.L. Moody havia também um grupo de jovens que tomavam muito a sério sua fé cristã. Uma noite realizaram uma vigília de oração que durou a noite inteira. Na manhã seguinte, quando se retiravam, encontraram-se com Moody, quem lhes perguntou o que estiveram fazendo. Eles lhe disseram, agregando: "Não se dá conta de como brilham nossos rostos?" Ao qual o grande pregador replicou: "Moisés não estava tão ansioso como vocês de que seu rosto brilhasse." A bondade teatral, ou seja aquela bondade que se anda exibindo, não é uma bondade cristã.

Um dos antigos historiadores escreveu com respeito a Henrique V depois da batalha do Agincourt: "Nem tampouco permitiu que os trovadores cantassem estrofes de louvor por sua gloriosa vitória, porque queria que todo o louvor e gratidão fossem dadas a Deus." O cristão nunca pensa no que tem feito, e sim no que Deus lhe permitiu fazer. Nunca procura fazer que o olhar dos homens se concentre nele, mas sim o conduz para Deus. Enquanto alguém passe todo o tempo pensando no louvor, na gratidão ou no prestígio que obterá por suas boas ações, nem sequer começou a transitar pelo caminho de Cristo.

A LEI ETERNA 
Estudo sobre Mateus 5:17-20 

Em uma primeira leitura bem poderia afirmar-se que esta é a declaração mais surpreendente de todas as que Jesus faz no Sermão da Montanha. Nestas palavras Jesus estabelece o caráter eterno da Lei; e entretanto, Paulo poderá dizer: "Porque o fim da lei é Cristo" (Romanos 10:4). Jesus quebrantou repetidamente o que os judeus chamavam a Lei. Não observava a lavagem das mãos que a lei estipulava; curava os doentes no sábado, embora a lei proibia tais curas; foi condenado e crucificado, de fato, como réu de grande legalidade; e entretanto, aqui o escutamos falar da lei com uma veneração e reverência que nenhum rabino ou fariseu teriam podido exceder. A menor letra que em nossas versões se traduz "j", era a letra hebraica ioth. Escrevia-se como um apóstrofo –'-; e nem sequer a letra mais insignificante, que podia passar perfeitamente por um signo de pontuação, teria que desaparecer da lei. A menor parte da letra, que se traduz "til", era o sérif, uma espécie de risco similar às projeções laterais que se desenham na letra l, na parte superior e a inferior. Jesus estabelece que a lei é tão importante que nem sequer o menor detalhe caligráfico de seu texto deverá desaparecer. 

Algumas pessoas têm ficado tão intrigadas por esta afirmação, que chegaram à conclusão de que não pode ser de Jesus. Sugerem que, sendo o evangelho de Mateus o mais judeu de todos os evangelhos, e sabendo que seu objetivo final era convencer aos judeus, este seria um dito que Mateus inventou e pôs nos lábios de Jesus, mas que não se pode considerar como um ensino original do Mestre. Mas o raciocínio de quem pensa deste modo é completamente falso e fraco. Em realidade era tão pouco provável que Jesus dissesse isto, que ninguém teria tido a idéia de atribuir-lhe e quando compreendemos seu significado veremos que é inevitável que seja uma afirmação de Jesus. 

Os judeus usavam o termo a Lei em quatro acepções diferentes: 

(1) Usavam-no para designar aos Dez Mandamentos. 

(2) Usavam-no para designar os cinco primeiros livros da Bíblia, essa porção das Escrituras que também se conhece como o Pentateuco – que significa literalmente Os cinco rolos – e que era para os judeus a Lei por excelência e a parte mais importante das Escrituras. 

(3) Usavam a expressão A Lei e os Profetas para denotar a totalidade das Escrituras; era uma espécie de descrição ampla que abrangia a totalidade do Antigo Testamento. 

(4) E também a usavam para descrever a lei oral, ou dos escribas. 

Nos tempos de Jesus o último destes significados era o mais freqüente, e é precisamente esta lei dos escribas a que tanto Jesus como Paulo condenavam de maneira radical. 

O que era, pois essa lei dos escribas? 

No Antigo Testamento mesmo achamos muito poucas regras e regulamentos; o que sim contém são grandes e amplos princípios que cada pessoa deve tomar e interpretar sob a guia de Deus, aplicando-os às situações concretas de sua vida. Os Dez Mandamentos não são um estatuto de regras concretas; são, cada um deles, grandes princípios dos quais cada indivíduo tem que extrair suas próprias normas de vida. Os judeus dos tempos de Jesus não acreditavam que esses princípios gerais fossem suficientes. Sustentavam que a Lei era divina, e que com ela 139 

Deus tinha pronunciado sua última palavra, e que portanto nela deviam estar contidas todas as coisas. De modo que, se algo não aparecia explicitamente na lei, devia estar contido em forma implícita. Sustentavam, por conseguinte, que era possível extrair da lei, por um procedimento lógico de dedução, regras e estatutos que fixassem o que era correto para todo homem, em qualquer situação da vida. Surgiu assim uma casta de especialistas na Lei, chamados escribas, que se dedicaram a reduzir os grandes princípios da Lei, literalmente a milhares e milhares de regras, estatutos e regulamentos. 

A melhor forma de compreender o significado desta interpretação da Lei é vendo como funcionava. A Lei estabelecia que o dia de sábado devia ser santificado, e que durante suas vinte e quatro horas ninguém pode fazer trabalho algum. Este é um grande princípio. Mas esses legalistas judeus eram apaixonados pelas definições. De maneira que se perguntavam, para começar: o que é "trabalho"? Fizeram-se longas listas de atividades que deviam considerar-se trabalhos. Por exemplo, levar uma carga é um trabalho, e portanto não se podiam levar-se cargas no dia de sábado. Mas então se fazia necessário definir o que era uma carga. De modo que a lei dos escribas estabelece que "carga" é "uma quantidade de comida equivalente em peso a um figo seco, suficiente vinho para encher uma taça, leite para um gole, mel para cobrir uma ferida, a quantidade de azeite que forneceria a unção de alguma das partes mais pequenas do corpo, água suficiente para umedecer uma pálpebra, papel para redigir nele uma declaração de alfândega, a tinta que pode requerer a escritura de duas letras do alfabeto, e uma cana com a qual possa fazer uma pena para escrever" – e assim sucessivamente, até o infinito. Deste modo, passavam-se horas e dias discutindo se se podia ou não levantar um abajur para trocá-lo de lugar, no dia de sábado, ou se o alfaiate pecava ao levar por descuido uma agulha cravada em sua túnica, se uma mulher podia levar um alfinete, ou uma peruca, e até se podiam usar-se no dia de sábado, dentes postiços ou uma perna artificial, ou se se podia levantar a um menino. Estas coisas eram, para eles, a essência de sua religião. A religião deles era um legalismo de regras e normas ridiculamente detalhistas.

No dia de sábado não se podia escrever. Mas era necessário definir o que devia considerar-se escritura. A definição de escritura que propuseram era: 

"Quem escreve duas letras do alfabeto, com sua mão direita ou com sua mão esquerda, sejam do mesmo tipo ou de dois tipos diferentes, com tintas diferentes ou em idiomas diferentes, sendo sábado, é culpado de pecado. Embora escreva essas duas letras por descuido, também peca, tenha-as escrito com tinta, giz vermelho, pintura, vitríolo, ou algo que deixe uma marca permanente. Também peca quem escreve em um canto de duas paredes, ou em dois tabletes de seu livro de contas, se as duas letras podem ser lidas juntas… Mas se escrever com fluido escuro, com suco de frutas, ou sobre o pó do caminho, na areia ou utilizando qualquer outro elemento de escritura que não produza uma marca permanente, não é pecado… Se se escreve uma letra no piso e outra na parede da casa, ou em duas páginas diferentes de um livro, de tal maneira que não se possam ler juntas, não é pecado." 

Esta é uma passagem típica da Lei dos escribas; e isto é o que para o judeu ortodoxo da época de Jesus constituía a verdadeira religião e o verdadeiro serviço a Deus. 

Curar era um trabalho, e portanto não se podia fazer no sábado, Mas, evidentemente, isto devia definir-se com maior exatidão. Permitia-se curar quando a vida do doente corria perigo, e especialmente quando o problema afetava os ouvidos, o nariz ou a garganta. Entretanto, até nestes casos, só se podia fazer aquilo que impedisse a piora do paciente. Não se podia fazer nada para que melhorasse. Podia enfaixar uma ferida, mas não colocar-lhe ungüento algum; podia tapar um ouvido inflamado, mas sem lhe acrescentar medicação alguma. 

Os escribas eram os encarregados de elaborar estas normas e regulamentos. Os fariseus, cujo nome significa "separados", eram os que se separavam de toda atividade comum para dedicar-se a observar todas estas regulamentações e estatutos. 141 

Podemos nos dar conta dos extremos a que chegou este sistema tendo em mente os seguintes fatos. Durante muitas gerações a lei dos escribas se transmitiu de maneira oral e foi conservada na memória de geração após geração de escribas. Para meados do século III d. C., foi posta por escrito e se codificou um resumo desta tradição oral. Este "resumo" se conhece como a Mishnah; contém sessenta e três tratados sobre distintos temas relacionados com a lei, e em nosso idioma constitui um volume de umas oitocentas páginas. A erudição judia posterior se ocupou de escrever comentários da Mishnah. Estes se conhecem como talmudes. O Talmud de Jerusalém está contido em doze volumes, e o Talmud de Babilônia alcança, em sua versão impressa, sessenta volumes. 

Para o judeu ortodoxo dos tempos de Jesus, a obediência a Deus envolvia a observância de milhares de regras e estatutos legalistas; consideravam literalmente essas meticulosas disposições como questões de vida ou morte, que tinham que ver com seu destino eterno. Evidentemente, quando Jesus fala da lei que não passará, não se refere a essas regras e estatutos, pois ele mesmo os quebrantou repetidas vezes, e repetidas vezes os condenou, Não era isso o que ele entendia por "a Lei", pois essa classe de leis tanto Jesus como Paulo as condenaram. 



A ESSÊNCIA DA LEI 
Estudo sobre Mateus 5:17-20 (continuação)


A que se referia Jesus, então, quando falava de "a Lei"? Disse que não tinha vindo para destruir a lei e sim para cumpri-la. Quer dizer, veio para pôr de manifesto o verdadeiro significado da Lei. Qual era o verdadeiro significado da Lei? Mesmo por trás da lei oral dos escribas e fariseus, havia um grande princípio de crucial importância, que estes não compreendiam a não ser de maneira equivocada e imperfeita. Este grande princípio fundamental é que em todas as coisas o homem deve procurar a vontade de Deus e que uma vez que a conhece deve dedicar toda sua vida a obedecê-la. Os escribas e fariseus tinham razão ao procurar a vontade de Deus, e não se equivocavam ao dedicar a vida a sua obediência; mas se equivocavam ao acreditar que suas centenas e milhares de insignificantes normas legalistas eram a vontade de Deus.

Qual é, pois, o verdadeiro princípio, que respalda a Lei em sua totalidade, esse princípio que Jesus deveu cumprir, esse princípio cujo verdadeiro significado veio a nos mostrar? 

Quando examinamos os Dez Mandamentos, que são a essência e o fundamento de toda a Lei, podemos nos dar conta que todo o seu significado pode resumir-se em uma só palavra – respeito, ou até mais adequadamente, reverência. Reverência para com Deus e para o nome de Deus, reverência pelo dia de Deus, respeito aos pais, respeito à vida, respeito à propriedade, respeito à personalidade, respeito à verdade e ao bom nome de outros, a respeito a si mesmo, de tal modo que jamais possam chegar a nos dominar os maus desejos. Estes são os princípios fundamentais que resumem o significado dos Dez Mandamentos. Os princípios fundamentais dos Dez Mandamentos são a reverência para com Deus e o respeito a nossos semelhantes e a nós mesmos. Sem esta reverência e este respeito fundamentais não pode haver Lei. Sobre estas atitudes se apóia toda lei. 

E é esta reverência e este respeito o que Jesus deveu cumprir. Veio para demonstrar aos homens, em sua própria vida concreta de cada dia, o que é a reverência para com Deus e o respeito para com o homem. A justiça, diziam os gregos, consiste em dar a Deus e aos homens o que merecem. Jesus veio para mostrar, na vida, o que significa a reverência que Deus merece e o respeito que o homem merece. 

Essa reverência e esse respeito não consistiam na obediência de uma multidão de meticulosas regras e estatutos. Não exigia o sacrifício, a e sim a misericórdia; não era um legalismo e sim o amor; não era uma série de proibições que estipulavam detalladamente o que não se devia fazer, e sim uma série breve de mandamentos fundamentais que levavam o crente a modelar sua vida a partir do mandamento positivo: o do amor. A reverência e o respeito que constituem o fundamento dos Dez Mandamentos jamais passarão. São a própria substância da relação de cada indivíduo com Deus e com o seu próximo.


A LEI E O EVANGELHO 
Estudo sobre Mateus 5:17-20 (continuação)


Ao falar na forma como fez com respeito à Lei e o Evangelho, Jesus deixou assentados de maneira implícita certos princípios muito amplos. 

(1) Disse que há uma continuidade definida entre o passado e o presente. O presente nasce do passado. Nunca devemos interpretar a vida como uma espécie de luta entre o passado e o presente. Depois de Dunkerque na Segunda Guerra Mundial, manifestou-se em muitos a tendência de procurar alguém que pudesse carregar a culpa do desastre das forças britânicas. Muitos estavam dispostos a lançar amargas recriminações contra os que tinham dirigido a política inglesa no passado. Naquele momento Winston Churchill disse algo muito sábio: "Se iniciarmos uma luta entre o passado e o presente, descobriremos que teremos perdido o futuro." 

A Lei tinha que existir antes que pudesse vir o Evangelho. Os homens precisavam aprender a diferença entre o bem e o mal; precisavam dar-se conta de que eram incapazes de satisfazer as exigências da Lei, e responder aos mandamentos de Deus; deviam aprender a sentir-se pecadores e indignos da misericórdia de Deus. Muitas vezes culpamos o passado pelas coisas que nos acontecem – mas também é necessário reconhecer, ao mesmo tempo, nossa dívida com o passado. Para Jesus, nossa responsabilidade não é esquecer nem destruir o passado, antes edificar sobre os fundamentos do que já se deixou atrás. Recebemos os benefícios do que outros têm feito antes que nós, e devemos trabalhar, de tal maneira que outros, amanhã, possam receber os benefícios de nosso trabalho. 

(2) Nesta passagem Jesus adverte categoricamente que ninguém deve imaginar que o cristianismo é fácil. Possivelmente alguns afirmem: "Cristo é o fim da lei, agora posso fazer tudo o que eu quiser." Há os que poderia ser tentados a pensar que todos os deveres, todas as responsabilidades, todas as exigências desapareceram. Mas Jesus adverte que a justiça dos cristãos deve ser maior ainda que a dos escribas e fariseus.

O que quis dizer com estas palavras? O "tema" da vida que viviam os escribas e fariseus era a lei; sua única meta e desejo era satisfazer as exigências da Lei. Ora, é possível, ao menos teoricamente, pensar que alguém seja capaz de satisfazer as exigências da lei; em um sentido pode chegar o momento em que alguém diga: "Fiz tudo o que a lei exigia de mim. Agora já cumpri o meu dever, a lei já não tem nada que me exigir." Mas o "tema" da vida cristã é o amor; o único desejo do cristão é demonstrar sua maravilhada gratidão pelo amor com que Deus o amou em Cristo Jesus. Pois bem, não é possível, nem sequer teoricamente, satisfazer as exigências do amor. Se amarmos a alguém com todo nosso coração sentiremos que mesmo que lhe tenhamos dado toda uma vida de serviço e adoração, embora lhe tenhamos devotado o Sol, a Lua e as estrelas, ainda não lhe teremos devotado suficiente. Porque o universo inteiro é muito pouca coisa como oferenda de amor. 

O judeu procurava satisfazer a lei de Deus; e as exigências legais sempre têm um limite. O cristão procura demonstrar sua gratidão pelo amor de Deus; e as reclamações do amor não têm limite no tempo nem na eternidade. Jesus colocou diante dos homens o amor de Deus e não sua Lei. 

Há muito tempo Santo Agostinho disse que a vida cristã podia resumir-se em uma frase: "Ama a Deus e feixe o que queira." Quando nos damos conta de como Deus nos amou, o único desejo de nossa vida é responder a esse amor, e essa é a maior tarefa do mundo, uma tarefa com a que o legalista nem sonha sequer, e uma obrigação muito maior que a que qualquer lei possa impor. 



A NOVA AUTORIDADE 
Estudo sobre Mateus 5:21-48 


Esta porção dos ensinos de Jesus é uma das seções mais importantes de todo o Novo Testamento. Antes de nos ocuparmos do comentário detalhado de cada uma de suas partes, há alguns conceitos gerais sobre os quais devemos nos espraiar. 

Aqui Jesus fala com uma autoridade que nenhum outro homem sonhou jamais reclamar ou ostentar. A autoridade que Jesus assumiu, sempre surpreendia a quem entrava em contato com Ele. No começo de seu ministério, depois que ensinou na sinagoga do Cafarnaum, diz-se dos que o ouviram: "E se admiravam por sua doutrina, porque lhes ensinava como quem tem autoridade, e não como os escribas" (Mar. 1:22). Mateus conclui sua apresentação do Sermão da Montanha com as palavras: "Quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; porque ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas" (Mateus 7:28-29). 

Para nós é muito difícil nos darmos conta de quão chocante deve ter sido esta autoridade para os judeus que o escutaram. Para o judeu a Lei era absolutamente santa e divina; seria impossível exagerar o lugar que a Lei ocupava em sua reverência. "A Lei", disse Aristeas, "é santa e foi dada Por Deus." "Somente os decretos do Moisés", disse Filão, "são eternos, imutáveis e inamovíveis, como se a própria natureza os tivesse selado com seu selo." Os rabinos diziam: "Os que negam que a Lei é do céu não têm parte no mundo vindouro." "Se alguém disser que a Lei é de Deus, mas excetua este ou aquele versículo de seu texto, aduzindo que pertence a Moisés, e que não foi pronunciado pela boca de Deus, sobre o tal cai o julgamento divino. Desprezou a palavra de seu Senhor e deste modo manifestou a irreverência que merece a destruição de sua alma." O primeiro ato do culto sabático de toda sinagoga era tirar os rolos da Lei da arca onde eram guardados e passeá-los pela congregação, para que esta pudesse demonstrar sua reverência para com eles. 

Isto é o que os judeus pensavam sobre a Lei, e Jesus não menos de cinco vezes cita a Lei (Estudo sobre Mateus 5:21, 27, 33, 38 e 43) para contradizê-la imediatamente e substituí-la por um ensino dEle. Pretendeu exercer o direito de criticar os escritos mais sagrados do mundo, e corrigi-los, partindo de sua pura e exclusiva sabedoria. Os gregos definiam a autoridade (exousia) como o poder para "pôr e tirar à vontade". 

Jesus pretendeu possuir esta autoridade até com respeito àquilo que para os judeus era a imutável palavra de Deus. E nem sequer discutiu sua autoridade com eles, nem procurou justificar-se pelo que fazia, nem acreditou necessário demonstrar seu direito a fazê-lo. Calmamente e sem discussão assumiu o direito que acreditava ser seu. 

Nunca ninguém tinha ouvido nada semelhante. Os mestres do judaísmo sempre tinham usado frases características que determinavam o caráter de seus ensinos. Os profetas, por exemplo, diziam "Assim diz o Senhor." Não pretendiam possuir autoridade pessoal alguma, a única coisa que faziam era repetir o que tinham ouvido de Deus. A frase característica dos rabinos e escribas era "Há um ensino que diz..." O escriba ou o rabino jamais se atrevia a expressar nem sequer uma opinião própria, a menos que pudesse sustentá-la com citações dos grandes mestres do passado. A última qualidade que teriam reclamado para si era a de uma doutrina independente. Mas para Jesus suas afirmações não necessitavam de outra autoridade fora do fato que era Ele quem as pronunciava. Ele era sua própria autoridade. 

Evidentemente, a verdade era uma coisa ou outra – ou Jesus era um louco, ou era único em sua espécie. Ou era um megalomaníaco, ou era o Filho de Deus. Nenhum homem comum se atreveu a mexer no que, até o momento de sua vinda, tinha sido considerado a eterna palavra de Deus. 

O mais extraordinário com respeito à autoridade é que se demonstra a si mesma. Basta alguém se pôr a ensinar para que saibamos, imediatamente, se tem ou não direito a ensinar. A autoridade é como a atmosfera que o rodeia. Se a tiver não precisa reclamá-la; é algo que se possui ou não se possui. As orquestras que tocaram sob a direção do Toscanini, o grande músico, dizem que assim que subia ao pódio podia sentir-se quase fisicamente o fluxo da autoridade que emanava dele. Julian Duguid recorda como em certa oportunidade lhe tocou a sorte de fazer a travessia do Atlântico no mesmo navio que Sir Wilfrid Grenfell, e diz que quando Grenfell entrava em qualquer dos salões do navio, não precisava voltar-se para a porta a fim de saber que ele acabava de entrar, pois daquele homem emanava uma onda de poder e autoridade. No caso de Jesus, esta qualidade se dava em grau supremo.

Jesus tomou em suas mãos a sabedoria superior dos homens, corrigiu-a, reajustou-a, e pôde fazê-lo porque era quem era. Não precisava discutir suas idéias; era suficiente que as comunicasse. Ninguém pode confrontar honestamente a Jesus e escutar suas palavras sem sentir que está em presença da última palavra de Deus, junto à qual todas as outras palavras são totalmente inadequadas, e qualquer outra sabedoria é antiquada. 



A NOVA PAUTA MORAL 
Estudo sobre Mateus 5:21-48 (continuação)


Mas por desconcertante que fosse o acento de autoridade de Jesus, mais ainda o eram as pautas morais que propunha aos homens. Jesus disse que aos olhos de Deus não somente era criminoso o homem que cometia um assassinato, mas também aquele que se irava com seu irmão. Disse que aos olhos de Deus não somente era culpado o homem que cometia adultério, mas também aquele que alojava em seu coração pensamentos impuros. Aqui há algo totalmente novo, algo que mesmo agora os homens não chegaram a compreender totalmente. Jesus ensinou que não era suficiente não cometer assassinato, era necessário nem sequer ter desejado jamais a morte de nosso irmão. Ensinou que não era suficiente não cometer adultério; era necessário incluso não ter desejado adulterar. 

É possível que jamais tenhamos batido em alguém; mas quem pode dizer que jamais desejou bater em alguém? É possível que jamais tenhamos cometido adultério; mas quem pode dizer que jamais experimentou o desejo da mulher de outro? O ensino de Jesus era que os pensamentos são tão importantes como os fatos, e que não era suficiente não cometer um pecado; a única coisa suficiente é não desejar jamais cometê-lo. O ensino de Jesus era que o ser humano não será julgado apenas por suas ações, mas sim, e ainda mais, por seus desejos, embora jamais tenham chegado a transformar-se em ação. Segundo as pautas morais do mundo uma pessoa é boa se não cometer ações proibidas; o mundo não tem interesse em julgar os pensamentos. Segundo a pauta moral que Jesus propõe, ninguém pode ser considerado bom a menos que jamais deseje fazer o proibido; Jesus Se interessa profundamente pelos pensamentos humanos. Disto surgem três coisas.

(1) Jesus tinha muita razão, porque sua atitude é a única que pode garantir a segurança e a felicidade. Em certa medida todos os seres humanos são personalidades divididas. Há uma parte de nosso eu que se sente atraída pelo bem, e outra parte que se sente atraída pelo mal. Na medida em que realmente somos assim, no interior de cada um de nós se trava uma batalha entre o bem e o mal. Há uma voz que nos incita a tomar o fruto proibido, e outra que proíbe fazê-lo. Platão comparava a alma com um carro puxado por dois cavalos. Um dos cavalos, manso e dócil, obedecia às rédeas e às vozes do condutor. O outro, selvagem, não tinha sido domesticado, e todo o tempo procurava rebelar-se. O nome do primeiro cavalo era "razão", o nome do segundo era "paixão". A vida é sempre um conflito entre as exigências das paixões e o controle da razão. A razão é a rédea que mantém sob controle as paixões. Mas uma rédea pode romper-se em qualquer momento. É possível que o domínio próprio baixe a guarda por um instante. O que ocorre então? Na medida em que exista essa tensão interior, esse conflito, a vida será permanentemente insegura. Em tais circunstâncias não pode haver segurança permanente. A única forma de obter a segurança é erradicar de maneira total de si mesmo o desejo do fruto proibido. Então, e somente então, poderemos estar seguros.

(2) Sendo isto assim, somente Deus está em condições de julgar os homens. Nós somente podemos ver as ações exteriores dos homens. Deus é o único que pode ver o segredo do coração. E haverá muitos cujas ações exteriores possivelmente sejam um modelo de retidão mas cujos pensamentos mais íntimos estão sob o juízo de Deus. Mais de uma pessoa poderá sair-se bem do julgamento dos homens, que necessariamente será um julgamento superficial, mas verá desmoronar-se sua bondade ante o olho de Deus que tudo vê. 

(3) E se isto é assim, significa que todos somos pecadores, porque não há ninguém que possa suportar o julgamento de Deus. Embora tenhamos vivido uma vida de perfeição moral no exterior, não existe quem pode afirmar que jamais experimentou o desejo do proibido. Porque a perfeição interior é a única coisa que torna possível que alguém possa afirmar "Eu morri, e Cristo vive em mim". "Com Cristo estou juntamente crucificado", disse São Paulo, "e vivo não mais eu, mas Cristo vive em mim" (Gálatas 2:20). 

A nova pauta moral elimina toda possibilidade de orgulho, e conduz a Jesus, o único que pode nos elevar até a altura da pauta que Ele mesmo nos propôs. 



PROIBIÇÃO DA IRA 
Estudo sobre Mateus 5:21, 22 

Aqui temos o primeiro exemplo da nova pauta moral que Jesus estabelece. A lei antiga dizia: "Não matará" (Êxodo 20:13); mas Jesus estabelece que até a irritação contra o irmão está proibido. É de fazer notar que em algumas versões o homem que é condenado é o que se zanga "sem causa" ou "loucamente", mas estas palavras não se acham em nenhum dos grandes manuscritos. A proibição é absoluta. Não basta não bater no outro – é necessário incluso não desejar bater nele, nem sequer alojar sentimentos agressivos para com ele em nosso coração. 

Nesta passagem Jesus raciocina de maneira muito similar a que teria feito um rabino. Demonstra que sabe utilizar os métodos de discussão que eram habituais em sua época. Nesta passagem há uma nítida gradação da ira, e a correspondente gradação crescente dos castigos. 

(1) Primeiro está o homem que se zanga com seu irmão. Em grego havia duas palavras para descrever a ira. Uma delas, zumós, significa literalmente o fogo que produz a palha seca. Trata-se da ira que se inflama repentinamente, mas que com a mesma prontidão se extingue. A outra palavra é orgué. Neste caso se trata da ira longamente cultivada, a de quem odeia e seguirá odiando, sem permitir jamais que sua ira diminua. Esta é palavra usada por Jesus. 

Esta ira merece o julgamento dos tribunais. Jesus se refere ao tribunal que funcionava em qualquer população, das cidades até o mais pequeno vilarejo. Este tribunal estava composto pelos anciãos do lugar e o número de juízes variava segundo o tamanho da população: eram três nos pequenos povoados, com menos de cento e cinqüenta habitantes, sete nas cidades de província e vinte e três nas grandes capitais. 

De maneira que Jesus condena toda ira egoísta. A Bíblia diz bem claramente que a ira é um sentimento proibido. "A ira do homem", diz Tiago, "não produz a justiça de Deus" (Tiago 1:20). Paulo ordena aos seus: "despojai-vos, igualmente, de tudo isto: ira, indignação, maldade, maledicência, linguagem obscena do vosso falar..." (Colossenses 3:8). Também os mais elevados pensadores do paganismo compreenderam a estupidez da ira. Cícero disse que quando se experimentava ira "nada podia fazer-se inteligentemente nem de maneira justa". Em uma frase tremendamente vívida, Sêneca descreveu a ira como "uma loucura passageira". 

De maneira que Jesus proíbe categoricamente a ira rancorosa, a ira que jamais esquece, a ira que se nega a ser reconciliada e busca a vingança. Se desejamos obedecê-lo devemos eliminar de nossa vida toda forma de ira, irritação ou ódio apaixonado, particularmente aqueles que duram muito tempo sem aplacar-se. É muito importante recordar que ninguém que queira chamar-se cristão pode "perder os estribos" quando de algum modo foi ofendido pessoalmente.

(2) A seguir Jesus passa a descrever o caso em que a ira dá lugar às palavras insultantes. Os mestres do judaísmo proibiam tal tipo de irritação e tais palavras. Falavam de "a opressão das palavras" e do "pecado do insulto". Um de seus ditos sustentava: "Há três classes de homens que vão à Geena e não retornam jamais – o adúltero, que faz envergonhar abertamente a seu próximo, e o que insulta a seu semelhante." A ira está proibida tanto no coração do homem como em sua boca. 



AS PALAVRAS OFENSIVAS 
Estudo sobre Mateus 5:21, 22 (continuação)


Em primeiro lugar se condena ao homem que chama raca a seu irmão. Raca é a palavra que em nossas Bíblias se traduz por "néscio". É uma palavra quase impossível de traduzir, porque a gradação de seu significado dependia do tom de voz que se usasse ao pronunciá-la. A idéia dominante deste insulto é a do desprezo. Chamar a alguém raca era lhe dizer estúpido, idiota sem miolos, imprestável e nulo. É a palavra que escutaremos na boca de quem despreza a outro com absoluta arrogância. 

Entre os judeus há uma história de um certo rabino, Simão Ben Eleazar, que saía da casa de seu professor, sentindo-se exaltado pela consciência de sua própria sabedoria, erudição e bondade. Nesse momento cruzou por ele alguém muito pouco favorecido em seu aspecto, quem o saudou. Sem responder à saudação Ben Eleazar lhe gritou: "Raca! Quão feio você é! Todos os homens de sua cidade são tão feios como você?" O caminhante lhe respondeu: "Isso não sei. Vá e diga ao Criador que me fez uma criatura tão feia como sou." Este foi o modo como se castigou o pecado de desprezo. 

O pecado de desprezo é merecedor de um castigo ainda mais sério. Deverá ser julgado pelo Sinédrio, a corte suprema dos judeus. É óbvio que isto não deve ser tomado literalmente. É como se Jesus tivesse dito: "O pecado da ira inveterada é mau, mas o do desprezo é pior."

Não há pecado tão pouco cristão como o do desprezo. Há um desprezo que se baseia no orgulho da estirpe, e o esnobismo é realmente uma coisa feia. Há uma atitude de superioridade que obedece à posição e o dinheiro que se têm, e o orgulho pelas coisas materiais também é algo vil. Há um orgulho dos que desprezam os que sabem menos que eles, e de todos orgulhos este é o mais difícil de entender, porque nenhum homem verdadeiramente sábio jamais se sentiu impressionado por outra coisa senão por sua própria ignorância. Não podemos olhar depreciativamente a ninguém, porque Cristo morreu por todos. 

(3) A seguir Jesus se refere ao homem que chama morós a seu irmão. Morós também significa néscio ou tolo, mas o acento está posto na tolice moral. É o homem que simula ser néscio. O salmista, por exemplo, fala do néscio que em seu coração diz que não há Deus (Salmo 14:1). Trata-se, neste caso, de um retardado moral, do homem que vive de maneira imoral e portanto desejaria que não houvesse Deus. Dizer a alguém morós não era criticar sua capacidade mental, mas pôr em tela de juízo seu caráter moral; equivalia a manchar seu bom nome e reputação, a qualificá-lo como uma pessoa de vida dissipada e imoral. 

E Jesus diz que aquele que destrói o bom nome de seu irmão e sua reputação de pessoa honesta e reta deverá enfrentar o juízo mais terrível de todos, o do fogo do Geena. 

Geena é um termo com uma longa história. Às vezes é traduzido, como em nossa citação, diretamente por inferno. Os judeus usavam esta palavra muito freqüentemente (veja-se Estudo sobre Mateus 5:22, 29, 30; 10:28; 18:9; 23:15, 33; Marcos 9:43, 45, 41. Lucas 12:5; Tiago 3:6). Em realidade, só se refere ao Vale de Hinom, que estava localizado para o sudoeste de Jerusalém. Era lembrado como o lugar onde Acaz tinha introduzido o culto a Moloque, um deus pagão. Este culto tinha como uma de suas características a imolação de crianças vivas no fogo do altar. "Também queimou incenso no vale do filho de Hinom e queimou a seus próprios filhos..." (2 Crônicas 28:3). Josias, o rei reformador, tinha eliminado totalmente esse culto, e ordenando que o lugar onde era celebrado fosse maldito para sempre. "Também profanou a Tofete, que está no vale dos filhos de Hinom, para que ninguém queimasse a seu filho ou a sua filha como sacrifício a Moloque." (2 Reis 23:10). Em conseqüência o vale do Hinom se converteu no depósito de lixo de Jerusalém.

Era uma espécie de imenso incinerador público, no qual sempre havia algum fogo ardendo, e sobre ele se estendia uma nuvem de fumaça espessa. Nos desperdícios se criava um tipo especial de verme, que era muito difícil de matar (Marcos 9:44). De maneira que o Geena era o vale de Hinom, um lugar identificado na mente do povo judeu com tudo o que era sujo, maldito e corrompido, o lugar onde se destruíam mediante o fogo todas as coisas inúteis e insalubres. É por isso que se converteu em sinônimo do poder destruidor de Deus, o inferno. 

Jesus afirma, pois, que o mais grave é destruir a boa reputação do próximo e privá-lo de seu bom nome. Não há castigo muito severo para o fofoqueiro maligno, para as fofocas de intenção iníqua que podem chegar a assassinar o bom nome de qualquer pessoa. Tal conduta merece, no sentido mais literal possível, a condenação do inferno. 

Como já dissemos, esta gradação dos castigos não deve ser tomada literalmente. Jesus está dizendo o seguinte: "Na antiguidade se condenava o assassinato; e certamente o assassinato continua sendo mau. Mas eu lhes digo que não são apenas as ações exteriores do homem as que merecem ser julgadas; também seus pensamentos mais íntimos estão sob o olhar escrutinador e o julgamento de Deus. A ira persistente é má; piores ainda são as palavras depreciativas, mas o pior de tudo é a malícia que destrói o bom nome do próximo." 

O homem que é escravo de sua ira, que se dirige a outros com um tom depreciativo, o homem que destrói o bom nome de outros, pode não ter assassinado a ninguém, mas em seu coração é um assassino.



A BARREIRA INSUPERÁVEL 
Estudo sobre Mateus 5:23, 24


Quando Jesus disse estas palavras, não fez mais que recordar aos judeus um princípio que eles conheciam perfeitamente bem, e que jamais devem ter esquecido. A idéia do sacrifício era muito singela. Se alguém cometia uma má ação, de algum modo esta perturbava sua relação com Deus, e o sacrifício tinha como intenção restabelecer a normalidade destas relações. 

Mas é preciso lembrar duas coisas de suma importância. Em primeiro lugar, nunca se sustentou que os sacrifícios pudessem expiar os pecados cometidos deliberadamente, aos que os judeus qualificavam de "pecados de mão elevada". Se alguém cometia algum pecado sem dar-se conta, se era arrastado ao pecado em um momento de paixão, perdendo seu domínio próprio, o sacrifício podia lançar resultados positivos; mas se alguém tinha cometido um pecado de maneira deliberada, pela dureza de seu coração, perfeitamente consciente do que estava fazendo, o sacrifício não podia expiar sua falta. Em segundo lugar, para que o sacrifício fosse eficaz, devia incluir a confissão do pecado e um verdadeiro arrependimento; e o verdadeiro arrependimento incluía, por sua vez, o propósito de retificar as conseqüências que o pecado produziu. 

Todos os anos se celebrava o grande Dia da Expiação, no qual se ofereciam sacrifícios pelos pecados de todo o povo. Mas os judeus eram perfeitamente conscientes de que nem sequer os sacrifícios desse dia especial valiam de nada se antes cada indivíduo não se reconciliasse com o seu próximo. A divisão entre o homem e Deus não podia ser restaurada enquanto não se restabelecesse a união entre o homem e o homem. Se alguém oferecia um sacrifício com a intenção de expiar um roubo, por exemplo, sabia-se perfeitamente que o sacrifício não tinha valor algum até que se devolvesse a coisa roubada; se fosse descoberto que a coisa roubada não tinha sido devolvida, o sacrifício devia destruir-se como objeto impuro e queimar-se fora do templo. Os judeus sabiam perfeitamente que a pessoa deve emendar sua vida antes de tentar reconstruir sua relação com Deus.

Em certo sentido o sacrifício era substitutivo. O símbolo disto era que no momento da imolação da vítima o ofertante colocava suas mãos sobre a cabeça do animal devotado, apertando-a fortemente como se quisesse transferir-lhe o seu pecado. E ao fazê-lo dizia: "Invoco-te, ó Senhor; pequei, fiz o que havias proibido, rebelei-me; cometi (e aqui dizia qual tinha sido seu pecado particular); mas volto para ti arrependido; permite que isto seja minha expiação." 

Um sacrifício válido, implicava confissão e restituição. A imagem que Jesus nos pinta é bem vívida. O ofertante, é obvio, não fazia seu próprio sacrifício. Levava-o a sacerdote, e este o oferecia em nome do pecador. Aqui, o ofertante entrou em templo, atravessou os pátios que rodeiam o lugar santo, o Pátio dos Gentios, o Pátio das Mulheres, o Pátio dos Homens. Mais à frente estava o Pátio dos Sacerdotes, no qual nenhum leigo podia entrar. De pé junto ao corrimão, espera que seja a sua vez de entregar sua oferta ao sacerdote; tem suas mãos sobre a cabeça da vítima, e está a ponto de confessar o pecado que cometeu; e então recorda que não emendou sua relação quebrada com o irmão a quem ofendeu. Se quiser que seu sacrifício sirva de algo, deve voltar a seu irmão, restabelecer a relação com ele, desfazer o mal que fez. De outro modo não acontecerá nada. 

Jesus é bem explícito com respeito a este fato fundamental – não podemos estar em boa relação com Deus a menos que mantenhamos boas relações com os homens. Não podemos esperar ser perdoados enquanto não tenhamos confessado nosso pecado, não somente a Deus mas também a nossos irmãos, e tenhamos feito o melhor possível para eliminar as conseqüências negativas do mal que fizemos. Às vezes nos perguntamos por que há uma barreira entre nós e Deus; ou por que nossas orações parecem inúteis. É bem possível que nós mesmos sejamos os que levantamos a barreira, ou porque estamos desgostados com nosso próximo, ou porque ofendemos a alguém e não temos feito nada por desculpar essa ofensa.



RECONCILIAR-SE A TEMPO 
Estudo sobre Mateus 5:25-26


Aqui Jesus nos oferece um conselho bem prático. Recomenda evitar problemas maiores, solucionando as diferenças que tenhamos com outros quando ainda estamos a tempo de fazê-lo. 

Jesus traça o quadro de dois adversários que se dirigem ao tribunal e fala que se acertem entre si antes de chegar diante do juiz, porque se não o fazem, e se a lei segue seu curso, será muito pior, o que, pelo menos um dos dois, deverá enfrentar no futuro. A imagem de dois adversários que se dirigem juntos ao tribunal poderá nos parecer muito estranha e até improvável, mas era algo que ocorria com relativa freqüência na antiguidade. 

Na lei grega havia um procedimento denominado prisão sumária (apagogi) no qual a parte ofendida podia proceder à prisão de quem o tinha ofendido. Agarrava-o pela gola de sua túnica, de tal maneira que se lutasse para escapulir-se podia chegar a estrangular-se. É obvio, as causas que justificavam este tipo de prisão eram muito poucas. O infrator devia ser descoberto in fraganti, "com as mãos na massa". Os crimes que autorizavam a este tipo de prisão eram o assalto, o roubo de roupa (os ladrões de roupa eram uma praga nos banheiros públicos da antiga a Grécia), o "carteirismo" e o seqüestro (na antiga a Grécia era muito comum o seqüestro de escravos especialmente capacitados e idôneos). Além disso podia prender-se sumariamente a alguém que procurasse exercer os direitos de cidadão quando estes lhe tinham sido tirados, ou ao que voltava à sua cidade ou estado depois de ter sido exilado deles. Em vista deste costume, não era pouco comum ver em qualquer cidade grega a dois litigantes dirigindo-se juntos para os tribunais. 

Mas é evidente que o mais provável é que Jesus estivesse pensando em termos da prática no judaísmo. Este tipo de situação não era de modo algum impossível sob as disposições da lei judia. O litígio a que se faz referência nesta passagem é evidentemente um caso de dívidas impagáveis, quando, de não chegar a um acordo, "deverá pagar-se até o último centavo". Estes casos eram julgados sempre pelo conselho local de anciãos. Indicava-se uma hora em que os litigantes deviam comparecer juntos ante o tribunal, e em qualquer aldeia ou população pequena, não era difícil que se encontrassem no caminho. Quando se determinava a culpabilidade de um acusado, ele era entregue ao oficial cuja responsabilidade era assegurar o cumprimento da sentença. Em caso contrário, tinha autoridade para encarcerar o rebelde, até que este fizesse o que o tribunal lhe tinha obrigado fazer. Evidentemente esta era a situação que Jesus tinha em mente. Suas palavras podem significar duas coisas. 

(1) Pode ser simplesmente uma recomendação de ordem prática. Em repetidas oportunidades a experiência da vida nos ensina que se não solucionarmos uma diferença a tempo, se não encontrarmos a tempo a paz que acabe com uma disputa, a situação se fará cada vez mais complicada e difícil de resolver por bem. Muitas vezes as diferenças entre duas pessoas produziram diferenças entre suas famílias, que as gerações futuras herdaram, terminando por dividir uma igreja ou uma comunidade. Se no princípio um dos dois litigantes tivesse pedido desculpas, ou admitido sua falta, poderiam ter evitado muitas situações penosas. Se alguma vez nos encontrarmos em desacordo com outra pessoa, devemos procurar esclarecer as coisas o mais breve possível e restaurar a paz. Isto pode requerer de nossa parte a humildade necessária para reconhecer que agimos mal e pedir perdão; pode requerer que, embora nós tenhamos a razão, demos o primeiro passo reconciliatório. Quando algo anda mal nas relações pessoais, nove entre cada dez casos a imediata ação reconciliatória conseguirá solucionar a diferença. Mas se não se toma esta decisão imediatamente as relações continuarão deteriorando-se, e o azedume se estenderá cada vez mais, como uma mancha de azeite.

(2) É possível que Jesus tivesse em mente algo muito mais decisivo que isto. É possível que o significado de suas palavras fosse: "Acerte suas diferenças com seu irmão enquanto você vive, porque algum dia – não se sabe quando – sua vida acabará, e você terá que comparecer ante o tribunal de Deus, o Juiz final de todos." 

O dia mais importante do calendário judeu era o dia da Expiação. Sustentava-se que os sacrifícios deste dia valiam para expiar os pecados conhecidos e os desconhecidos; mas até este dia tinha suas limitações. O Talmud diz claramente: "O Dia da Expiação não serve para expiar as ofensas que o homem tenha cometido contra Deus. O Dia da Expiação não serve para expiar as ofensas que o homem tenha cometido contra seu próximo, a menos que o mal tenha sido reparado previamente." 

Aqui nos encontramos novamente com o fato básico, fundamental – ninguém pode estar em boas relações com Deus a menos que esteja em boas relações com seu semelhante. Deve viver a vida de tal maneira que ao chegarmos ao fim da vida estejamos em paz com todos os nossos semelhantes. 

É possível que não seja necessário escolher uma destas duas interpretações das palavras de Jesus. Possivelmente Jesus pensasse em ambas as coisas quando as pronunciou. Neste caso seu propósito teria sido nos ensinar o seguinte: "Se você quer ser feliz neste mundo e na eternidade, nunca cultive o rancor nem deixe sem curar a divisão entre você e seu irmão. Aja de maneira imediata para eliminar a barreira que a ira levantou entre vocês." . 



O DESEJO PROIBIDO 
Estudo sobre Mateus 5:27-28


Este é o segundo exemplo que Jesus dá da nova pauta moral. A Lei estabelecia: "Não adulterarás" (Êxodo 20:14). Os judeus acreditavam que o adultério era uma falta tão grave que as partes culpados podiam ser castigadas com a morte (Levítico 20:10); mas uma vez mais Jesus estabelece aqui que aos olhos de Deus não somente é culpado o que comete o ato proibido, mas também o que experimenta o desejo de cometê-lo.

É muito importante que compreendamos o significado das palavras de Jesus nesta sentença. Não se refere ao desejo natural, que forma parte do instinto e da natureza humanos. Segundo o significado literal da expressão no idioma grego, merece ser condenado o homem que olhe para uma mulher com intenção deliberadamente luxuriosa. Condena-se ao homem que se vale de seus olhos deliberadamente para despertar a paixão adúltera e estimular o desejo. 

Os rabinos judeus sabiam perfeitamente como se podia fazer uso do olhar para despertar a paixão e estimular o desejo pecaminoso. Eles tinham seus ditos: "Os olhos e as mãos são os provocadores do pecado", "Os olhos e o coração são as duas donzelas do desejo pecaminoso", "As paixões se alojam só naquele que vê", "Ai daquele que se deixa levar por seus olhos, porque estes são adúlteros!". Como disse alguém: "Há um desejo interior da alma e o adultério é meramente seu fruto." 

Em um mundo de tentações, há muitas coisas cujo propósito deliberado é excitar e estimular o desejo. Há livros, desenhos e fotografias, filmes cinematográficos ou peças teatrais, anúncios publicitários que estão deliberadamente ideados para despertar e estimular nossos desejos sexuais. O homem que Jesus está condenando aqui é aquele que usa seus olhos como meio para a excitação de seus desejos; aquele que encontra um prazer estranho em tudo o que suscita seu desejo pelo proibido. Para quem é puro todas as coisas são puras. Mas aquele cujo coração é impuro pode ver até a cena mais inocente e encontrar nela algo que sirva para excitá-lo, despertando nele os desejos pecaminosos. 



A INTERVENÇÃO CIRÚRGICA 
Estudo sobre Mateus 5:29-30


Aqui Jesus expõe a necessidade de, se for o caso, uma intervenção drástica de caráter similar ao de uma operação cirúrgica. Insiste em afirmar que tudo o que seja causa de pecado, ou age para seduzir ao pecado, deve ser eliminado completamente da vida. 

A palavra que no original grego representa nossa expressão em português "te escandalizar" é extremamente interessante. Trata-se de skándalon, que também pode traduzir-se por "escândalo". Literalmente, em sua origem mais remota, "escândalo" era a parte de uma armadilha para caçar pássaros onde se coloca a isca de peixe, e que ao ser tocada pelo animal guloso desencadeia o mecanismo que fecha a jaula e o apanha. Posteriormente a palavra chegou a significar algo que possa nos arrastar à destruição. Isto sugere duas imagens. Primeiro, a de uma pedra oculta em um atalho contra a qual alguém pode tropeçar, ou uma corda estendida através do caminho por onde devemos passar, deliberadamente posto ali para que alguém caia. Em segundo lugar, a imagem de um poço cavado no chão e disfarçado sob uma fina capa de ramos e arrumado de tal maneira que quando o despreparado viajante pisa em cima imediatamente cai dentro. 

O skándalon, a pedra de tropeço, é aquilo que nos "dá a rasteira", que nos faz cair, que nos arrasta à ruína. É evidente que as palavras de Jesus não devem interpretar-se de modo cruamente literal. O que quer dizer é que devemos eliminar drasticamente de nossa vida algo que nos induza a pecar. Se houver em nossa vida um hábito que nos pode ser ocasião de cair em pecado, uma relação que pode converter-se em causa de pecado, ou um prazer que pode transformar-se em nossa ruína, isso deve ser extirpado cirurgicamente de nossa vida.

Situado onde está, imediatamente depois da passagem que fala dos pensamentos proibidos, esta afirmação de Jesus nos obriga a nos perguntar: Como faremos para nos liberar desses desejos impuros e pensamentos sujos? Um dos fatos da experiência é que pensamentos e imagens entram em nossa mente sem que possamos impedir e que o mais difícil do mundo é fechar a porta para eles.

Há uma forma que não serve como meio efetivo de controle de tais pensamentos e desejos impuros, e é nos sentar, nos concentrar em nós mesmos, e dizer: "Não pensarei mais em tais coisas!" Quando dissermos "não pensarei em tal ou qual coisa", mais se concentrará nossa mente nela. Um dos exemplos mais destacados na história deste modo equivocado de enfrentar as tentações foram os ermitões e ascetas que abundaram na Igreja antiga. Eram homens que desejavam liberar-se de tudo o que fosse terreno, e especialmente dos desejos do corpo. Para isso se separavam de seus semelhantes e iam viver no deserto egípcio, para dedicar-se exclusivamente a pensar em Deus. 

Um dos mais famosos foi Santo Antônio. Viveu uma vida de ermitão, jejuando, não dormindo, torturando seu corpo. Durante trinta e cinco anos viveu no deserto, e esses trinta e cinco anos foram uma batalha sem trégua contra as tentações. Sua biografia conta a vida que levou: "Primeiro o diabo procurou apartá-lo da disciplina, sussurrando a lembrança das riquezas que tinha abandonado, fazendo-o preocupar-se com sua irmã, inflamando seu amor por seus parentes, tentando-o com o amor ao dinheiro, a glória, os distintos prazeres da mesa, as distintas formas de gratificar o corpo. Por fim, apresentou-lhe as dificuldades da virtude e o esforço que exigia de quem desejasse chegar a obtê-la... Uma parte de si sugeria pensamentos desonestos, e a outra os combatia com orações; uma o inflamava de luxúria, a outra, como quem parecia ruborizar-se, fortificava seu corpo com orações, fé e jejum. Uma noite o demônio chegou a tomar a forma de mulher, e imitou sua maneira de mover-se e agir, somente para enganar Santo Antônio." Deste modo viveu o santo durante trinta e cinco anos. 

A realidade é que se alguém alguma vez buscou os problemas que o acossaram, foram Santo Antônio e seus seguidores. É uma lei inevitável da natureza humana que quanto mais decidimos não pensar em algo, mais esse algo se fará presente em nossa mente. Há somente dois modos de derrotar os pensamentos proibidos.

O primeiro é a ação cristã. A melhor maneira de vencer as tentações é fazer algo, encher a vida a tal ponto de obras e serviço cristãos que nenhum pensamento impuro tenha tempo de penetrar em nossa mente; pensar tanto nos outros que cheguemos a nos esquecer de nós mesmos, a nos desfazer de uma introspecção mórbida e doentia, nos concentrando em outros e não em nós mesmos. A verdadeira cura para os maus pensamentos é a boa ação. 

A segunda maneira é encher nossa mente com bons pensamentos. Há uma cena famosa na história do Peter Pan, de Barrie. Peter está no lar dos meninos; eles o viram voar e também querem fazê-lo. Procuraram sair voando do chão, e saltando das camas, mas seu fracasso foi total. "Como o faz?", disse John. E Peter respondeu: "Só é questão de ter bons pensamentos, maravilhosos e eles o levantam do chão e você já está voando." A única maneira de derrotar os maus pensamentos é pensar coisas boas. 

Se alguém se sente acossado por pensamentos impuros, certamente não poderá derrotar jamais o mal pelo ato de retirar-se do mundo e dizer: "Não pensarei em tais coisas!" Só poderá obtê-lo lançando-se à ação cristã e tendo pensamentos cristãos. Nunca o conseguirá se procura salvar sua própria vida; a vitória será sua somente se entregar sua vida por outros. 



O VÍNCULO QUE NÃO SE PODE QUEBRAR 
1. A instituição do casamento entre os judeus 
Estudo sobre Mateus 5:31, 32


Quando Jesus estabeleceu esta lei para o casamento, o fez sobre o pano de fundo de uma situação perfeitamente bem definida. Não houve um momento na história no qual os laços matrimoniais corressem um perigo tão grande de destruição quase total, como nos dias em que o cristianismo fez sua aparição na cena histórica. Naquela época o casamento e a instituição do lar estavam em perigo da desintegração e o colapso. O cristianismo possuía um duplo pano de fundo. Por um lado estava a tradição judia, por outro a do mundo dos gregos e os romanos. Examinemos sobre este duplo pano de fundo o ensino de Jesus sobre o casamento.

Em teoria nenhuma nação jamais teve um ideal mais alto do casamento que os judeus. O casamento era uma instituição sagrada, e como tal era que o homem estava obrigado a entrar nela. Havia apenas uma razão que justificava o varão a retardar ou se abster do casamento – o desejo de dedicar toda sua vida ao estudo da Lei. Se alguém se negava a casar-se, ou dentro do casamento se negasse a ter filhos, dizia-se que tinha quebrantado o regulamento divino de multiplicar-se e povoar a Terra, e que havia "reduzido a imagem de Deus na Terra" e "assassinado sua posteridade". 

Realmente o judeu aborrecia o divórcio. A voz de Deus havia dito: "Aborreço o divórcio" (veja-se Malaquias 2:16). Os rabinos deixaram registrados alguns dos ditos mais bonitos sobre o casamento: "Sabemos que Deus suporta e é paciente frente a qualquer pecado, exceto a falta de castidade", "A luxúria faz que nos abandone a glória de Deus", "Todo judeu deve entregar sua vida antes de cometer idolatria, assassinato ou adultério", "Até o próprio altar derrama lágrimas quando um homem se divorcia da esposa de sua juventude". 

O trágico era que a prática distava grandemente do ideal. Havia um elemento que viciava totalmente as leis e relações matrimoniais. Aos olhos da lei a mulher era como uma coisa. Estava totalmente submetida à vontade e disposição primeiro de seu pai e depois de seu marido. Para qualquer circunstância de ordem prática carecia totalmente de direitos legais. Não podia divorciar-se de seu marido, por nenhum motivo, mas o homem podia divorciar-se de sua esposa, virtualmente por qualquer causa, por mínima que fosse. A lei rabínica especificava literalmente: "A mulher deve receber carta de divórcio com ou sem seu consentimento; mas ela só pode divorciar-se se seu marido o consente."

Tudo isto se complicava pelo fato de que a lei de divórcio dos judeus era muito simples em sua expressão e muito ambígua em seu significado. Deuteronômio estabelece (24:1): "Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e se ela não for agradável aos seus olhos, por ter ele achado coisa indecente nela, e se ele lhe lavrar um termo de divórcio, e lho der na mão, e a despedir de casa." O procedimento de divórcio era extremamente singelo, A "carta de divórcio" dizia: 


"Esta é a ata de teu divórcio de mim, carta de demissão e 
documentação de tua liberdade, para que possas voltar a 
te casar com o homem que quiseres."


Bastava entregar este documento à esposa, em presença de duas testemunhas, e o casamento ficava dissolvido. Evidentemente, o ponto crucial desta lei de Deuteronômio está na interpretação das palavras "coisa indecente". Em tudo o que respeita à interpretação da lei judia havia duas escolas: a escola de Shamai, que era de tendência estrita, severa e séria, e a escola de Hillel, que era liberal, de mente aberta e generosa. A escola de Shamai sustentava que "alguma coisa indecente" significava adultério, e nada mais que adultério. Diziam: "Embora uma mulher seja tão perversa como a mulher do Acabe, não é possível divorciar-se dela a não ser por adultério. Para a escola de Shamai a única causa legítima de divórcio era o adultério da esposa ou sua falta de castidade em geral. Por outro lado, a escola de Hillel definia "coisa indecente" no sentido mais amplo possível: Era "indecente" que uma mulher danificasse a comida pondo muito sal, que andasse na via pública com a cabeça descoberta, que falasse com homens na rua, que fosse briguenta, que falasse de maneira pouco respeitosa de seus sogros na presença de seu marido, que fosse fofoqueira ou de mau caráter. Houve um rabino chamado Akiba, que interpretava a frase "não for agradável aos seus olhos" no sentido de "se encontrasse outra mulher que considerasse mais atrativa que a sua".

Sendo a natureza humana como é, não é difícil dar-se conta de qual terá sido a escola que tinha maior influência. Na época de Jesus o divórcio tinha chegado a ser tão fácil que as moças jovens não queriam casar-se, dada a insegurança do casamento. Quando Jesus pronunciou seu ensino, não estava falando como o faria um idealista pouco prático; sua intenção era reformar os costumes de seu povo. Estava buscando encarar uma situação na qual a estrutura da vida familiar estava caindo, e em que os costumes nacionais se estavam tornando cada vez mais imorais.

2. A instituição do casamento entre os gregos 

Estudo sobre Mateus 5:31-32 (continuação)


Vimos qual era o estado da instituição matrimonial na Palestina nos tempos de Jesus. Logo, entretanto, o cristianismo não ficaria confinado aos limites da Palestina, e precisamos olhar a instituição cristã do casamento contra o pano de fundo desse mundo mais amplo no qual irromperiam os ensinos da nova fé. 

Em primeiro lugar, pois, vejamos qual era a tradição com respeito ao casamento entre os gregos. Duas coisas viciavam a situação do casamento no mundo grego. A. W. Verrall, o grande erudito clássico, disse que uma das principais enfermidades que produziram a morte da civilização antiga era a baixa estima da mulher em seu meio. A primeira coisa que contribuiu para fazer naufragar a instituição matrimonial entre os gregos foi o fato de que as relações extra-conjugais não estavam sancionadas por nenhum estigma social, eram o normalmente esperado e aceito. Tais relações não produziam o mais mínimo descrédito e formavam parte da vida cotidiana e normal de qualquer grego.

Segundo Demóstenes a prática social aceita era a seguinte: "Temos cortesãs para o prazer; temos concubinas para a coabitação diária; temos esposas para ter filhos legítimos e para que sejam as guardiãs de nossos interesses domésticos." 

Em uma época posterior, quando as idéias gregas se infiltraram na moral dos romanos arruinando-a, Cícero disse em seu discurso Em defesa de Caelo: "Se houver alguém que pensa que os jovens deveriam ter proibida por completo a freqüência de cortesãs, certamente se trata de uma pessoa extremamente severa. Não estou em condições de refutar o princípio que estabelece; mas certamente está em desacordo não só com a licença de nossa época, mas também com os costumes e concessões de nossos antepassados. Quando é que não se praticou tal liberdade? Quando alguém a encontrou imperdoável? Desde quando está proibido o que eles proíbem?" A afirmação de Cícero é, como tinha sido o princípio estabelecido por Demóstenes, que as relações extra-conjugais eram a prática corrente e estabelecida. 

A posição dos gregos com respeito ao casamento era um extraordinário paradoxo. Sua moral exigia que a mulher casada vivesse virtualmente em reclusão, até o ponto de não poder sai à rua se não fosse acompanhada e nem sequer comia na mesma mesa com os homens. Não tinha parte alguma na vida social. O grego exigia que sua mulher fosse moralmente pura; mas ele mesmo se permitia a licença mais total. Para dizer sem rodeios, o grego casava para desfrutar da segurança de uma família, mas procurava seu prazer com mulheres da vida. O próprio Sócrates disse: "Há alguma mulher a quem vocês confiam assuntos mais sérios que a suas esposas, e alguma mulher com quem vocês conversem menos que com suas esposas?" Vero, o colega de Marco Antônio no poder imperial, foi acusado por sua esposa de manter relações com outras mulheres. Ele lhe respondeu publicamente que devia recordar que o nome de esposa era um título de dignidade e não de prazer. 

Assim, pois, na Grécia chegou a expor uma situação totalmente fora do normal. O templo de Afrodite, em Corinto, era servido por mil sacerdotisas, que eram cortesãs sagradas. Pelas noites percorriam as ruas de Corinto, e chegou a ser um provérbio que "Nem todos os homens podem dar-se o luxo de uma viagem a Corinto". Esta assombrosa aliança da religião e a prostituição pode ver-se em forma quase incrível no fato de que Sólon tenha sido o primeiro a introduzir os prostíbulos em Atenas, e que com o dinheiro que estes renderam à cidade mandasse construir um templo em honra da deusa Afrodite, símbolo do amor. Os gregos não viam nada de mal na construção de um templo com as lucros da prostituição.

Mas, além da prática da prostituição, na Grécia surgiu um grupo de mulheres chamadas hetaíras. Estas eram as amantes dos homens importantes; constituíam o grupo de mulheres mais cultas e realizadas da época; seus lares eram nada menos que lugares de reuniões sociais; os nomes de várias delas passaram à história com não menor fama que a de quem foi seus amantes. Thais era a concubina de Alexandre Magno, que depois da morte deste casou com Ptolomeu e chegou a fundar uma dinastia de reis no Egito. Aspásia era a concubina de Péricles, provavelmente o maior estadista e orador que os gregos jamais tiveram; e se diz que ela era quem lhe tinha ensinado oratória e até lhe escrevia seus discursos. Epicuro, o famoso filósofo, tinha como concubina a igualmente famosa Leontina. A concubina do Sócrates era Diotima. A forma em que se respeitava a estas mulheres pode ver-se no relato da visita que Sócrates fez a Teodora, segundo o relato do Jenofón. Sócrates queria visitá-la para ver se de fato era tão bela como se dizia. Uma vez falou com ela amavelmente, disse-lhe que devia fechar a porta de sua casa quando algum insolente viesse incomodá-la, que devia cuidar de seus amantes quando estavam doentes, e desfrutar com eles quando recebessem honras, e que devia amar com ternura a quem oferecesse seu amor. 

Na Grécia, pois, vemos todo um sistema social baseado nas relações extra-conjugais; vemos que estas relações se aceitavam como naturais e normais e quase nada condenáveis; e vemos como até podiam transformar-se na circunstância mais importante na vida de um homem. A situação era absurda, pelo fato de os homens manterem suas esposas na mais total reclusão em uma pureza obrigatória, enquanto eles, por sua vez, procuravam o prazer e sua verdadeira vida fora do casamento.

A outra coisa que viciava completamente a situação moral na Grécia era que o divórcio não nenhum exigia trâmite legal. Tudo o que um homem devia fazer era se despedir de sua esposa em presença de duas testemunhas. A única cláusula salvadora era que devia lhe devolver o seu dote intacto. 

É muito fácil dar-se conta da total inovação que deve ter sido para os gregos o ensino cristão com relação à castidade e à fidelidade matrimonial. 

3. A instituição do casamento entre os romanos 

Estudo sobre Mateus 5:31-32 (continuação)


A história do desenvolvimento da instituição matrimonial entre os romanos é a história de uma tragédia. Toda a religião e a sociedade dos romanos se baseava no lar. A base do bem-estar comum de todos os que integravam a sociedade romana, até a época do império, a autoridade do pai era chamado o pátrio poder. O pai possuía literalmente poder de vida e morte sobre todos os membros de sua família. Um filho nunca assumia a maioridade enquanto seu pai vivesse. Podia ser cônsul, podia alcançar os mais altos degraus da dignidade que o Estado podia lhe oferecer, mas se seu pai estava vivo, seguia submetido à sua autoridade. Para o romano o lar era tudo. A matrona romana não vivia em reclusão, como sua contraparte grega. Participava plenamente da vida social e pública. "O casamento", dizia Modestinus, um famoso jurista latino, "é a co-participação, durante toda a vida, dos direitos divinos e humanos." Havia prostitutas, é obvio, mas eram consideradas depreciativamente, e manter relações com elas era desonroso. Conta-se a história de um magistrado romano que foi assaltado em uma casa de má fama e se negou a demandar aos culpados porque se o fizesse teria que reconhecer que tinha estado naquele lugar. Tão elevada era a moral romana que durante os primeiros quinhentos anos de sua vida como nação organizada não se registra nem um só caso de divórcio. O primeiro romano que se divorcia de sua esposa é Spurio Carvilio Ruga, em 234 a.C., e a razão que aduziu para obter uma sentença favorável foi a esterilidade de sua esposa e seu desejo de ter filhos.

Então chegaram os gregos. No sentido militar e imperial os romanos conquistaram aos gregos, mas no social e no moral a Grécia conquistou a Roma. Para o século II A. C., a moral grega tinha começado a infiltrar-se em Roma, e o resultado foi brutal. O divórcio chegou a ser tão comum como o casamento. Sêneca fala de mulheres que se casavam para divorciar-se e se divorciavam para casar-se, e diz que muitas recordavam os anos não pelos nomes dos cônsules que governavam a cidade mas sim pelos nomes dos maridos que tiveram. 

Juvenal escreve, referindo-se a certa dama romana: "Bastará a Iberina um marido? Seria mais fácil convencê-la a de que lhe convém ter um só olho." E cita o caso de outra mulher que em cinco anos teve oito maridos. Marcial nos conta de uma mulher que chegou a ter dez maridos. 

Um orador romano fez um discurso famoso que passou à história. Seu nome era Metillo Numídico, e suas palavras foram: "Romanos: se fosse possível fazer o amor sem ter esposas, nos livraríamos de problemas; mas, como é a lei da natureza que não possamos viver prazenteiramente, com elas, nem possamos viver sem elas, devemos pensar na continuidade da raça antes que em nosso próprio prazer de um instante." O casamento tinha chegado a ser pouco mais que uma desafortunada necessidade. Corria entre os romanos um cínico provérbio que dizia: "O casamento dá somente dois dias felizes – o dia em que pela primeira vez o marido aperta a sua esposa contra o peito e o dia em que a deposita em sua tumba." 

As coisas chegaram a tal ponto que se promulgou um imposto ao celibato e nenhum solteiro podia receber herança. Estabeleceram-se privilégios especiais para os que tinham filhos, porque os filhos eram considerados como um desastre. Chegou-se ao ponto de manipular a lei, num intento de resgatar a tão necessária instituição do casamento.

Esta foi a tragédia dos romanos, que o historiador Lecky chamou "esse estalo de depravação ingovernável e quase frenética, que se produziu imediatamente depois do contato com a Grécia". Aqui, novamente, podemos perceber com que surpresa o mundo romano da antiguidade deve ter ouvido as exigências de castidade do cristianismo. 

Não entraremos por ora na descrição do ideal do casamento cristão, porque o faremos ao chegar a Mateus 19:3-9. Seja-nos permitido apenas assinalar que com o cristianismo entrou no mundo um ideal de castidade que anteriormente os homens não haviam nem sequer sonhado. 


A PALAVRA É PROMESSA 
Estudo sobre Mateus 5:33-37


Uma das coisas mais estranhas com respeito ao Sermão da Montanha é a quantidade de vezes em que nele a única coisa que Jesus faz é lembrar aos judeus algo que eles já sabiam. Os mestres judeus sempre tinham insistido na obrigação geral de dizer sempre a verdade. "O mundo se apóia firmemente sobre três pilares: a justiça, a verdade e a paz." "Há quatro pessoas que estão excluídas da presença de Deus: o zombador, o hipócrita, o mentiroso e o que faz circular calunia." "Quem deu sua palavra e depois a muda é tão mau como qualquer idólatra." A escola de Shammai era tão escrupulosa com respeito a este assunto de dizer a verdade, que até proibia a repetição das pequenas cortesias do trato social, como por exemplo o repetido louvor à beleza de uma noiva embora em realidade fosse apenas uma aparência agradável. 

Os judeus eram ainda mais estritos naqueles casos em que a verdade da palavra tinha sido garantida mediante um juramento. O Novo Testamento estabelece este principio em repetidas oportunidades. O mandamento diz: "Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão, porque o SENHOR não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão" (Êxodo 20:7). Este mandamento não proíbe dizer "más palavras" ou usar "linguagem forte", mas sim condena ao homem que jura no nome de Deus, ou promete algo pondo a Deus como testemunha, e não está disposto a observar sua promessa ou jurou falsamente. "Quando um homem fizer voto ao SENHOR ou fizer juramento, ligando a sua alma com obrigação, não violará a sua palavra; segundo tudo o que saiu da sua boca, fará" (Números 30:2). "Quando fizeres algum voto ao SENHOR, teu Deus, não tardarás em cumpri-lo; porque o SENHOR, teu Deus, certamente, o requererá de ti, e em ti haverá pecado. Porém, abstendo-te de fazer o voto, não haverá pecado em ti. O que proferiram os teus lábios, isso guardarás e o farás, porque votaste livremente ao SENHOR, teu Deus, o que falaste com a tua boca" (Deut. 23:21-23)

No tempo de Jesus, entretanto, ocorriam duas coisas muito pouco satisfatórias com relação ao uso do nome de Deus. A primeira é o que poderia denominar-se juramento frívolo ou fútil. Quer dizer, jurar ou exigir juramento quando não era necessário juramento algum. Tinha chegado a ser um costume começar qualquer declaração dizendo: "Por sua vida", ou "Por minha cabeça", ou "Jamais veja feliz Israel se..." Os rabinos tinham estabelecido que usar de qualquer classe de juramento em declarações corriqueiras, tais como "Esta árvore é uma oliveira" não somente era incorreto mas sim devia considerar-se pecaminoso. Diziam: "O se de um homem justo sempre é se, e o não é não." Ainda em nossos dias é instrutivo o ensino daqueles antigos mestres. Com muita freqüência escutamos pessoas usarem a linguagem mais sagrada em situações insignificantes. Tomam-se, de maneira irreverente, as coisas e os nomes sagrados. Os nomes sagrados deveriam reservar-se para as coisas sagradas.

O outro costume dos judeus no tempo de Jesus pode considerar-se muito mais grave. Consistia no que poderia denominar-se juramento evasivo. Os judeus dividiam os juramentos em duas classes: aqueles que obrigavam de maneira absoluta e os que só o faziam de maneira relativa. Qualquer juramento que contivera o nome de Deus obrigava de maneira absoluta, os juramentos em que se evitava o nome de Deus não criavam uma obrigação absoluta. O resultado era que se alguém jurava pelo nome de Deus podia esperar-se dele que estivesse dizendo uma verdade, ou que cumprisse sua promessa; mas se jurava pela Terra, ou pelo céu, ou por Jerusalém, ou por sua própria cabeça, sentia-se na liberdade de romper seu juramento. Como resultado, construiu-se uma verdadeira arte de jurar, evitando o nome de Deus.

A idéia era que se se usava o nome de Deus, este passava a ser parte na transação; enquanto que se não se mencionava a Deus, este não tinha nada a ver no assunto. O princípio que Jesus estabelece é bastante claro. Afirma que, independentemente da intenção que alguém pudesse ter de tornar a Deus em parte de seus negócios, era absolutamente impossível mantê-lo fora deles. Deus está presente em todas as transações. O céu é o trono de Deus e a Terra é sua banqueta; Jerusalém é a cidade de Deus. nossas próprias cabeças em realidade não nos pertencem, porque não podemos tornar um só de nossos cabelos branco ou preto. Nossa vida pertencem a Deus. Não há nada neste mundo que não seja de Deus, e portanto, mencione-se ou não o nome de Deus, Ele está presente de qualquer maneira. 

Esta é uma grande e eterna verdade. A vida não pode ser dividida em compartimentos em alguns dos quais Deus está presente e em outros não; não se pode usar um tipo de linguagem na Igreja e outro na fábrica, no escritório, ou no bar; não pode haver algumas normas que orientem a conduta na Igreja e outras normas, diferentes, que estabeleçam o que é bom ou mau fora da Igreja, no mundo dos negócios. O fato é que não se pode convidar a Deus a participar de alguns dos âmbitos de nossa vida e deixá-lo de fora de outros. Ele está em toda parte e em todo momento e situação de nossas vidas. Não só escuta as palavras pronunciadas em seu nome, mas também todas as palavras; não se pode inventar uma fórmula verbal que evite a presença de Deus em nossa vida. Se lembrarmos que todas as nossas promessas são feitas na presença de Deus reconheceremos como nossa obrigação ser sempre fiéis à verdade, porque toda promessa é sagrada.


O FIM DOS JURAMENTOS 
Estudo sobre Mateus 5:33-37 (continuação)


Esta passagem conclui com o mandamento de que quando alguém deve dizer sim, tem que dizer sim, e nada mais; e quando deve dizer não, tem que dizer não, e somente não. 

O ideal é que ninguém precise de juramentos para garantir a verdade ou dar prova de sua vontade de cumprir uma promessa. O caráter da pessoa deveria fazer com que os juramentos fossem totalmente desnecessários. Sua garantia e suas testemunhas deveriam ser sua própria integridade. Sócrates, o grande orador e mestre grego, disse: "Deveríamos viver de tal maneira que nossas ações inspirassem mais confiança em nós que qualquer juramento." Clemente de Alexandria sustentava que os cristãos deveriam viver de tal modo e ser de tal caráter que ninguém jamais sonhasse sequer em pedir-lhes um juramento. A sociedade ideal seria aquela em que a palavra de qualquer indivíduo não necessitasse de juramento alguma para garantir sua verdade, e as promessas não precisassem de juramentos para garantir seu cumprimento. 

Proíbem estas palavras de Jesus que os cristãos jurem em situações tais como quando vai dar testemunho em um processo legal, ou no juramento à bandeira? Tem havido dois grupos que se negaram categoricamente a toda forma de juramento. Os primeiros foram os essênios, uma antiga seita judia. Josefo escreve respeito a eles: "São eminentes por sua fidelidade e são ministros de paz. Algo que digam é tão firme como um juramento. Evitam todo juramento, e o têm em mais baixa estima ainda que o perjúrio. Porque afirmam que quem não pode ser de confiança se não jurarem, já estão condenados."

E também estão, ainda em nossos dias, os quackers. Os quackers se negam rotundamente, qualquer que seja a situação em que se encontrem, a pronunciar juramentos. George Fox, um dos fundadores desta seita, o máximo que chegava era aceitar o uso da palavra "verdadeiramente". Escreveu: "Nunca enganei a ninguém durante toda aquela época (a que passou ocupado em negócios). Em todas as minhas transações importantes usava a palavra ‘verdadeiramente’." E muitos diziam: "Quando George Fox diz ‘verdadeiramente’ não há maneira de que mude." Na antiguidade os essênios não tinham pronunciado nenhum juramento, e até nossos dias, os tais estão na mesma postura. 

Têm estes razão ao assumir esta atitude? Houve ocasiões nas quais o apóstolo Paulo jurou, como quando afirma: "Eu, porém, por minha vida, tomo a Deus por testemunha de que, para vos poupar, não tornei ainda a Corinto" (2 Cor. 1:23). "Ora, acerca do que vos escrevo", diz na epístola aos Gálatas, "eis que diante de Deus testifico que não minto" (Gál. 1:20). Nestes casos Paulo se está colocando sob juramento. O próprio Jesus não protestou quando o sumo sacerdote o pôs sob juramento: "Conjuro-te pelo Deus vivo" – ponho-te sob juramento em nome de Deus – "que nos digas se és o Cristo, o Filho de Deus" (Mateus 26:63). 

Qual é então a situação? 

Voltemos para a última parte do versículo 37. As versões correntes dizem: "O que disto passar vem do maligno." O que significam estas palavras? Somente podem significar duas coisas. 

(a) Se for necessário pedir a alguém que jure, a necessidade surge do mal que se aninha no coração do homem. Se não houvesse mal no homem os juramentos seriam desnecessários. Em outras palavras, o fato de que seja necessário às vezes tomar juramento é uma demonstração da persistência do mal na natureza humana. 

(b) O fato de que às vezes seja necessário pôr as pessoas sob juramento obedece a que o mundo em que vivemos é mau. Em um mundo perfeito, no Reino de Deus, jamais seria necessário prestar juramento de nenhuma espécie. Faz-se necessário somente a causa do mal que há no mundo.

O que Jesus afirma é: o homem verdadeiramente bom não precisará jurar para que outros confiem nele; a veracidade de suas palavras e a firmeza de suas intenções não necessitam de tal garantia. Mas o fato de que ainda seja necessário às vezes tomar juramento das pessoas se deve ao fato de que os homens não são bons e este mundo tampouco o é.

Interpretado deste modo, a afirmação de Jesus nos obriga de duas maneiras. Obriga-nos a viver de tal maneira que, vendo nossa transparente bondade, ninguém creia necessário exigir que juremos para poder confiar em nossa palavra; e nos põe na obrigação de fazer tudo o que esteja ao nosso alcance para que o mundo seja um lugar tal que não haja capacidade nele para a falsidade e a infidelidade, ao ponto de que possa abolir-se toda forma de juramento. 



A LEI ANTIGA 
Estudo sobre Mateus 5:38-42


Há poucas passagens no Novo Testamento que contenham com tanta pureza a essência da ética cristã como esta que examinamos agora. Nestas se expressa linhas a ética característica da vida cristã, e o comportamento que deveria distinguir ao cristão de outros homens. 

Jesus começa citando a lei mais antiga que tenha existido – olho por olho e dente por dente. Esta lei se conhece com o nome latino Lex Talionis, e poderia descrever-lhe como lei da reciprocidade direta. Aparece no Código do Hamurabi, o código de leis mais antigo que se conhece – data dos anos 2285 a 2242 a.C., data do reinado daquele soberano em Babilônia. O código do Hamurabi estabelece uma distinção muito curiosa entre o nobre e o plebeu. "Se alguém provocou a perda de um olho a um nobre, pagará com seu próprio olho. Se tiver arruinado uma das extremidades de um nobre, pagará com uma de suas próprias extremidades. Se ocasionar a perda de um olho ou de um membro a um homem pobre, pagará uma mina de prata... Se alguém ocasionar a perda de um dente a um igual, deverá pagar com um de seus dentes, se ocasionar a perda de um dente a um homem pobre, pagará um terço de uma mina de prata." O princípio é claro e aparentemente singelo: Se alguém machucou a outro de algum modo, ele mesmo deverá sofrer idêntica ofensa.

Essa lei se transformou em parte da ética do Antigo Testamento. Encontramo-la explicitamente pelo menos três vezes, ou seja: " Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe" (Êxodo 21:23-25); "Se alguém causar defeito em seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado a algum homem, assim se lhe fará" (Levítico 24:19, 20); "Não o olharás com piedade: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé" (Deuteronômio 19:21). Com freqüência se citam estas leis como as mais sangrentas, selvagens e impiedosas disposições do Antigo Testamento; mas antes de começarmos a criticar o Antigo Testamento devemos fazer algumas observações. 

(1) A Lex Talionis, ou lei da retribuição direta, longe de ser uma disposição selvagem e sanguinária é o princípio da misericórdia. Seu propósito original foi em realidade, a limitação da vingança. A "vingança" e a inimizade de sangue era uma das características da sociedade tribal daqueles tempos. Se um membro de uma tribo matava a um membro de outra tribo, a obrigação de todos os varões membros da segunda tribo era vingar-se em toupeiras os membros varões da primeira, e a vingança procurada não era senão a morte. A lei de talião limita deliberadamente os alcances da vingança. Estabelece que somente deverá ser castigado o responsável pela ferida e que seu castigo não deve ser maior que a ferida que ele infligiu ao outro ofendido. Vista de uma perspectiva histórica esta lei não é selvagem, mas sim uma lei misericordiosa. 

(2) Além disso, esta lei nunca deu ao indivíduo, como pessoa particular, o direito de cobrar as ofensas recebidas; sempre se tratava de uma lei, que era aplicada por um juiz mediante um processo legal de caráter público (veja-se Êxodo 19:18). Esta lei nunca teve como propósito dar ao indivíduo, como pessoa particular, o direito de vingar-se pessoalmente. Sempre se tratou de uma norma destinada a guiar um juiz na avaliação da pena que devia aplicar por qualquer ato violento ou injusto. 

(3) Mais ainda, esta lei, ao menos em qualquer sociedade semi-civilizada, nunca foi aplicada de modo literal. Os juristas judeus afirmavam, com boa razão, que sua aplicação literal podia ser o contrário da justiça, já que podia significar privar a alguém de um olho são por um olho doente, ou de um dente intacto por um dente cariado. E ligo se estipularam equivalentes monetários das distintas feridas possíveis. O tratado Baba Kamma, por exemplo, um livro de leis judias, estabelece meticulosamente como se deve avaliar uma ofensa. Se alguém feriu a outro, é culpado por cinco motivos – pela ferida em si, pela dor sofrida, pelo custo da cura, pela perda de tempo, pela indignidade sofrida. No que respeita à ferida em si, o ferido se considerava como um escravo que se apresentava à venda no mercado. Estabelecia-se o preço que se pagou por ele antes e depois da ferida. O culpado devia pagar a diferença entre os dois preços hipotéticos já que era responsável pela perda de valor do prejudicado. No que respeita à dor, estabelecia-se quanto dinheiro custaria fazer alguém aceitar sofrer a mesma dor e o culpado devia pagar essa soma. No que respeita a cura o ofensor devia pagar todos os gastos da necessária atenção médica até a completa cura da ferida. No que respeita à perda de tempo, o culpado devia compensar a seu vítima pelos salários que teria cobrado por seu trabalho durante o tempo que não tinha podido trabalhar, assim como uma indenização no caso que a ferida o impedisse de voltar a trabalhar na mesma tarefa que fazia ou tinha antes e precisou aceitar um emprego pior remunerado. Quanto à indignidade sofrida, o ofensor devia pagar uma soma em desagravo pela humilhação que o demandante teria sofrido como conseqüência da ferida. Na prática, o tipo de retribuição que estabelece a Lex Talionis se aproxima muito às disposições legais modernas.

(4) E, o mais importante de tudo, deve lembrar-se que a Lex Talionis não é, de maneira alguma, toda a ética do Antigo Testamento, De modo que no Antigo Testamento encontramos resplendores da mais autêntica misericórdia: "Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Levítico 19:18); "Se o que te aborrece tiver fome, dá-lhe pão para comer; se tiver sede, dá-lhe água para beber" (Provérbios 25:21); "Dê a face ao que o fere; farte-se de afronta" (Lamentações 3:30). Também no Antigo Testamento abunda a misericórdia. 

Assim, pois, a lei antiga se apóia no princípio da retribuição direta. É verdade que esta lei era uma lei misericordiosa; é verdade que devia ser aplicada pelo juiz e não ficava entregue ao arbítrio do indivíduo como particular; é verdade que nunca foi aplicado de modo literal; é verdade que ao mesmo tempo ia acompanhada por expressões de uma autêntica misericórdia. Mas Jesus eliminou os próprios fundamentos daquela lei, porque a vingança, por mais controlada e restringida que seja, não tem lugar na vida cristã. 



O FIM DO RESSENTIMENTO E DA VINGANÇA 
Estudo sobre Mateus 5:38-42 (continuação)


Assim, pois, para o cristão, Jesus elimina a antiga lei da vingança limitada, e introduz o novo espírito do não-ressentimento nem vingança. Prossegue, então, dando três exemplos de como funciona o espírito cristão. Interpretar estes três exemplos de maneira cruamente literal e incompreensiva é perder totalmente de vista sua significação. Portanto, é muito necessário captar o significado do que Jesus está nos dizendo. 

(1) Diz que se alguém nos esbofetear na face direita devemos lhe oferecer, também, a outra face. As aparências desta passagem enganam, porque se trata de muito mais que simples bofetadas na face. Suponhamos que uma pessoa que habitualmente usa sua mão direita está em frente a outra, e pensemos qual será sua situação se quer dar no outro uma bofetada na face direita. Como o fará? A menos que se submeta às mais complicadas contorções, e portanto faça com que seu golpe perca totalmente a força que pode ter, há uma só maneira de dar o golpe, ou seja com o dorso da mão. Ora, segundo a lei rabínica, bater com o dorso da mão era duplamente insultante que fazê-lo com a palma. Há uma certa arrogância insultante que se soma ao fato de dar um reverso ou golpe com o dorso da mão.

Assim, pois, o que Jesus diz é o seguinte: "Mesmo que alguém lhes dirija o insulto mais calculado e traidor, não devem responder com outro insulto do mesmo tipo, nem devem sentir-se ofendidos por sua ação." Não nos ocorrerá com muita freqüência encontrar-nos com alguém que nos dê bofetadas, mas uma e outra vez no curso de nossa vida receberemos insultos de maior ou menor proporção; Jesus nos está dizendo aqui que o cristão precisa ter aprendido a não experimentar ressentimento, seja qual for o insulto que receber, e a não procurar vingar-se de maneira alguma. Eles O acusavam de ser um glutão e um bêbado. Eles O censuravam-no por manter amizade com os publicanos e prostitutas, com o qual queria dizer que seu caráter era como o de quem costumava freqüentar. Os primeiros cristãos foram acusados de canibalismo e de ser incendiários, e de praticar orgias durante a celebração de suas "festas de amor" (ágapes). 

Quando Shaftesbury assumiu a causa dos pobres e dos oprimidos, foi advertido que sua atitude lhe significaria "perder a amizade dos membros de sua própria classe social" e que devia, portanto, abandonar a esperança de chegar a ser algum dia membro do gabinete de governo na Inglaterra. Quando Wilberforce começou sua cruzada contra a escravidão, esparramou-se deliberadamente a calúnia de que era um mau marido, que estava casado com uma negra a qual castigava.

Uma e outra vez, em uma igreja alguém é "insultado" ao não convidar-lhe a sentar-se na plataforma, ao omitir-se o de um voto de agradecimento, ao não receber, de uma ou outra maneira, o lugar que lhe corresponde ocupar. O verdadeiro cristão esqueceu o que significa ser insultado; aprendeu que seu Mestre a não aceitar nada como um insulto pessoal, a jamais experimentar ressentimento e nunca vingar-se. 

(2) Jesus segue dizendo que se alguém tenta nos tirar a túnica em um litígio ante os tribunais, não somente devemos deixar que se leve o que quer, mas também lhe oferecer a capa. Novamente, há aqui muito mais do que pode perceber-se superficialmente. A túnica, chiton, era uma espécie de camisa que se usava debaixo da roupa, e em geral era feita de algodão ou linho. Até o homem mais pobre possuía habitualmente mais de uma muda deste objeto. A capa era a vestimenta exterior, de forma retangular e de consideráveis dimensões, que se usava como toga durante o dia e como telha durante a noite. Os judeus em geral tinham somente uma capa ou manta deste tipo. 

A lei judia estabelecia que a túnica de um devedor era confiscável, mas não a capa. "Se do teu próximo tomares em penhor a sua veste, lha restituirás antes do pôr-do-sol; porque é com ela que se cobre, é a veste do seu corpo; em que se deitaria?" (Êxodo 22:26-27). O importante aqui é que a lei não autorizava a reter permanentemente a capa de um devedor, como objeto de sua dívida. Por isso, o que Jesus diz nesta passagem, é que "o cristão nunca exige a satisfação de seus direitos; nunca disputa para que se cumpram a seu favor as disposições legais que o protegem; considera-se como se não tivesse direito algum". Há pessoas que todo o tempo estão reclamando seus direitos, que se aferram a seus privilégios e não permitem que ninguém nem nada os estorvo, capazes de expor qualquer demanda, inclusive ante os tribunais, antes de permitir ser "atropelado" até no mínimo. 

As igrejas, por desgraça, estão geralmente cheias de pessoas deste caráter, membros diretores cujo "território" foi invadido por outros irmãos, ministros ordenados ou leigos cujos direitos não foram considerados, juntas e comissões que fazem a sessão com o regulamento sobre a mesa, para que ninguém ultrapasse em seus respectivos direitos ou deixe de cumprir suas obrigações. Os que agem deste modo nem sequer começaram a compreender o significado da fé cristã. O cristão não pensa em seus direitos, mas em seus deveres; não em seus privilégios, mas em suas responsabilidades. O cristão é alguém que esqueceu por completo seus direitos. Aquele que defende até a morte seus privilégios ou direitos, dentro ou fora da Igreja, está muito longe do caminho de Jesus Cristo.

(3) Em terceiro lugar Jesus fala de que o cristão ao ser obrigado a andar uma milha deve estar disposto a ir duas milhas em vez de uma. Temos aqui uma imagem que para nós é muito pouco familiar, visto que se trata da situação em um país sob ocupação militar. "Obrigar a levar carga", tal como aparece em nosso texto, é uma expressão com longa história. A palavra grega que a representa, aggaréuein, provém de outro vocábulo, aggaréus, que significa "correio" no idioma dos persas. Os persas tinham um sistema postal extraordinário. Todos os caminhos estavam divididos em postos localizadas a um dia de viagem um do outro. Em cada posto o correio podia achar comida para ele e forragem para seu cavalo, e cavalos de troca quando era necessário. Mas se por qualquer circunstância faltasse algo, qualquer pessoa particular podia "ser obrigada" (com a mesma palavra, aggaréuein, de nosso texto) a prover comida, alojamento, cavalos, ajuda, e ainda a levar a mensagem até o próximo posto. Com o correr do tempo a palavra chegou a significar qualquer tipo de serviço obrigatório dos cidadãos de uma nação em favor da potência estrangeira dominante. Em todo país ocupado os cidadãos nativos podiam ser obrigados a prover às tropas de ocupação mantimentos ou alojamentos, ou a levar cargas. 

Às vezes as forças de ocupação exerciam este direito de maneira tirânica e arbitrária, não procurando de modo algum congraçar-se com os naturais do país. Sempre pendia sobre os cidadãos de uma nação derrotada a ameaça desta obrigação. Palestina era um país ocupado. Em qualquer momento o judeu podia sentir sobre seu ombro o toque da lança de um soldado romano, e com isto sabia que sua obrigação era servir ao soldado que assim o tinha convocado em tudo o que ele solicitasse, mesmo que a tarefa fosse humilhante.

Isto, como lembraremos, é o que ocorreu com Simão Cireneu, quando foi obrigado (aggaréuein) a carregar a cruz no caminho ao Calvário. Assim, pois, Jesus nos está dizendo: "Suponham que seus opressores vêm a vocês e os obrigam a servir de guia, ou a levar uma carga por eles durante uma milha de caminho. Não cumpram esta obrigação com amargura e visível ressentimento; vão duas milhas, com alegria e boa vontade." Em outras palavras, Jesus afirma: "Não pensem todo o tempo na liberdade de fazer o que querem fazer; pensem sempre em suas obrigações, e no privilégio que têm de poder servir a outros. Quando recebem uma tarefa, embora seja pouco razoável e não de seu agrado, não a assumam como um dever odioso que deve ser rechaçado; façam como se fosse um serviço que deve oferecer-se alegremente." 

Sempre há duas maneiras de fazer as coisas. Pode-se cumprir o mínimo irredutível e não ir nem mais um centímetro; pode-se obedecer a obrigação de tal modo que se manifeste o rechaço por quem tem o direito sobre nós; pode-se servir com o mínimo de eficiência possível; ou se pode obedecer com um sorriso nos lábios, com cortesia e amabilidade, com a determinação de cumprir não somente o dever mínimo, mas sim de fazê-lo bem e de bom modo. 

Pode-se obedecer à obrigação não somente como se deve mas muito melhor do direito de exigir da outra pessoa. O operário ineficiente, o servente ressentido, o ajudante com má disposição não começou sequer a compreender a idéia do que significa a vida cristã. O cristão não se preocupa em fazer a própria vontade, antes unicamente em ajudar, mesmo que o pedido de ajuda seja descortês, irrazoável ou tirânico. 

De maneira, pois, que nesta passagem, sob a forma de cenas exemplares bem vívidas, extraídas da experiência cotidiana de sua época e lugar, Jesus estabelece três regras gerais. O cristão nunca experimentará rancor, nem praticará a vingança, qualquer que seja a ofensa que tenha recebido, mesmo que esta o tenha afetado de maneira profunda e dolorosa.

O cristão nunca defenderá seus direitos legais ou qualquer das coisas que creia possuir. O cristão nunca pensará que tem o direito de fazer o que deseja muito, mas sim sempre que seu dever é ajudar a outros. A grande pergunta é: Como alcançar um ideal tão elevado? 


A DÁDIVA GENEROSA 
Estudo sobre Mateus 5:38-42 (continuação)


Por último, a exigência de Jesus é que demos a todos os que nos peçam, e que nunca neguemos um pedido de empréstimo. Em sua expressão mais elevada, a lei judia com respeito às dádivas era uma disposição maravilhosa por sua beleza. Apoiava-se em Deuteronômio 15:7-11: 

Quando entre ti houver algum pobre de teus irmãos, em alguma das tuas cidades, na tua terra que o SENHOR, teu Deus, te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás as mãos a teu irmão pobre; antes, lhe abrirás de todo a mão e lhe emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a sua necessidade. Guarda-te não haja pensamento vil no teu coração, nem digas: Está próximo o sétimo ano, o ano da remissão, de sorte que os teus olhos sejam malignos para com teu irmão pobre, e não lhe dês nada, e ele clame contra ti ao SENHOR, e haja em ti pecado. Livremente, lhe darás, e não seja maligno o teu coração, quando lho deres; pois, por isso, te abençoará o SENHOR, teu Deus, em toda a tua obra e em tudo o que empreenderes. Pois nunca deixará de haver pobres na terra; por isso, eu te ordeno: livremente, abrirás a mão para o teu irmão, para o necessitado, para o pobre na tua terra. 

A referência ao sétimo ano recorda que todos os sétimos anos se cancelavam as dívidas; os egoístas e avaros se negavam a prestar ajuda quando estava próximo o sétimo ano, não fosse o fato de se cancelarem todas as dívidas, e ficasse sem o que tinha dado. A lei judia da esmola e os empréstimos se baseava nestes versículos.

Os rabinos tinham estabelecido cinco princípios que deviam reger a ação de dar, em todas as suas formas. 

(1) Nunca nos devemos negar a dar. "Tome cuidado de não te negares a oferecer caridade, porque os que se negam à solicitude de uma esmola estão na mesma categoria que os idólatras." Se alguém se negar a dar, bem pode ser que algum dia ele esteja na mesma condição de andar mendigando e possivelmente deva fazê-lo às mesmas pessoas a quem, anteriormente, negou-se a dar. 

(2) A dádiva deve beneficiar a pessoa que a recebe. A lei deuteronômica dizia que se deve dar aquilo que o outro necessite. Isto significa que não somente se deve dar o mínimo indispensável para manter-se vivo, mas tudo o que possa contribuir para manter o nível de vida e a conforto habitual. Conta-se que o rabino Hillel dispôs, em certa oportunidade, que o filho de uma família rica que empobreceu, recebesse não apenas o alimento e a roupa que necessitava com urgência, mas também um cavalo e um escravo que o acompanhasse; e em uma oportunidade quando o escravo não pôde ir com seu novo amo, ele mesmo se fez de escravo, correndo diante dele. Há algo muito generoso e de grande beleza na idéia de que ao dar não somente se deve eliminar a pobreza mas, além disso, prover o necessário para eliminar também a humilhação que a pobreza acarreta. 

(3) O donativo deve entregar-se de maneira particular e secreta. Não deve haver terceiras pessoas presentes. Em realidade, os rabinos chegavam até o ponto de dizer que a forma mais elevada de fazer caridade era aquela na qual o doador não conhecia o receptor, nem o receptor a seu benfeitor. No templo de Jerusalém havia um lugar onde os que queriam fazer entrega de oferendas podiam chegar, e depositá-las de maneira secreta; estes dons eram utilizados pelos sacerdotes do templo para ajudar a filhos de famílias nobres que empobreceram, e dar às filhas de tais famílias os dotes sem os quais lhes era impossível pensar em casar-se. O judeu teria olhado com aborrecimento a oferenda que se entregava procurando prestígio, publicidade ou glorificação do doador.

(4) O modo de dar devia adequar-se ao caráter e temperamento do receptor. A regra estabelecia que se alguém possuía bens, mas era muito avaro para usá-los, devia fazer-se a ele um donativo como tal mas depois reclamar-lhe como empréstimo de seu patrimônio. Mas se alguém era muito orgulhoso para pedir, o rabino Ishmael sugeria que qualquer homem generoso devia aproximar-se dele e dizer: "Meu filho, possivelmente necessite um empréstimo..." Deste modo se salvava a estima própria do necessitado. Mas o "empréstimo" não devia ser reclamado jamais, visto que não era um empréstimo, em realidade, mas um presente. Estava disposto, inclusive, que se alguém não podia responder a um pedido de ajuda, devia negar-se de tal maneira que o solicitante recebesse a impressão que, embora não lhe podia dar o que pedia, pelo menos podia dar-lhe simpatia. Até a negativa, em outras palavras, devia ser tal que não ofendesse. Devia dar-se de tal maneira que a ajuda não fosse só o que se dava mas também a maneira de dar. 

(5) Dar era ao mesmo tempo um privilégio e uma obrigação, porque em realidade tudo o que se dá se dá a Deus. Dar a um necessitado não era algo que se pudesse escolher como o curso de ação mais apropriado; era uma obrigação, um dever de primeira ordem. E se alguém se negava a dar, estava negando a Deus. "Ao Senhor empresta o que dá ao pobre, e o bem que tiver feito lhe devolverá." "Quem mostra misericórdia para com outros homens, receberá misericórdia do céu; mas quem não é misericordioso com outros homens, não receberá misericórdia do céu." Os rabinos acentuavam o ensino de que uma das poucas coisas que a Lei não limita é a misericórdia. 

Podemos dizer, pois, que Jesus insistiu com aos homens a dar indiscriminadamente? Não poderia responder-se a esta pergunta sem antes estabelecer-se certos limites. É evidente que deve levar-se em conta o efeito do dom sobre quem o recebe. Nunca se deve estimular a ociosidade ou o esbanjamento, pois tal generosidade a única coisa que pode fazer é prejudicar ao que recebe. Mas ao mesmo tempo deve lembrar-se que muitas pessoas, ao afirmar que dão somente através dos canais oficiais, e que se recusam a oferecer uma ajuda pessoal quando lhes é solicitada pessoalmente, a única coisa que estão fazendo é desculpar-se para não dar, e que, em todo caso, pelo menos são culpados de eliminar o elemento pessoal e direto da dádiva. E também deve lembrar-se que é melhor dar a uma vintena de mendigos fraudulentos que negar-se ao pedido de alguém que realmente necessita de nossa ajuda.

O AMOR CRISTÃO – (1) Seu significado 
Estudo sobre Mateus 5:43-48 

C. G. Montefiore, o erudito judeu, qualifica esta passagem de "a porção central e a mais famosa do Sermão da Montanha". E é verdade que em todo o Novo Testamento nenhum outra passagem contém uma expressão tão concentrada como esta da ética cristã das relações pessoais. Para o leitor corrente, estas palavras bem podem servir como uma descrição da essência do cristianismo em sua prática. Até os que jamais pisaram na entrada de uma igreja sabem que Jesus disse isto, e com muita freqüência, infelizmente, condenam os cristãos praticantes por não cumprirem o ideal moral proposto pelo Mestre. 

Ao estudar esta passagem, primeiro devemos averiguar o que é que Jesus verdadeiramente disse, e o que foi o que exigiu de seus seguidores. Se tivermos que procurar pôr em prática este ensino, a primeira coisa, evidentemente, é ter bem claro o que é que exige de nós. O que quer dizer Jesus quando nos ordena amar a nossos inimigos? 

O grego é um idioma muito rico em palavras com significados muito similares, ou sinônimos; freqüentemente encontramos neste idioma palavras que possuem matizes de significado impossíveis de traduzir. Por exemplo, em grego há quatro palavras diferentes que equivalem a nosso substantivo "amor".

(1) Temos o substantivo storge, com o verbo stergo. Estas palavras descrevem o amor familiar. Usam-se, por exemplo, para denotar o amor do pai por seu filho, ou do filho para o pai. "O menino", disse Platão, "ama (sterguein) a quem o trouxe ao mundo, e é amado por eles". "Doce é um pai para com seu filho", disse Filemom, "se tiver amor (storge)". Estas duas palavras descrevem o afeto familiar. 

(2) Temos o substantivo eros, e o verbo erán. Estas palavras denotam o amor de um homem por uma mulher; sempre indicam a existência de alguma medida de paixão. Sempre se trata do amor sexual. Sófocles descrevia o eros como "um terrível desejo". Nestas palavras não há nada essencialmente mau; descrevem, simplesmente o amor humano apaixonado. Mas com o correr do tempo se foram tingindo com uma conotação de desejo pecaminoso mais que de amor, e não aparecem, sequer, no Novo Testamento. 

(3) Temos o substantivo filia, com seu verbo correspondente fileo. Esta é a palavra mais cálida e tenra que tem o grego para falar do amor. Descreve o verdadeiro amor, o verdadeiro afeto. Joi filúntes (particípio presente) é a expressão que descreve aos verdadeiros amigos de uma pessoa, os mais íntimos. É a palavra que aparece no famoso texto do Menandro: "Morre jovem aquele a quem os deuses amam." O verbo (fileo) também pode significar acariciar ou beijar. É a palavra que denota um amor tenro, carinhoso, quente, a forma mais elevada de amor. 

(4) E Temos o substantivo ágape, com o verbo agapao. Ágape é a palavra que se usa em nosso texto. O verdadeiro significado de ágape é benevolência invencível, infinita boa vontade. Se considerarmos uma pessoa com ágape, esta classe de "amor", não nos importará o que essa pessoa possa fazer ou nos fazer, não importará a maneira em que nos trate, se nos insulta ou injuria ou ofende: nunca permitiremos que nos invada o coração outro sentimento que a melhor e mais elevada boa vontade, sempre a olharemos com essa benevolência indescritível que busca, em toda situação, o melhor bem para o outro. 

A partir destas quatro palavras, podemos extrair algumas conclusões:

(1) Jesus nunca nos pediu que amássemos a nossos inimigos do mesmo modo que amamos a nossos seres amados, a aqueles que estão mais perto de nós ou aos que nos são mais queridos. A palavra que usa é diferente. Amar a nossos inimigos do mesmo modo que amamos a nossos seres amados não somente seria impossível como também incorreto. Trata-se de um tipo diferente de amor. 

(2) Em que radica a principal diferença? No caso dos que estão muito perto de nós por razões de parentesco ou de outro tipo e constituem o grupo de nossos seres amados, não poderíamos deixar de amá-los. Falamos de amor. Esta é uma experiência que nos sobrevém sem que a busquemos nem que a produzamos. Corresponde ao plano de nossos afetos mais profundos. Mas no caso de nossos inimigos, o amor não é só algo do coração; participa também a vontade. Não é algo que não poderíamos evitar, é algo que devemos nos propor a fazer. De fato, constitui uma vitória e uma conquista frente aos sentimentos que experimentamos instintivamente, quanto ao homem natural. O ágape não é um sentimento do coração, que sobrevém espontaneamente, sem que o peçamos nem procuremos; significa uma determinação da mente, graças a qual obtemos essa invencível boa vontade até para com aqueles que nos ferem e insultam. 

Disse alguém que se trata do poder de amar aqueles que não gostam de nós e aqueles de quem não gostamos. Na verdade, só podemos ter ágape quando Jesus nos capacita a vencer nossa tendência natural para a ira e o ressentimento, e para alcançar essa inquebrantável boa vontade para todos os homens. 

(3) É evidente, então, que o ágape, o amor cristão, não significa permitir que todo mundo faça e seja o que tenha vontade, sem exercer controle algum sobre eles. Ninguém diria que um pai verdadeiramente ama a seu filho se lhe permite fazer o que quer. Se experimentarmos boa vontade para com uma pessoa, pode ser que tenhamos que castigá-la, restringi-la ou discipliná-la, que devamos protegê-la contra si mesma. Mas também significará que nunca a castigaremos para satisfazer nosso desejo de vingança, mas sim e sempre, para conseguir que seja uma pessoa melhor. Toda disciplina e todo castigo administrado por um cristão deve procurar, não obter retribuição ou vingança, mas curar. Nunca se tratará de um castigo meramente retributivo, sempre será uma forma de procurar o remédio da situação.

(4) Deve-se levar em conta que Jesus estabeleceu este amor como fundamento das relações pessoais. Há quem utiliza esta passagem como um argumento a favor do pacifismo, ou como um texto sobre o qual falar das relações internacionais. É obvio que inclui esta ordem de coisas, mas em primeiro lugar e sobretudo, tem que ver com nossas relações pessoais, com nossos parentes, nossos vizinhos, e com as pessoas que encontramos em nossa vida cotidiana. 

É muito mais fácil andar por aí declarando que não deve haver guerra entre as nações que viver de tal maneira que o ressentimento nunca invada nossas relações pessoais com os que encontramos em nosso relacionamento diário. Em primeiro lugar e sobretudo, este mandamento de Jesus tem que ver com nossas relações pessoais. É um mandamento com respeito ao qual deveríamos dizer, antes de qualquer outra consideração: "refere-se a mim." 

(5) Deve notar-se que só os cristãos podem obedecer este mandamento. Somente a graça de Jesus Cristo pode pôr alguém em condições de experimentar uma benevolência invencível para com todos os seus semelhantes, na relação quotidiana com eles. Somente quando Cristo vive em nosso coração desaparece o ressentimento, e floresce o amor. Diz-se que o mundo seria perfeito se todos seus habitantes vivessem segundo os princípios estabelecidos pelo Sermão da Montanha; mas a realidade é que ninguém pode nem sequer começar a viver segundo estes princípios sem a ajuda de Jesus Cristo. Necessitamos a Cristo para ser capazes de viver segundo os mandamentos de Cristo. 

(6) Por último – mas possivelmente isto seja o mais importante de tudo –, devemos notar que este mandamento não só implica deixar que outros nos tratem como querem; também inclui o que deve ser nosso comportamento com respeito aos outros. Nos ordena orar por eles. Ninguém pode orar a favor de outro ser humano e seguir odiando-o. Quando se apresenta ante Deus junto com o outro a quem se sente tentado a odiar, acontece algo em seu interior. Não podemos seguir odiando a outro ser humano na presença de Deus. A forma mais segura que eliminar o ressentimento é orar por aquele a quem nos sentimos tentados a odiar. 



O AMOR CRISTÃO – (2) Sua razão de ser 
Estudo sobre Mateus 5:43-48 (continuação)


Vimos o que Jesus quis dizer quando nos ordenou ter esse amor cristão. Agora devemos seguir mais adiante, e ver por que nos ordenou isso. Por que Jesus exige que alguém tenha esse amor, essa benevolência indescritível, essa invencível boa vontade? A razão é tão simples como tremenda: Porque tal amor faz com que o homem seja como Deus. 

Jesus assinalou a ação de Deus no mundo, e esta é precisamente uma ação de indescritível benevolência. Deus faz que o Sol se levante sobre bons e maus. Envia a chuva sobre justos e injustos. O rabino Josué Ben Neemias costumava a dizer: "Viu alguma vez que chovesse sobre o campo de A., que era justo, e não sobre o campo de B., que era injusto? E viu alguma vez que o Sol brilhasse sobre Israel, que era justo, e não sobre os gentios, que eram maus? Deus faz que o sol brilhe, tanto para Israel como para as nações, porque o Senhor é bondoso para com todos." Até o rabino judeu se sentia comovido e impressionado pela extraordinária benevolência de Deus, tanto para os santos como para os pecadores. 

Há uma narração rabínica que recorda a destruição dos egípcios no Mar Vermelho. Segundo esta história, quando os egípcios se afogaram, os anjos no céu começaram a cantar um hino de louvor, mas Deus os reprovou com tristeza, dizendo: "A obra de minhas mãos pereceu no mar, e vós cantais um hino de louvor...!" O amor de Deus é tal que não pode regozijar-se na destruição de nenhuma das criaturas que sua mão criou. Já o dizia o salmista: "Os olhos de todos esperam em ti, e tu dás sua comida a seu tempo. Abres tua mão, e enches de bênção a todo ser vivente" (Salmo 145:15-16). Em Deus há uma benevolência universal, que se aplica até ao homem que quebrantou sua lei e lhe quebrantou o coração.

Jesus diz que devemos ter este amor para que possamos chegar a ser "filhos de nosso Pai que está no céu". O hebreu não é um idioma rico em adjetivos e por essa razão freqüentemente se usa a expressão "filho de... (com um substantivo abstrato) nos lugares onde nós disporíamos de um adjetivo adequado. Por exemplo, filho da paz quer dizer pacífico, e filho da consolação quer dizer consolador. Portanto filho de Deus significa alguém que é semelhante a Deus, como Deus. A razão por que devemos possuir essa indescritível benevolência e invencível boa vontade é que Deus as tem; e se nós podemos chegar a possuí-las, poderemos nos tornar nada menos que em filhos de Deus, ou seja em seres humanos de um caráter similar ao de Deus. 

Aqui temos a chave para compreender uma das frases mais difíceis de todo o Novo Testamento, a que encontramos ao final desta passagem. Jesus disse: "Sede, pois, vós perfeitos, como vosso Pai que está nos céus é perfeito." A primeira impressão que recebemos ao escutar estas palavras é que se trata aqui de um mandamento que não pode ter nada a ver conosco. Ninguém entre nós estabeleceria uma relação necessária, por mais tênue que fosse, entre nossa vida e qualquer forma de perfeição, A palavra grega que significa perfeito é teleios, que se emprega em uma forma muito especial. Não tem nada a ver com o que poderíamos denominar uma perfeição abstrata, filosófica ou metafísica. Teleios era a vítima adequada para ser apresentada em sacrifício a Deus. Também o homem quando alcançava a plenitude de sua estatura física, em oposição ao moço ou o menino que não está ainda desenvolvido. O aluno que obtinha uma compreensão cabal da matéria de estudo também era "perfeito" (neste sentido), em contraposição com o que, sendo principiante, ainda não dominava o tema. Para dizê-lo de outra maneira, a idéia de "perfeição" é, neste caso, totalmente funcional. Algo é perfeito se cumprir o propósito para o qual foi feito, A palavra grega teleios, é o adjetivo que corresponde ao substantivo telos. Telos significa fim, meta, propósito ou objetivo. Uma coisa é teleios se ela realizar o propósito para a qual foi criada; um homem é perfeito se cumprir o propósito para o qual Deus o criou e enviou ao mundo.

Tomemos uma analogia bem singela, Suponhamos que em minha casa há um parafuso frouxo, e eu quero ajustá-lo. Vou à loja de ferragens e compro um chave de fenda. Ao examinar esta ferramenta me dou conta de que a manga da chave de fenda se encaixa perfeitamente à forma de minha mão. Não é muito grande nem muito pequena. Nem muito áspero nem muito liso. Imediatamente coloco a ponta do chave de fenda na ranhura do parafuso e me dou conta que se adepta perfeitamente às dimensões desta. Faço girar o chave de fenda, e o parafuso se ajusta. Se falasse grego, e em particular se usasse as palavras com o sentido que têm no Novo Testamento, diria que o chave de fenda é teleios, porque cumpre exatamente o propósito para o qual o necessitei e o comprei. 

Assim, pois, um ser humano é "perfeito" se cumprir o propósito para o qual Deus o criou. Para que foi criado o homem? A Bíblia não deixa lugar a dúvidas com respeito à resposta adequada a esta perguntar "Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança" (Gênesis 1:26). O homem foi criado para ser como Deus. A característica de Deus é esta benevolência universal, esta boa vontade invencível, esta busca constante do bem-estar de todos os homens. A grande característica de Deus é seu amor para santos e pecadores por igual. Não importa o que os homens lhe possam fazer, Deus não procura senão o seu mais elevado bem-estar. Quando o homem reproduz em sua vida a incansável, perdoadora e sacrificial benevolência de Deus se faz semelhante a Deus, e portanto é perfeito, no sentido de que o Novo Testamento dá a esta palavra. Para dizê-lo de maneira ainda mais singela, o homem mais perfeito é aquele que mais se importa com os outros.

O ensino de toda a Bíblia é que somente alcançamos a plenitude de nossa humanidade quando nos assemelhamos a Deus. A única coisa que nos pode assemelhar a Deus é esse amor que jamais deixa de interessar-se pelos outros, façam eles o que fizeram. Alcançamos a plenitude de nossa humanidade, e ingressamos na perfeição cristã, quando aprendemos a perdoar como Deus perdoa e a amar como Deus ama.

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