Lucas 24 — Comentário Evangélico

Lucas 24

24:1-12 Os quatro evangelhos concordam sobre um detalhe vital a respeito da prisão, julgamento, crucificação e ressurreição de Jesus: as mulheres estavam presentes. Detalhes sobre sua presença podem variar de um evangelho para o outro, incluindo, por exemplo, quantas mulheres estavam no sepulcro, quem as saudou no sepulcro e como elas responderam ao que viram e ouviram, mas a presença feminina é uma constante. Essas mulheres independentes e motivadas são tanto as primeiras testemunhas da ressurreição como as primeiras missionárias da igreja.

A história das mulheres diante do túmulo de Jesus começa com uma pergunta: “Quem nos removerá a pedra da entrada do túmulo?” (Mc 16:3). As mulheres ainda hoje continuam fazendo a mesma pergunta quando enfrentam os muitos obstáculos colocados em seu caminho. Contudo, ao recordar a experiência da ressurreição, elas relembram que apenas a fé em Jesus Cristo será capaz de remover as pedras que impedem sua completa obtenção de humanidade e dignidade.

O papel das mulheres no relato sobre a Paixão de Jesus, isto é, sua prisão, julgamento, crucificação e ressurreição, pode ser interpretado como um reflexo da disposição das mulheres em cooperar com Deus e com o próximo. Nas palavras de Oduyoye, “sem a participação das mulheres, a transformação da sociedade humana em direção à justiça, paz e compaixão não acontecerá, porque é necessária a presença de mulheres para insistir em que paradigmas hierárquicos e de centro e periferia devem ceder lugar a uma comunidade cuidadora”.

24:13-35 No primeiro Domingo de Páscoa, dois seguidores de Jesus caminhavam e conversavam, enquanto voltavam para casa, numa vila chamada Emaús, que não ficava longe de Jerusalém. Estes dois seguidores talvez fossem um homem e uma mulher, pois parece que moravam na mesma casa (24:29). Enquanto caminhavam, juntou-se a eles um terceiro viajante, que era, afinal, o Cristo ressuscitado. Ele é apresentado como alguém que viaja com seus seguidores, andando ao lado deles e conversando com eles em sua dor, confusão e medo, e trazendo-lhes cura. Ele é aquele que cria uma oportunidade para que seus seguidores reformulem sua percepção a respeito dos recentes eventos ocorridos em Jerusalém.

Os dois discípulos foram incapazes de reconhecer Jesus, o Cristo ressuscitado, quando este se juntou a eles. Após perguntar por que o rosto deles parecia triste, o Senhor prosseguiu explicando que o fim trágico e aparentemente sem sentido de Jesus era, de fato, o plano de Deus testificado nas Escrituras (24:27). Quando o convidaram para juntar-se a eles em sua refeição da noite, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu (24:30). Este gesto familiar abriu-lhes os olhos para a verdadeira identidade do visitante. Jesus, então, desapareceu, e eles foram capazes de encarar a morte dele sob uma nova perspectiva. Sua crucificação e ressurreição foram agora encaradas como vitória cabal sobre a doença e a morte, que se apresentam como contrárias ao reino de Deus. Era necessário que Jesus, como o Messias, primeiro sofresse e somente então entrasse na sua glória (24:26), e assim será com os seus seguidores.

Encantados com essa nova compreensão e com a nova realidade da fé no Cristo ressurreto, os dois seguidores se levantaram imediatamente e se puseram de volta a Jerusalém, onde acharam reunidos os onze e outros com eles (24:33). Então, os dois contaram o que lhes acontecera no caminho e como fora por eles reconhecido no partir do pão (24:35).

24:36-43 Nessa passagem, estamos refletindo sobre dois tipos de fé. Primeiro, existe uma fé que necessita de afirmação, de garantia. Precisamos dessa fé em situações nas quais nos encontramos apavorados com os acontecimentos ao nosso redor. Em tais ocasiões, Jesus se apresenta como a figura da mãe ao nosso lado para nos proteger. Em nossos medos, confusões, ansiedades e pecados, o Cristo ressurreto permanece com os seus e entre os seus. Como uma mãe, Jesus nos toma em seus braços para nos proteger. Tendo Jesus conosco, sabemos que somos abençoados com a paz da sua presença. Nos dias de hoje, o mundo é cruel e, muitas vezes, aterrador. Estamos amedrontados e preferimos permanecer de portas fechadas. Em tais momentos, Jesus Cristo vem a nós, sem ser convidado, e toma o lugar central acalmando as tempestades e declarando: Paz seja convosco! (24:36).

Se o primeiro tipo de fé apela a nosso coração, o segundo exige que participemos em primeira mão da experiência do outro. O objetivo é mais que empatia ou “sentir com”; é “sentir dentro” do outro. Nas palavras de Jesus: Vede as minhas mãos e os meus pés, que sou eu mesmo; apalpai-me e verificai (24:39). Jesus insistiu numa fé de “sentir dentro”. Ele não deseja ser apenas ouvido, mas ser visto e tocado. Jesus não quer ser confundido com falsos messias, falsos mestres ou mesmo fantasmas (24:39). Deseja ser apreendido como o Cristo. O que os outros disseram sobre Jesus não era suficiente; ele desejava ser conhecido e tocado como o Cristo. Aqueles que creem sem ver, no entanto, são verdadeiramente abençoados, embora algumas vezes também sejam iludidos por uma falsa religião ou fé imatura. Faríamos bem se mais pessoas exigissem uma fé que sente dentro do outro. Uma fé que algumas vezes se despe das vestes brancas da religiosidade para encontrar, receber e deparar-se face a face com o Senhor ressurreto em nossa nudez. Sem nossas vestes, seremos como Adão e Eva depois que pecaram e deixaram o jardim do Éden. Ali Deus nos encontrará, nos tocará e fortalecerá a nossa fé vestindo-nos com peles de animais (Gn 3:21). Essa fé lida com o “mundo lá fora”. Lida com o mundo de segunda a sábado. Atraca-se com as questões existenciais de cada dia. Ora e busca decisivamente por soluções. É o tipo de fé que apresenta uma sensibilidade para com Deus e para com as pessoas.

Parafraseando São Paulo, essas duas faces de nossa fé necessitam de leite e carne. A fé que estes produzem é inspirada pela ressurreição, e a mensagem resultante nos discípulos foi estarem sempre no templo, louvando a Deus (24:53).

O evangelho de Lucas nos proporciona uma história transformadora de vida à medida que andamos, falamos e caminhamos na trilha da luta, do conflito, da controvérsia, do sofrimento, da opressão, da coragem, da esperança, da liberação e liberdade, da reconciliação e perseverança. Esse é o “caminho”, e para Lucas esse caminho de vida é abençoado (6:20-23). É precisamente por começarmos a andar juntos, falar juntos e seguir juntos nesse caminho — o caminho que a fé conhece pelo nome de Jesus Cristo — que nós, juntamente com nossos companheiros humanos, nos colocamos na trilha da oração, do testemunho e do engajamento pela igualdade de gênero, pela justiça e pela liberdade.

24:44-53 Antes de se separar de seus seguidores e ser elevado ao céu, Jesus provê para o futuro deles. Ele os instrui a permanecer em Jerusalém até que do alto sejais revestidos de poder (24:49). O dom pentecostal do Espírito Santo é a primeira provisão de Jesus para seus seguidores que devem executar sua diretriz missionária. Em outras palavras, não há nenhum esforço de extensão missionária sem que antes seja conferido o poder.

Em segundo lugar, Jesus não deixa seus discípulos até que os tenha colocado debaixo da proteção de Deus, quer dizer, até que os tenha abençoado: Enquanto os abençoava, ia se retirando deles (24:51). Assim como o evangelho de Lucas se inicia com o ministério do sacerdote Zacarias, a última visão de Jesus Cristo nesse evangelho é a do sacerdote impetrando sua bênção: Erguendo as mãos, os abençoou (24:50).