Gênesis 3 — Estudo Devocional

Gênesis 3 — Estudo Devocional

Gênesis 3 — Estudo Devocional



Gênesis 3

3.1 A cobra era o animal mais esperto. A serpente, no Antigo Oriente, era considerada símbolo de astúcia e conhecimento. Ela age com Eva de forma astuta, enganosa e convincente. No original, há uma conjunção no início deste verso (que pode ser traduzida por “mas” ou “e”); além disso, a palavra para “esperto” tem a mesma raiz da palavra “nus” (2.25), portanto, há uma forte relação com o verso anterior. Provavelmente isso indica que, em vez da total transparência e nudez inocente de Adão e Eva, a serpente escondia segundas intenções — o diabo estava “escondido” na serpente (Ap 12.9), que, portanto, apresentava-se de modo diferente de Adão e Eva e também diferente de Deus (que é luz, sem nada escondido; veja 1Jo 1.5, nota). Ela perguntou à mulher. O original sugere que a pergunta foi feita como um comentário casual, e aí já estaria a esperteza da cobra, pegando Eva desprevenida, inocente. É verdade que Deus mandou…? Como vimos em 1.29, é na determinação do alimento que Deus se mostra na primeira pessoa. É essa relacionalidade que é posta em dúvida aqui, e não apenas o tipo de comida. A tentação foi de colocar a ligação entre Deus e os humanos em suspeita, retirando a confiança (fé) nessa relação que se construiu tal como uma relação entre pai e filhos. Seu propósito é romper a convivência e a comunhão íntima de homem e mulher com o seu Criador. Para enganar, a serpente acusa Deus daquilo que, na verdade, ela é: mentirosa, enciumada e cheia de inveja, querendo ser como Deus. Ou seja, a serpente está tentando destruir os fundamentos da relação que construiu e constituiu os humanos: a fé na bondade de Deus (veja Hb 11.6, nota, e o quadro “O diabo e as palavras”). Lamentavelmente, Eva crê na serpente, e não no Criador. de nenhuma árvore do jardim? O acréscimo e a distorção da palavra de Deus pela serpente, o enganador, visa desconstruir o que foi dito por Deus, incentivando um desejo irreal nos humanos, de que poderiam ser como Deus. Esta tentação de onipotência sempre nos é apresentada de modo sutil, cegando-nos sobre nossos descaminhos, que nos parecem atrativos e justificáveis quando, na verdade, são meras fantasias. Desconhecer os próprios limites acarretará prejuízos de toda ordem a si mesmo e a outras pessoas. Na imaginação e no pensamento infantil, com o cérebro e as funções cognitivas ainda arcaicas, vivenciamos como real o que, a partir da adolescência e com maturidade psíquica, saberemos que é fantasioso. A consciência do real, a maturidade psíquica e a sabedoria espiritual se dão conta dos limites concretos e históricos que demarcam nossa existência.

3.2-3 não devemos comer dessa fruta, nem tocar nela. A mulher também acrescenta uma sentença à proibição: “nem tocar”. Ela deve estar se sentindo ameaçada pela conversa com a serpente. Quando sentimos angústia, quando nos sentimos tentados, tendemos a aumentar as proibições de Deus para tentar nos proteger de nós mesmos. Isso, por vezes, é uma armadilha, como neste caso. Pois, desfazendo um dos verbos, a serpente também desfaz o mandamento legítimo.

3.4 Vocês não morrerão coisa nenhuma! Primeiro a serpente minimiza as consequências — é um jeito ardiloso de tentar, dizendo: “Não é bem assim…” Ouvindo isso, os humanos abrem uma fresta na porta, que levará à transgressão. Veja o quadro “O diabo e as palavras”.

3.5 Deus disse isso porque sabe que… os seus olhos se abrirão. A fresta fica maior quando é posta em dúvida a intenção de Deus, que nas palavras da serpente é deturpada: de algo protetor se transforma em privação. A criação como imagem e semelhança, que nos protegia de ser igual a Deus, agora quer ser riscada para que sejamos realmente como Deus. Esta é a tentação primeira: querer ser Deus, querer ter a mesma liberdade que ele, querer ver como ele. O ser humano sempre quer mais, saber mais — isso em si é uma dádiva, mas também é o ponto fraco do humano, por onde a serpente o tenta.

3.6 A mulher viu que a árvore era bonita e que as suas frutas eram boas de se comer. Há três fatores que levaram a mulher a desobedecer a Deus: o desejo dos olhos (“a árvore era bonita”, v. 6), o desejo da carne (“seus frutos eram bons para comer”, v. 6) e a soberba da vida (querer ter entendimento e “ser como Deus”, vs. 5-6); estas três tentações continuam imperando em nossa sociedade (veja também 1Jo 2.16, nota). A primeira tentação é estética e gastronômica: nossos olhos e nosso paladar são os primeiros sentidos a ser tentados. Eles fazem com que se esqueça (ou desacredite) o que foi ouvido de Deus e registrado na memória (“não comerás”). Qual dos sentidos prevalecerá? E ela pensou como seria bom ter entendimento. Agora é a razão que esquece o que foi ouvido e a convence de que vale a pena seguir seu próprio entendimento. Os olhos, a boca e a razão conspiram para Eva ignorar a palavra de Deus. Antes de julgá-la, vale a pena olhar para nós mesmos e perceber como acontece em nós esse mesmo processo. Aí apanhou uma fruta e comeu. Do olho à boca, da boca à razão, da razão à mão. Querer agarrar o que se vê é o que notamos até nos bebês, que põem seus dedinhos onde não deveriam. e deu ao seu marido, e ele também comeu. Se fazemos algo errado, só nos acalmamos quando outros também fazem o mesmo. Esse é um dos motivos para as transgressões em grupo serem mais fortes do que em indivíduos.

3.7 os olhos dos dois se abriram. O resultado foi desastroso. Os rabis já consideravam que conhecer o bem e o mal não é um progresso, mas um regresso, um abandono de uma intuição global do que é a realidade, em estado de inocência. O pecado produziu uma “cegueira de olhos abertos”, como um fosso que vai se alargando, separando tudo e todos. Adão e Eva passaram a ver as coisas “incluindo o pecado”, como nós vemos até hoje. A contrapartida é que deixaram de ver a realidade como Deus a vê e a criou, sem pecado e sem condenação (isso ficará mais evidente com a expulsão do Éden, ao final do dia). Foi praticamente uma mudança de mundo (ou de “universo paralelo”): até aqui Adão e Eva estavam numa espécie de “reino de Deus”, com comunhão e comunicação plena com o Criador e com todas as criaturas, em paz e harmonia; depois da livre escolha de não crer em Deus e “fazer seu próprio mundo” (na verdade, seguir a tentação), eles caíram em um “reino humano”, com pecado, morte, domínio do tentador e a condenação de Deus. Ainda assim esse novo reino não é somente mau: trata-se realmente de uma mistura de bem e de mal; portanto, nunca haverá a perfeição. Este será um enorme teste de verdade para o amor de Deus. Percebemos mais dessa ruptura na explicação de Jesus a seus discípulos sobre estes dois reinos, nos últimos capítulos de João, onde ele opõe “mundo” e “Pai” (veja Jo 13.1; 14.19, notas, e especialmente 16.28: “Eu vim do Pai e entrei no mundo. E agora deixo o mundo e vou para o Pai”). perceberam que estavam nus. Algo mudou no olhar humano. Agora a nudez incomoda, e o olhar já não é puro. Até a palavra do original hebraico para nudez, mesmo conservando a raiz, é modificada. Esta foi a primeira consequência percebida, do conhecimento para além do que Deus havia pensado para eles; trata-se, então, do despertar da consciência sobre o mal cometido, sobre o não confiar em Deus. Nosso sensor espiritual, a consciência, tem até hoje fundamental importância para nossa saúde psíquica, nos confrontando com a verdade, desmascarando mentiras e nos convocando para o arrependimento. Este primeiro registro de tomada de consciência lança luz sobre os jogos psicológicos, os mecanismos de defesa e o território do inconsciente, que constituem a subjetividade humana. Paulo dirá que “todos pecaram”, ou seja, a humanidade coletivamente considerada se encontra na mesma condição do primeiro casal (Rm 5.12). Então costuraram umas folhas de figueira. A primeira roupa foi consequência do primeiro pecado. A falta cometida trouxe o sentimento de estranhamento e vergonha. A ruptura trazida pelo pecado induz a uma costura, na tentativa de cobrir, de modo concreto, com folhas trançadas como tanga, a marca da intimidade sexual. Além de ser uma cobertura física, funcionará também como cobertura protetora psíquica. Consequentemente, no decorrer do desenvolvimento da criança humana, surgirá o senso de pudor, que agora é necessário para defesa contra o abuso sexual e para resguardo da intimidade pessoal. O senso de identidade de cada pessoa tem uma dimensão externa, corpórea, e uma dimensão interior, subjetiva, afetiva e espiritual. O tema da nudez corporal reaparecerá na Bíblia em muitos outros contextos, indicando caminhos de uma sexualidade sadia e de respeito ao próximo, nos ajudando a nos guardar das armadilhas das perversões, da pornografia e da prostituição. Veja também 3.21, nota, e os quadros “A beleza da sexualidade” (Ef 5), “Sabedoria na sexualidade” (1Ts 4), “Sexualidade no aconselhamento pastoral e na psicoterapia” (1Tm 5), e “Fidelidade, prostituição, sofrimento e gozo” (Ap 17).

3.7-24 Nesse momento. O aviso de Deus tinha sido de que o ser humano morreria no dia em que comesse o fruto proibido (2.17). Em vez de relativizar a morte (“morte espiritual”, rezam alguns comentários) ou de ficar aguardando os corpos tombarem, somos convidados a observar uma descrição detalhada, passo a passo, de agora até o final do veredicto de Deus (v. 24), do que constitui a vida, a morte e o pecado que a causou. Assim como Jesus ensinou que “a vida é mais que o alimento e o corpo, mais do que as vestes” (Mt 6.25), também a morte é bem mais do que a falência do corpo (embora certamente a inclua).

3.8 quando soprava o vento suave da tarde. Isto sugere que, no Paraíso, o encontro com Deus costumava acontecer no final do dia (lembrando, porém, que na tradição hebraica o dia inicia no pôr do sol). É provável que nosso medo de errar tenha, ao longo dos séculos, tentado trazer esse encontro para as primeiras horas da manhã. Mas, com a nova aliança em Cristo resolvendo o problema do pecado, podemos voltar à paz com Deus, e assim ser capazes de agir sem tanto medo, e novamente meditar com Deus após nossos trabalhos, aprendendo ao longo do processo da vida com nosso amoroso Pai. O horário do encontro com Deus não é o mais importante, e sim, o encontro em si. Veja também os quadros “Velha aliança e nova aliança” (Jo 1), “Ressurreição, santidade e coragem” (At 3)e “A neurose do medo de Deus” (Lc 19). ouviram a voz do Senhor Deus. Se os outros sentidos foram usados para nos afastar de Deus (v. 6, nota), o ouvido continua sintonizado com a presença dele. Então se esconderam dele, no meio das árvores. Só que, agora, com o conhecimento do bem e do mal, entra a culpa e, com isso, o se esconder. Ao ouvirem a voz de Deus, lhes sobreveio o temor. O pecado mudou a relação com Deus — que antes era de abertura e diálogo, e agora passa a ser de temor. A culpa nos afasta, tanto de Deus quanto dos nossos semelhantes (como nas acusações mútuas dos vs. 12-13). Por isso a vinda de Jesus se torna tão importante, para mostrar “em carne e osso” que Deus continua a querer nos visitar e conversar conosco!

3.9 Onde é que você está? Separado do olhar de Deus pelo pecado, o humano é interpelado por Deus. Alguns estudiosos comentam que a pergunta “Onde você está?” é a pergunta básica de Deus para nós, a qual ele continua nos apresentando. Respondê-la com um “Estou aqui, Senhor” ou “Fala, Senhor, pois o teu servo está escutando” tem sido a opção daqueles que querem voltar a ter comunhão com ele (1Sm 3.9). Há aqui provavelmente uma semelhança com a afirmação de Jesus, de que “Deus procura pessoas que o adorem em espírito e em verdade” (Jo 4.23).


3.10 ouvi a tua voz… e fiquei com medo porque estava nu. Agora os humanos conhecem de outra forma — é isso que significa conhecer o bem e o mal. Já não é um conhecimento aberto, mas um conhecimento que introduz o temor. O pecado é a causa do medo de Deus, que tanto sofrimento provoca nas pessoas até hoje. Agora o humano, além de ser “imagem de Deus”, também “conhece como Deus”, com reflexos importantes. Se “ser imagem” traduz a relação com Deus antes da queda e nos aproxima de Deus, da relacionalidade e da harmonia com ele, o “conhecer como Deus” insere um elemento de ruptura na relação, e as consequências disso ficarão visíveis aos poucos na narrativa. O texto não diz nada sobre o que aconteceu com a imagem e a semelhança, e cabe a nós respeitar esse silêncio e aguardar. Veja o quadro “A neurose do medo de Deus” (Lc 19).

3.11 você comeu a fruta… que eu o proibi…? Deus continua se relacionando aberta e verdadeiramente, e a verdade sobre o ser humano não tem como não aparecer.

3.12 A mulher que me deste. Aqui aparece mais uma consequência do novo tipo de conhecimento: a necessidade de culpar outro pelo que se faz. O homem fez isso em relação a Deus e em relação à mulher. O novo modo de conhecer produz estranhamento nos relacionamentos, algo que se inicia ali e continua até os dias de hoje!

3.13 Por que você fez isso? As perguntas de Deus não são ignorância sua, mas uma chance para que a mulher pense naquilo que fez e assuma o que fez. Isso lembra as perguntas de Jesus com o mesmo sentido (veja o quadro “Jesus e a arte de responder perguntas”, Lc 20). A cobra me enganou, e eu comi. A mulher procede da mesma forma que o homem: quer achar um culpado, e não se responsabilizar por olhar o fruto, agarrá-lo e comê-lo. A projeção sobre o outro talvez seja a forma mais comum e mais “perdida” de lidar com as culpas — é também um tema muito importante para o aconselhamento. A confissão é o antídoto contra a projeção, pois significa dizer: “Fui eu que fiz”.

3.14 só você receberá esta maldição. “Maldição” é uma palavra forte, o contrário de bênção; significa uma situação que proíbe a vinda de ajudas celestes, e todo alimento consumido pela cobra estará coberto do pó da terra.

3.15 que você e a mulher sejam inimigas. A inimizade entre os humanos e os animais se inicia aqui, como mais uma das consequências do pecado: a luta contínua. Por um lado, contra a cobra como animal — assim, restaurar a relação com os animais sempre tem algo de redentor: no relato profético de Isaías sobre o reino do Messias, as serpentes deixarão de ser ameaça (Is.11.8)! Por outro lado, a inimizade é contra as tentações de Satanás (que a cobra apresentou a Eva), anunciando a longa luta da humanidade entre tendências opostas: o que nos afasta de Deus, nossas tendências tenebrosamente destrutivas, e o que nos aproxima dele; assim, temos de encarar os desafios espirituais e os dilemas morais e éticos que surgirão em todo o tempo da vida (veja 4.7, nota). Na psicanálise, fala-se das pulsões de morte, sempre ameaçando e adoecendo a existência de indivíduos e do coletivo. A favor da vida e da saúde temos os instintos de vida. O cultivo de uma vida espiritual centrada em Deus é um importante auxílio de cura de nossos instintos e nos integra psiquicamente, reforçando o desejo de vida. No Novo Testamento, esse conflito ganha nova dimensão após a salvação trazida pela morte de Jesus Cristo; então, a Bíblia falará em termos de oposição entre carne e Espírito (Gl 5). Veja também o quadro “Biologia da ressurreição e busca da morte”, Jo 12. Esta esmagará a sua cabeça. Entre as consequências da queda aparece também a primeira promessa de um redentor para resgatar a humanidade e vencer a serpente. Na tradição judaico-cristã, esta é uma referência ao Messias prometido, filho de mulher, que obterá a vitória final sobre as forças malignas, juntamente com a indicação de sua morte (picará o calcanhar). Inicia-se aqui uma espécie de padrão: o ser humano traz a morte e o pecado para a sua existência; Deus leva isso em conta e, com o seu amor, traz outra iniciativa de vida e salvação, incluindo as consequências do pecado. Daqui para frente — tal como em outros momentos de juízo, como em Berseba (Nm 14), onde o povo de Deus não creu que entraria em Canaã —, a ação de Deus proverá uma longa caminhada necessária até chegar ao seu objetivo de restauração da vida. As condições agora serão outras, incluindo a terrível realidade do pecado e da morte, mas ainda assim se pode perceber o amor de Deus em ação (veja o quadro “Os pecados e a salvação em Jesus”, Jo 3).

3.16 com muita dor você dará à luz filhos. A bênção dos filhos será acompanhada de dores (dores que se prolongam pela vida das mães, porque os filhos também pecarão e causarão outros tipos de dores). Ao mesmo tempo, estas dores do parto foram utilizadas por Jesus para ensinar a diferença entre os sofrimentos atuais do povo de Deus e a alegria da nova vida com ele, servindo como padrão para a esperança cristã (veja Jo 16.20-22, notas, e os quadros “Trabalho de parto” e “A esperança”, Ef 1). você terá desejo de estar com o seu marido. Apesar dos incômodos da gestação e das dores que acompanham o parto, as mulheres continuam capazes de desejo sexual e de gerar filhos. A mulher não apenas será dominada pelo homem, no sentido patriarcal do termo, mas a busca pelo homem dominará seu anseio, ocupando muitas vezes um lugar que seria da busca da relação com Deus. Ao fazer do homem seu objeto de desejo, sobrecarrega a relação com ele, exigindo que seja o que antes Deus era: seu alvo de vida. Como os humanos quiseram ser deuses (v. 5), agora conseguem se colocar como divindades um para o outro, o que acarreta uma relação de domínio e de frustração. Uma pessoa finita será objeto de desejos infinitos, iniciando um círculo de frustração mútua e “desrelação” (veja o quadro “Jesus e a necessidade da mulher”, Jo 4). ele a dominará. Esta é a explicação bíblica de por que a cultura humana se tornou machista. O domínio do homem sobre a mulher é descrito — não ordenado — aqui. Além disso, o corpo feminino é fisicamente mais fraco do que o masculino; quando grávidas e enquanto amamentam e cuidam de crianças, as mulheres estão ainda mais vulneráveis e sujeitas aos seus maridos. Aquelas que sofrem abuso, ou adoecem, ou enfraquecem em gestações, podem desenvolver defesas para evitar contato sexual, ou manter relações protegidas contra a gravidez. Assim, o pecado afetou a relação entre homens e mulheres, de um modo geral, e entre maridos e esposas, em particular. Uma triste consequência é a exploração sexual e emocional de mulheres, bem como a sua desvalorização social. Mas Deus novamente se coloca ao lado do mais fraco e injustiçado. Ele não ouvirá orações de maridos que forçam fisicamente suas esposas (veja 1Pe 3.7, nota). Qualquer atitude e medida que desfavoreça, inferiorize ou desonre a mulher contraria o desejo permanente de Deus, que fez homem e mulher como parceiros complementares e solidários, e em Cristo restaura essa igualdade (Gn 2.20-24; Gl 3.26-28; Ef 5.21-25).

3.17-18 a terra será maldita. O pecado — uma tragédia desencadeada pelos humanos — afetou, além da convivência humana, também a relação com os animais e a natureza (Rm 8). Apesar da fertilidade e da abundância natural, a terra ou o solo (adamá), porque inseparavelmente conectado ao ser humano (adam), agora também sofrerá da mistura de bem e mal (v. 18) e requererá trabalho deliberado, contínuo e inteligente para entregar seus frutos. A produção de alimentos requer planejamento, investimento técnico, conhecimento dos ciclos da natureza, cuidado com animais (que o disputarão), logística de estocagem, transporte e outras providências. Ao longo de todos os séculos, milhares de guerras foram travadas devido a questões relativas à posse de terras férteis. Surgiram novas perspectivas com o emprego maciço de máquinas na agricultura intensiva, a biotecnologia, o agronegócio e o aumento do comércio internacional. Porém, mesmo com a superprodução de alimentos, continua o dramático quadro da fome para parte da população mundial, enquanto outras tantas pessoas adoecem devido ao excesso de comida. terá de trabalhar duramente. O trabalho com suor (v. 19) indica uma condição de vida difícil, e também aponta para um desvio no alvo de vida: o homem tenderá a buscar sua identidade no trabalho, no suor do rosto, afastando-se, assim, da sua identidade em Deus, e também da relação com a sua companheira. O trabalho, o status e a atividade passam a ocupar o lugar da relação com Deus e com o próximo. Originalmente, o trabalho parte do prazer de participar da obra de Deus (2.15,19, notas); no entanto, agora ele se mistura com o sofrimento. O ser humano segue um ritmo frenético, ocupando seu tempo com todo tipo de atividades. Seus pensamentos e sentimentos se confundem e se entrelaçam, congestionando os espaços que seriam para observar, admirar e proteger a grande criação divina, bem como para cuidar dela. Felizmente, também aqui estão semeadas metáforas e lançados paradigmas da salvação em uma nova vida em Cristo. Com o pecado e a morte vencidos pelo Messias, seremos chamados a viver no ambiente da fé, deixando “obras da carne” e colhendo “frutos do Espírito” (Gl 5). Quando, pela confiança em Deus, respeitamos um descanso semanal, renovamos em nosso ser a força, a beleza e o desejo de buscar entendimento dos propósitos de Deus para a nossa vida e as suas criações. Em um sentido psicológico e espiritual, o Espírito nos levará também a trabalhar sobre nossa própria natureza imatura, hostil a Deus e agressiva ao próximo. Ele nos revela como somos e nos chama ao arrependimento e à sujeição à vontade libertadora de Deus. Com a salvação e a edificação do Corpo de Cristo e o cultivo dessa “lavoura de Deus” (1Co 3.9) pelo Espírito Santo, seremos transformados de glória em glória, nos assemelhando novamente a Jesus. Veja os quadros “Complexos e autoimagem” (2Co 10), “O arrependimento” (Ap 9)e “A santificação na velha e na nova aliança” (Cl 2).

3.19 Você… vai virar terra outra vez. A terra agora não é mais amistosa, mas produz espinhos e ervas daninhas, até que os humanos sejam devolvidos a ela. Assim. os seres humanos são apresentados à morte, algo que não havia anteriormente. Morte e terra resistente nos colocam na luta para garantir a sobrevivência, até que a morte vença.

3.20 O homem pôs na sua mulher o nome de Eva. Apenas aqui a mulher receberá nome próprio. Outra consequência do pecado: a escolha do nome, considerada um sinal de autoridade, tal como o homem havia feito com os animais (1.19-20). Esta mudança conduz do genérico “mulher” (ishá), uma extensão do seu próprio nome genérico “homem” (ish), para o nome “Eva”, que significa “vida”, ligado ao ser mãe de todos os viventes. por ser ela a mãe. Com isso se deixa de enfatizar o seu ser e a sua proximidade com o homem e se enfatiza o seu fazer, a sua função reprodutora. Este é um tema carregado de significados — inclusive de culpas que, pela projeção, ela carregará (possivelmente isso esteja na mente de Paulo em 1Tm 2.15, veja nota).

3.21 E o SENHOR Deus fez roupas de peles de animais para Adão e a sua mulher se vestirem. Para substituir a veste que o casal havia feito, de folhas de figueira (v. 7), Deus toma a iniciativa de protegê-los, apesar de toda a transgressão. A misericórdia de Deus é a causa de não sermos consumidos, já desde o início. Há dois sinais de esperança em meio à tragédia: (1) este carinho de Deus quanto à vestimenta; e (2) a promessa do Messias. Mas isso não deve encobrir a situação delicada em que o ser humano se encontra, e na qual todos nós podemos escorregar. Além disso, para esta roupa, foi necessário o derramamento de sangue de um animal; assim, temos implícito o primeiro sacrifício reparatório, por iniciativa de Deus, ato que possivelmente já prefigura o sacrifício de animais, na vigência da aliança da Lei, que “cobrirá” pecados cometidos, e na nova aliança, o sacrifício definitivo do Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Desta forma somos ensinados acerca da inutilidade ou da insuficiência do esforço humano para a salvação e da nossa dependência da iniciativa do Senhor.

3.22-23 Ele não deve comer a fruta da árvore da vida e viver para sempre. O conhecimento do bem e do mal foi adquirido à custa de uma série de afastamentos: da árvore da vida, da vida eterna, do jardim, da amizade com a terra e a criação. A quebra da confiança em Deus que levou ao pecado tornou a condição humana sofrível e necessitada de redenção para não se perpetuar no abismo. Caso ainda pudessem acessar e comer o fruto da árvore da vida, permaneceriam eternamente exilados de Deus. Daí que podemos ver um ato de misericórdia de Deus nesta expulsão, que livra a humanidade de uma eternidade de vida sombria, em desarmonia com a vida de Deus, o que equivaleria à morte eterna. cultivasse a terra da qual havia sido formado. Além do trabalho físico para se assegurar de alimentos, cabe a cada pessoa trabalhar também em si mesma, em sua natureza, administrando o desejo, desenvolvendo os seus potenciais de vida.

3.24 Deus expulsou o homem. Nesta passagem, temos a revolucionária transição que marcou a condição humana — pecado, afastamento de Deus, dores existenciais e necessidade de salvação. Assim nasce a história humana. Nos três primeiros capítulos a narrativa se situa em um tempo paradisíaco, quase mítico, inconsciente, pré-histórico ou, como alguns a chamam, a história primitiva. No quarto capítulo tem-se uma estrutura histórica: a humanidade entrelaçada e condicionada, nas várias culturas, com os humanos pagando o preço da existência com suor, tendo que se organizar inteligentemente para obter o seu sustento e abrigo seguro. Em uma visão psicodinâmica, a expulsão do paraíso equivale ao nascimento de uma criança que tem de deixar o ambiente protegido e equilibrado do útero materno e se viabilizar no ambiente externo do grande mundo. no lado leste do jardim. A vida, a partir de agora, será a leste do Éden. querubins e uma espada de fogo. Querubins são seres tetramorfos, poderosos anjos com formas de animais e homem, servidores próximos do trono de Deus (Ez 1.5). A espada de fogo, aqui, acentua a impossibilidade do retorno ao Éden. Agora, resta aos humanos considerar o novo presente e assumir o custo da existência com o próprio suor. Na simbologia psicológica, temos a proteção positiva contra a regressão psíquica, quando se fixa o olhar sobre o passado com idealizações ou com ressentimentos, o que bloqueia o fluxo da vida. Temos que assumir a nova realidade, a história concreta, a vida em sociedade. Somos equipados para o desenvolvimento nas diversas fases da vida — construindo nossa identidade, chamados ao futuro. E com a reconciliação feita por Jesus, em todo o tempo seremos abençoados pelo Senhor, que nos prometeu sua companhia todos os dias (Mt 28.20). Mas, agora e até lá, os seres humanos estão afastados da árvore da vida, “a leste do Éden”. Veja o quadro “Jardim do Éden: uma condição perdida”.

Balmary faz interessantes comentários sobre o uso das palavras do diabo: a cobra não se apresenta como sujeito, em nenhuma de suas falas aqui. Os pronomes que ela usa se referem a Deus e à mulher, insinuando coisas. O diabo é o antissujeito, que quer destruir as relações que os sujeitos estabeleceram com Deus — relações de confiança na providência de Deus. Também na narrativa de Jó Satanás não se apresenta como sujeito, apenas menciona os outros, mesmo sendo interpelado por Deus diretamente. Satanás é o antissujeito, que priva os sujeitos de suas possibilidades de relação. É o adversário do sujeito e de suas relações de confiança. Insinua desconfiança em Eva para com Deus, e, no Livro de Jó, pretende insinuar desconfiança em Deus para com Jó, de que este o amaldiçoaria, que proferiria palavras contra Deus.

Milenarmente, as mulheres têm sofrido ao parir seus filhos nas condições e nos ambientes mais variados. A mortalidade das parturientes tem altos índices em países pobres e regiões com infraestrutura de saúde deficiente. Nas últimas décadas, bons cuidados ministrados a gestantes e procedimentos de apoio à parturiente diminuíram a mortalidade e também outras complicações relacionadas aos nascimentos. Além disso, sedativos são utilizados para tirar a dor. A ética cristã pede que a Igreja dê acolhida amorosa a qualquer grávida, independentemente de sua condição civil ou circunstância na qual foi engravidada, e que receba a proteção da família e do Estado. Estes cuidados aliviam as dores da mulher, ajudando-a na edificação do senso de autocuidado e da autoestima, e ajudarão muito a nova pessoa que vem ao mundo.

O período gestacional é simultaneamente tempo para a formação de nova vida no ventre da mulher e de gestação do pai e da mãe. Espera-se que marido e mulher se apoiem mutuamente e tenham boa organização para receberem a criança em condições de mantê-la segura. Fisiologicamente, a mulher carrega o peso da gestação, que a obriga a grandes mudanças e exige boa saúde física e mental. Todo o processo de gestação, parto, pós-parto e amamentação contribuirá para a criação e o fortalecimento de vínculo afetivo positivo entre mãe e bebê. O marido consciente e responsável é chamado a suprir as necessidades emocionais da mulher, protegendo-a e também a criança; para isso ele pode buscar informação sobre os cuidados necessários e também se aconselhar, para um adequado envolvimento nesta rica fase para todos. A participação próxima do pai fortalecerá o vínculo afetivo e amoroso do casal e da família, o que amenizará muito os incômodos e as dores a que as mulheres grávidas, parturientes e nutridoras estão sujeitas.

Vale ainda ressaltar que pesquisas científicas, autoridades médicas e o testemunho de mulheres atestam o valor do parto natural para bebês e gestantes. Atualmente, dispõe-se de muitas possibilidades de parto natural seguro, seja em residências ou no hospital, contando com recursos técnicos e medicamentos para realizá-lo em condições de segurança, higiene e considerando aspectos afetivos. Cabe aos médicos ouvir as gestantes, informá-las adequadamente sobre os cuidados necessários, encorajá-las e apoiá-las na realização de parto natural, salvo contraindicação bem justificada, e jamais induzi-las a partos cirúrgicos apenas por comodidade ou calendário. Veja também o quadro “Nascimento, dor e morte” (Gn 35).