A Bíblia como a Palavra de Deus e Homens

A Bíblia como a Palavra de Deus e Homens

A Bíblia como a Palavra de Deus e Homens

A tradição cristã considera o Antigo Testamento como “palavra de Deus”. A expressão é genérica; trata-se na realidade de uma multiplicidade de “palavras”. O testemunho cristão foi preparado pela experiência continua­da do povo eleito e pela reflexão de alguns escritores.

Se procurarmos o testemunho interno do AT, encontraremos duas formas principais da palavra de Deus: a “palavra do Senhor”, que se identifica com a “Aliança”, e a “palavra do Senhor” anunciada pelos profetas. Constituem ambas a experiência primordial do povo e ao mesmo tempo o início de uma teologia viva da palavra.

Elemento comum das duas manifestações da “palavra de Deus” é que elas são apresentadas ao povo através de um mediador, de um “profeta”, no sentido mais amplo do termo. A primeira vista poderia parecer que a função do mediador consistisse em repetir literalmente sentenças ouvidas de Deus e definitivamente formula das por ele; veremos que será necessário retificar esta primeira impressão. Há outro aspecto importante que é comum às duas manifestações citadas: a palavra de Deus chega aos homens na forma e figura de palavra humana.


1. A palavra da Aliança

Impõe-se aqui uma distinção:

a) Uma primeira forma de “palavra de Deus” é de caráter nar­rativo e se refere brevemente à salvação já realizada; encontramo-la nos trechos de Ex 19.4 e Js 24.2-13. E uma palavra cujo sujeito é Deus, como agente principal da história; cujo conteúdo é a salvação e cujo objeto é o povo: é, portanto, uma palavra divina, que explica as ações de Deus como ações salvíficas; é revelação de Deus, que desvenda o sentido da história. A palavra de Deus implica uma relação radical com o agir de Deus na história. Do lado da história corresponde a isto a necessidade a ela inerente de uma palavra de Deus, que a interprete.

b)Uma segunda “palavra” é usada geralmente no plural como “palavras do Senhor”: são os mandamentos que Deus dá ao seu povo, como, p. ex., Ex 20.1: “Então Deus falou, pronunciando todas estas palavras”. Na sua forma primitiva, trata-se de dez mandamentos apodíticos, palavras que encarnam e transmitem a vontade de Deus. Esta enérgica vontade divina cria uma comunhão de homens livres, um estatuto religioso, ‘am IHWH; Ex 34.28: “Moisés permaneceu ali com o Senhor quarenta dias e quarenta noites, sem comer nem beber água; e escreveu sobre as tábuas as palavras da aliança, as dez pala­vras”; Dt 4.13: “Promulgou-vos o seu pacto, que vos ordenou cum­prir, os dez mandamentos”. Estas palavras são expressão de uma vontade soberana, apresentam-se como uma permanente exigência religiosa e regulam a vida toda do povo: primeiro de modo geral, depois incorporando a si determinadas prescrições e adaptando-as à própria dinâmica interna. São palavras eficazes, que criam uma ordem, entrosando-se com a liberdade humana para concretizarem esta mesma ordem. Por estas palavras imperativas Deus se manifesta como Senhor, o povo como súdito e a liberdade como responsabilidade, isto é, estas palavras revelam Deus e o homem diante de Deus.

c) Um terceiro tipo da “palavra” são as bênçãos e as maldições: elas introduzem o conceito de “prêmio e castigo” em uma estrutura religiosa. Os bens e as alegrias da vida se tornam sinal de “bênção”, enquanto o infortúnio e o sofrimento transformam o novo ordena­mento salvífico em “maldição”; Dt 30.1: “Quando, porém, te sobre­vierem todas estas coisas, a bênção e a maldição, que te propus...”; Dt 4.30: “Quando te tiverem alcançado todos estes reveses (= pala­vras)...”. Tais “palavras” são condicionadas pela obediência ou deso­bediência do povo; são eficazes na qualidade de palavras pronuncia das pelo próprio Deus; a sua eficácia dialética não procede do jogo da liberdade em si mesma, mas do fato de ser anexada à aliança por Deus.

d) As três espécies de “palavra” - exposição histórica, manda­mentos, bênçãos e maldições - formam uma unidade que é a Aliança; Ex 34.28: “As palavras da Aliança”; Dt 28.69: “Estas são as palavras a respeito da Aliança que o Senhor ordenou a Moisés, que celebrasse com os filhos de Israel, no país de Moab”. Como estas palavras são proferidas na “Aliança”, elas criam uma instituição. E esta institui­ção não é uma realidade estática, mas dinâmica. As palavras, nas quais ela se baseia, se desdobram e se desenvolvem formando esta instituição. Uma vez pronunciadas, têm um valor eterno; o seu cará­ ter mais geral exige, contudo, pela sua natureza, um desenvolvimen­to ulterior e uma adaptação a novas situações. Note-se ainda que a tríplice palavra institucional é uma palavra litúrgica: endereçada a uma assembléia em formação, repetida e atualizada no culto; Ex 19.17: “Então Moisés fez sair o povo do acampamento ao encontro de Deus”; Dt 31.10-11: “Ao cabo de sete anos, por ocasião do ano de remissão, na festa das Cabanas, quando todo Israel vier apresentar-se diante do Senhor, teu Deus, no lugar que ele tiver escolhido, lerás esta lei diante de todo Israel e aos seus ouvidos”; Js 24.1: “Josué reuniu em Siquém todas as tribos de Israel e chamou os anciãos, os chefes, os juízes e os inspetores de Israel, e eles se apresentaram diante de Deus”. Poder-se-ia pensar que o liturgo simplesmente repita palavras já ditas por Deus, mas semelhante repetição mecânica está excluída da dinâ­mica desta “palavra”.


2. A Palavra Profética

A palavra profética tem formas características: “Assim fala o Senhor”, “A palavra do Senhor foi dirigida a...”, “Ouvi a palavra do Senhor”, “Oráculo do Senhor” etc. Se na “Aliança” aparece mais o plural, palavras de Deus, nos profetas prevalece o singular “pala­vra”. Isto significa que a palavra profética em geral é mais individual e mais ligada à situação concreta. O profetismo em geral é um elemento carismático na Aliança (Dt 18). Mas cada profecia tem o seu próprio tema e a sua função própria. Podemos pôr a palavra profética em paralelo com a palavra da “Aliança”, mas com a seguinte distin­ ção: a Aliança era uma unidade formada por três palavras-membros, ao passo que as palavras proféticas são múltiplas e independentes.

a) Outro tipo de “palavra” profética é aquela que se ocupa com a história - para explicá-la se é próxima ou presente, para despertar a sua recordação e a de suas conseqüências, se ela já está distanciada. A palavra profética tem a função teológica de interpretação da his­tória. O que há de estranho e irrepetível na sucessão histórica tem necessidade de semelhante palavra explicativa atual porque a inter­pretação geral e primeira, dada pela Aliança, não basta; ela deve entro­sar-se com cada novo dia da história para mostrar justamente a esta história a supremacia de Deus e o seu poder salvífico. Para isso a palavra profética revela um Deus em ação e descobre o sentido da ação histórica dos homens estimulados por Deus. A palavra profética exprime um acontecimento, transmudando-o em “palavra” e mostra assim, como palavra, o seu significado salvífico. Por meio da palavra profética o acontecimento passado se torna presente à recordação e permite reconhecer nele um significado salvífico. Assim a palavra profética, uma vez proferida e novamente retomada, mantém conti­ nuidade acima da história. Esta constante interpretação da história desenvolve além disso a consciência histórica do povo, o qual com­preende pouco a pouco e sempre melhor a sua responsabilidade his­ tórica perante Deus.

b) Freqüentemente o profeta faz referência aos mandamentos da Aliança, mesmo dizê-lo expressamente. O povo se obrigou a estes mandamentos no momento em que começou a existir como povo e nas horas solenes da renovação. Agora, porém, o profeta recorda este compromisso e acrescenta uma palavra de advertência ou de juízo. A palavra judiciária de Deus, como recriminação ou acusação, se exprime comumente na forma de um ríb, isto é, de instrução criminal (Is 1; Os 2; Mq 6). A advertência, ao contrário, usa mais a recordação do passado como-benefício de Deus e o temor do futuro como castigo. A palavra profética toma a forma pura de mandamento quando o profeta, em nome de Deus e em determinadas situações, exige do povo uma atitude concreta; Jeremias, p. ex., manda ao povo que se submeta à Babilônia. Esta atitude concreta não está contida nas “dez pala­vras” da Aliança nem se pode deduzir delas; é necessária, por isso, uma nova e especial palavra de Deus, que coloque o povo novamente diante de decisões históricas. O plano de Deus se manifesta mais uma vez em uma palavra-mandamento, guiando o curso da história, sem com isto eliminar a liberdade humana, antes apelando para ela.

c) O profeta se torna executor de bênção e de maldição ao pro­ferir a sua palavra de promessa e a sua palavra de ameaça. Na pro­messa e na ameaça proféticas a “Palavra da Aliança, de bênção e maldição” é atualizada (Dt 30.1) e aplicada a casos específicos com notável fidelidade a fórmulas tradicionais de ameaça. A ameaça profética pode-se intensificar, mas só até ao anúncio do extermínio definitivo, como aconteceu com o reino do norte. A promessa profé­tica, ao contrário, conhece uma dialética, que pode superar todas as palavras anteriores de bênção; com isso rompem-se os limites do horizonte presente e se abre, em determinado momento, um horizonte novo, escatológico.

A ameaça e a promessa se apresentam às vezes de modo cate­górico e definitivo, com todo o poder e com toda a eficácia da palavra de Deus. Mas, às vezes são condicionadas pela liberdade humana - como também as;bênçãos e as maldições da Aliança; e é precisamente isto que Deus tem em vista com esta palavra.


3. Ampliação da Palavra

As duas “palavras” fundamentais, a palavra da Aliança e a pala­vra profética, não são como algo fechado e imutável; são dotadas, ao contrário, de uma força dinâmica, tendente à dilatação do seu signi­ficado e do seu poder. Já a palavra profética mostra às vezes esta qualidade em confronto com a Aliança. No uso litúrgico de um mes­mo texto, as palavras proféticas não permanecem sempre as mesmas, pois requerem um comentário que, por sua vez, pode se tornar tam­bém “palavra de Deus”.

a) Como primeira ampliação da palavra da Aliança deve ser lem­brada antes de tudo a parênese. No começo ela aparece como comen­tário sacerdotal da palavra, passando depois a constituir uma nova área da palavra de Deus; Dt 1.1: “Estas são as palavras que Moisés dirigiu a todo o povo de Israel...”. Dt 1.5: “Na banda além do Jordão, na terra de Moab, Moisés começou a promulgar a seguinte lei, dizen­ do...”. Prova de semelhantes inserções no texto, ampliando o sentido da palavra, é o fato de ser colocado na boca de Moisés todo um com­plexo parenético. Trata-se de uma ficção histórica, que encerra ao mesmo tempo uma afirmação teológica: tudo isto é palavra do pri­meiro mediador - palavra dos seus sucessores - e, consequentemente, palavra de Deus.

b) Um segundo grupo é formado pelo oráculo, proferido pela boca de um sacerdote ou de um profeta, como resposta a uma con­sulta de particular ou da comunidade.

Esta instrução é ministrada geralmente durante uma ação cultual, em nome de Deus, e é por isso palavra de Deus. Nem sempre é fácil distingui-la do oráculo profético propriamente dito. Ageu, p. ex., dedica-se em grande parte à tarefa de responder a tais consultas e tem consciência de transmitir a palavra de Deus.

c) A palavra profética de promessa se desdobra até a visão escatológica de um futuro final. Ela não é sempre anunciada formalmen­te como palavra de Deus mediante as clássicas fórmulas proféticas, mas faz uso também de coleções proféticas já existentes.

d) Os salmos não se apresentam formalmente como palavra de Deus, sendo antes palavra do homem, à qual Deus responde. Adqui­rem, contudo, um sentido especial no quadro geral da palavra de Deus. Eles são palavras de Deus enquanto por eles Deus ensina o seu povo a rezar. Eles são palavra autêntica, por meio da qual o povo exprime validamente - sem falsificações da doutrina ou do sentimen­to religioso - a sua fé, a sua gratidão e a sua recordação das ações salvíficas de Deus. Eles são ainda o grito do homem, que quer ser ouvido por Deus e que é ouvido, porque reza com as palavras que Deus lhe ensinou; finalmente, em alguns salmos, a palavra de Deus, que dá o começo, encontra um ambiente de ressonância na medita­ção humana. A palavra dos salmos é verdadeira porque recorda as ações divinas e as anuncia; é firme porque exprime a fé e o reconhe­cimento; é eficaz porque na estrutura da salvação chega realmente até Deus.

e) Os historiógrafos escrevem os seus livros sobre a história do povo - a palavra começa a tornar-se livro num sentido que se apro­xima do nosso. Ponto de partida são aquelas “palavras históricas” da Aliança, às quais vêm unir-se as palavras históricas dos profetas - Elias, Natã, Aias - que explicam os acontecimentos autoritativamente. O historiógrafo coloca a sua pesquisa, o seu estudo e a sua reflexão esclarecida a serviço daquelas palavras embrionárias e capazes de expansão. Embora, ao publicar a sua obra, ele não use a expressão profética “ouvi a palavra do Senhor”, na realidade, ele dá prossegui­mento à atividade profética enquanto mostra o sentido teológico dos acontecimentos, isto é, Deus em ação e os homens sob a direção de Deus. Também a palavra do historiógrafo é tomada como palavra de Deus.

f) Entram na categoria de livros ou coleções as palavras dos sábios, “dibrehakamim“, assim chamadas em contraposição à palavra for­mal de Deus. Embora fruto da experiência e da reflexão também de outros povos, freqüentemente até mais originais e mesmo mais anti-conformistas, estas idéias são reunidas e acrescentadas aos livros santos, à “Escritura”, que é “palavra de Deus”. Aqui se fixa o termo deste processo de assimilação.

No começo a palavra de Deus está na boca de um homem, em forma “humana”, e é ao mesmo tempo revelação de Deus e do homem diante de Deus. Agora entra outra palavra, que parece puramente humana, e que trata da vida cotidiana. Mesmo esta dimensão huma­na, singela e simples, tem seu lugar no plano de Deus. Por isso esse tipo de palavra é plenamente válido e se torna digno de ser acolhido no todo da Escritura.

Uma vez reconhecida como “Escritura”, a palavra passa a exer­cer uma dinâmica própria e requer “comentários”, alguns dos quais são também aceitos como palavra de Deus (p. ex., Eclesiástico, Crônicas).

A dinâmica da palavra se exerce por isso em duas direções: de um lado tende a ampliar-se, do outro, a estabilizar-se. Ela se desen­volve pelo uso e pela aplicação e, no entanto, quer ser preservada com veneração. Ela se incorpora em novos contextos históricos ou literários, mas põe-se em guarda contra as falsificações. Esta tensão da palavra de Deus é uma dinâmica, que pouco a pouco passa a exigir os meios da própria conservação: recordação, reconhecimento oficial, escritura, reunião oficial em livros.


4. Categoria Teológica

A palavra de Deus, transmitida pelos profetas e confirmada na vida do povo como transmissão de uma mensagem e efeito de uma força, transforma-se em uma categoria teológica capaz de compreen­ der e explicar outros lados e intervenções de Deus, novos e misteriosos como a criação e a história. A “palavra”, como categoria teológica, interpreta a criação e a história (no Código Sacerdotal, p. ex.).

a) A criação do mundo é explicada pelo Priesterkodex (Código Sacerdotal) não pelo modelo do arquiteto ou do artesão, mas pela imagem de uma vontade soberana, que se objetiva na forma de palavra eficaz (Gn 1; cf. SI 33.9): “Ele disse e foi criado; ordenou e tudo existe”. Segundo Gn 1 a palavra é antes de tudo apelo à existência, chamamento, e em seguida, imposição do nome que determina a multiplicidade dos seres criados. A ordem cósmica aparece então como uma ordem falada da linguagem divina em conceitos huma­nos. Além disso a dinâmica interna dos seres vivos é transmitida por meio de uma palavra de bênção imperativa: “Crescei, multiplicai-vos, frutificai”. Assim a “palavra de Deus” - apresentada como ação histórica - insere a criação do mundo no contexto da história da salvação.

b) A história da salvação é narrada e explicada muitas vezes na dupla forma de ordem e anúncio, aparecendo Deus sempre como agente principal, por meio da sua palavra. Os grandes historiógrafos israelitas usavam freqüentemente o método da interpretação teológi­ca: a suprema vontade de Deus conduz eficazmente a história em cada caso particular por meio da sua palavra, que anuncia um plano e estabelece a sua execução. Desse modo o acontecimento histórico emerge na sua clara transcendência. Trata-se de um recurso a serviço da teologia, para afirmar, de um lado, o poder da palavra de Deus é, do outro, o valor de revelação dos acontecimentos. Estes se trans­formam em palavra não só quando o escritor narra na terceira pes­soa, mas também quando introduz Deus falando. O autor bíblico conhece a profunda unidade que existe entre o agir de Deus e a sua palavra, e a manifesta.

c) Mais tarde, o hagiógrafo usa uma última ficção literária, apre­sentando as próprias visões e reflexões como palavra de Deus; é a apocalíptica. Este procedimento era conhecido dos leitores; trata-se de um gênero especial, surgindo em tempos de crise. No caso da apo­calíptica bíblica (segunda parte do livro de Daniel), a ficção serve para assegurar a autoridade daquela palavra. Por isso a apocalíptica foi acolhida entre as palavras proféticas, mas mediante uma seleção, tanto que a maior parte dos escritos apocalípticos ficou fora da Bíblia.

Como a palavra profética, também a apocalíptica se volta para o passado, esquematizando-o em períodos históricos, e para o futuro, anunciando a aproximação dos tempos escatológicos.


5. Propriedades da Palavra

a) Coloquemos em primeiro lugar a apresentação ou revelação de determinados conteúdos e, entre estes, da pessoa de Deus. Essa pro­priedade não tem necessidade de ser confirmada. Ela já está clara na exigência dos imperativos “ouve, presta atenção”, e nas expressões “isto diz o Senhor”, “isto ordena o Senhor”, e ainda nas fórmulas de constatação “para que saibais”, “para que reconheçais”, as quais se referem a fatos, palavras e pessoas. Por meio de sua palavra Deus instrui, ensina, põe diante dos olhos, se queixa e condena. Tudo isto significa oferecimento de um determinado conteúdo, que deve ser compreendido, se bem que o seu sentido, de acordo com as ressonân­cias encontradas, possa ser rejeitado ou mal interpretado. A esta propriedade podemos designar esquematicamente como “a verda­ de” da palavra de Deus. Ela pode ser apreendida não só nos modos sintáticos da declaração ou da proposição afirmativa, mas também em todas as outras formas de apresentação da palavra. Finalizando, esta “verdade” significa “revelação”.

b) A propriedade que acabamos de ver é óbvia, não tendo por isso necessidade de ser expressamente afirmada pela Bíblia. Outras, contudo, são expressamente mencionadas: a firmeza e a constância (‘m d e qwiri), a fidelidade (n ’mn). Isto significa que a palavra de Deus se realiza na história como se realizou na criação (SI 148.5); e que Deus vela pela palavra para que ela se cumpra (Jr 1.12b: “Eu vigio sobre a minha palavra para realizá-la”); e com isso ela se distingue da palavra anunciada, sem ordem de Deus por um pretenso profe­ta (Dt 18.22); e que Deus “não renega as suas palavras” (Is 31.2).

A palavra do pacto da Aliança é firme, porque Deus não falta ao compromisso assumido; as palavras de mandamento são fidedignas e firmes, porque fundamentam a ordem religiosa e moral; as palavras de maldição e de bênção são firmes porque, enquanto pronunciadas por Deus, se realizam realmente. Da mesma firmeza participa a palavra profética de promessa ou ameaça; mas, entrando em jogo a liberdade humana, a sua função não é o cumprimento incondicionado, mas precisamente a moção da vontade: trata-se mais de promessa e ameaça do que de predição; Zc 1.6: “Porventura, minhas palavras e meus decretos, que ordenei aos meus servos, os profetas, transmitirem, não chegaram aos vossos pais? Então entraram em si...” (cf. Is 44.26; 45.23; 48.3).

c) Uma outra propriedade da palavra, que nem sempre se pode distinguir da anterior, é a força e a eficácia; Os 6.5: “Matei-os com as palavras da minha boca (= do profeta)”; Jr 5.14b: “Eis que eu vou fazer de minha palavra em tua boca um fogo e deste povo qual montão de lenha, que será devorado por aquele”; Jr 23.29: “Não é a minha palavra como o fogo, diz o Senhor, e como o martelo que despedaça as pedras?”; Is 55.10: “Assim como a chuva e a neve do céu descem e não voltam para lá sem terem antes irrigado a terra, e a terem fecundado e feito germinar e dar semente ao semeador e pão para comer, assim será da palavra que sair da minha boca: não voltará a mim vazia, mas antes, operará tudo o que me agrada, e obterá o escopo para o qual a mandei”.

Esta eficácia não encontra nenhum obstáculo nas criaturas, quando Deus as chama à existência, para o agir, para darem teste­munho. Na história ela não encontra nenhuma contradição quando se observa do alto o plano geral de Deus. Mas, observada do ponto de vista humano, a eficácia da palavra consiste no forte apelo à liber­dade do homem, exigindo resposta e impondo uma situação de res­ponsabilidade: a palavra exige a fé e é aceita na fé. A palavra da Aliança, como história, exige recordação e aceitação. A palavra como instituição exige fidelidade. Como mandamento quer cumprimento e obediência.

Se o homem recusa esta resposta, permanece ainda incluído na tríplice estrutura da palavra da Aliança, mas, desta feita, sujeito à maldição, que tem a força de reconduzi-lo à fidelidade (Dt 30.2).


Primeira Reflexão

Àquilo que o AT diz explícita ou implicitamente da “palavra de Deus”, gostaríamos de acrescentar uma reflexão nossa, que suscita algumas questões teológicas. E nos profetas que a problemática da palavra de Deus se encontra de forma mais expressiva. Na palavra profética vamos encontrar quase todas as tensões da palavra humano-divina com a sua solução concreta.

a) A primeira tensão é aquela que constitui também o grande mistério desta palavra humano-divina: a sua estrutura “teândrica”. A análise de um texto profético clássico nos mostra a existência de um intenso trabalho literário, técnico até nos mínimos detalhes de harmonização, de ritmo, de paralelismo etc. Comparando várias palavras proféticas entre si, podemos constatar o gosto do autor pela tradição literária, pela imitação e repetição de topoi (lugares comuns); precisamente na imitação se percebe às vezes e notável personalida­de literária de um Isaías, de um Jeremias, do Dêutero-Isaías e outros. Uma análise estilística dos textos proféticos mostra não só a sua dimen­são humana em geral, mas também o seu aspecto pessoal e personalíssimo; não só a sua concepção primordial, interna e imediata, que parece um dom, como também o paciente trabalho técnico. Se aquela palavra é bem do profeta e, ao mesmo tempo, também de Deus, segue-se que a intervenção de Deus não pode ser nem um uso do autor, como se fosse ele um rígido instrumento, nem um puro sugerir verbal.

Eventuais tentativas de separar, no texto profético, a parte divi­ na e a humana são destinadas ao fracasso, porque a sua unidade provém, toda ela, tanto da parte de Deus como da parte do homem. Isso nos leva a considerar a origem desta palavra como uma ação misteriosa de Deus, que suscita e guia a fala do profeta. Os testemu­nhos de Jeremias e de Ezequiel sublinham a energia vital da palavra recebida: Jeremias sente como que um fogo interior, que procura uma saída; Ezequiel deve devorar o livro e “digeri-lo”, para poder anun­ciá-lo.

b) A antinomia que acabamos de ver, manifesta-se claramente em dois outros aspectos da palavra, o intelectual e o voluntário, ou na consciência e na liberdade. O profeta é cônscio de anunciar a palavra de Deus, tem consciência de sua missão geral e particular; é menos certo, porém, se ele tem uma real consciência de ser movido por Deus durante a sua atividade específica de escritor. O historiógrafo e o mes­tre de sabedoria, ao contrário, não demonstram aquela consciência. O autor dos Eclesiastes não se cansa de encarecer a sua atividade pessoal, enquanto Ben Sira, em alusão inexata, compara a sua pala­vra com a profecia (Eclo 24.33).

Quanto à liberdade do profeta sob o influxo divino não há dúvida possível.

Se há personalidades marcantes no AT, são os profetas: a sua orientação para Deus aumenta a sua liberdade responsável. Enquan­to Amós atesta o terrível poder da voz de Deus (Am 3.8) e Jeremias experimenta uma constrição semelhante à de alguns poetas român­ticos (Jr 20.9), Ezequiel descreve, com uma distinção casuística, a liberdade do profeta no exercício de sua missão (Ez 33.1-9).

c) Uma outra interessante antinomia da palavra profética reside nos conceitos de profecia-instituição. O profeta é uma parte da ins­tituição da Aliança (Dt 18); ele se refere a ela, defende-a, e ao mesmo tempo a preserva do perigo de um institucionalismo rotineiro, man­tendo vivo o seu sentido genuíno, que é o de uma responsável comu­nhão de vida com Deus. Assim a palavra profética, germinando o seio da Aliança, anuncia que as palavras desta não podem ser trans­formadas em fórmulas vazias.


Segunda Reflexão

a) Se a palavra profética nos impede de considerar o concurso humano para a sua formação como uma rígida atividade instrumen­tal, uma outra série de palavras de origem não profética, nos impede de identificar a palavra de Deus com uma notificação prévia de um conteúdo. O influxo de Deus sobre o homem, para que este transmita a sua palavra, pertence a outra ordem. Sem excluir a realidade de revelações prévias - é o caso de muitas profecias - deve-se entender o influxo carismático como um movimento e uma eficaz orientação da linguagem humana, que leve à realização da obra oral, seja qual for a ordem à qual ela pertença.

b) Pergunta-se qual terá sido a importância social da palavra no AT. A palavra é orientada para a comunidade; isto se realiza de dois modos complementares. Algumas vezes o autor sagrado é a voz do seu povo; a sua obra é recebida pelo povo, que nela se reconhece, e assim o autor pode permanecer desconhecido. Outras vezes o autor sagrado se apresenta ao povo para acusar, julgar e converter; tam­bém aqui o povo reconhece o verdadeiro significado destas palavras, provocadas por ele.

Quanto à sua origem a palavra do AT muitas vezes é anônima, o que não significa que o seu autor seja a massa amorfa. Além disso, uma palavra profética pode ser transmitida, por exemplo, em um grupo de discípulos, que num trabalho de reelaboração, compõem novas obras, nas quais a incorporam. Deste modo origina-se uma série sucessiva de autores, difíceis de serem apanhados na sua individua­lidade, mas que, no entanto, existem. Mesmo neste caso a palavra não brota de uma comunidade amorfa. Em nenhuma literatura do Oriente Antigo encontramos tantos autores ou escritores de tão alto nível e de personalidade tão marcante. De alguns conhecemos até os nomes e os dados biográficos (as últimas tentativas de dividir estes escritores em séries de fórmulas cultuais ou proféticas fecham os olhos e os ouvidos para a sua diversidade). O caso mais evidente, que podemos apontar, de colaboração de autores em um livro da Sagrada Escritura é o livro dos Provérbios. Trata-se de sentenças anônimas, diferentes umas das outras e independentes: um anônimo as reuniu e formou com elas uma antologia.

c) A palavra do AT chegou até nós em forma escrita, mas é ine­gável que muitos textos existiram primeiro na forma oral e nela foram transmitidos. Assim, os autores mais recentes usam em suas obras um material que se tinha formado na tradição oral - e também na tradição escrita anterior. A escrita tem uma função, a de conservar textos e transmiti-los, fixando-os com uma eficácia particular. Freqüen­temente ela tem também uma função jurídica: a de ser um documen­to, um testemunho da validade da Aliança. E lógico que reunindo palavras importantes, a escrita seja o seu elemento de fixação e de transmissão. A “palavra inspirada” se transforma em “Escritura”.

d) Uma primeira leitura do AT já é suficiente para mostrar que, com poucas exceções, aqui se usa uma elevada linguagem literária, concreta, imaginosa, simples, de grande expressividade. A análise estilística confirma e reforça esta impressão, demonstrando a cons­ciência literária dos autores, a sua liberdade no uso das fórmulas, a sua intenção na composição formal ou dinâmica etc. Este fato, que pode desagradar a certos professores, deve ser levado em considera­ção. Parece, contudo, que a palavra poética, com a sua plenitude, a sua intensidade e a sua força evocativa seja mais conforme à palavra de Deus e ao influxo do Espírito.

Para se compreender a mensagem da palavra poética não se deve dissociá-la desta palavra, mas pronunciá-la e meditá-la. Semelhante familiaridade com esta palavra pode, por sua vez, fazer brotar outra palavra poética, vindo esta a formar uma obra literária. (Não se pode negar que algumas palavras poéticas se desenvolveram até recebe­rem uma significação e até uma formulação técnica).

Isto é importante para responder a uma objeção corrente: “o homem moderno, afeito à técnica, não sabe aproveitar nada do Antigo Testamento”. Se o homem moderno perdeu a sensibilidade para a palavra poética, isto é um prejuízo e não uma vantagem ou um pro­gresso. O remédio para ele não é a rejeição da palavra bíblica, mas a recuperação do gosto perdido.

e) Além disso é significativo que a palavra do AT nos seja ofere­cida no conjunto de uma obra literária: em unidades maiores ou menores, originais ou elaboradas. Com isto, as palavras ganham estabilidade e durabilidade, e ao mesmo tempo querem ser lidas e ouvidas, “expostas” ou presencializadas. Sem perder nada de sua firmeza, adaptaram-se a uma contextura mais vasta ou assumiram em seu âmbito outros elementos assimiláveis. O seu gênero literário não é totalmente idêntico ao das obras literárias de nossa cultura, mas coincide com ele em pontos essenciais.


6. O Novo Testamento

O Novo Testamento freqüentemente dá testemunho sobre o Antigo. Não se trata aqui de analisar a fundo este testemunho, mas apenas de apontar os temas principais do NT e de mostrar que Deus ou o Espírito Santo fala através de Moisés e dos profetas. A autoridade da “Escritura” é reconhecida e citada, atribui-se a ela valor profético: “ela deve cum­prir-se”, o Antigo Testamento é palavra de Deus. Os textos clássicos são 2Tm 3.15-17 e 2Pd 1.20-21: “Desde a tua infância conheces as sagradas Letras; elas têm o poder de comunicar-te a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Cristo Jesus. Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para instruir, para refutar, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, qualificado para toda boa obra” (2Tm 3.15-17); “Antes de mais nada sabei isto: que nenhuma profecia da Escritura resulta de umas interpretação particular, pois que a profecia jamais veio por vontade humana, mas os homens impelidos pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus” (2Pd 1.20s). Segundo ICor 10.11 os acontecimentos do AT são ima­gens que se transformam em ensinamento na nova ordem da salva­ção. Segundo Hb 4.12 “a palavra de Deus é viva, eficaz e mais pene­trante do que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e as intenções do coração”.


7. Resumo

1. Acabamos de ver a complexidade da palavra de Deus na vida do povo: distinguimos dois grupos de palavras, as da Aliança e as proféticas, compreendendo três membros paralelos: história, mandamento, bênção-maldição; interpretação histórica, mandamento e advertência, promessa e ameaça. Constatamos depois um primeiro círculo de ampliação: parênese, instrução, escatologia; em seguida, o último círculo de ampliação: o livro sagrado, a historiografia, o ensi­namento sapiencial; por fim, o livro é comentado como “Escritura”. Vimos que a experiência imediata se transforma em categoria teoló­gica para interpretar os dois grandes mistérios, o da criação e o da história. Esta categoria teológica se reveste de um processo fictício intencional. Compete a nós agora ouvir o que esta palavra diz de si mesma, como ela se descreve, quais as principais características que apresentas - a alguma delas já aludimos.

2. A palavra do AT transmite um conteúdo: revela Deus e o homem, habitualmente de forma concreta. Ela é firme e estável por­que perdura, se cumpre, fundamenta uma instituição, funda a fé e a confiança. E ativa e eficaz, atuando em cada um e na história.

3. Acima de tudo a palavra profética nos permite descobrir algu­mas tensões de sua natureza: uma estrutura divino-humana, a consciência e a liberdade do homem para a transcendência e o influxo divino, o nexo da profecia com a instituição. Uma comparação entre os diversos tipos nos ensina que a palavra inspirada não exige uma revelação prévia. A palavra tem uma especificação social, mesmo provindo de autores individuais. A forma escrita conserva a palavra, confere-lhe validade jurídica ou de testemunho. O AT emprega geralmente uma linguagem que atinge, em uma obra de arte literária, a sua forma válida e definitiva.