Livro de Salmos — Interpretação


Livro de Salmos — Interpretação

Livro de Salmos — Interpretação

A interpretação do livro de Salmos depende do nosso conhecimento da condição da crença religiosa e da revelação ao tempo da sua composição e da nossa própria experiência de Deus em Cristo. Pensa-se muitas vezes que certas passagens se referem à vida depois da morte (por exemplo, Sl 16.10; Sl 17.15; Sl 49.16; Sl 73.24,26; Sl 118.17), e tanto quanto conhecermos o poder da ressurreição de Cristo, podemos ler tais declarações à luz daquela verdade. O salmista não conhecia tal certeza, embora compartilhasse com o profeta um discernimento parcial de coisas maiores do que podia expressar em palavras. Certamente que estas passagens não se encontravam vazias de esperança quando primeiramente foram enunciadas, mas a qualidade dessa “certeza” é que era variável. Constituía principalmente uma inferência da experiência pessoal do autor com Deus e a sua percepção de um propósito divino correndo através da História. Ele tinha fé suficiente para vislumbrar a promessa, embora esta estivesse muito longínqua. As suas palavras podem incluir, muitas vezes, a esperança de ser livrado de uma morte física imediata, mas não podemos limitar a isso o seu significado.

O elemento de predição é mesmo mais forte na forma profética, mais geral, de alguns Salmos. É verdade que cada predição tem de esperar pelo cumprimento antes de poder ser completamente compreendida, mas existe, de algum modo, desde a sua primeira expressão. Por exemplo, o Sl 16.8-11 é interpretado em At 2.25-32 e o Sl 2 é compreendido em At 4.26; Hb 1.5; Hb 5.5, de uma forma que esclarece e preenche completamente o que, na maior parte, podia ter sido apenas parcial e esquemático na mente do salmista. De fato, a origem da idéia pode ter para ele uma relação secundária com a sua interpretação final. A revelação de Deus em Cristo é o ponto central da história do mundo (cfr. Hb 9.26; Rm 8.19-22). Não é, pois, surpreendente que, à medida que os séculos deslizam para o passado, uma tal verdade eterna causasse em homens piedosos uma “advertência” crescente de acontecimentos iminentes e relacionados. O Senhor escolheu Israel para um certo propósito. Do ponto de vista divino esse objetivo já estava cumprido (cfr. 1Pe 1.20; Ef 1.10) e a corrente da experiência humana, sob Deus, incluía recursos que tornavam possível a sua revelação. Para um estudo dos vários aspectos da esperança messiânica e do significado das referências dos Salmos, ver Hebert, The Throne of David (págs. 39-69) e Manley, The New Bible Handbook (págs. 197, 265-275).

Há dificuldade em reconciliar a bondade e a misericórdia divinas com algumas das maldições encontradas no Saltério (cfr. Tg 3.9-11). Podem notar-se quatro pontos.

1. Estas imprecações não estão no espírito do Evangelho, e contudo há também palavras ásperas no Novo Testamento (por exemplo, Mt 13.50; Mt 23.13-33; Mt 25.46; Lc 18.7-8; Lc 19.27; At 13.8-11; 2Ts 1.6-9; Ap 6.10; Ap 18.4-6). O Novo Testamento condena as represálias humanas mas ensina plenamente que todos colhem as conseqüências da sua escolha (por exemplo, Mt 7.22-23; 2Co 5.10).

2. O salmista pode não ter tido a intenção de revestir as suas amargas palavras de sentido profético mas na vasta providência divina elas podem tornar-se verdadeiras (por exemplo, At 1.20 cita os Sl 69 e Sl 109; Rm 11.9-10 cita o Sl 69). Além disso, nem sempre é gramaticalmente possível distinguir entre o significado de “que isto aconteça...” e “isto acontecerá...”.

3. O salmista vivia sob a lei que ensinava a doutrina da retribuição (cfr. Lv 24.19; Pv 17.13). As suas imprecações são orações para que o Deus justo faça como tem falado. Em muitos casos, é provável que as maldições sejam citações que o salmista fazia do que os seus inimigos tinham (falsamente) dito a respeito dele (ver notas ao Sl 109).

4. Não somos autorizados a voltar a ler nas palavras imprecatórias do Saltério qualquer rancor e crueldade pessoais. Homens bons desejam a punição do mal: se mostrássemos simpatia para com aqueles a quem, na sabedoria de Deus, lhes é permitido tornarem-se plenamente o que desejaram ser (contra Deus), então estaríamos a participar do seu pecado e da sua impiedade.

Em conclusão, diga-se uma vez mais que a vida interior é sempre maior do que a expressão da mesma. Devemos considerar o Saltério de um modo muito semelhante à forma como encaramos uma catedral; não meramente como um agregado de estilos arquitetônicos e sistemas decorativos constituídos pelo curso da história numa unidade, mas como um lugar cujo propósito é servir de auxílio no culto a Deus. Contudo, por mais interessantes que sejam os elementos de arquitetura ou literários, ambos perderiam a razão essencial da sua existência se o seu significado espiritual e função fossem ignorados ou rebaixados.