Estudo sobre Hebreus 11
Índice: Hebreus 1 Hebreus 2 Hebreus 3 Hebreus 4 Hebreus 5 Hebreus 6 Hebreus 7 Hebreus 8 Hebreus 9 Hebreus 10 Hebreus 11 Hebreus 12 Hebreus 13
3) A fé
definida e ilustrada (11.1-40)
Visto que a fé é um
elemento tão importante para a perseverança, como mostra a profecia de
Habacuque, tão importante que constitui a dinâmica pela qual o justo
deve viver, o autor volta sua atenção agora para a exposição completa
do seu significado. Ele começa com uma descrição: fé é a certeza
daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos (v. 1).
Agora, se aceitarmos essa tradução (e não a VA e Westcott, Comm., p.
350, que trazem possibilidades alternativas), então o autor descreveu a fé
não como, em si mesma, “a substância das coisas pelas quais se espera”
etc., mas como uma atitude da mente em relação ao futuro e o invisível
que é determinante para a conduta pessoal no presente. A fé,
fundamentada como está na palavra inabalável de Deus, não é de
forma nenhuma um “salto no escuro”. Ela nos assegura da realidade do mundo
invisível, e de sua superioridade sobre o visível, e por meio disso
nos capacita para fazermos as escolhas corretas nos momentos de decisão. A
fé, portanto, é fundamental para a perseverança, pois a perseverança não é
nada mais do que uma série de escolhas para o futuro e o
invisível, em contraste com escolhas para o presente e as coisas
transitórias que pertencem ao mundo dos fenômenos. Foi então pela fé que os
antigos receberam aprovação divina (v. 2), pois eles, como o autor
está para demonstrar com muitas evidências, foram capacitados por
ela a “se apegarem ao invisível, apesar das ilusões e tentações deste
mundo passageiro” (E. F. Scott, Comm., ad loc.). Assim,
pode-se ver novamente uma continuidade entre o passado e o presente —
uma continuidade da fé no invisível que liga os dois povos.
E interessante observar
que, ao ilustrar essa definição de fé, ele o faz de forma aproximadamente cronológica.
Ele começa com a criação do mundo. Pela fé entendemos que
o universo foi formado [...] de modo que aquilo que se vê não
foi feito do é visível (v. 3). Essa afirmação não tem o propósito de
ensinar a criação ex nihilo, nem de dizer coisa alguma a respeito
do caráter da substância anterior da qual o mundo foi feito. O único ponto
do autor é que “nenhuma explanação puramente física do mundo é
possível” (Westcott, Comm., p. 353). A fé busca por respostas nas
coisas que estão além do que se pode ver (v. 1).
Em seguida, o autor chama
muitos santos do AT para testemunhar do significado da fé. Em primeiro
lugar nessa ordem, ele discute aqueles grandes heróis que viveram antes
do Dilúvio (v. 4-7). Abel ofereceu a Deus um sacrifício superior ao de
Caim (v. 4). O autor não afirma em que forma era “superior”, a
não ser ao dizer que foi apresentado por fé e ao sinalizar a
possibilidade de ele ser um sacrifício “mais abundante” (gr. pleiond) do
que o de Caim, um fato que pode indicar um sentido mais completo do direito
de Deus sobre a sua vida do que o evidenciado pelo seu irmão (cf.
Westcott, Comm., p. 354). Observe que Deus aprovou as suas
ofertas (v. 4), e não a oferta!
A prova da fé que Enoque
possuía está no fato de que ele tinha agradado a Deus (v. 5; cf. Gn
5.24, LXX, em que o texto hebraico traz ”andou com Deus”), pois uma pessoa
não pode agradar a Deus sem uma fé que enxerga claramente a ele, o
invisível, como uma realidade viva, e como alguém que pode intervir na história
para recompensar aqueles que o buscam (v. 6). A recompensa para a
fé que Enoque tinha foi o arrebatamento — Pela fé Enoque foi
arrebatado, de modo que não experimentou a morte (v. 5).
O significado de fé como
definida pelo autor de Hebreus é mais claramente ilustrada com base na
vida de Noé, de quem se diz que Deus o avisou de coisas que ainda não
se viam (v. 7). A sua resposta mostrou que, embora o Dilúvio ainda
estivesse no futuro e talvez fosse algo inaudito, certamente
nunca visto, ele mesmo assim foi convencido de sua realidade em virtude
do oráculo divino. Essa convicção determinou o seu curso de ação —
ele obedeceu a Deus. Assim, ele tornou-se herdeiro da justiça que é segundo a fé (v. 7, uma expressão parecida com a linguagem de Paulo; cf.
Rm 3.22; 4.13; Hb 10.38).
Os testemunhos de fé
seguintes na ordem foram os patriarcas desde Abraão até José (v. 8-22).
Abraão é o primeiro e talvez o maior exemplo de fé no AT. Para o autor de
Hebreus, Abraão provou sua fé por sua pronta resposta ao chamado de Deus,
embora fosse para ir a um lugar que lhe era totalmente desconhecido (v.
8), e pelo fato de que ele não fez dessa terra prometida (v. 9) um
lar permanente, Pois ele esperava a cidade que tem alicerces, cujo arquiteto
e edificador é Deus (v. 10). De forma muito semelhante ao que fez nos
caps. 3 e 4, o autor mostra que a terra prometida foi para
Abraão somente uma terra de promessa temporária. A verdadeira “terra
prometida” era a celestial, a que não tinha sido vista, que, quanto
tornada visível pela fé, o fez viver como peregrino neste mundo. A fé é “a
convicção de coisas que não vimos”. Isaque e Jacó, co-herdeiros da mesma promessa (v. 9), também compartilhavam a perspectiva que ele tinha da
vida.
De acordo com o v. 11, a fé
que Sara tinha é unida à de Abraão num empreendimento conjunto para produzir
um filho. Mas não há registro da sua fé no AT — somente da
sua incredulidade diante da promessa do Senhor (Gn 18.12ss). Além
disso, a expressão grega traduzida por gerar um filho (katabolê
spermatos) é usada regularmente em relação a “semear” a semente,
a “gerar” (Arndt e Gingrich, Greek-English Lexicon), e não “conceber”.
Por isso, é bem provável que o grego deva ser traduzido por “Pela fé ele
(Abraão) recebeu o poder de gerar por meio da própria Sara”.
Essa tradução alternativa coincide com Rm 4.19, em que Paulo, também,
ignora a fé em Sara.
Em bom estilo literário, o
autor divide o seu panorama da história da redenção para que não se torne
monótono e faz uma pausa para resumir o que disse até aqui (v.
13-16). Há um cumprimento mais amplo para as promessas de Deus do que pode
ser realizado na terra no âmbito do visível — Todos estes viveram
pela fé, e morreram sem receber o que tinha sido prometido (v. 13).
Assim, embora Abraão chegasse até Canaã — a terra prometida — e embora
Isaque lhe nascesse já numa idade avançada, e nesse sentido as promessas
de Deus foram cumpridas, e sua fé não ficou totalmente sem recompensa, é
verdade também que ele não recebeu o que foi prometido, o que significa
que não recebeu as promessas (a tradução literal do grego). As promessas
de Deus não podem ser cumpridas aquém daquela pátria melhor [...] a
pátria celestial (v. 16). Lembre que, para o autor de Hebreus, o mundo
celestial é o mundo real. O mundo dos fenômenos é apenas a
sua sombra. Fé, a capacidade de ver essa esfera invisível, estimula o
crente a escolher a favor daquele mundo e contra este. Assim foi que a fé
fez os patriarcas viverem como estrangeiros e peregrinos na terra (v.
13,14) porque eles estavam buscando uma pátria além dos limites de
tempo desta terra (v. 14). Por isso, Deus não se envergonha de ser
chamado o Deus deles (v. 16; cf. Mc 12.26,27). O autor chega a
essa conclusão com base no fato de que enquanto os patriarcas viviam na
terra prometida eles mesmo assim se consideravam “estrangeiros”, “peregrinos”
(Gn 23.4; 24.37; 28.4; 47.9). Fé, então, é o contrário de voltar
atrás; é um avançar constante em direção a alvos que são reais, embora
vistos imperfeitamente. Esse, aliás, é o tema de todo o livro de
Hebreus, e está condensado dentro dos limites de um conceito — fé.
O autor agora se volta para
a fé do patriarca Abraão, antes de prosseguir para citar a de Isaque, Jacó e
José (v. 17-22). O teste supremo da fé em Abraão foi o pedido de Deus para
que sacrificasse Isaque (v. 17), de quem se disse: “Por meio de Isaque
a sua descendência será considerada” (v. 18). Abraão
obedeceu, embora a “ordem de Deus parecesse se chocar com a promessa de
Deus”, porque Abraão levou em conta que Deus pode ressuscitar os mortos
(v. 19; cf. Gn 22.5; aqui há mais uma das poucas referências à crença do
autor na ressurreição). Assim, a “ressurreição” de Isaque foi “por meio de
uma parábola” (figuradamente, v. 19) e se tornou um tipo da
ressurreição de Cristo. Isaque, Jacó e José se complementam, cada um à sua
maneira, para ilustrar novamente que a fé é a certeza de coisas
que esperamos, a convicção de coisas que não vemos (v. 20-22). A
referência ao bordão de Jacó (v. 21) onde o texto hebraico
menciona sua “cama” (Gn 47.31) é mais uma prova de que o autor está
usando a LXX.
Em seguida, o autor trata
de Moisés e de sua fé (v. 23-28). Sua fé, começando com seus pais que por
meio dela obtiveram “um pressentimento do destino de seu filho” (Josefo, Ant.
II, 9,3 citado por F. F. Bruce, Peake’s Comm., p. 1.017), o
constrangeu a abrir mão do imediato a favor das coisas futuras, do visível
a favor do invisível, preferindo ser maltratado pelo povo de Deus a
desfrutar os prazeres do pecado (v. 25) por algum tempo. Por
amor de Cristo, considerou sua desonra uma riqueza maior do
que os tesouros do Egito (v. 26). Essa interpretação dada ao texto
grego significa que Moisés tinha “fé no Deus que cumpriria seu
propósito e sua promessa, um cumprimento que somente poderia ocorrer com
a vinda de Cristo” (A. C. Purdy, Comm., ad loc.; ICo 10.4).
Traduzido literalmente, no entanto, esse versículo diz que Moisés “considerou a
desonra do Cristo como sendo riqueza maior” (cf. ARA: “considerou o
opróbrio de Cristo por maiores riquezas...”, ARA), o que poderia
significar que o próprio Moisés se considerou feliz em sofrer aquela
desonra que pertence a qualquer ungido de Deus enviado ao mundo que
se rebela contra Deus. Em outras palavras, Moisés sofreu como o
Cristo de Deus, seu ungido, pois “essa desonra, que foi sofrida de
forma mais intensa por Cristo Jesus (Rm 15.3), foi sofrida também por
aqueles que de alguma maneira o prefiguraram ou representaram” (Westcott, Comm.,
p. 372).
Por fim, o autor toca
brevemente no tema da fé daqueles desde Exodo até o tempo dos macabeus (v.
29-38), mencionando especificamente a fé que tinha “o povo” ao cruzar
o mar Vermelho e na conquista de Jericó (v. 29), e de Raabe, a
prostituta (v. 31), mostrando que “fortalezas caem diante da fé, e até os
mais mal-afamados são redimidos por ela”. Aí, por falta de tempo, ele
resume as proezas de juízes, profetas, reis, exilados e mártires (mas
não em ordem estritamente cronológica), cujas façanhas estão gravadas
profundamente nos anais da história de Israel. Esse é um dos trechos mais
belos do ponto de vista do estilo em Hebreus; é também o mais comovente.
Serve de forma magnífica para resumir o conceito de fé do autor. E
aquilo que nos impele adiante sempre, nunca se dando ao luxo da
retirada. E “ação ousada”. E confiança e certeza. E obediência. E
perseverança. A fé é ver o invisível em foco claro, assim que o mundo visível
presente perde o seu charme. Por meio dela, a pessoa é capacitada a abrir
mão da própria vida, se necessário, a fim de obter aquela vida melhor
por vir (v. 35b). E possível que o pano de fundo desse resumo conclusivo
venha de 2Macabeus 6.18—7.42. O
autor considera os homens e mulheres mencionados aí na mesma estatura de
Gideão, Baraque, Sansão, Davi etc., no seu testemunho ao significado da
fé. A referência a serem serrados ao meio (v. 37) pode indicar
familiaridade com uma obra lendária intitulada 0 Martírio de Isatas,
em que Isaías foi supostamente serrado em pedaços com uma serra de
madeira porque profetizou a vinda da redenção por meio de Cristo (cf. R.
H. Pfeiffer, History ofthe New Testament Times with an Introduction to
the Apocrypha, 1949, p. 73-4).
Todos estes
receberam bom testemunho [...] no
entanto, nenhum deles recebeu o que havia sido prometido (v. 39), isto
é, eles não receberam ”# promessa”, a promessa messiânica. Toda a
história da redenção, com seus múltiplos cumprimentos parciais, avança
para o seu clímax no que poderia ser chamado de evento de Cristo. Esse
evento foi a pedra fundamental, o teleiõsis da história; portanto, o
autor de Hebreus pode dizer que Deus falou de forma definitiva pelo
seu Filho, e ele o fez ”nestes últimos dias” (1.2). Assim, o
cristão está vivendo na era do cumprimento — a promessa de Deus foi
cumprida na vinda do Messias. E à luz disso que as palavras Deus
havia planejado algo melhor para nós (v. 40) precisam ser
compreendidas. Quanto maior deveria ser, portanto, a nossa fé, a nossa
lealdade para com Deus, que a dos antigos. E, mesmo assim, a
expressão para que conosco fossem eles aperfeiçoados (v. 40) sugere
que os homens de fé no AT e os da Era Cristã pertencem juntos a um
mesmo povo de Deus, para que juntos sejam aperfeiçoados.