Gênesis 3 — Análise Bíblica

Análise Bíblica


Gênesis 3

3:1-24 A desobediência do primeiro casal
3:1-6 Uma falha na comunidade
Nesse estágio, um quarto personagem, a serpente, é introduzido no relato. Diz-se que era mais sagaz que todos os animais selváticos que o Senhor Deus tinha feito (3:1a), mas, no final, é amaldiçoada “entre todos os animais domésticos [...] entre todos os animais selváticos” (3:14a). O que importa não é a inteligência ou o charme de uma pessoa, mas como ela os emprega. A serpente usou suas habilidades para afastar de Deus a mulher e, por meio dela, o homem. Esse padrão tem se repetido ao longo dos séculos, como vemos no uso perverso de truques de toda espécie para desencaminhar os ingênuos. Homens perversos seduzem moças a praticar atos imorais e pessoas inescrupulosas compram objetos valiosos de indivíduos necessitados ou ignorantes por uma ninharia.
A forma de serpente, assumida pelo diabo, não deve ser interpretada como uma indicação de que todas as serpentes são malignas. Uma vez que possui natureza espiritual (Mac 1:23; Lc 7:21), o diabo simplesmente precisava assumir uma forma conhecida por suas presas para alcançar seu objetivo. Assim, escolheu a forma de uma das criaturas do jardim e, em vista dessa escolha, ele é chamado na Bíblia de “antiga serpente” (Ap 12:9; 20:2). No entanto, l Pedro 5:8 também se refere a ele como um leão que ruge. Devemos nos lembrar que Satanás sempre se aproxima de nós sob algum tipo de disfarce (2Co 11:14). Não confiar nas aparências é uma virtude bíblica (ISm 16:7).
O primeiro passo de Satanás foi interferir na comunhão entre o homem e a mulher. Ele escolheu não falar com os dois juntos, mas apenas com um deles, incentivando-o a agir de forma independente do outro. Não sabemos por que ele escolheu a mulher como alvo do ataque, mas é possível que tenha sido com a intenção de se aproveitar de sua maior sensibilidade e receptividade, virtudes que podem ser exploradas com fins malignos.
A pergunta da serpente foi simples e diplomática e, ao que parece, feita em tom respeitoso: E assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim? (3:16). Mas o propósito por trás dessas palavras era fazer a mulher duvidar da bondade de Deus. Estava sugerindo a possibilidade de que Deus não havia sido justo ao impor essa restrição. Satanás costuma usar essa tática para impedir o crescimento espiritual. Quando Deus não responde a nossas orações da maneira como gostaríamos, ou quando algo desagradável acontece conosco, Satanás usa a situação para colocar dúvidas em nossa mente, levando-nos a questionar se o Deus ao qual servimos é verdadeiramente bom e, portanto, se a palavra do Senhor é confiável.
A mulher corrigiu a serpente quanto à questão de não poder comer de “toda árvore" ao responder: Do fruto das árvores do jardim podemos comer (3:2). No entanto, caiu em sua armadilha ao acrescentar as palavras nem tocareis nele àquilo que Deus havia dito sobre a árvore no meio do jardim (3:3; 2:17). Não devemos acrescentar nada àquilo que Deus diz, pois isso equivale a tentar ser mais sábio do que Deus. Antes, devemos relatar com exatidão tudo aquilo que Deus disse.
0 diabo percebeu a disposição da mulher de acrescentar àquilo que Deus havia dito e supôs que ela também poderia estar preparada para aceitar que Deus talvez houvesse mentido. Assim, aumentou a pressão e contradisse Deus, afirmando: E certo que não morrereis (3:4). Então, sugeriu maliciosamente que Deus havia decretado a proibição por saber que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal (3:5). Satanás descreve um quadro idílico e sugere que Deus estava privando a mulher e o homem de uma bênção maior do que aquelas de que já estavam desfrutando. Essa abordagem é característica dos falsos mestres na igreja (2Pe 2:18-19).
O ataque da serpente foi bem-sucedido e, em 3:6a a mulher cede ao que ljoão 2:16 chama de “concupiscência da came” (desejo de experimentar da árvore que parecia boa para se comer), “concupiscência dos olhos” (sem dúvida, era agradável aos olhos) e “soberba da vida” (o desejo de adquirir entendimento e ser “como Deus”). Ao aceitar a sugestão de Satanás, ela agiu de forma contrária à palavra do Criador sem buscar a ajuda ou o conselho do marido. A iniciativa de tomar uma decisão importante sozinha a levou a se envolver com o diabo (uma nova comunidade) e, desse modo, abandonar o relacionamento com Deus (sua comunidade primária) e se distanciar do relacionamento com o marido (sua comunidade secundária). Ela não estava mais agindo de acordo com a unidade que devia caracterizar seu relacionamento. Essa perspectiva individualista a levou a abusar de sua liberdade e redundou em pecado. Somente depois de ter comido o fruto, quando a situação já era irreversível, ela procurou o marido e o convidou a fazer o mesmo (3:66).
No entanto, o comportamento de Adão não foi muito melhor. Ao que parece, ele estava com ela, mas permaneceu calado e passivo durante todo o diálogo, pronto para ser simplesmente um seguidor. Não fez nenhuma tentativa de deter a mulher, mas apenas ouviu-a e juntou-se a ela no pecado. Colocou o relacionamento com a mulher antes do relacionamento com Deus. Assim, o primeiro casal se uniu no pecado e criou uma comunidade pecaminosa separada de Deus.
3:7-19 Uma nova realidade
0 homem e a mulher haviam caído na armadilha da serpente e um não podia ajudar o outro. Quando abriram-se, então, os olhos de ambos, viram-se impotentes (3:7a). Deus tinha legado aos seres humanos a capacidade de adquirir conhecimento para obter sabedoria e aprender mais sobre como manter e cultivar a terra. Infelizmente, sua desobediência apenas lhes abriu os olhos para a possibilidade do mal.
Quando os dois perceberam que estavam nus, o máximo que conseguiram fazer foi coser folhas de figueira para se cobrirem (3:76). Quando tentamos ser mais sábios do que Deus, fazendo aquilo que sabemos ser contrário à sua vontade, acabamos nos mostrando tolos e impotentes. Sua tentativa de se cobrir também indica o surgimento da vergonha, da qual se originou o embaraço pelo corpo que Deus havia criado para eles. No relacionamento um com o outro, a sinceridade foi substituída por vergonha, desconfiança, instabilidade e superficialidade.
Apesar de ter sido a parte ofendida pela desobediência do casal, o Deus bondoso e gracioso não os deixou desamparados. Enquanto andava no jardim pela viração do dia, o homem e sua esposa não buscaram sua companhia; em vez disso, esconderam-se da presença do Senhor Deus [...] por entre as árvores do jardim (3:8). Aquele que lhes havia conferido paz e harmonia se tomou alguém de quem desejavam fugir.
Foi de Deus o primeiro passo para a salvação dos pecadores: procurou o homem confundido pela vergonha e chamou: Onde estás? (3:9). Essa pergunta não significa que Adão e Eva conseguiram se esconder num lugar onde Deus não podia vê-los. Antes, mostra o desejo de Deus de que eles saíssem de seu esconderijo. Deus faz o mesmo conosco o tempo todo. Ele não tem prazer em nos expor e envergonhar; em vez disso, ele nos dá a oportunidade de o encontrar para buscar sua misericórdia.
Adão reconheceu que estava se escondendo e apresentou a razão: Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo (3:10). Antes de desobedecerem a Deus, Adão e Eva estavam cobertos pela justiça de Deus. Tendo perdido essa justiça, estavam expostos demais para encarar a santidade de Deus.
A segunda pergunta de Deus fornece ao casal a ocasião de refletir sobre aquilo que haviam feito: Quem te fez saber que estavas nu? Comeste da árvore que te ordenei que não comesses? (3:11). A pergunta tem o objetivo de levá-los a reconhecer o pecado.
Em vez de castigá-los brutalmente no momento em que admitiram haver desobedecido, Deus demonstrou sua justiça ao interrogar o homem e a mulher individualmente, com o objetivo de determinar a responsabilidade de cada um e dar-lhes oportunidade de arrependimento (Ez 18:23,25-30). Não teve o trabalho de interrogar a serpente, pois, ao que parece, não esperava nada diferente de Satanás, cuja desobediência já existia antes da criação.
No entanto, as perguntas de Deus revelaram apenas que nenhuma das partes estava disposta a aceitar que havia errado. Cada um procurou jogar sua culpa no outro. Em vez de se referir à sua esposa como “carne da minha carne” (2:23), Adão culpou-a na presença de Deus. Ela se tomou a mulher que me deste por esposa (3:12). A mulher, por sua vez, culpou a serpente (3:13). Ambos disseram a verdade (Eva deu o fruto a Adão e a serpente enganou Eva), mas não encararam a situação com honestidade. Fazemos o mesmo quando procuramos outras pessoas a quem atribuir nossos erros. Os jovens culpam os pais por não terem proporcionado um lar mais acolhedor, os pais culpam a sociedade em geral pela decadência dos valores, e assim por diante. No entanto, para viabilizar transformações verdadeiras, cada um de nós deve admitir onde falhou.
Deus responsabiliza cada indivíduo por seus próprios erros e, portanto, julgou o homem e a mulher separadamente. Visava, com isso, ajudá-los a entender a gravidade do pecado e ensiná-los a fugir do mal, aproximando-se do Criador e praticando o bem. No entanto, o castigo não deixou de considerar a misericórdia, pois Deus permitiu um vislumbre da solução vindoura para a maldição decorrente do pecado.
O castigo de cada participante do pecado é apresentado na mesma sequência em que a tentação ocorreu.
• A serpente recebe a maior maldição: maldita és entre todos os animais domésticos e o és entre todos os animais selváticos (3:14a). Essa maldição é dirigida, em parte, ao animal que o diabo usou, como mostra a ordem para que, a partir de então, a serpente rasteje sobre o [seu] ventre e coma pó todos os dias da [sua] vida (3:146). Não podemos permitir ser usados por Satanás e permanecer impunes. Se lhe dermos ouvidos, teremos parte no castigo reservado para ele (2Co 11:14-15; Ap 12:7-9). A promessa de inimizade entre a serpente e a mulher e sua descendência se aplica, em parte, de forma literal às serpentes, pois são criaturas quase universalmente temidas e detestadas (3:15). No entanto, a declaração de que a descendência da mulher ferirá a cabeça da serpente, enquanto esta ferirá o calcanhar de seu descendente, aplica-se de modo muito mais específico a Satanás. Ele será esmagado por Jesus Cristo, Salvador da humanidade e descendente de mulher (cf. tb. Lc 10:19; Rm 16:20; Ap 12). Ao fazer essa promessa, Deus anuncia o advento de sua nova comunidade e a libertação dos seres humanos e do mundo do poder de Satanás.
• A mulher é castigada com dificuldades no parto e sujeição ao marido (3:16). É importante fazer distinção entre “sujeição” e “submissão”. O primeiro caso indica que ela é obrigada a se sujeitar à liderança do marido como consequência da queda, revelando que essa sujeição não fazia parte do plano original de Deus. O segundo caso, pelo contrário, envolve uma disposição voluntária de ser liderada pelo marido. É possível que a submissão seja baseada na criação (o homem foi criado primeiro — lTm 2:13), mas Cristo eliminou a sujeição forçosa das mulheres, e os cristãos não devem impô-la novamente.
• O homem foi castigado com dificuldades no trabalho. Plantas indesejadas brotariam nos campos e ele teria que trabalhar arduamente a vida inteira para obter o alimento necessário para seu sustento. Todos os esforços terminariam apenas em morte, quando seu corpo voltaria ao pó do qual havia sido formado (3:17-19).
3:20-24 Consequências imediatas da queda Na descrição da queda, percebemos que a união perfeita entre homem e mulher começa a se desintegrar à medida que agem de forma independente, deixam de ser sinceros um com o outro e culpam um ao outro. Em seguida, quando Deus enuncia sua sentença, lemos que Adão deve exercer sua liderança sobre a esposa. Ao declarar a culpa de Adão, Deus havia lhe dito “atendeste à voz de tua mulher e comeste” (3:17). O verbo traduzido como “atender” significa, basicamente, “obedecer”. Adão afirmou sua autoridade sobre a esposa exatamente como o Senhor havia determinado que aconteceria (3:16). Encarregou-se de lhe dar um nome, algo que normalmente é feito a um subordinado por uma pessoa de hierarquia superior (3:20a).
Chamou-a Eva [...] por ser a mãe de todos os seres humanos (3:206). Esse nome pode sugerir que, daquele momento em diante, a esposa seria vista pelo marido sobretudo como a mãe de seus filhos, em vez de sua companheira num relacionamento conjugal. A união do casal sofreu mais um golpe que deixou sua marca em todas as culturas do mundo: a valorização das mulheres como mães, mais que como esposas.
No entanto, a ênfase sobre o papel de Eva como mãe não foi inteiramente negativa, mas sinalizou esperança. Seus filhos trariam a vitória sobre o Maligno, origem do mal que lhes sobreviera. Ademais, esse nome denota dignidade. É um privilégio ser mãe de qualquer pessoa, quanto mais de “todos os seres humanos”. Devemos observar que Adão se dirige a ela com respeito. O princípio da submissão das esposas (Ef 5:22; Cl 3:18; lPe 3:1) deve ser acompanhado da asserção de sua dignidade. O NT deixa isso claro ao ordenar o marido a amar sua esposa e ter consideração por ela (Ef 5:25; Cl 3:19; lPe 3:7). Em outras palavras a esposa deve ser tratada da mesma forma como o marido gostaria de ser tratado. Essa é uma lição extremamente importante para muitos homens africanos, mesmo no século XXI. Não podemos deixar de insistir nesse ponto até que todas as mulheres sejam tratadas com a dignidade que merecem como mães de todos.
Na consequência seguinte da queda, Deus reconheceu a vergonha que Adão e Eva sentiam devido à sua nudez e lhes providenciou vestimenta de peles (3:21). Esse gesto mostra que o castigo de Deus não exclui sua misericórdia, e que sua misericórdia não exclui o julgamento. É significativo que, para confeccionar essa vestimenta, tenha sido necessário derramar sangue. Trata-se de uma prefiguração do modo escolhido por Deus para remover o pecado, que se cumpriu definitivamente em Cristo cujo sangue foi derramado.
Por fim, Deus expulsou Adão e Eva do jardim do Éden. O Deus Criador é um Deus amoroso e gracioso, mas também é um Deus santo e justo. Eles cometeram uma transgressão grave e, até que fossem tratados pela transformação interior realizada pela renovação do Espírito Santo, eles continuariam a se envolver em mais e mais dificuldades por causa da persistência em desobedecer a Deus.
A criação dos seres humanos envolveu uma deliberação conjunta do Ser divino (“façamos o homem” — 1:26) e o mesmo acontece em sua expulsão do jardim, pois disse o Senhor Deus: Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal; assim, que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente (3:22). Deus havia criado tudo com perfeição e atribuído a cada coisa seu devido lugar dentro da ordem criada. Animais e homens receberam seu lugar, e o próprio Deus era o Criador acima de tudo e todos. Os seres humanos haviam tentado subverter os desígnios divinos, e o resultado havia sido o início de um processo de destruição.
A seriedade na expulsão do jardim fica evidente nas providências que Deus tomou depois de retirar o casal de lá: colocou querubins ao oriente do jardim do Éden e o refulgir de uma espada que se revolvia, para guardar o caminho da árvore da vida (3:24). A partir de então, o casal foi mantido afastado da árvore da vida, perdendo também o acesso ao modelo que deveria tê-los ajudado a cuidar da terra. Deixaram o jardim cedo demais, sem os plenos benefícios do treinamento que os teria preparado para a vida no universo (3:22).