Comentário de João Calvino: João 3:3

Em verdade, em verdade te digo. A palavra verdade (αμην) é duas vezes repetida, e isso é feito com o propósito de despertar-lhe mais atenção. Pois, quando Ele estava prestes a falar dos mais importantes e influentes de todos os assuntos, Ele achou necessário despertar a atenção de Nicodemos, que poderia ter passado por todo esse discurso de uma forma despercebida ou descuidada.[1] Este é, então, o designo da dupla afirmação.

Apesar deste discurso parecer ser rebuscado e quase impróprio, mas foi com o decoro maior que Cristo abriu o seu discurso desta forma. É inútil semear as sementes em um campo que não tenha sido preparado pelo trabalho do lavrador; pois é sem propósito espalhar a doutrina do Evangelho, se a mente não tem sido previamente moderada e devidamente preparada para a docilidade e obediência. Cristo viu que a mente de Nicodemos estava cheia com muitos espinhos, sufocada por muitas ervas nocivas, de modo que não havia quase nenhum espaço para a doutrina espiritual. Esta exortação, portanto, se assemelhava a uma lavoura para purificá-lo, para que nada pudesse impedi-lo de lucrar com a doutrina. Vamos, portanto, lembrar-nos que este foi falado de um indivíduo, de tal modo que o Filho de Deus se dirige a todos nós diariamente na mesma linguagem. Pois, qual de nós diria que ele é tão livre de afeições pecaminosas que não precisa de purificação? Se, portanto, queremos fazer um bom progresso na escola de Cristo, vamos aprender a começar neste momento.

“Ver o reino de Deus” tem o mesmo significado que “entrar no reino de Deus”, como vamos perceber imediatamente a partir do contexto. Mas, engana-se quem pensa que o “reino de Deus” aqui significa os “céus”; pois, antes, significa a vida espiritual, que é iniciada pela fé neste mundo, e gradualmente aumenta a cada dia de acordo com o progresso contínuo da fé. Assim, o significado é que ninguém pode ser verdadeiramente unido à Igreja, de modo a ser contado entre os filhos de Deus, até que ele tenha sido previamente renovado. Esta expressão mostra resumidamente o que é o início do cristianismo, e, ao mesmo tempo, nos ensina que nós nascemos exilados e totalmente alienados do reino de Deus, e que existe um estado permanente de variância entre Deus e nós, até que Ele faz-nos completamente diferente pelo nosso nascer de novo, pois a instrução é geral e abrange toda a raça humana. Se Cristo tivesse dito de uma pessoa, ou para alguns indivíduos, que não poderiam entrar no céu, a menos que tivessem sido previamente nascido de novo, podemos supor que se tratava apenas de algumas pessoas que foram designadas, mas Ele fala de todos, sem exceção, pois a linguagem é ilimitada, e é da mesma importância com tais termos universais como estas: Quem[2] não nascer de novo não pode entrar no reino de Deus

Pela frase nascer de novo não é expressa a correção de uma parte, mas a renovação de toda a natureza. Daqui, segue-se que não há nada em nós que não seja pecador, pois se reforma é necessária no seu conjunto e em cada parte, a corrupção deve ter sido espalhada por completo. Sobre este ponto em breve teremos ocasião para falar mais amplamente. Erasmo, adotando o parecer do Cirilo, traduziu incorretamente o advérbio ανωθεν, “de cima”, e verte a cláusula assim: “se alguém não nascer de cima”. A palavra grega, de fato, é ambígua, mas sabemos que Cristo conversou com Nicodemos no idioma hebraico. Então, não houve espaço para a ambiguidade que ocasionou o erro de Nicodemos e levou-o a um escrúpulo infantil sobre um segundo nascimento da carne. Ele, portanto, entendeu que Cristo não disse nada mais do que um homem devia nascer de novo, antes de ser admitido no reino de Deus.

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Notas
[1] “L’oyant seulement comme en pensant ailleurs, et sans en tenir grand conte:” — “simplesmente ouvindo isso, como se ele estivesse pensando de algo mais, e sem se importar muito com isso.”
[2] Em inglês a palavra traduzida aqui por “quem” é “whosoever”, ou seja, quem quer que seja, não importa que pessoa, todos os que desejam ver, ou entrar, no reino de Deus, devem passar por essa experiência soberana da graça divina. N do T



Fonte: John Calvin's Bible Commentary, da The Calvin Translation Society (1509-1564)