Comentário de John Gill: João 1:14

comentário do evangelho de joão
1:14 - E a Palavra se fez carne,... A mesma Palavra, de quem tantas coisas são ditas nos versículos precedentes; e não é nenhum outro do que o Filho de Deus, ou a segunda pessoa da Trindade; porque nem o Pai, nem o Espírito Santo foram feitos carne, como aqui é dito da Palavra, mas apenas o Filho: e “carne” aqui significa, não a parte do corpo, nem do corpo inteiro apenas, mas do inteiro ser humano, consistindo de um verdadeiro corpo, e uma alma consciente; e é assim chamado para denotar a fragilidade, sendo propensa a enfermidades, embora não pecaminosa;[1] e para mostrar que era um verdadeiro ser humano, e não um fantasma, um espectro encarnado: quando é dito que ele se tornou “carne”, isso não é feito pela mudança de uma natureza para outra, a natureza divina para a humana, ou a Palavra no homem; mas por assumir a natureza humana, a Palavra, tomou isso com união pessoal; ao passo que a natureza não é alterada; Cristo permanece o que ele era, e se torna o que ele não era; nem são eles confundidos, e assim forma uma terceira natureza; nem são eles separados, e divididos a ponto de constituirem duas pessoas, uma pessoa divina, uma pessoa humana; mas são assim unidos para serem uma só pessoa; e isso é tal união que nunca pode ser dissolvida, e é a fundação da virtude e eficiência de todas as obras e ações de Cristo, como Mediador:

E habitou entre nós;... Ou “tabernaculou entre nós”; uma alusão ao tabernáculo, que era um tipo da natureza humana de Cristo: o modelo do tabernáculo que era de Deus, e não do homem, mas cheia de coisas divinas; neste Deus habitou, concedeu a sua presença, e a sua glória foi vista; neste os sacrifícios eram trazidos, oferecidos, e aceitos. Assim a natureza humana de Cristo era a tenda de Deus,[2] e não a do homem; e embora parecesse simples, a plenitude da Divindade habitava nele, bem como a plenitude da graça e verdade; na face de Cristo a glória de Deus é vista, e através dele, a cortina da sua carne,[3] os santos tem acesso a ele, e desfrutam de sua presença; e por eles seus sacrifícios espirituais se tornam aceitáveis a Deus:[4] ou isso é observado, na alusão das festas dos tabernáculos como típico de Cristo, ou de sua natureza tabernácula. O templo de Salomão, que também era típico de Cristo, foi dedicado no tempo dessa festa; e parece provável que nosso Senhor nasceu nessa mesma época; porque como ele sofreu no tempo da páscoa, que dizia respeito a ele, e o derramamento do Espírito foi no dia de Pentecostes, que prefigurou isso; assim é altamente provável que Cristo tenha nascido durante a festividade dos tabernáculos, o que aponta para o fato dele habitar entre nós; e assim é muito pertinente essa menção quando é feito aqui a menção de sua encarnação. No entanto, a referência é feita a Shekiná, e a glória dela no tabernáculo e no templo; e quase a mesma palavra é aqui usada. Os Targumistas às vezes falam da Shekiná habitando entre os Israelitas: assim Onkelos em Números 11:20, aonde os Israelitas são ameaçados de comer carne até que vomitem; diz a paráfrase:

“Rejeitasses “a Palavra do Senhor”, a Shekiná que habita entre vós”

Jonatan ben Uzziel, no mesmo lugar, se expressa assim:

“Porque tens rejeitado a Palavra do Senhor, a glória de cuja Shekiná habita entre vós.”

E segue aqui...

E nós observamos a sua glória;... A glória de sua natureza divina, que é essencial a ele, que é igual a glória do Pai, é transcendente a todas as criaturas, e é inefável, incompreensível; tudo aquilo que foi observado pelo evangelista e seus companheiros; que, em vários exemplos, via plenamente que Cristo possuía as perfeições divinas, tais como onisciência, e onipotência; visto que ele conhecia os pensamentos dos seus corações,[5] e poderia fazer as coisas que ele fazia: seu Pai declarou que ele era seu Filho amado;[6] e os milagres que ele operou, e as doutrinas que ele ensinou, manifestaram a sua glória; e não apenas que havia alguns raios de sua glória na transfiguração, que foi visto pelos apóstolos,[7] entre os Evangelistas como João, e a qual ele pode ter feito uma referência em particular; mas até mesmo em sua prisão, e morte, e especialmente em sua ressurreição dentre os mortos. Os Judeus falam da glória do Messias ser vista no mundo por vir. Eles dizem:[8]

“Se um homem é digno do mundo por vir, (i.e dos tempos do Messias) ele “verá a glória” do Rei Messias.”

E de Moisés, eles dizem:[9]

“Não havia (ou haverá) nenhuma geração como aquela que ele viveu, até a geração na qual o Rei Messias vem, que “contemplará a glória” do Santo, o Deus Abençoado, como ele.”

Isso nosso evangelista, e os outros discípulos de Cristo têm visto:

Como a glória de um filho unigênito do Pai;... Uma glória pertencente a ele, digna dele; a própria glória real do Filho de Deus; porque o “como”, aqui, não é apenas uma nota de similitude, mas de certeza, como em Mateus 14:5, e a Palavra é aqui chamada “o filho unigênito do Pai”; que não pode ser dito de Cristo, como homem; porque como tal, ele não podia ser “gerado” de forma alguma: nem por causa de sua ressurreição dos mortos; porque ele não poderia ser chamado o “filho unigênito”, visto que há outros que tinham sido, e milhões que serão levantados dos mortos além dele: nem por razão da adoção; porque se for adotado então não é gerado; esses dois são inconsistentes; além disso, ele não poderia ser chamado de filho unigênito nesse sentido, porque há muitos filhos adotados, até mesmo os eleitos de Deus: nem por virtude de seu ofício, como magistrados são chamados os filhos de Deus; porque então ele seria assim apenas na figura e no sentido metafórico, e não apropriadamente; ao passo que ele é chamado de Filho do próprio Deus, o Filho da mesma natureza que ele; e, como aqui, o filho único do Pai, gerado por ele na mesma natureza, em uma forma muito incompreensiva e inexplicável por nós:

Cheio de graça e de verdade;... Ou seja, ele habitou entre os homens, e apareceu ter a mesma plenitude de cada um desses: porque essa cláusula não deve ser unida com a glória do filho unigênito; mas, antes, diz respeito a ele como encarnado, em seu ofício, como Mediador; que, como tal, estava cheio de graça; o Espírito, e os dons do Espírito; de todas as bênçãos da graça, de justificativa, perdão, adoção, santificação, e graça perseverante; de todas as promessas da graça; de toda a luz, vida, força, conforto, paz, e alegria: e também da verdade, de todas as verdades do Evangelho; e como ele tinha a verdade, a soma, e substância de todos os tipos e profecias concernente a ele nele; e como ele cumpriu suas designações, e as promessas de seu Pai; e como possuído de sinceridade para com os homens, e plenitude e integridade a Deus,


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Notas
[1] Cf. Hebreus 4:15. N do T.
[2] Cf. Revelação 21:3. N do T.
[3] Cf. Mateus 27:51. N do T.
[4] Cf. Hebreus 13:15. N do T.
[5] Cf. João 2:25. N do T.
[6] Cf. Mateus 3:17. N do T.
[7] Cf. Mateus 17:2. N do T.
[8] Gloss. em T. Bab. Beracot, fol. 58. 1.
[9] Zohar em Lev. fol. 9. 4.