Gênesis 3 — Análise Bíblica
Análise Bíblica
Gênesis 3
3:1-6 Uma falha na comunidade
Nesse estágio, um quarto personagem, a serpente, é
introduzido no relato. Diz-se que era mais sagaz que todos os animais
selváticos que o Senhor Deus tinha feito (3:1a), mas, no final,
é amaldiçoada “entre todos os animais domésticos [...] entre todos os
animais selváticos” (3:14a). O que importa não é a inteligência ou o charme de
uma pessoa, mas como ela os emprega. A serpente usou suas
habilidades para afastar de Deus a mulher e, por meio dela, o homem. Esse
padrão tem se repetido ao longo dos séculos, como vemos no uso perverso de
truques de toda espécie para desencaminhar os ingênuos. Homens perversos
seduzem moças a praticar atos imorais e pessoas
inescrupulosas compram objetos valiosos de indivíduos necessitados
ou ignorantes por uma ninharia.
A forma de serpente, assumida pelo diabo, não deve
ser interpretada como uma indicação de que todas as serpentes são
malignas. Uma vez que possui natureza espiritual (Mac 1:23; Lc 7:21), o
diabo simplesmente precisava assumir uma forma conhecida por suas presas
para alcançar seu objetivo. Assim, escolheu a forma de uma das criaturas
do jardim e, em vista dessa escolha, ele é chamado na Bíblia de
“antiga serpente” (Ap 12:9; 20:2). No entanto, l Pedro 5:8 também se refere
a ele como um leão que ruge. Devemos nos lembrar que Satanás sempre se aproxima
de nós sob algum tipo de disfarce (2Co 11:14). Não confiar
nas aparências é uma virtude bíblica (ISm 16:7).
O primeiro passo de Satanás foi interferir na
comunhão entre o homem e a mulher. Ele escolheu não falar com os dois
juntos, mas apenas com um deles, incentivando-o a agir de forma
independente do outro. Não sabemos por que ele escolheu a mulher como alvo
do ataque, mas é possível que tenha sido com a intenção de se aproveitar de
sua maior sensibilidade e receptividade, virtudes que podem
ser exploradas com fins malignos.
A pergunta da serpente foi simples e diplomática e,
ao que parece, feita em tom respeitoso: E assim que Deus disse: Não
comereis de toda árvore do jardim? (3:16). Mas o propósito por trás
dessas palavras era fazer a mulher duvidar da bondade de Deus. Estava
sugerindo a possibilidade de que Deus não havia sido justo ao impor essa
restrição. Satanás costuma usar essa tática para impedir o crescimento
espiritual. Quando Deus não responde a nossas orações da maneira como
gostaríamos, ou quando algo desagradável acontece conosco, Satanás usa a
situação para colocar dúvidas em nossa mente, levando-nos a questionar se o
Deus ao qual servimos é verdadeiramente bom e, portanto, se a palavra
do Senhor é confiável.
A mulher corrigiu a serpente quanto à questão de não
poder comer de “toda árvore" ao responder: Do fruto das árvores do
jardim podemos comer (3:2). No entanto, caiu em sua armadilha
ao acrescentar as palavras nem tocareis nele àquilo que Deus
havia dito sobre a árvore no meio do jardim (3:3; 2:17). Não
devemos acrescentar nada àquilo que Deus diz, pois isso equivale a tentar
ser mais sábio do que Deus. Antes, devemos relatar com exatidão
tudo aquilo que Deus disse.
0 diabo percebeu a disposição da mulher de
acrescentar àquilo que Deus havia dito e supôs que ela também poderia estar
preparada para aceitar que Deus talvez houvesse mentido. Assim, aumentou a
pressão e contradisse Deus, afirmando: E certo que não morrereis
(3:4). Então, sugeriu maliciosamente que Deus havia decretado a
proibição por saber que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os
olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal (3:5). Satanás
descreve um quadro idílico e sugere que Deus estava privando a mulher e o
homem de uma bênção maior do que aquelas de que já estavam desfrutando.
Essa abordagem é característica dos falsos mestres na igreja (2Pe 2:18-19).
O ataque da
serpente foi bem-sucedido e, em 3:6a a mulher cede ao que ljoão 2:16
chama de “concupiscência da came” (desejo de experimentar da árvore que
parecia boa para se comer), “concupiscência dos olhos” (sem
dúvida, era agradável aos olhos) e “soberba da vida” (o
desejo de adquirir entendimento e ser “como Deus”). Ao
aceitar a sugestão de Satanás, ela agiu de forma contrária à palavra do
Criador sem buscar a ajuda ou o conselho do marido. A iniciativa de tomar
uma decisão importante sozinha a levou a se envolver com o diabo (uma nova
comunidade) e, desse modo, abandonar o relacionamento com Deus
(sua comunidade primária) e se distanciar do relacionamento com o
marido (sua comunidade secundária). Ela não estava mais agindo de acordo
com a unidade que devia caracterizar seu relacionamento. Essa perspectiva
individualista a levou a abusar de sua liberdade e redundou em
pecado. Somente depois de ter comido o fruto, quando a situação
já era irreversível, ela procurou o marido e o convidou a fazer o
mesmo (3:66).
No entanto, o comportamento de Adão não foi muito
melhor. Ao que parece, ele estava com ela, mas permaneceu calado e passivo
durante todo o diálogo, pronto para ser simplesmente um seguidor. Não fez
nenhuma tentativa de deter a mulher, mas apenas ouviu-a e juntou-se a ela
no pecado. Colocou o relacionamento com a mulher antes
do relacionamento com Deus. Assim, o primeiro casal se uniu no pecado
e criou uma comunidade pecaminosa separada de Deus.
3:7-19 Uma nova realidade
0 homem e a mulher haviam caído na armadilha da
serpente e um não podia ajudar o outro. Quando abriram-se, então, os olhos
de ambos, viram-se impotentes (3:7a). Deus tinha legado
aos seres humanos a capacidade de adquirir conhecimento para obter sabedoria e
aprender mais sobre como manter e cultivar a terra. Infelizmente, sua
desobediência apenas lhes abriu os olhos para a possibilidade do mal.
Quando os dois perceberam que estavam nus, o
máximo que conseguiram fazer foi coser folhas de figueira para se
cobrirem (3:76). Quando tentamos ser mais sábios do que Deus,
fazendo aquilo que sabemos ser contrário à sua vontade, acabamos nos
mostrando tolos e impotentes. Sua tentativa de se cobrir também indica o
surgimento da vergonha, da qual se originou o embaraço pelo corpo que
Deus havia criado para eles. No relacionamento um com o outro, a
sinceridade foi substituída por vergonha, desconfiança, instabilidade e
superficialidade.
Apesar de ter sido a parte ofendida pela
desobediência do casal, o Deus bondoso e gracioso não os deixou desamparados.
Enquanto andava no jardim pela viração do dia, o homem e sua
esposa não buscaram sua companhia; em vez disso, esconderam-se da
presença do Senhor Deus [...] por entre as árvores do jardim
(3:8). Aquele que lhes havia conferido paz e harmonia se tomou alguém
de quem desejavam fugir.
Foi de Deus o primeiro passo para a salvação dos
pecadores: procurou o homem confundido pela vergonha e chamou: Onde estás?
(3:9). Essa pergunta não significa que Adão e Eva conseguiram se
esconder num lugar onde Deus não podia vê-los. Antes, mostra o desejo de
Deus de que eles saíssem de seu esconderijo. Deus faz o mesmo conosco
o tempo todo. Ele não tem prazer em nos expor e envergonhar; em vez disso,
ele nos dá a oportunidade de o encontrar para buscar sua misericórdia.
Adão reconheceu que estava se escondendo e apresentou
a razão: Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo
(3:10). Antes de desobedecerem a Deus, Adão e Eva estavam cobertos
pela justiça de Deus. Tendo perdido essa justiça, estavam expostos demais
para encarar a santidade de Deus.
A segunda pergunta de Deus fornece ao casal a ocasião
de refletir sobre aquilo que haviam feito: Quem te fez saber que estavas nu?
Comeste da árvore que te ordenei que não comesses? (3:11). A
pergunta tem o objetivo de levá-los a reconhecer o pecado.
Em vez de castigá-los brutalmente no momento em que
admitiram haver desobedecido, Deus demonstrou sua justiça ao interrogar o homem
e a mulher individualmente, com o objetivo de determinar a
responsabilidade de cada um e dar-lhes oportunidade de arrependimento (Ez
18:23,25-30). Não teve o trabalho de interrogar a serpente, pois, ao
que parece, não esperava nada diferente de Satanás, cuja desobediência já
existia antes da criação.
No entanto, as perguntas de Deus revelaram apenas que
nenhuma das partes estava disposta a aceitar que havia errado. Cada um
procurou jogar sua culpa no outro. Em vez de se referir à sua esposa como
“carne da minha carne” (2:23), Adão culpou-a na presença de Deus. Ela se
tomou a mulher que me deste por esposa (3:12). A mulher, por
sua vez, culpou a serpente (3:13). Ambos disseram a
verdade (Eva deu o fruto a Adão e a serpente enganou Eva), mas não
encararam a situação com honestidade. Fazemos o mesmo quando procuramos
outras pessoas a quem atribuir nossos erros. Os jovens culpam os pais por não
terem proporcionado um lar mais acolhedor, os pais culpam a sociedade em
geral pela decadência dos valores, e assim por diante. No entanto, para
viabilizar transformações verdadeiras, cada um de nós deve admitir onde falhou.
Deus responsabiliza cada indivíduo por seus próprios
erros e, portanto, julgou o homem e a mulher separadamente. Visava, com isso,
ajudá-los a entender a gravidade do pecado e ensiná-los a fugir do mal,
aproximando-se do Criador e praticando o bem. No entanto, o castigo não
deixou de considerar a misericórdia, pois Deus permitiu um vislumbre
da solução vindoura para a maldição decorrente do pecado.
O castigo de cada participante do pecado é
apresentado na mesma sequência em que a tentação ocorreu.
• A serpente recebe a maior maldição: maldita és entre todos os animais
domésticos e o és entre todos os animais selváticos (3:14a). Essa
maldição é dirigida, em parte, ao animal que o diabo usou, como mostra a
ordem para que, a partir de então, a serpente rasteje sobre o [seu]
ventre e coma pó todos os dias da [sua] vida
(3:146). Não podemos permitir ser usados por Satanás e permanecer
impunes. Se lhe dermos ouvidos, teremos parte no castigo reservado para
ele (2Co 11:14-15; Ap 12:7-9). A promessa de inimizade entre a
serpente e a mulher e sua descendência se
aplica, em parte, de forma literal às serpentes, pois são criaturas quase
universalmente temidas e detestadas (3:15). No entanto, a declaração
de que a descendência da mulher ferirá a cabeça da serpente,
enquanto esta ferirá o calcanhar de seu
descendente, aplica-se de modo muito mais específico a Satanás.
Ele será esmagado por Jesus Cristo, Salvador da humanidade e descendente
de mulher (cf. tb. Lc 10:19; Rm 16:20; Ap 12). Ao fazer essa promessa,
Deus anuncia o advento de sua nova comunidade e a libertação dos seres
humanos e do mundo do poder de Satanás.
• A mulher é castigada com dificuldades no parto e sujeição ao
marido (3:16). É importante fazer distinção entre “sujeição” e
“submissão”. O primeiro caso indica que ela é obrigada a se sujeitar à
liderança do marido como consequência da queda, revelando que
essa sujeição não fazia parte do plano original de Deus. O segundo
caso, pelo contrário, envolve uma disposição voluntária de ser liderada
pelo marido. É possível que a submissão seja baseada na criação (o homem
foi criado primeiro — lTm 2:13), mas Cristo eliminou a
sujeição forçosa das mulheres, e os cristãos não devem
impô-la novamente.
• O homem foi castigado com dificuldades no
trabalho. Plantas indesejadas brotariam nos campos e ele teria que
trabalhar arduamente a vida inteira para obter o alimento necessário para
seu sustento. Todos os esforços terminariam apenas em morte, quando seu
corpo voltaria ao pó do qual havia sido formado (3:17-19).
3:20-24 Consequências imediatas da queda Na descrição da queda, percebemos que a união
perfeita entre homem e mulher começa a se desintegrar à medida que
agem de forma independente, deixam de ser sinceros um com o outro e culpam
um ao outro. Em seguida, quando Deus enuncia sua sentença, lemos que Adão
deve exercer sua liderança sobre a esposa. Ao declarar a culpa de
Adão, Deus havia lhe dito “atendeste à voz de tua mulher e comeste”
(3:17). O verbo traduzido como “atender” significa, basicamente,
“obedecer”. Adão afirmou sua autoridade sobre a esposa exatamente como o Senhor
havia determinado que aconteceria (3:16). Encarregou-se de lhe dar um
nome, algo que normalmente é feito a um subordinado por uma pessoa de
hierarquia superior (3:20a).
Chamou-a Eva [...] por ser a mãe de
todos os seres humanos (3:206). Esse nome pode sugerir que, daquele
momento em diante, a esposa seria vista pelo marido sobretudo como a mãe de
seus filhos, em vez de sua companheira num relacionamento conjugal. A
união do casal sofreu mais um golpe que deixou sua marca em todas as
culturas do mundo: a valorização das mulheres como mães, mais
que como esposas.
No entanto, a ênfase sobre o papel de Eva como mãe
não foi inteiramente negativa, mas sinalizou esperança. Seus filhos
trariam a vitória sobre o Maligno, origem do mal que lhes sobreviera.
Ademais, esse nome denota dignidade. É um privilégio ser mãe de qualquer
pessoa, quanto mais de “todos os seres humanos”. Devemos observar que
Adão se dirige a ela com respeito. O princípio da submissão
das esposas (Ef 5:22; Cl 3:18; lPe 3:1) deve ser acompanhado da
asserção de sua dignidade. O NT deixa isso claro ao ordenar o marido a amar sua
esposa e ter consideração por ela (Ef 5:25; Cl 3:19; lPe 3:7). Em outras
palavras a esposa deve ser tratada da mesma forma como o marido
gostaria de ser tratado. Essa é uma lição extremamente
importante para muitos homens africanos, mesmo no século XXI.
Não podemos deixar de insistir nesse ponto até que todas as mulheres
sejam tratadas com a dignidade que merecem como mães de todos.
Na consequência seguinte da queda, Deus reconheceu a
vergonha que Adão e Eva sentiam devido à sua nudez e lhes providenciou vestimenta
de peles (3:21). Esse gesto mostra que o castigo de Deus não
exclui sua misericórdia, e que sua misericórdia não exclui o julgamento. É
significativo que, para confeccionar essa vestimenta, tenha
sido necessário derramar sangue. Trata-se de uma prefiguração do modo
escolhido por Deus para remover o pecado, que se cumpriu definitivamente
em Cristo cujo sangue foi derramado.
Por fim, Deus expulsou Adão e Eva do jardim do Éden.
O Deus Criador é um Deus amoroso e gracioso, mas também é um Deus santo e
justo. Eles cometeram uma transgressão grave e, até que fossem tratados pela
transformação interior realizada pela renovação do Espírito Santo, eles continuariam
a se envolver em mais e mais dificuldades por causa da persistência em
desobedecer a Deus.
A criação dos seres humanos envolveu uma deliberação
conjunta do Ser divino (“façamos o homem” — 1:26) e o mesmo acontece em
sua expulsão do jardim, pois disse o Senhor Deus: Eis que o homem se
tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal; assim, que não estenda
a mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente (3:22).
Deus havia criado tudo com perfeição e atribuído a cada coisa seu
devido lugar dentro da ordem criada. Animais e homens receberam seu lugar, e o
próprio Deus era o Criador acima de tudo e todos. Os seres humanos
haviam tentado subverter os desígnios divinos, e o resultado
havia sido o início de um processo de destruição.
A seriedade na expulsão do jardim fica evidente nas
providências que Deus tomou depois de retirar o casal de lá: colocou
querubins ao oriente do jardim do Éden e o refulgir de uma espada que se
revolvia, para guardar o caminho da árvore da vida (3:24). A
partir de então, o casal foi mantido afastado da árvore da vida, perdendo
também o acesso ao modelo que deveria tê-los ajudado a cuidar da terra.
Deixaram o jardim cedo demais, sem os plenos benefícios do treinamento que
os teria preparado para a vida no universo (3:22).