Comentário de Gálatas 3:1

Comentário de Gálatas 3:1




Observações preliminares
Comentário de Gálatas 3:1
1. O próprio corpo de jurados como testemunhas. No versículo anterior (Gl 2.21) Paulo aguçara tudo para uma alternativa radical: Ou a lei ainda vale, então o evangelho fica sem valor; ou Cristo vale, e então a lei acabou. Os judaístas defendiam apaixonadamente uma síntese, mas Paulo envereda pelo caminho da comprovação exegética. H. D. Betz, pág 79 e 238-239, comparou essa disputa com uma sessão no tribunal. Os judaístas são os acusadores, Paulo é o acusado, os gálatas são o corpo de jurados. No início, porém, acontece algo extraordinário. Paulo pressiona os jurados para o banco de testemunhas, sim, ele praticamente os arrasta para dentro, o que se expressa em cinco perguntas consecutivas. Os próprios juízes são, na questão em processo, testemunhas de peso e devem dar sua declaração.
2. Quanto à pneumatologia da carta aos Gálatas. Ao que parece, sem introdução e sem considerar necessária uma explicação, Paulo fala, ao contrário do que se espera, não de que os gálatas se tornaram crentes, mas de que eles receberem o Espírito. Logo três vezes aparece o termo pneuma/Espírito (v. 2,3,5) e no restante da carta outras quinze vezes, além de mais uma vez o advérbio “espiritualmente”. A função do termo e de seu conteúdo é tamanha na carta que ela dificilmente é compreendida sem a sua pneumatologia. A posição-chave desse tema para Paulo e seu conseqüente enfoque a partir desse ponto resulta do seguinte: os judaístas insistiam que cada pessoa que quisesse pertencer verdadeiramente ao povo de Deus tinha de cumprir a exigência da circuncisão. Em contraposição, porém, o povo de Deus é para Paulo uma grandeza espiritual. Ele o é desde Abraão (cf. abaixo, o exposto sobre Gl 4.23) e de maneira impactante na renovação messiânica, o que também confere com a profecia do fim dos tempos no at. Nesse caso, porém, a dádiva do Espírito tinha de tornar-se o argumento principal para a liberdade diante da circuncisão e da lei propriamente dita. Já no at a dádiva escatológica do Espírito e a liberdade aparecem juntas (Is 61.1,2; cf. Lc 4.18). “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Co 3.17).
Era apenas aparente que Paulo conseguiria articular-se nos dois primeiros capítulos, e sobretudo no versículo temático de Gl 2.16, sobre a justificação pela fé, sem a pneumatologia. Agora se evidencia que por momento algum ele compreendeu esse tema sem o Espírito, mas que para ele a fé e o Espírito se encontram num relacionamento muito íntimo. Com um deles na prática já se afirma também o outro. Quem está na fé em Cristo, vive no Espírito. Quem vive no Espírito, está abraçado em Jesus. Fé e Espírito juntos, estreitamente entrelaçados, constituem uma grande bênção (cf. Gl 3.14!). Ela é fruto de uma pregação do Crucificado realizada com autoridade. Quanto aos diversos aspectos da pneumatologia na carta aos Gálatas, veja os comentários sobre:

•     Gl 3.2,14; 4.6,29: Espírito e tornar-se cristão
•     Gl 3.3; 5.25: Espírito e permanecer cristão
•     Gl 3.4: Espírito e carismas
•     Gl 5.16—6.10: Espírito e ética

Incisivamente Paulo dá vazão à sua decepção: Ó gálatas insensatos! A interpelação é envolvida pelas nove vezes em que Paulo os chama de irmãos na presente carta (cf. o exposto sobre Gl 6.18), motivo pelo qual não constitui insulto. Ela tem a ver com o conteúdo da questão e exerce uma função. Nesses irmãos Paulo sente falta do uso da sua capacidade racional. Para quem Cristo foi anunciado de forma tão poderosa e libertadora (cf. a segunda metade do versículo!), esse por certo deveria destacar-se por um senso totalmente novo para a realidade. Entre concidadãos não iluminados ele teria de se mover como um sóbrio entre ébrios. Porém, era um enigma por que esse realismo não funcionava entre os gálatas.
A mesma acusação também atingiu repetidas vezes os discípulos do Jesus terreno: “Será que vocês também não conseguem entender” (nvi); “Os filhos do mundo são mais hábeis… do que os filhos da luz” (Mc 7.18; Lc 16.8). Da mesma maneira fala também o Ressuscitado: “Como vocês custam a entender e como demoram a crer em tudo” (Lc 24.25 [nvi]). Essa queixa se alonga depois nas cartas apostólicas: “Falo (espero!) como a criteriosos”, “Não sejais meninos no juízo”; “Não vos torneis insensatos” a. Insensatez no povo de Deus constitui uma tragédia dupla (cf. o exposto sobre Gl 1.6).
Quem vos fascinou…? O fato de Paulo não estar citando nomes não tem de significar que ele não conheça nenhum. Pelo contrário, dessa maneira ele declara seu antagonista como um ninguém, como um Nulo de Tal (cf. o exposto sobre Gl 1.7), assim como ele também desqualifica a pregação dele como sendo engambelação. Tanto pior para os gálatas. Essa conversa fiada foi capaz de desqualificar entre eles a mensagem da cruz. Deixaram-se impressionar por ela, praticamente hipnotizar, em vez de oferecer resistência, como, p. ex., Paulo fez de acordo com Gl 2.5,14. Tudo isso naturalmente está sendo dito de maneira muito provocadora. Tem o objetivo de sacudir e alarmar os gálatas. Em tom análogo Paulo fala aos coríntios (2Co 11.19,20): “Vocês são tão sábios e suportam de boa vontade os loucos. Toleram os que mandam em vocês e exploram vocês; toleram os que os enganam, os que os tratam com desprezo e os que lhes dão bofetadas” (blh).
Ante cujos olhos foi Jesus Cristo exposto (publicamente). Como explicamos na nota sobre a tradução, Paulo não chama atenção para a sua capacidade de pregar de forma arrebatadora. Antes está preocupado com o ponto de vista jurídico, i. é, com a vigência divina de sua pregação pioneira na Galácia. Quando na Antigüidade se desenrolava na praça comercial diante da multidão estupefata um cartaz com um edito imperial, esse ato inaugurava uma nova situação legal. Desse momento em diante esse decreto estava em vigor. Transgredi-lo trazia conseqüências. Sua publicação era um acontecimento que interferia de maneira transformadora na vida. Desse modo, cerca de cinco anos antes, a pregação de Paulo ocupou irresistivelmente o espaço de vida dos leitores da carta, confirmada por manifestações espirituais e frutos (v. 4,5). O evangelho evidenciou-se como poder e criou, do nada, nova existência, a saber, uma igreja de fé e júbilo (Gl 4.15). Um fato desses, afinal, não se esquece! De maneira similar Paulo escreveu sobre a hora do nascimento da igreja em Corinto: “o testemunho de Cristo tem sido confirmado (legalmente) em vós” (1Co 1.6)b. Disso não se tinha nada que tirar, a não ser que alguém não estivesse no domínio de suas faculdades mentais. Contudo, evidentemente era essa a situação dos gálatas. Nesse contexto Paulo oferece uma caracterização abreviada de sua pregação missionária: Jesus Cristo… como crucificado. Não foram palestras bíblicas gerais sobre isso e aquilo, e sim uma comunicação pública consciente do tema. Deparamo-nos, um pouco chocados, com uma concreticidade tão certeira. Em 1Co 2.2 Paulo até afirma mais incisivamente: “Pois decidi nada saber entre vocês, a não ser Jesus Cristo, e este crucificado” (nvi).
Entretanto cabe afastar o equívoco de que Paulo não sabia nada sobre a ressurreição: Nenhum isolamento da cruz tem relação com sua história posterior! Paulo jamais proclamou Jesus como um homem morto, i. é, jamais parou a história no momento da cruz, excluindo mentalmente a ressurreição. Sem a ressurreição sequer existiria para ele uma “palavra da cruz”, uma nota de falecimento, e a fé cristã seria sem fundamento (1Co 15.17). Passemos, porém, ao decisivo: A Páscoa não anulou para ele a cruz, não fez esquecê-la, mas, pelo contrário, tornou-a inesquecível. A Páscoa eternizou a cruz, atualizou-a como realidade constante. O Cristo vivo governa o mundo praticamente do alto da cruz. As cicatrizes em suas mãos traspassadas são suas insígnias reais. Deixando de lado a ilustração: O amor crucificado é agora a instância máxima, determinando os parâmetros.
De onde vem, no entanto, o desequilíbrio numérico entre os textos sobre a cruz e a ressurreição justamente em Gl? Da cruz ou do morrer de Jesus falam quase dez passagensc, e do Ressuscitado, somente Gl 1.1. A resposta deve residir no fato de que é precisamente a cruz que possui em si poder de crítica à lei (cf. o exposto sobre Gl 1.16).
Além do mais Paulo também estava interessado no modo singular da morte do Senhor, de que morreu justamente na cruz (em vez de, p. ex., por apedrejamento). É significativo um acréscimo em Fp 2.8, que ele insere, ao que parece, em alta voz: “obediente até à morte e morte de cruz”. Sempre de novo esse apóstolo refletiu teologicamente sobre esse instrumento de execução, tendo por isso sintetizado também todo o testemunho de Cristo como “palavra da cruz” d. O peculiar numa execução dessas era seu grau máximo de vergonha e desprezo. “Maldito (por Deus) todo aquele que for pendurado em madeiro” (Gl 3.13, referindo Dt 21.23). A cruz tira a credibilidade. Por isso os transeuntes, conforme Mt 27.39-43, apenas podiam menear a cabeça: “Ele é o Rei de Israel, não é? Se descer agora mesmo da cruz, nós creremos nele!” (blh). Como, apesar disso, “cruz” pode ser uma palavra de salvação, tornar-se parte inerente de uma mensagem de fé para o mundo? Nada em nós seres humanos está predisposto para essa mensagem, em termos intramundanos ela não pode ser tornada plausível (quanto ao “escândalo da cruz”, cf. o exposto sobre Gl 5.11). Somente por meio de uma experiência pneumática Jesus se torna nosso Senhor. É para isso que Paulo convoca os gálatas como testemunhas.




a1Co 10.15; 14.20; Ef 5.17
bMc 16.20; 1Co 2.4,5; 1Ts 1.5; Hb 2.2-4
cGl 1.4; 2.19,20; 3.1,13; 4.5; 6.12,14
d1Co 1.18; 1.17,23; 2.2,8; 2Co 13.4; Gl 3.1,13,14; 5.11,24; 6.12,14; Ef 2.16; Fp 3.18; Cl 1.20; 2.14