Evangelho de João — Discursos de Jesus

Evangelho de João no Discursos de Jesus


Se entendemos e reconhecemos tudo que diz respeito às diferenças entre o Quarto Evangelho e os demais evangelhos, será que não existe apesar disso um contraste intransponível entre João e os sinóticos nas apresentações dos discursos de Jesus? Seria possível que Jesus Cristo falou ao mesmo tempo da forma como relatam os sinóticos e assim como o constatamos em João? Em João há longos discursos que têm por tema o próprio Jesus, sua pessoa e sua importância. Lá nos sinóticos, seguindo o estilo da Palestina, ocorrem ditos concisos e marcantes, parábolas breves e concretas, e tudo gira em torno do reino de Deus e da atitude correta diante de Deus e do semelhante. Não poderia ser que unicamente a apresentação sinótica mostra o Jesus genuíno, histórico, enquanto o Cristo joanino representa flagrantemente uma livre invenção do evangelista justamente em seus discursos? 

Cabe-nos ser muito cautelosos com o veredicto do que ― poderia ou ― não poderia ter sido histórico. É bem compreensível que as palavras e parábolas de Jesus, como trazidas pelos sinóticos, eram facilmente memorizadas justamente na Galileia e no povo simples, sendo transmitidas nesse contexto. No entanto, é imperioso que por isso Jesus também tenha falado da mesma forma em Jerusalém e no confronto com os grupos dirigentes? Não seria plausível que aqui estivesse em jogo, de maneira bem diferente, também sua pessoa, sua autoridade, a fé nele, a forma como vem ao nosso encontro, logo na primeira ida de Jesus à capital, no episódio da purificação do templo e no diálogo com Nicodemos? Afinal, esses discursos de Jesus, inclusive na sinagoga de Cafarnaum, justamente não são pregações, mas sempre diálogos, discussões duras, nas quais as respostas de Jesus deixam perceber as perguntas e objeções de seus adversários, mesmo quando João não as insere expressamente. 

Indiretamente, os próprios sinóticos evidenciam que Jesus de fato também falou de maneira diferente. Eles têm conhecimento de longas pregações (Mc 6.34) e de uma proclamação de Jesus que durou vários dias (Mc 8.2). Nessas ocasiões, porém, não é possível que Jesus tenha alinhavado durante horas apenas ditos e parábolas breves. Longas pregações requerem exposições com nexo, assim como João relata no cap. 6 também em relação à atuação de Jesus na Galileia. 

É necessário que nos detenhamos ainda mais nesse ponto, uma vez que também comentaristas que sustentam a autoria do apóstolo João nesse evangelho apesar disso consideram os discursos de Jesus como livre elaboração do evangelista. F. Büchsel opina: O quarto evangelho nos traz a realidade histórica de Jesus apenas nos moldes da compreensão, mais precisamente da compreensão adquirida posteriormente pelo evangelista, cuja liberdade bastante marcante se contrapunha à compreensão meramente histórica. W. Wilkens fala da incrível liberdade do quarto evangelista diante da tradição, fundada sobre a autoridade do testemunho autêntico. H. Strathmann torna-se ainda mais explícito: Costuma-se dizer que os discursos joaninos de Jesus teriam passado pela pessoa de João‘. Correto! Contudo, o que significa isso? Os discursos de Cristo em João são discursos de João sobre Cristo. João serve-se deles como forma para pregar sobre Cristo, motivo pelo qual também ocasionalmente os discursos de Jesus, inclusive na forma, repentinamente transitam para discursos sobre Jesus. Em outras palavras: Em sua exposição, João não presta tributo ao historicismo, mas ao princípio da estilização proclamatória. 

Por trás dessas declarações certamente existem observações corretas. Isso vale sobretudo com vistas à linguagem peculiar no evangelho de João, que também influi no linguajar de Jesus nessa apresentação. É frequentemente constatado que em todos os lugares dos escritos joaninos é possível encontrar o mesmo linguajar, independente se o que fala é Jesus ou João Batista ou João, filho de Zebedeu. Entre os discursos de Jesus e as cartas de João não existe diferença de estilo. Nesse ponto pode-se perceber nitidamente que em longos anos de trabalho de pregação diversificada João assimilou dentro de si tudo o que havia vivenciado com seu Senhor, reproduzindo-o agora com o seu linguajar. 

Diante disso, porém, cumpre levantar uma pergunta bem decisiva: Onde fica, nesse caso, o limite entre testemunho histórico e elaboração espiritual? Será que realmente estamos lidando com o próprio Jesus ou com um personagem que o evangelista também retrata depois, a partir dessa compreensão adquirida posteriormente? Quando Büchsel pensa que [quem] queria compreender Jesus a partir daquilo que ele podia saber dele no tempo em que viveu, de acordo com João necessariamente o tinha de compreender mal e que a impressão da atuação histórica como tal simplesmente não leva nenhuma pessoa a crer em Jesus, então os judeus estariam plenamente desculpados por não terem compreendido a Jesus naquele tempo, rejeitando-o. Nesse caso, a conhecida palavra de Jo 1.14 teria de ser artificialmente reinterpretada: A palavra se tornou carne, e mais tarde, depois de sua ressurreição e ascensão, nós também vimos a sua glória. Se João descreve Jesus totalmente de acordo com sua compreensão espiritual posterior, então nos tornamos, de um modo questionável, dependentes de João e da exatidão de sua compreensão, e não temos mais a ver realmente com Jesus, mas de fato apenas com o Cristo joanino. 

A fé não é capaz de viver de interpretações, nem mesmo das mais profundas e belas. A fé vive de realidades. Quando João não reproduz as palavras decisivas de Jesus porque as ouviu assim, mas opina a partir de sua compreensão posterior de Jesus, (Na verdade Jesus deveria ter falado assim), então nós, como fiéis, estamos numa situação complicada. Como ainda poderíamos interpretar seriamente as afirmações, Eu sou de Jesus, se tivéssemos de pensar que o próprio Jesus nem sequer as pronunciou? E como podemos acreditar que um israelita – pois é isso o que o autor do evangelho de João é – teria inventado livremente essas palavras de Jesus que evocam o nome de Javé, e que as teria colocado nos lábios de Jesus? Talvez seja verdade o que recentemente é salientado nesse contexto, que anedotas e afirmações inventadas seriam capazes de caracterizar melhor um personagem histórico que relatos historicamente confiáveis. Contudo, a situação se torna muito diferente quando eu próprio quero fazer uso das promessas de uma pessoa poderosa. Então de nada me servirá a mais poderosa e característica palavra, se for inventada. A pessoa tem de ter dado sua promessa de uma forma inequívoca, para que eu possa fundamentar sobre ela uma reivindicação. Se Jesus não pronunciou de fato sua poderosa palavra, Eu sou…, com as promessas subsequentes, de nada nos servirá no caso mais sério, p. ex., ao morrermos, que João assegure a partir de sua compreensão posterior de Cristo que Jesus poderia ter falado dessa maneira, sim, que na realidade deveria ter falado desse modo. 

Contudo, toda essa concepção de projetar para trás, para a descrição do Jesus histórico, a compreensão posterior de Cristo é refutada pelo próprio evangelho de João. O autor anotou pessoalmente em algumas passagens que os discípulos compreenderam essas palavras de modo correto apenas mais tarde, depois da ressurreição de Jesus (p. ex., Jo 2.22; 7.39; 12.16). Com isso, porém, atestou justamente que ele não inventou nem modificou essas palavras de seu Senhor, mas sim que as reproduziu em sua forma original, enquanto naquela época ele e os demais discípulos ainda careciam do entendimento dessas palavras, ficando claras somente mais tarde, após a Páscoa. Se ele, porém, tivesse relatado parte por parte de acordo com sua compreensão posterior, então ele não teria tido mais nenhum motivo para destacar em determinadas passagens específicas que nesse ponto somente uma percepção posterior teria descortinado o sentido mais profundo da questão.

No fundo, deparamo-nos com uma questão de confiança. Não temos condições de verificar objetivamente se João reproduziu correta e fielmente os discursos de seu Senhor. Contudo, constantemente vemos em seu evangelho o empenho em relatar com exatidão, em todos os detalhes, a atuação de Jesus. Será que de repente, na questão principal de seu livro, nas palavras e discursos de Jesus, ele deixaria de ser confiável, apresentando-nos considerações pessoais ao invés de palavras de seu Senhor? Será que um discípulo, sobre o qual os amigos atestam expressamente a veracidade de seus testemunhos (Jo 21.24), e que assegura em sua carta: O que temos visto e ouvido anunciamos também a vós (1Jo 1,3), faria isso? Podemos ler os discursos de Jesus em nosso evangelho com a firme confiança de que neles ouvimos o próprio Jesus falando conosco.