Mateus 5:13-36 — Comentário Católico

Mateus 5:13-36 — Comentário Católico

Sermão da Montanha (5,13-36)

Mateus tomou ditos antigos da tradição sobre Jesus (Mc 9,50; 4,21; Lc 8,16; 11,33; 14,34-35), que usavam as metáforas do sal e da luz, e os aplicou aos ouvintes do sermão. Cf. Plínio, Nat. Hist. 31.102: “nada é mais útil do que o sal ou o brilho do sol”. Mateus enfatiza a interpelação pessoal através do pronome “vós” e “vossa”. Ele diz aos discípulos: embora perseguidos, vocês têm uma vocação para o mundo. 13. sal insosso: isto é, inútil. Literalmente falando, o sal não pode perder seu sabor e continuar sendo sal, mas no judaísmo pode tornar-se impuro e ter de ser jogado fora. O sal é tanto um tempero quanto um conservante. Assim é um bom mestre. A descrição do destino do sal usa a imagem do julgamento divino. 14. luz: a imagem da luz é aplicada a Deus, a Israel (Rm 2,19). No NT, é aplicada a Jesus (Mt 4,16; Lc 1,79; 2,32; F1 2,15; Ef 5,8). uma cidade situada sobre um monte: veja Is 2,2-5.Se isto se refere a uma cidade específica no topo de uma colina da Galileia, uma cidade possível seria Hipos; se não, Jerusalém. Com a confiança da fé, os discípulos não devem fugir de sua missão no mundo. 15. A imagem pressupõe uma casa de um cômodo na Palestina, uma lamparina comum de argila com óleo e um alqueire. O discípulo vive não somente para si, mas para os outros; cf. 25,26; 2Cor 4,7.16. brilhe do mesmo modo a vossa luz diante dos homens: Mateus tira sua conclusão dos elementos que recebeu da tradição. O versículo contém um ato de equilíbrio delicado entre a prática de boas obras e não ficar orgulhoso ou não receber crédito pelas mesmas. A vida do discipulado, descrita no restante do sermão, não deve conduzir à arrogância, mas à conversão de muitos a “seu Pai que está nos céus”.

É característico de Jesus dirigir-se a Deus como Pai; é característico de Mateus acrescentar ao termo “Pai” “meu/seu... nos céus”. Veja 5,45.48; 6,1.9.14.26.32; 7,11, etc. 26 (C) A nova ética, seus princípios legais básicos e seis hiperteses (5,17-48). (a) A justiça superior (5,17-20). Estes versículos indicam os princípios legais básicos do sermão. São os versículos mais controversos em Mateus e não há consenso quanto à sua interpretação. O intérprete deve tentar formular claramente o problema e emitir um juízo historicamente honesto, mesmo ao preço da meticulosidade teológica. O problema surge porque o sentido manifesto das palavras é que Jesus reafirma a validade permanente da Torá; mas isto contradiz Paulo (p.ex., G1 2,15.16; Rm 3,21-31). Além disso, nenhuma igreja cristã importante requer a observância de todos os 613 preceitos da lei do AT, os éticos e os cerimoniais, mas somente dos mandamentos éticos, como o Decálogo e os mandamentos de amar a Deus e o próximo. Assim, há um hiato entre este ensinamento e o ensinamento e a prática das igrejas. A posição adotada aqui é a seguinte: (a) Há contradições no Novo Testamento em relação a assuntos de importância penúltima; isto não é necessariamente uma desvantagem, visto que deveria ampliar a tolerância cristã da variedade dentro da igreja e ajudar o ecumenismo (veja E. Kasemann, “The Canon of the New Testament and the Unity of the Church”, ENTT 95-107; H. Küng, “The Canon of the New Testament as an Ecumenical Problem”, The Council in Action [New York, 1964]). (b) Historicamente, Mateus (e Tiago) inclinou-se mais para o lado judaico-cristão da polêmica protocristã, embora Mateus esteja claramente aberto à missão aos gentios (28,19-20). Contudo, ele nunca menciona a circuncisão, o assunto mais divisor entre Paulo e Tiago, embora a possa pressupor como desejável, mesmo não sendo absolutamente necessária.

Além disso, Mt 5,21-48 não discute preceitos cerimoniais detalhadamente, mas se concentra na ética. Há duas estratégias exegéticas comuns para evitar o significado evidente: a reinterpretação (a), especialmente através do v. 18d; mas cf. 23,23; (b) negar sua autenticidade. Esta última abordagem contém boa dose de verdade. Com exceção do v. 18, os versículos são, provavelmente, pós-pascais e refletem a perspectiva do cristianismo judaico, que, como movimento separado, acabou sendo derrotado pelo paulinismo e desapareceu (talvez para renascer de uma forma diferente, como islamismo; veja H.-J. Schoeps, Jewish Christianity [Philadelphia, 1969]; J. Daniélou, The Theology of Jewish Christianity [London, 1964]). Mas a negação da autenticidade dos vv. 17.19.20 não faz com que Jesus tenha a mesma opinião que Paulo. 27. A lei em Mateus, Jesus provavelmente não rompeu, em princípio, com a Torá, mas somente com a halacá dos fariseus. Contudo, ele era um espírito livre que enfrentava e resolvia diretamente situações da vida em suas curas e parábolas sem citar textos cuidadosamente. Mateus permanece na mesma linha de fidelidade básica à Torá, mas com uma concentração nos valores mais importantes (23,23) e com um interesse jurídico de proporcionar sustentação textual para inovações. Paulo prefere uma ética de valores como a fé, a esperança e o amor e o andar no Espírito a uma ética legal, mas ele cita o Decálogo como preceito aplicável aos cristãos (Rm 13,8-10), mesmo que as leis cerimoniais não sejam obrigatórias para os gentios convertidos de acordo com seu evangelho. No que se refere à maioria dos cristãos mais modernos, Paulo ganhou esta luta e eles o seguem.

Mas Mateus, exercendo uma influência poderosa na vida da igreja, tem atuado como influência moderadora do paulinismo radical, que pode facilmente se transformar em libertinismo e antinomismo. Paulo e Mateus estimam o Decálogo e o centram no amor. 28,17. não penseis: Esta expressão introdutória supõe uma visão errônea que necessita ser corrigida, a Lei ou os Profetas: Fórmula frequente em Mateus (7,12; 11,13; 22,40), refere-se ao todo da revelação de Deus no AT. revogá-los ... cumprimento: Esta contraposição ensina que a atitude básica de Jesus para com a herança judaica era fundamentalmente positiva e de simpatia, embora incluísse a crítica de alguns desdobramentos que ele julgava prejudiciais (veja caps. 15 e 23) e o começo de uma nova era. No pano de fundo, encontra-se um par de expressões rabínicas, qwm e btl. Qwm significa “confirmar” ou “estabelecer” a lei colocando-a sobre um fundamento exegético melhor (veja Rm 3,31); btl significa “anular, abolir, suspender, esquecer ou cancelar” uma lei. Mas a formulação de Mateus substitui “estabelecer” por “cumprir”, que vai além de uma discussão puramente legal e chega a uma perspectiva cristológica mais ampla. 18. até que passem o céu e a terra: Este é o versículo fundamental da unidade porque está arraigado em uma palavra de Jesus (Q: Lc 16,17). Ele afirma a permanência da lei enquanto o universo físico durar. Mateus apresenta o dito com uma introdução solene “Amém ...” e emoldura sua parte central (“nem um til”) com duas orações temporais em paralelismo rigoroso (até ... até), que significam exatamente a mesma coisa, o fim do mundo. Quando os comentadores acham este significado inaceitável, frequentemente interpretam a segunda expressão com até como se se referisse à crucificação de Jesus, mas há pouca base para esta proposta; veja 24,34s.

O significado do versículo é duplo: (1) A totalidade do AT tem valor religioso para os seguidores de Jesus e deve continuar a ser preservado, rezado, estudado e pregado no movimento que ele iniciou. (2) As prescrições da lei ainda são obrigatórias para os seguidores imediatos (judaico-palestinenses) de Jesus; veja Is 40,8. um só i, uma só vírgula: “1” refere-se ao yôd, a menor letra do alfabeto hebraico; a “vírgula” corresponde a um pequeno sinal em uma letra hebraica que a diferencia de outra letra formada de maneira semelhante. 19. aquele que violar: Este versículo tem sua origem na polêmica judaico-cristã contra os cristãos helenizantes, particularmente contra Paulo e seus seguidores. Ele ensina que mesmo as menores questões da lei são importantes (veja m. ’Abot 2,1; 3,18; 4,21; Mt 23,23). Contudo, o versículo tem o cuidado de não excluir os laxistas do reino; são chamados simplesmente “os menores”. Isto reflete uma maneira delicada, ecumênica de luta: você destaca o que quer ressaltar, mas não condena seu oponente, praticar e ensinar: Esta sequência característica reflete o horror de Mateus pela hipocrisia - ensinar uma coisa e fazer outra. Jesus concederá mais tarde aos líderes da igreja a autoridade para ligar e desligar (16,19; 18,18). 20. vossa justiça: Este versículo quase certamente provém da redação de Mateus e indica o título temático para o restante do capítulo, “uma justiça mais abundante”. Um senso de abundância (perisseuein) é característico de todo nível do protocristianismo.

Para Mateus, a essência do que Jesus trouxe é uma ética superior, uma justiça mais elevada. Sua piedade é uma piedade moral. Seus grandes oponentes são os herdeiros rabínicos dos fariseus de Jâmnia. Observe que ele não diz explicitamente que os fariseus não entrarão no reino. O versículo é uma advertência para os cristãos. 29 (b) Ira (5,21-26). A primeira de seis hiperteses. Elas são geralmente chamadas de antíteses, porque os intérpretes ficaram impressionados com a autoridade soberana de Jesus sobre a Torá do AT e com os casos em que seu ensinamento parece contradizer o AT ou opor-se a ele, por exemplo, sobre o divórcio, que o AT permite e que Jesus proíbe (ou restringe). A interpretação atual enfatiza, pelo contrário, que Jesus parece ir além do ensinamento do AT a profundando-o e radicalizando-o, retornando à vontade original de Deus, mas que ele nunca vai na direção do laxismo; por isso se usa o neologismo hipertese (P. Lapide). Também deve-se observar que a fórmula “foi dito... eu, porém, vos digo” está próxima de uma fórmula exegética comum nas escolas rabínicas: primeiramente uma citação da Bíblia e, então, “podeis pensar que isso significa... mas eu vos digo...”. Na verdade, aqui no sermão discurso um texto do AT é seguido por uma interpretação falsa, que então Jesus corrige; veja sobre 5,43. Entretanto, as hiperteses, embora sejam exegéticas na forma, são, em termos de conteúdo, revelação para Mateus. 21. ouvistes: Isto pressupõe um público que aprendeu a lei judaica, que foi dito: O verbo é um passivo teológico: Deus disse (veja ZBG § 236) aos antigos: Este termo se refere à geração do Sinai que ouviu pela primeira vez a lei da boca de Moisés. não matarás: Êx 20,13; Dt 5,17.

A lei bíblica vem em duas formas: apodítica e casuística. A apodítica tem a forma imperativa negativa do Decálogo; a casuística toma as formas “se qualquer pessoa, ou “toda pessoa que” ou “no caso de”. Aqui temos uma ordem apodítica seguida pela casuística: “aquele que matar terá de responder no tribunal”. Esta é uma interpretação tradicional do mandamento. 22. Eu, porém, vos digo: Jesus considera a interpretação tradicional inadequada, embora não falsa. Ele transfere a base do ato de matar para o prelúdio emocional do assassinato, a raiva. Efetua, assim, uma interiorização que vai à raiz da ação moral. Uma vez que o assassinato é uma tentação relativamente rara, mas a raiva é uma experiência comum, podemos ver uma tendência de trazer a lei do Decálogo, que se aplica ao líder do clã, ao nível do cotidiano do israelita comum, uma tendência à democratização da Torá. (Os fariseus também se encaminharam nesta direção, mas com a diferença que preferiram a complexidade à simplicidade). Atualmente surge um problema porque a psicologia moderna ensina que a raiva neuroticamente reprimida é a fonte de muitas doenças mentais. Portanto, devemos ter cuidado para não pensar que Jesus esteja defendendo a repressão neurótica.

Nós deveríamos reconhecer nossas emoções, mas não expressá-las através da fúria, ou matando alguém, ou praticando alguma outra forma de violência, cretino: Raka pode ser a tradução para o grego do termo aramaico rêqã’, “de cabeça oca” (EWNT3.497). Pode haver uma intensificação das penalidades, do pequeno sinédrio ao grande sinédrio à Gehenna (Vale de Hinom, situado fora de Jerusalém, que, por causa da escória industrial, dos altos fornos e da queima de corpos de vítimas das pragas se tornou um símbolo do fogo do inferno). Estes três casos são todos expressos na forma casuística. O mesmo se aplica ao caso seguinte. 23-24. Este caso pressupõe o Templo ainda em pé e deve ter se originado antes de 70 d.C. Ele também pressupõe que Jesus aprova o Templo e o sistema sacrificial. Após a crucificação alguns cristãos devem ter considerado o sistema do Templo (ou a administração) como falido espiritualmente, como o fez a comunidade de Qumran, embora outros devam ter continuado a prestar culto lá. deixa... depois: Esta prioridade da ética sobre o culto reflete o ensinamento profético do AT: não pode haver adoração verdadeira a Deus sem justiça, uma doutrina chamada monoteísmo ético, frequentemente considerada o centro do AT. Uma vez que a justiça perfeita nos escapa antes que o reino venha, devemos adorar de maneira imperfeita, confiando na misericórdia de Deus. reconciliar-te: No NT, a reconciliação é principalmente um tema paulino. Cf. Mc 11,25. 25-26.

O conselho destes dois versículos é reconciliar-se fora do tribunal, que certamente ainda é um bom conselho hoje. atitude conciliadora: Este versículo emprega um conceito tipicamente grego, eunoia, “boa intenção”, “boa-vontade”, “afeição”. Há uma intensificação nas penas: o juiz, o guarda, a prisão. 30. 27. Após uma fórmula introdutória mais breve, citam-se Ex 20,14; Dt 5,18. Por analogia com o v. 21, poderíamos introduzir, após a citação, a interpretação inadequada: “Quem cometer adultério será levado a julgamento”. Jesus corrigirá e aprofundará agora esta perspectiva. 28. todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso: Jesus passa do nível da ação para o nível da intenção libidinosa. Uma vez que este versículo atribulou muitas consciências, às vezes de forma patológica, é importante tentar compreender seu sentido do modo mais exato possível. Uma vez que o adultério é um assunto grave, que atenta contra a justiça, bem como a castidade, os atos que levam a ele também podem ser gravemente errados do ponto de vista moral, por exemplo, a alienação da afeição. As palavras de Jesus aqui devem ser entendidas estritamente em relação ao adultério. Elas não condenam nenhum pensamento sobre questões sexuais, como o que estaria envolvido no estudo de medicina ou na simples veleidade, já cometeu o adultério com ela em seu coração: Isso ensina a verdade da experiência de que, quando uma pessoa se decidiu seriamente a cometer um erro, o mal moral já está presente, mesmo que possa ser ampliado posteriormente pela própria ação. 29-30 caso o teu olho direito te leve a pecar: Estes versículos são paralelos a Mc 9,43-47, mas são omitidos por Lucas, provavelmente porque são passíveis de mal-entendido por causa do estilo hiperbólico oriental em que são expressos. Seu sentido é que Jesus chama para um sequenciamento radical de prioridades.

A lógica das decisões e escolhas morais de uma pessoa é importante. E melhor sacrificar uma parte da liberdade moral da pessoa do que perder o todo. 31. Esta unidade contém só dois versículos; é extremamente breve sobre um assunto tão delicado e importante para o ser humano: o casamento, a família e a separação (veja os tratamentos mais completos em Mt 19,1-12; Mc 10,1-12; Lc 16,18). Os fundamentos da sociedade humana estão implicados, uma questão grave: “O divórcio é para a vida familiar o que a guerra civil é para o Estado” (Aristóteles). A tarefa interpretativa deve ser descobrir as pressuposições, recuperar a problemática original e as intenções profundas do texto. Há uma enorme literatura sobre o assunto, mas as posições principais são representadas por J. Bonsirven, Le divorce dans le Nouveau Testament (Paris, 1948); J. Dupont, Mariage et divorce dans l'Evangile (Bruges, 1959); mas especialmente C. Marucci, Parole di Gesù sul divorzio (Brescia, 1982). A formula introdutória abreviada sugere uma subordinação ou, pelo menos, uma conexão estreita do tema em questão com a seção precedente sobre o adultério. Do ponto de vista da crítica das fontes, temos aqui uma sobreposição de Marcos e Q; esta atestação múltipla antiga é uma forte indicação de material autêntico de Jesus, reforçado por um paralelo em ICor 7,10-16. De fato, não há dúvida histórica de que Jesus sustentou uma elevada doutrina sobre o casamento, a saber, sua indissolubilidade, uma posição provavelmente sem paralelo no judaísmo contemporâneo, embora não sem algum precedente profético (Ml 2,13-16). Formalmente, essa unidade representa uma breve decisão haláquica, na forma de um comentário sobre um texto bíblico citado; a versão mais completa 19,1-12 é um diálogo escolástico clássico. 31. Dt 24,1-4 é citado em forma condensada.

O texto completo é um fragmento complicado e estranho de uma lei antiga que concerne diretamente apenas ao caso particular de uma segunda união com uma esposa de quem um homem tenha se divorciado e que tenha, ela mesma, se divorciado desde então. Nem este texto nem qualquer outro no AT hebraico declara explicitamente o divórcio lícito ou o regula juridicamente. Indiretamente, Dt 24,1-4 descreve o divórcio e, portanto, o ratifica implicitamente. (Eclo25,26 aconselha a separação de uma esposa desobediente). O profeta Malaquias (2,13­ 16) denuncia o divórcio fácil em termos comovedores e enfatiza a relação pactuai do casamento. Em Qumran, CD 4,19-5,11; 13,15­ 17; llQTemplo 57,17-19 parecem proibir a poligamia e o incesto, mas não o divórcio em si (ao menos explicitamente). Para compreender Mateus, é importante perceber que, na lei israelita, uma mulher adúltera é, em princípio, punida pela morte (Lv 18,20; 20,10; Dt 22,20-21; Jo 8,1-11). O seguinte texto rabínico é relevante: “A escola de Shammai diz: um homem não pode se divorciar de sua esposa a menos que encontre nela indecência em qualquer coisa... E a escola de Hillel diz: pode se divorciar dela até mesmo se ela arruinar um prato que havia preparado para ele, pois está escrito: ‘porque ele encontrou indecência nela em qualquer coisa.’ O rabino Akiba diz: Até mesmo se ele encontrar outra mais bonita do que ela, pois está escrito: ‘E assim será se ela não encontrar favor a seus olhos’” (m. Git. 9,10). 32 Resumo sobre a evolução da instituição do casamento em Israel. No início não havia contrato, a poligamia era comum, o divórcio era fácil e informal. Então, com a propagação da escrita, ocorreu uma juridificação. Havia um contrato marital escrito (o ketubbâ, veja Tb 7,12-14), e também, às vezes, uma nota escrita de divórcio (gêt), como uma proteção para que a mulher pudesse provar que estava livre e se casar novamente. Em terceiro lugar, um movimento em direção à monogamia aparece na LXX; sua versão de Gn 2,24 acrescenta “dois” à expressão “e eles se tornam uma só carne”. Em quarto lugar, houve uma reação profética contra o divórcio fácil. Jesus, então descarta o divórcio para um homem (a mulher não era considerada). Finalmente, Mc 10,12 também descarta o divórcio para uma mulher, uma aplicação do ensinamento de Jesus em um ambiente gentílico.

A tendência é em direção ao refinamento e à estabilização dos costumes e à proteção das necessidades de todas as partes envolvidas, mas teve seu ponto de partida em uma posição de superioridade masculina sem direitos para as mulheres, exceto o que sua família poderia exigir e exigiria. Jesus aponta para o ideal, a vontade paradisíaca de Deus (veja 19,8 e a analogia do reinado em ISm 8,7-9), não para uma opinião minimalista. Este contexto histórico nos prepara para a contribuição de Mateus no versículo seguinte (D. Daube, “Concessions to Sinfulness in Jewish Law”,JJS 10 [1959] 1-13). 32. a não ser por motivo de prostituição. Ao contrário dos paralelos (ICor 7,11; Mc 10,11; Lc 16,18), Mateus tem aqui e em 19,9 esta famosa cláusula de exceção. E comum a suposição de que esta seja seu acréscimo redacional próprio ou de sua tradição. Porneia, traduzido aqui como “prostituição”, significa conduta sexual ilegítima, que poderia incluir o adultério, mas não é a palavra técnica para designar o mesmo (moicheia). Três soluções principais ao difícil problema são propostas para esta cláusula. (1) A chamada solução ortodoxa grega sustenta que a clásula contém uma autêntica exceção à proibição absoluta do divórcio e da segunda união. Neste caso, a posição de Mateus seria a mesma que a dos shammaítas e diferente da de Jesus. Uma dificuldade é que, nesta perspectiva, o texto deveria rezar moicheia, não porneia. Essa concepção foi defendida recentemente de forma extensa por Marucci, que sustenta que a intenção dessa cláusula foi proteger os cristãos que eram cidadãos romanos da Lex lulia de adulteriis coercendis de Augusto, sob a qual um marido era compelido a acusar uma esposa adúltera sob pena de ser acusado da infração capital de lenocinium. Esse argumento permanece muito incerto. (2) A solução “católica” clássica (Dupont) sustenta que a cláusula não contém uma exceção real, uma vez que não se refere ao divórcio, mas à separação sem segundo casamento no caso de uma esposa adúltera (que, na lei israelita, seria apedrejada). Outra vez, o texto não usa a palavra para designar o adultério. (3) Na solução “rabínica”, a cláusula também não contém uma exceção real à proibição do divórcio porque o termo-chave porneia é compreendido como a tradução do hebraico zênut, “prostituição”, compreendido no sentido de uma união incestuosa devido a um casamento dentro dos graus proibidos de parentesco (Lv 18,6-18). Tal união não seria um casamento verdadeiro de fato e não exigiria um divórcio, mas um decreto de nulidade ou uma anulação.

Porneia, usado em At 15,23-29, fica próximo disso; como zenut nos documentos de Qumran (p.ex., CD 4,20-21). Esta solução se ajusta melhor ao texto; ela representa a finesse legal de Mateus e sua lealdade a Jesus (veja Bonsirven, Le divorce) H. Baltensweiler, Die Ehe im NT [Zürich, 1967] 87-102; J. A. Fitzmyer, TAG 79-111). Uma vez que a questão do divórcio é frequentemente dolorosa, é útil recordar que a intenção profunda de Jesus não era causar dor, mas estabelecer um ideal alto e claro de relações humanas, uma visão do casamento como uma aliança de amor pessoal entre esposos que refletia o relacionamento pactuai entre Deus e seu povo. Infelizmente, nem sempre essa visão se ajusta aos caprichos do coração humano (Jr 17,9). 33. também: Este é um indício de que uma nova seção está começando, que chegamos à metade do caminho. Após a fórmula introdutória completa, há uma citação composta do AT: Lv 19,12 (em vez de ou como resumo de Ex 20,7); Nm 30,3. Parece haver uma tensão lógica entre a primeira parte, “não perjurarás”, e a segunda, “mas cumprirás” (que implica que você jura, de fato). E possível que a segunda parte seja compreendida como uma exegese corrupta comum da primeira parte, que Jesus corrige a seguir no v. 34a com sua radicalidade escatológica. 34. não jureis em hipótese alguma: Formulada como uma ordem negativa. Os exemplos que seguem nos vv. 34b.35.36 (citando Is 66,1 e SI 48,2) são fórmulas de juramento, que contêm subterfúgios para o nome divino, que o devoto tentava usar para evitar pronunciar o nome. Mas, ao empregar subterfúgios, introduzia-se um elemento de insinceridade com a intenção de garantir a verdade. Jesus sugere (v. 36) que não há nada na criação que não seja de Deus e não seja dependente dele, refletindo sua glória como criador. 37. “sim”, sim, “não”, não: Este é o versículo crucial na unidade porque dá uma ordem positiva acerca do caráter da fala (logos), para contrabalançar a ordem negativa no v. 34, seguida por uma razão sucinta. Os únicos paralelos do NT a esta unidade são Mt 23,16-22 e Tg 5,12 (que podem refletir a tradição original de Jesus de maneira mais próxima do que as formas desenvolvidas de Mateus); cf. 2Cor 1,17-19 (que confessa que Jesus é o “sim” permanente de Deus para nós). O problema de que todos eles tratam é o da linguagem (cf. os tratados da Mishná Sebu‘ot, Nedarim e Nazir, que lidam todos com votos e juramentos; Diog. Laertius 8.22; 2 Henoc 49,1; Pseudofocílides 1.16). Jesus está se opondo aqui à hipocrisia, ao sofisma e à trivialização acadêmica da vida e os substitui pelo ideal da simplicidade e clareza da fala. Esse ideal não necessita se opor à poesia ou à metáfora (veja suas parábolas) ou fórmulas de juramento, desde que sejam sinceras. (De acordo com b. Sahn. 36a, sim e não tornam-se juramentos quando forem repetidos, como Jesus o faz aqui.). Jesus segue aqui a linha do Decálogo. O Decálogo não diz nada sobre jurar, juramentos ou votos, mas diz que “não pronunciarás em falso o nome de Iahweh teu Deus” e “não apresentarás um testemunho mentiroso contra o teu próximo”, isto é, deve-se falar a verdade em assuntos importantes. Jesus combina os dois mandamentos dizendo que não se deve jurar pelo nome de Deus nem por qualquer substituto seu, e deve-se falar a verdade simplesmente.

A tradição filosófica grega, desde o oráculo de Delfos e dos pitagóricos até os estoicos do tempo de Jesus, caminhava na mesma direção (TDNT 5.176-85,457-67). 34. Esta e a próxima hipertese, sobre o amor aos inimigos, estão estreitamente relacionadas do ponto de vista temático, e sua relação uma à outra e à tradição mais antiga será tratada após o v. 48. Esta unidade expande o dito de Q (veja Lc 6,29-30). 38. olho por olho: Esta é a citação de uma norma legal (talião) que regulamenta a vingança e a retaliação por danos (Ex 21,22-25; Lv 24,20; Dt 19,21). A mesma regra se encontra no Código de Hamurábi, na Lei Romana das XII Tábuas VIII e em Esquilo, Coeph. 309-10. Embora a regra soe como bárbara hoje, sua intenção original era humanitária, limitar a vingança (somente um olho por um olho, não dois ou três) a uma reciprocidade exata. Quando apareceu, constituiu-se em um verdadeiro progresso moral. Na época de Jesus, os rabinos já a achavam muito severa e começaram o processo de comutar a pena por multas, mas o princípio da restituição correspondente permaneceu dominante no pensamento legal. (A etimologia de talião é o termo latino talis, “tal, parelho”.) 39. não resistais ao homem mau: Jesus ensina a não-resistência ao mal no sentido de evitar a violência ou danos físicos. Isso deixa aberta a possibilidade de resistência psicológica ou moral, “guerra da comunicação”, exemplificada por Mahatma Gandhi ou por Martin Luther King. O paralelo em Rm 12,19-21, baseado em Pv 25,21-22, é importante para mostrar que o ensinamento de Jesus é uma estratégia para vencer, não para a resignação passiva ou indiferença ante o mal. O objetivo é envergonhar o oponente para que mude seu coração. Isto pressupõe as disposições necessárias no oponente, que nem sempre estão presentes. Em tais casos difíceis, o recurso a outros princípios bíblicos pode ser necessário (veja o comentário ao v. 48). oferece-lhe também a esquerda: Bater na face direita com as costas da mão é considerado particularmente desonroso em m. B. Qam. 8,6; cf. Jo 18,22-23; Is 50,6; Lm 3,30. 40. deixa-lhe também o manto: Deve-se evitar uma disputa; veja o v. 25. Há um paralelo notável em uma declaração judicial escrita em hebraico nos sécs. VII e VI a.C., em um óstraco encontrado em Mesad Hashavyahu em 1960 (veja D. Pardee, Maarav 1 [1978] 33-66).



41. te obriga a andar uma milha: A palavra grega angareuein, “obrigar”, é um empréstimo persa, refletindo o serviço de mensageiros imperiais, usando cavalos para levar o correio, mas não pagando pelo cavalo. 42. dá: O tema de dar aos pedintes e aos tomadores de empréstimo vai além do escopo da não-resistência ao mal para defender a bondade, a longanimidade, a generosidade e uma atitude de abertura para com as pessoas. 43. amarás o teu próximo: A unidade começa com uma citação incompleta de Lv 19,18, deixando de lado o importante “como a ti mesmo”. Isto é seguido pelas palavras não-bíblicas “odiarás teu inimigo”, uma concepção negativa que confina nosso amor a uma estrutura etnocêntrica estreita. E lamentável que algumas traduções incluam estas palavras entre as mesmas aspas que a citação bíblica. Jesus está atacando uma interpretação falsa do AT. Essa concepção não se encontra verbatim no AT, mas pode estar em 1QS 1,9-10: “E eles (os santos) podem amar todos os filhos da luz cada um de acordo com sua herança (gôrãl) no Conselho de Deus; e eles podem odiar todos os filhos das trevas, cada um de acordo com sua culpa na vingança de Deus”. Ela também é sugerida no AT (p.ex., Dt 7,2). 44. amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem: Isto não é idealismo impossível, mas uma estratégia sábia para superar o perseguidor. A postura heróica do mártir dá ao perseguidor uma má imagem, e é difícil para os governos controlá-la. Os primeiros mártires cristãos criaram uma má consciência na Antiguidade tardia. O cristianismo não é agressão introvertida, mas a agressão transformada numa estratégia para vencer através da sabedoria do amor.

45. filhos do vosso pai: O ser filho por adoção também é um tema de Paulo (Rm 8). Há uma disposição quiástica dos termos “mau, bom, justo, injusto”. 46. Cf. Lc 14,12-14. recompensa: Jesus distingue implicitamente aqui entre as recompensas humanas terrenas e as recompensas de Deus. Se você amar aqueles que o amam, sua recompensa é um acréscimo no amor deles. Se você amar aqueles que odeiam você, sua recompensa é um acréscimo no amor de Deus. Algumas teologias consideram toda menção da motivação ética em termos de recompensa como subcristã, mas isso é estranho aos evangelhos. Porém, não se deve pensar que Deus possa ser forçado por reivindicações estritas de justiça em vez de súplicas humildes. A recompensa é descrita de maneiras variadas como o reino ou a visão de Deus (5,3.8). publicanos: Estão aqui como um símbolo da moralidade baixa, porque eles frequentemente extorquiam e colaboravam com a ocupação romana. Jesus é amistoso com eles, mas nunca aprova seus pecados (cf. Lc 19,1-10). 47. se saudais: No Oriente Próximo, um cumprimento é uma oração de bênção sobre a pessoa que está sendo cumprimentada (m. ’Abot 4,15). gentios: Este termo é uma sugestão de que o texto foi dirigido primordialmente a judeu-cristãos. 48. deveis ser perfeitos: Esse versículo compreende uma fusão complexa de dois textos do AT e da redação de Mateus. Dt 18,13 reza tãmtm, “sem culpa”, em vez de “perfeito”; Lv 19,2 tem qêdõsim, “santo”, mas Lucas (6,36) reza “misericordioso”. Teleios, “perfeito”, é uma palavra rara nos evangelhos (encontra-se somente aqui e em 19,21), embora seja usada por Paulo e por Tiago. Ela é comum no pensamento grego, onde pode significar conformidade ao ideal divino.

Em LQ, o homem perfeito é aquele que observa toda a lei. A versão de Lucas enfatiza a fidelidade pactuai e o amor constante. Estas diferentes ênfases poderiam estar todas presentes em Mateus, tornando o texto rico e sugestivo. Aqui também forma uma inclusio com 5,20. 36 Conclusão geral sobre a vingança e o amor aos inimigos. Podemos reconstruir uma evolução com cinco estágios no pensamento bíblico sobre este tópico: (1) vingança ilimitada (Gn 4,15, 24); (2) a lei do talião ou a vingança limitada (Dt 19,16-21); (3) a regra de prata, “não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a você” (Tb 4,15; Hillel, b. Sabb. 31a); (4) a regra de ouro (Mt 7,12, mais positiva do que a prata, praticar o bem, tomar a iniciativa para criar uma atmosfera de boa vontade); (5) amar os inimigos, um convite ao heroísmo moral e à santidade. Este último é o nível mais elevado. Falta-lhe sobriedade ética, como sugeriram seus críticos? Pode ser completamente eficaz (Gandhi). Não precisa ser mais carente de sobriedade do que o é uma greve geral. A pergunta que permanece é: essa é a única regra de conduta legítima para os cristãos em situações conflituosas? Os estágios anteriores do ensinamento bí­blico são simplesmente cancelados? Não. Os estágios anteriores representam um recurso permanente para os crentes, quando for apropriado. O nível de ética bíblica a ser empregado depende do nível moral do oponente. Dada esta gama das opções, pode-se governar com o Sermão da Montanha, apesar do ceticismo de Bismarck, desde que se incluam também os estágios morais anteriores que ele pressupõe. O sermão não é o todo da revelação bíblica, mas representa um ápice da sabedoria moral cuja validade prova a si mesma na vida diária quando sabiamente aplicada.