Salmo 51 — Comentário Teológico

Salmo 51 — Comentário Teológico
Salmo 51 — Comentário Teológico


Capítulo Cinquenta e Um

Quanto a informações gerais que se aplicam a todos os salmos, ver a introdução ao Salmo 4, onde apresento sete comentários que elucidam a natureza do livro. Quanto às classes dos salmos, ver o gráfico no início do comentário, que atua como uma espécie de frontispício da coletânea. Ofereço ali dezessete classes e listo os salmos pertencentes a cada uma delas.


Este é um salmo de lamentação, parte do grupo mais numeroso de salmos. O poeta lamenta um ou mais grandes pecados que ele tinha cometido, e busca perdão e renovação espiritual. Este salmo também figura entre os sete salmos penitenciais da liturgia cristã, uma subclasse dos salmos de lamentação. O Salmo 51 lamenta a sensualidade. Os outros seis salmos penitenciais são: 6 (lamenta a ira); 32 (lamenta o orgulho); 39 (lamenta a glutonaria); 102 (lamenta a cobiça); 130 (lamenta a inveja); 143 (lamenta a preguiça).


O vs. 14, de acorda com uma possível variante, fala sobre a morte, o que significa que o poeta poderia estar enfermo quando compôs o salmo. Ele afirma que seus pecados tinham causado a enfermidade. Há certo conjunto de salmos que tratam desse tema. Quanto aos salmos de enfermidade, ver 6.22; 28; 30; 31.9-12; 38; 51 e 88.

Os salmos de lamentação apresentam várias classes de inimigos de Israel: soldados invasores; hebreus corruptos perseguidores dentro do acampamento; e enfermidades físicas. Aqui temos o pecado, o inimigo da alma, como o causador das enfermidades físicas. Os salmos de lamentação usualmente iniciam com um clamor urgente pedindo ajuda; então descrevem o inimigo que estava atacando; e terminam com uma nota de louvor, porquanto a oração foi respondida, ou o salmista crê que a oração em breve será respondida. Alguns salmos de lamentação terminam em desespero, e isso ilustra o que algumas vezes acontece na vida humana.

O vs. 18 quase certamente reflete uma época posterior a Davi, embora este salmo lhe tenha sido atribuído. “O desenvolvimento da consciência de um pecado pessoal, a negação do valor dos sacrifícios animais, a reação espiritual diante as aflições, essas características gerais assinalam os salmos pós-exílicos... Ademais, no que diz respeito ao Salmo 51, vem os que o autor estava familiarizado com os ensinos superiores da profecia pré-exílica (ver Osé. 13.12; 14.2; Jer. 17.9; 31.31-33) e também com salmos sim ilares do período pós-exílico (Eze. 11.19; 36.26; Isa, 57.15; 63.10,11)” (William R. Taylor, in loc.).

“Poucos salmos têm encontrado tantos usos como este, entre os santos de todas as épocas, fato que testemunha as necessidades espirituais do povo de Deus... A mensagem deste salmo é que o mais vil ofensor entre o povo de Deus pode apelar a Deus, pedindo-Lhe perdão, restauração moral e o reinicio de uma vida jubilosa de comunhão e serviço, caso ele se aproxime do Senhor com espirito quebrantado e baseie seu apelo sobre a compaixão e a graça de Deus” (Allen P. Ross, in loc.).

Subtítulo. Temos aqui um subtítulo elaborado: “Ao mestre de canto, Salmo de Davi, quando o profeta Natã veio ter com ele, depois de haver ele possuído BateSeba”. Poucos eruditos tomam a sério este subtítulo, visto que há elementos no salmo que apontam para um tempo bem posterior aos dias de Davi. Ver os vss, 4 e 18 e os respectivos comentários, bem como ver informação acima, sobre a natureza tardia dessa composição. As adições aos salmos, por meio de subtítulos, foram produto de uma era posterior e não faziam parte original das com posi­ções. Cerca de metade dos salmos é atribuída a Davi, o que sem dúvida é um grande exagero, mas não há dúvida de que ele compôs pelo menos alguns deles, visto ter sido o suave salmista de Israel (II Sam. 23.1). Ver II Sam. 11 e 12.14,15, quanto ao presumível pano de fundo histórico deste salmo.

Um Salmo de Penitência (51.1-19)
Clamor Pedindo Misericórdia e Purificação (51.1,2)

51.1
Com padece-te de mim, ó Deus. Os salmos de lamentação, sem importar a subclasse exata a que pertençam , são introduzidos por um grito pedindo ajuda. Aqui, o salmista implora por misericórdia, visto que se reconhecera culpado de pecados hediondos, para os quais precisava de perdão. O poeta baseia-se na benignidade divina para sua esperança de perdão. O autor adoecera por causa de seus pecados (vs. 8), tendo chegado à beira da morte (vs. 14) e, naturalmente, queria ser libertado da doença. Mas a sua preocupação central era livrar-se do peso da corrupção, o que sobreviria quando ele confessasse e abandonasse seus pecados. O poeta (ao contrário dos autores de outros salmos de lamentação) não se queixava de seus inimigos. Ele tinha sido seu próprio e pior inimigo. Precisava libertar-se dos resultados negativos de sua própria semeadura. Ver no Dicionário o artigo intitulado Lei M oral da Colheita segundo a Semeadura.

Apaga as minhas transgressões. Deus havia registrado todas as transgressões em Seu livro de registros, e agora essas anotações serviam de testemunho contra o homem culpado. Enquanto não fossem apagadas do livro de Deus, essas notas continuariam ali, assediando espiritual e fisicamente o salmista. Ele acabaria morrendo fisicamente, e talvez, conforme ele pensava, continuasse sofrendo em algum lugar, no mundo espiritual, por causa delas. Não sabemos dizer até que ponto a teologia do autor sagrado já tinha progredido, e se ele olhava ou não para além-túmulo. Nos Salmos e Profetas, a doutrina da alma começara a vir à tona, mas não se desenvolveu totalmente enquanto não apareceram os livros pseudepígrafos e apócrifos. Um desenvolvimento posterior foram as doutrinas da imortalidade e das recompensas e punições; mas ele só ocorreu nas páginas do Novo Testamento. Continuamos aprendendo; a teologia, como qualquer outro ramo do conhecimento, cresce e se aprimora. Homens de mentalidade fundamentalista fazem estagnar a doutrina e a verdade. Podemos ignorá-los com toda a segurança. Ver no Dicionário os verbetes intitulados Pecado e Perdão.

Transgressões. Coisas contrárias aos mandamentos e requisitos da lei. Três palavras remidoras: apaga (vs. 1), lava (vs. 2) e purifica (vs. 2). Três atos divinos redentores: compaixão, benignidade e misericórdia (vs. 1). Auto-reprimenda. Sentimentos mistos como sentimentos de exposição, denúncia e ameaça eram calculados para produzir o caos nos pensamentos e nos sentimentos. O primeiro senso de alívio do pecador era de que a coisa oculta finalmente tinha vindo à superfície” (J. R. P. Sclater, in loc.).

Tradicionalmente, este salmo é de Davi, lamentando o adultério com BateSeba e o assassinato do marido dela, Urias. Mas poucos estudiosos acreditam hoje em dia que era isso o que o salmista tinha em vista. Ver as notas sobre o subtítulo, na introdução ao salmo.

51.2
Lava-me completamente da minha iniquidade. O poeta clama pedindo perdão, com base na compaixão, na benignidade e na misericórdia de Deus, das quais ele precisava para seu grave pecado duplo. Ele carecia que seus pecados fossem apagados (vs. 1), que ele mesmo fosse lavado (vs. 2) e inteiramente purificado (vs. 2). Dessa maneira, pelos atos múltiplos de Deus, o poeta seria perdoado, ficaria livre e seria restaurado. Era esse o sentido de sua oração. Como agradável subproduto, seu corpo seria curado, porquanto ele estava doente até a morte, devido aos efeitos de seus pecados. Ver os vss. 8 e 14.

Lava-me. A figura simbólica por trás deste verbo é de uma veste suja que precisava ser lavada com água e sabão, e assim seria restaurada à limpeza e a um estado renovado. Ver Êxo. 19.10. Purifica-me. Talvez a figura de linguagem aqui seja a remoção de impurezas metálicas mediante o processo do refinamento. Ver Mal. 3.3. A pessoa precisa estar limpa para postar-se diante de Deus (Lev. 14.1). O nosso homem estava cheio de transgressões, iniquidades e pecados, três palavras que o salmo utiliza para expressar temível pecaminosidade contraída mediante um deslize para a degeneração. Ele queria parar com aquele deslize e voltar à pureza e inocência original de que havia desfrutado. O pecado já lhe custara demasiado.

Iniquidade. Atos poluidores agravados, em imitação ao que os pagãos, que não conheciam a Deus, costumavam fazer.

Pecado. Um errar o alvo, seguindo o pecador a vereda errada, sinistra, conforme os passos dados pelos pagãos. O salmista tinha pecados abundantes, que requeriam abundante misericórdia. porquanto, de outro modo, seu caso não teria esperança. Mas uma coisa este salmo ensina: é que não existem casos sem esperança. 


Eu estava afundando profundam ente no pecado, Longe de toda praia pacífica;
Manchado bem fundo, em meu interior,
Afundando para não m ais levantar-me.
Mas o Senhor do m ar
Ouviu m eu grito desesperado.
Das águas me levantou,
E agora estou seguro.
(James Rowe)

Confissão e Petição (51.3-12)

51.3
Conheço as minhas transgressões. O poeta sagrado buscava cura moral espiritual, e não cura física. Mas também precisava de cura física e, sem dúvida, calculou que livrar-se de seus pecados seria a medida certa para obtê-la. Os hebreus antigos lançavam sobre os pecados toda a culpa pela doenças. A consci­ência do salmista aplicava-lhe uma surra, e isso era sinal de sinceridade. Os pecadores aprendem a nada sentir no tocante a seus pecados. É possível ter uma consciência calejada, virtualmente inoperante. É boa a conjectura de que o homem era culpado de um pecado hediondo, algo como o adultério e o homicídio praticados por Davi. De acordo com J. R. P. Sclater (in loc.), no episódio que envolvera Bate-Seba, Davi teria quebrado cinco dos dez mandamentos, mas ele não lista esses pecados para nós. Pode você identificá-los?

Se confessarmos os nossos pecados, 
ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. 
(I João 1.9)

Confessei-se o m eu pecado e a minha iniquidade não mais ocultei. 
Disse: Confessarei ao Senhor as minhas transgressões: e tu perdoaste a iniquidade do m eu pecado.
(Salmo 32.5)

51.4
Pequei contra ti, contra ti som ente. Até os mais conservadores eruditos não podem reconciliar o duplo pecado de Davi, que envolveu o adultério contra Bate-Seba e o assassinato do marido dela, Urias. Na introdução ao salmo é o subtítulo que atribui este salmo a Davi, não o próprio salmo, e devem os lembrar que as adições introdutórias aos salmos não faziam parte das com posições originais. Ver na introdução a este salmo a parte denominada Subtítulo. Poder-se-ia argumentar que todo pecado é, em última análise, contra Deus, mas isso não é a m esma coisa que dizer “som ente”. “O vs. 4 ajusta-se ao caso de Davi,
que colocou a vida de Urias sob trem endo risco, depois de lhe contaminar o leito. O vs. 18 faz este salmo referir-se ao tempo do cativeiro... O crime mencionado não foi praticado som ente contra Deus, mas contra toda a ordem da sociedade civil” (Adam Clarke, in loc.).


O que foi praticado foi hediondamente maligno, e assim Yahweh, ao pronunciar-se e julgar a questão, foi justificado e vindicado por afligir o homem m oralmente enfermo com uma enfermidade física. A honra divina foi justificada quando o pecador confessou que Sua condenação e punição tinham sido justas.


Faraó mandou cham ar a Moisés e Arão, e lhes disse: Esta
vez pequei: o Senhor é justo, porém eu e m eu povo somos
ímpios.
(Êxodo 9.27)

Talvez o pecado em mira tenha sido a idolatria, algo que o autor praticou em segredo, talvez em seu próprio altar particular, na sua propriedade. Mas isso não passa de conjectura. Seja como for, não havia pecado pior, aos olhos dos hebreus, do que esse. Ver no Dicionário o verbete intitulado idolatria. A idolatria provocaria uma brecha e a quebra da aliança, uma questão seriíssima, visto que Israel supostamente era uma nação distinta dos pagãos, exatamente por possuir a lei (ver Deu. 4.4-8).

51.5
Eu nasci na iniquidade. Pecado Original? O uso cristão padrão deste versículo é transformá-lo em texto de prova em defesa do pecado original, a ideia de que um homem já nasce em pecado e carrega uma natureza pecaminosa simplesmente por ser homem, e não porque, através de condições ambientais, se torna um pecador. Mas a interpretação rabínica dizia que a mulher, durante o ato sexual, natural e inevitavelmente tem pensamentos adúlteros, pelo que, quando um bebê é concebido, é concebido em meio a uma atmosfera pecaminosa. Dessa maneira, a mãe do poeta concebeu-o em meio ao pecado. O sexo é o criador natural de pensamentos e intuitos pecaminosos. Isso porque é, em primeiro lugar, um ato raciai e, em segundo lugar, um ato pessoal. Visto ser um ato racial, tanto homens quanto mulheres sempre fazem daqueles momentos um tempo de pensamentos adúlteros. Pensar em fazer sexo com outro homem, ao mesmo tempo em que se praticava sexo com o próprio marido, é adultério mental, algo que Jesus condenou (ver Mat. 5.28).

O sexo é o meio pelo qual a raça humana se propaga. Quando as pessoas se entregam ao sexo, a mente, tanto de homens quanto de mulheres, naturalmente vagueia para outros parceiros, passados, esperados ou imaginados. Os que acreditam na teoria da evolução asseguram que os primatas são altamente promíscuos, e o mesmo pode ser dito com respeito ao ser humano, tanto mentalmente quanto na realidade. Isso faria parte da herança genética. Além do mais, os evolucionistas também salientam que os animais desiguais quanto ao tamanho (os machos são notoriamente maiores que as fêmeas) são todos polígamos e promíscuos. Somente os animais que têm mais ou menos as mesmas dimensões (macho e fêmea do mesmo tamanho) vivem de forma monogâmica. Se isso é verdade, então os seres humanos são fornicadores e adúlteros naturais, a menos que a poligamia facilite a situação. Mesmo nessa condição, o adultério floresceria.

Portanto, parece que o caso não tem remédio. Os homens gostam de falar que são santos, mas sua vida mental particular declara-os mentirosos. Alguns supõem que pessoas santificadas venceram esse pecado, mas haverá pessoas assim tão santificadas, ou serão elas mentirosas? Imagino que I João 1.8 as chama de  mentirosas:

Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós.

Isso não significa que devamos estabelecer tréguas particulares com o pecado. Devemos esforçar-nos para ser pessoas melhores e então permitir que a imortalidade termine o processo, até estarmos livres do pecado.

Seja como for, sem importar se o pecado original é verdade ou ilusão, não devemos apelar para o Salmo 51 como prova e apoio a essa ideia. Ver no Dicionário o verbete intitulado Pecado Original.

51.6
Eis que te comprazes na verdade no íntimo. Visto que o homem é assaltado por toda espécie de pensamentos errantes e termina praticando parle significativa do que imagina, o ideal é que ele seja puro em seus pensamentos e em suas ações. E isso o que Deus requer e é isso o que o homem piedoso busca sofregamente. O homem possui um ser interior que pode ser cultivado para o bem ou para o mal. Está em consonância com o princípio divino que a santificação come­ça nesse ponto. O Espírito de Deus pode ensinar um homem, no seu ser interior; e, se isso acontece, então o homem é uma pessoa superior, que escapou aos vícios de outros homens, embora, em nenhum sentido, ele chegue a ser “totalmente santificado”, conforme alguns ensinam em vão. Usualmente, toda a doutrina da santificação resulta no rebaixamento dos padrões de santidade, e não no fato de que o indivíduo atingiu o estado de impecabilidade. Seja como for, de que adianta isso se hoje um homem pode escorregar para aquele estado antigo? Quanto à santificação, ver no Dicionário o verbete assim denominado, especialmente a seção III.

O hebraico original, neste versículo, é um tanto obscuro, e uma tradução possível é a de Schmidt: “Eis que desejas a verdade mais do que desculpas (o encobertamento), e ensinas-me a sabedoria sobre a qual há um mistério”. Revised Standard Version diz aqui coração secreto, a esfera na qual o Espírito Santo ensina um homem. O coração secreto é a alma do homem, o verdadeiro homem, a sua pessoa espiritual. Não sabemos dizer se o autor tinha avançado até o ponto de crer na alma imaterial, mas a verdade é que ele sabia que um homem é mais do que se passa em seu cérebro.

51.7
Purifica-me com hissopo. Ramos da planta chamada hissopo eram usados nas purificações rituais. Um leproso declarado curado (puro) era cerimonialmente purificado mediante o uso dessa planta. Ver Lev. 14.4-6,49-57. Dessa forma, a lepra tanto desaparecia quanto era apregoada curada, e o pecador ficava livre de seu pecado, porquanto os hebreus pensavam que todas as enfermidades resultavam do pecado. Utilizando uma metáfora vigorosa, o autor sagrado descreveu-se como um homem tão doente, tão impuro, tão sujo, tão desprezado, tão aleijado e tão nojento que ninguém podia olhar diretamente para ele. 

Portanto, ele precisava (figuradamente falando) dessa planta, o hissopo, para ficar limpo. O óleo aromático, o sangue e a água eram usados na unção purificadora e aspergidos sobre os
leprosos. O autor sagrado tinha desesperada necessidade de aspersão espiritual, porquanto abrigava uma repelente enfermidade espiritual. Naturalmente, a sara'at, comumente traduzida como “lepra”, em geral não era a doença causada pela bactéria descrita por Hansen, embora essa palavra hebraica fosse lata o bastante para incluir a verdadeira lepra. Ver sobre a palavra hebraica sara'at na introdução a Lev. 13. Ver no Dicionário o artigo designado Hissopo, quanto a amplos detalhes.

Este versículo tem sido cristianizado para falar como o sangue de Cristo nos purifica do pecado. Ver Apo. 7.14; Isa. 1.18; Efé. 5.25-27. Ver também Rom. 3.25 e Heb. 9.25.

“Assim como o cedro era o emblema da grandiosidade, o hissopo era o emblema da pequenez. O perdão e a graça divina vêm através da condescendência de Deus (I Reis 4.33; Sal. 18.35). Extremos da majestade e da condescendência divina se encontram no perdão e na justificação dos pecadores por parte de Deus (Isa. 66.1,2)” (Fausset, in loc.).

51.8
Este versículo quase certam ente significa que nosso homem tinha uma enfermidade séria. Figuradamente, seus ossos estavam quebrados. O vs. 14 pode significar que ele tinha o que parecia ser uma enfermidade mortal. Naturalmente, em harmonia com a fé dos hebreus, ele pensava que seus pecados tinham causado sua enfermidade. Os hebreus antigos não tinham nenhuma utilização para os medicamentos e para os médicos. Se a enfermidade era devida ao pecado, então seria errado distorcer o julgamento de Deus por meios naturais.

Naturalmente, essa teoria estava errada. Algumas enfermidades atacam devido ao caos em que está envolvido este mundo, e não devido ao desígnio divino. Uma enfermidade pode ser uma disciplina ou um fator didático. Ver no Dicionário verbete chamado Cura; e também a declaração paulina em II Cor. 12.8. Ademais, a enfermidade, como parte do problema do mal (sendo ela um mal natural, ou seja, algo que a natureza faz contra o homem), tem seus enigmas. Pelo menos por algumas vezes não sabemos por que os homens sofrem, nem por que sofrem como sofrem.

Para que exultem os ossos. Os hebreus falavam dos ossos como representantes do corpo inteiro, pois são eles que lhe dão sustentação. O poeta esperava uma intervenção divina para que, em vez de gemidos por sua carga moral e física, lhe fosse devolvida a alegria. “Enche-me de júbilo, curando o meu corpo de sua enfermidade, retirando o meu remorso, que atravessou a própria medula de meus ossos” (William R. Taylor, in loc.).

Veja o leitor como os ossos estão associados à angústia emocionai em Sal. 6.2. Este versículo tem sido cristianizado a fim de tratar da cura espiritual em Cristo, que nos é dada pelo perdão dos pecados; certamente é uma boa aplicação do texto, mas não uma interpretação.

51.9
Esconde o teu rosto dos meus pecados. Note o leitor as várias expressões usadas pelo autor sacro para falar em livrar-se dos pecados, por intermédio da ajuda divina; apaga (removendo a acusação do livro de memórias de Deus; vs. 1); lava (como se fosse uma veste suja; vs. 2); purifica (como que removendo a escória de um minério de metal e então do próprio metal; vs. 2); limpa (mediante água, sangue e óleos aromáticos, como sucedia aos leprosos pronunciados limpos; vs. 7). E agora Deus é convidado a esconder o Seu rosto, para não contemplar os pecados do pobre homem. Ato continuo, o poeta retornou à ideia do ato de apagar, já empregada no vs. 2.

Aqui o autor sagrado usa a palavra iniquidades, um dos três vocábulos empregados (juntamente com transgressões e pecados) para mostrar seus feitos errados (ver comentários no vs. 2). O pecado do homem estava sempre diante de Seus olhos (vs. 3); e o salmista sabia que Deus podia ver muito melhor do que ele.

Quando Deus olha para um ato pecaminoso, podemos imaginar um olhar de ira (Sal. 21.9). Deus também olha para os homens graciosamente, e era este último tipo de olhar que o poeta esperava, e isso por causa dos benefícios daí advindos. 


Diante de ti puseste as nossas iniquidades, 
e sob a luz do teu rosto os nossos pecados ocultos.
(Salmo 90.8)

51.10
Cria em mim, ó Deus, um co ração puro. Pelo lado positivo, Deus poderia tom ar várias medidas para garantir completa restauração. Assim sendo, temos a criação de um coração novo (vs. 10); a Sua presença com o homem (vs. 11); a concessão dos ministérios do Espírito Santo (vs. 11); a restauração da alegria (vs. 12); a ajuda especial do Espírito de Deus, cheio de boa vontade, o qual age livre e abundantemente em favor do homem (vs. 12). Depois disso, o homem estaria preparado para ajudar outros pecadores a encontrar o caminho da retidão (vss. 13 e ss.).

O pecado penetra o ser inteiro do homem e termina alojando-se no homem interior (vs. 6). Portanto, a purificação deve começar por ali. A palavra hebraica traduzida por “criar” é o mesmo vocábulo usado na história da criação, no primeiro capítulo do livro de Gênesis. Tem os aqui, pois, a criação espiritual, ou seja, a criação de um novo homem. Cf. II Cor. 5.17: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura; as cousas antigas já passaram; eis que se fizeram novas”.

E renova dentro em mim um espírito inabalável. No dizer da Revised Standard Version, trata-se de um espírito constante ou reto. O homem desviou-se em seu pecado; tornou-se frívolo, instável; facilmente se deixava arrastar pelo caminho errado. Ele queria, portanto, que seus propósitos e tendências fossem refeitos. Deseja ser um homem leal que não vacilasse diante de Yahweh. “O homem se defrontava com o espetáculo que havia feito de si mesmo. De pé, perante o espelho da alma, via-se como um homem repugnante em todos os detalhes. E queria que Deus modificasse tudo isso” (J. R. P. Sclater, in loc., com algumas adaptações).

Vigia, minha alma, e ora!
Lança para trás toda a preguiça!
Vigia, as armadilhas do tentador estão m ais próximas
Onde o perigo é menos temido.
Vigia, minha alma, e ora!
(Johann O. Wallin)

51.11
Não me repulses da tua presença. Para usufruir de plena restauração, salmista precisava da presença de Deus. Esse é um excelente discernimento, distante do legalismo tão frequentemente associado ao judaísmo. Carecemos do toque místico, algo que ultrapassa o intelecto, que vai além das meras formas externas da fé religiosa. Ver no Dicionário o artigo chamado Misticismo. Ser expulso da presença de Deus era um termo formal usado para indicar a rejeição de Israel e a anulação do pacto relativo a eles. Ver II Reis 13.23; 17.20; 24.20; Jer. 7.15. Não devemos reduzir o uso do termo “presença”, aqui usado, para indicaras manifestações ocasionais de Yahweh no templo, O autor sagrado desejava ter contatos pessoais com Yahweh, de forma permanente. Nossos mais remotos progenitores ocultaram-se da presença de Deus por causa do pecado.

Estar livre da culpa dá ao homem o potencial para elevadas experiências espirituais. É dificílimo avançar muito pela vereda espiritual sem a santificação, condição sine qua non do desenvolvimento espiritual. Não devem os reduzir este versículo supondo que o banimento era do templo e de seu culto, como se o homem tivesse sido excluído por causa de seus pecados. O homem queria muito mais do que apenas o privilégio de frequentar os cultos da igreja.

O teu Santo Espírito. Provavelmente temos aqui um paralelismo com a primeira parte do versículo. Contar com Yahweh próximo e operante na vida é ter o Espirito Santo. É um exagero ver os primórdios da doutrina da Trindade em tais textos. O Espírito Santo é a influência interior mediante a qual um homem é santificado, uma experiência realmente transformadora. Ver II Cor. 3.18, quanto ao processo do ponto de vista cristão. “A oração pelo Espírito Santo segue-se apropriadamente, às orações do salmista pedindo perdão e alegria decorrente da segurança. Pois o senso jubiloso do perdão é a alegria no Espírito Santo (ver Rom. 14.17). O dom do Espírito Santo segue-se ao perdão dos pecados (ver Atos 2.38)” (Fausset, in loc.). A santificação (ver a respeito no Dicionário) é obra do Espírito (I Ped. 1.2). Ver no Dicionário o artigo chamado Espírito Santo.

Espírito de Deus, desce sobre m eu coração;
Desamam enta-o da terra, m ove-te em todo
o seu pulsar.
Concede à minha fraqueza, embora sejas poderoso,
E me faz amar-Te, com o eu deveria amar-Te.
(George Croly)

Não passes de mim, ó Pai gracioso,
Embora m eu coração seja pecaminoso;
Poderias abandonar-me, m as em lugar disso,
Que Tua misericórdia me sobrevenha.
(Elizabeth Codner)

51.12
Restitui-me a alegria da tua salvação. O homem espiritual encontra alegria na vida espiritual, em seus ritos e cerimônias, e na alma onde a vida espiritual opera. Epicuro pensava que os prazeres mentais são superiores aos prazeres físicos, e por certo os prazeres espirituais são maiores do que os prazeres mentais. Há alegria no serviço prestado a Jesus. Ver no Dicionário o artigo chamado Alegria, quanto a um estudo completo sobre o assunto. A alegria é um dos aspectos do fruto do Espírito (ver Gál. 5.22).


Alegres, alegres nós Te adoramos, nosso Deus,
Deus da glória, Senhor do amor!
Nosso coração se abre como flor
na Tua presença,
Louvando o sol delas, lá em cima.
(Henry Van Dyke)

O pecado havia furtado o poeta de sua alegria. Ele continuava a ser um homem de aliança com Deus, o beneficiário da salvação de Deus, ou seja, do bem-estar do corpo e da alma. A salvação fala dos privilégios do pacto. Não sabemos dizer o quanto o salmista sabia acerca da vida abençoada do outro lado do sepulcro, pois as idéias sobre a alma imortal tinham apenas começado brilhar no pensamento hebreu, nos Salmos e nos Profetas. É difícil para os escritores cristãos, ou para os escritores judeus posteriores, não projetar a palavra “salvação” para um futuro imortal e imaterial, além da morte biológica. Mas essa doutrina só surgiu tardiamente no judaísmo. Existe também outro tipo de salva­ção, que consiste em uma vida boa, abençoada com bens e alegria espiritual, segundo a qual se evita a morte prematura. Acerca da lei, lemos que ela dá vida (ver Deu. 4.1; 5.33; 6.2; Eze. 20.2), mas apenas no sentido de uma existência terrena longa e abençoada, ligada às form as religiosas dos hebreus. Somente no judaísmo posterior, a dimensão eterna foi vinculada a essas promessas.

Sustenta-me com um espírito voluntário. Essa tradução compreende que está em pauta o espírito hum ano do poeta, inspirado pelo Ser divino, tendo a coragem e o poder de seguir a santificação e de abandonar o pecado. Mas alguns compreendem aqui um Espírito livre, ou seja, o Espírito Santo operante livremente e com vontade determinada. Um espírito voluntário refere-se ao espírito humano renovado, com novos impulsos espirituais, ou seja, “um espírito de nobreza e de boa vontade, inclinado para a obediência” (William R. Taylor, in loc.). Seja como  for, enfatizando o Espírito e o seu espírito renovado, o poeta aproximava-se da fé neotestamentária, deixando para trás a fé mais primitiva e padronizada dos hebreus, tão entranhada que estava na lei mosaica.

... onde está o Espírito do Senhor aí há liberdade.
(II Coríntios 3.17)


O Voto do Poeta (51.13-17)

51.13
Então ensinarei aos transgressores. O salmista tentou entrar em acordo com Yahweh. Se Deus curasse sua alma e seu corpo, então ele se tornaria mestre de outros pecadores, tentando mostrar-lhes o reto caminho. Ele seria um bom mestre, visto que tinha experiência no campo. Ele havia sido um grande transgressor que ensinaria aos transgressores; ele havia sido um grande pecador, que procuraria a conversão dos pecadores. Ver no Dicionário artigo chamado Conversão. A vereda de Yahweh seria encontrada assim por alguns que, de outra sorte, não a encontrariam.

O oferecimento do autor sagrado deve ser compreendido como um voto de ação de graças a ser formalizado no culto do templo. Ver no Dicionário o artigo chamado Voto. Cf. Sal. 50.23. Ver também Sal. 7.17. O sacrifício apropriado seria acompanhado pela ação de graças e pelo voto, como era costume entre os hebreus. Ver Sal. 66.13-15.

Instruir-te-ei e te ensinarei o caminho que deves seguir; e, sob
as minhas vistas, te darei conselho.
(Salmo 32.8)

A lei mosaica seria o manual de instruções (ver Sal. 1.3, sumário); mas o autor sacro tinha aqui discernimentos adicionais que o faziam aproximar-se da compreensão neotestamentária. Ver as notas do vs. 12.

51.14
Livra-me dos crimes de sangue, ó Deus. Alguns intérpretes vêem aqui o pecado de homicídio praticado por Davi, porquanto com sucesso ele planejou e executou a morte de Urias, marido de Bate-Seba. Mas os vss. 4 e 18 contrariam essa suposição. O pecado do salmista fora um pecado particular, e não um pecado de violência contra um de seus soldados de confiança. Além disso, este salmo é tardio (conforme mostra o vs. 18), e não um salmo composto em cerca de 1000 A. C. (época de Davi). Parece que o pecado do salmista o havia feito apanhar uma enfermidade fatal, pelo que o seu crime terminou sendo um pecado de sangue, ou seja, um pecado capaz de produzir a morte. Portanto, em lugar de crimes de sangue, a Revised Standard Version prefere a tradução “morte”. A Oxford Annotated Bible afirma que esse é o “melhor sentido” da palavra. O hebraico literal diz “sangues”, o que significa “morte”. Note o leitor que, no vs. 8, os ossos do salmista tinham sido quebrados, o que, provavelmente, indica séria enfermidade física, tida como o resultado de um pecado hediondo, como a idolatria, que
quebrava o acordo do pacto firmado com Yahweh. Cf. Sal. 56.13, onde encontramos o mesmo uso: da morte me livraste a alma, sim, livraste da queda os meus pés, para que eu ande na presença de Deus na luz da vida”.

Se Yahweh concordasse com o voto do salmista e cumprisse a Sua parte (curando-lhe o corpo e a alma), então o salmista usaria a sua língua, a sua faculdade de fala, tanto para louvar a Deus quanto para testemunhar em favor Dele. Ele agradeceria a Yahweh e contaria a sua experiência a outros pecadores, mostrando-lhes a vereda da retidão para que caminhassem por ela. Ver no Dicionário o verbete intitulado Linguagem, Uso Apropriado da. Os homens revelam a tendência de tentar barganhar com Deus. A experiência mostra que, algumas vezes, isso funciona, mas nem sempre. Ele levaria o seu caso publicamente ao templo, e ali louvaria a Deus sob a forma de cânticos, acompanhado por instrumentos musicais. Essa atividade era parte importante do culto no templo. A retidão de Deus e a Sua bondade eram os temas desses cânticos.

51.15
Abre, Senhor, os meus lábios. Tendo concordado com a proposta do salmista, Yahweh curaria seu corpo e sua alma, e isso abriria automaticamente a boca do poeta em louvores e cânticos, e todos em Jerusalém ouviriam falar do caso. Os pecadores secretos ficariam impressionados diante da conversão do homem e reconheceriam que ele havia tomado uma decisão acertada, e, em vista disso, seguiriam o seu exemplo. Seus lábios, que anteriormente tinham sido culpados de sussurros ardilosos e sedutores, bem como de fala enganadora, pois vinha escondendo os seus pecados secretos, explodiriam sob a forma de puros cânticos de louvor.

Lábios. Um instrumento de louvor que aqui aparece como um paralelo da língua, no vs. 14. É provável que o homem, em sua idolatria, tivesse sido culpado de louvar deidades e ídolos estrangeiros; mas isso só lhe causara dor, tanto mental quanto física. Afinal, ele aprendeu a abandonar seus caminhos tolos e assim reverter o curso de sua punição. E também aprendeu a usar seus lábios da maneira certa.

“... ele queria ter um espírito voluntário e a ousadia de dirigir-se ao trono da graça, o que o crente consegue quando o seu coração é purificado, pelo sangue de Cristo, de toda a má consciência. Seus lábios tinham sido selados pelo pecado, de modo que ele não podia louvar e agradecer a Deus. A culpa tinha trancado os seus lábios... mas agora ele irromperia em salmos, hinos e cânticos espirituais (Sal. 103.1-3)” (John Gill, inloc.).

51.16
Pois não te comprazes em sacrifícios. O salmista afastava-se dos conceitos típicos do Antigo Testamento, na direção de conceitos próprios do Novo Testamento, conforme anoto no vs. 12. Ele estava menos enterrado na lei do que antes. Avançava na fé e na prática dirigida pelo Espirito. Chegou a perceber a futilidade essencial dos sacrifícios de animais, como primitiva forma de expressão espiritual. Ele buscava a essência da fé, não suas expressões externas. O Salmo 50 é, fundamentalmente, um tratado sobre esse assunto. Ver especialmente os vss. 8-15. Os vss. 14 e 15 fornecem um sumário simples das coisas vitais da fé, em contraste com o antigo sistema sacrificial que estava sendo abandonado como obsoleto e deficiente em eficácia.

Muito antes do cristianismo, os homens estavam cansados de todo aquele sangue e carnificina envolvidos na matança de animais. Começavam a perceber que tinha de haver algo melhor. Descobriram que havia algo maior na alma e em sua espiritualidade, inspirados pelo Espírito e por Suas operações. Então Cristo chegou a este mundo e substituiu todo o sistema antigo (ver Heb. 9-10), para grande consternação dos tradicionalistas e fundamentalistas, os quais pensavam que tal mudança jamais seria possível. Mas mudanças sempre serão possíveis, e todos os fins são, na realidade, novos começos. Todos os fins são instrumentais, pois visam novos começos, e não pontos finais. A teologia cresce e devemos estar ansiosos por correr para o novo, quando esse novo nos dá melhores discernimentos quanto a problemas e idéias. O âmago do tradicionalismo é a estagnação, e penso que essa palavra não aparece no dicionário divino.

Os verdadeiros sacrifícios são aqueles do coração, conforme diz o vs. 17. Os tradicionalistas, entretanto, não queriam desistir dos animais. Louvarei com cânticos o nome de Deus, exaltá-lo-ei com ações de graças. Será isso muito m ais agradável ao Senhor, do que um boi ou um novilho com chifres e unhas.
(Salmo 69.30,31)

“A nação de Israel, exilada e privada do sistema de sacrifícios e de ritos legais, mediante essa própria privação foi com pelida a olhar para além de suas formas eternas e encontrar paz no espírito interior” (Ellicott, ín loc).

51.17
Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado. Os verdadeiros sacrifícios são aqueles do Espírito de Deus e do espírito do homem. O espírito humano precisa apresentar-se diante de Deus quebrantado, depois que se mostrou rebelde e culpado de muitos pecados. O coração precisa entristecer-se por causa do que tiver feito. Tem de haver arrependimento e reparação. Essas atitudes Deus não desprezará, m esmo que o homem não se apresente com sacrifícios de animais. Ver no Dicionário os artigos chamados Arrependimento e Reparação
(Restituição), quanto a abundantes ilustrações sobre este versículo. “Quando tudo estiver assim restaurado, Deus se deleitará uma vez mais em aceitar os sacrifícios de ofertas queimadas... Somos informados de que há regozijo no céu por causa de um único pecador que se arrepende. Por que não haveria, sobre a terra, intenso regozijo no coração do pecador que é perdoado?” (J. R. P. Sclater, in loc., referindo-se a Luc. 15.7).

“O espírito quebrantado em pedaços, e o coração compungido... são os sacrifícios que Deus requer e que Ele nunca desprezará” 
(Adam Clarke, in loc.).

Provavelmente temos aqui uma alusão à matança do corpo do animal. Anteriormente, pensava-se que isso agradaria a Deus; mas o autor sagrado estava afastando-se dessa ideia. O que Deus realmente queria era o “espírito quebrantado do homem, mediante o arrependimento”. Essa é uma forma muito superior de sacrifício.

Sara os de coração quebrantado, e lhes pensa as feridas.
(Salmo 147.3)

Apêndice Posterior (51.18,19)

51.18
Faze o bem a Sião, segundo a tua boa vontade. Yahweh é aqui convidado a fazer o bem por Jerusalém , permitindo a reconstrução de suas muralhas. Isso fala do tempo em que Israel estava no exílio babilônico, mas esperava poder retornar, o que realmente aconteceu, terminado o cativeiro babilônico, embora a maioria dos judeus tivesse ficado para desfrutar dos benefícios recebidos naquele lugar pagão. Ver no Dicionário o artigo intitulado Cativeiro Babilônico. Este salmo, entretanto, pode ter sido escrito após esses acontecimentos, como uma história, refletindo os desejos do povo de Judá no exílio.

Este versículo empresta ao salmo presente uma data bastante posterior, mas caso se trate de um apêndice adicionado a um escrito mais primitivo, ele perde seu poder datador. Por outra parte, existem mais indicações de uma data mais avançada, o que discuto na introdução ao salmo. Não devemos mergulhar em questões de datas. Este salmo tem um grande valor como escrito espiritual, e este versículo faz parte disso. A preocupação dos estudantes deve ser com os valores da comunidade, com o culto a Yahweh, e não com suas próprias questões particulares. No mínimo, esses detalhes devem ser considerados secundários. O sistema sacrificial tinha sido suspenso durante o cativeiro babilônico. A cidade de Jerusalém havia sido destruída, e suas muralhas tinham sido deitadas por terra.

Os livros de Esdras e Neemias falam do retorno de um remanescente de cativos e da reconstrução das muralhas da cidade. Uma vez que isso teve cumprimento, o sistema de sacrifícios de animais pôde ser renovado (vs. 19). O autor sagrado muito desejou ver ocorrerem essas coisas, A adição dos vss. 18 e 19 provavelmente foi feita por uma mão tardia, com o propósito específico de modificar a aversão aparente deste salmo diante dos sacrifícios de animais. Em outras palavras, esses versículos foram um apêndice introduzido por tradicionalistas e fundamentalistas, a fim de trazer à memória dos
leitores a importância do antigo sistema sacrificial, que recebia sua autoridade da parte da lei mosaica. A primeira porção do salmo presente deve ter parecido por demais liberal para o autor posterior. A depreciação da fé ritualista tinha ido longe demais, deve ter ele pensado. Note o leitor que essa depreciação, por si mesmo, indica uma data posterior. É difícil imaginar que Davi falaria nesses termos, visto que a lei mosaica era seu supremo guia espiritual.

“Os vss. 18 e 19 foram uma adição posterior, cujo desígnio era modificar o espírito anti-sacrificial dos versículos anteriores e adaptar o salmo a um uso litúrgico” (Oxford Annotated Bible, comentando este versículo).

51.19
Então te agradarás dos sacrifícios de justiça. O autor deste apêndice mostrou-se enfático quanto ao valor dos sacrifícios, a fim de modificar o que fora dito nos vss. 16 e 17. Aquilo que “Deus não desejava” é enfaticamente desejado aqui. A fim de deixar clara a sua mensagem, o autor, ato contínuo, lista várias formas de sacrifícios, para que não nos esqueçamos de nenhuma delas, Para ele, todas essas formas eram importantes, e todas tinham de ser observadas. Ver no Dicionário o artigo intitulado Sacrifícios e Ofertas. O autor original defendia e antecipava um sistema sem nenhum animal sacrificado. Os hebreus tinham-se dado muito bem no cativeiro babilônico, sem aquele pesado sistema de sangue e carne queimada. Muitos judeus, é provável, mesmo depois de terem retornado à Terra Prometida, gostariam de ter continuado com um sistema incruento, tal como o fazem os judeus modernos, conservadores e tradicionalistas. Contudo, havia os fundamentalistas que insistiam na restauração total do sistema de sangue, uma vez que as muralhas de Jerusalém fossem reconstruídas e as coisas voltassem ao curso antigo. Isto posto, os conservadores “salvaram” a fé hebraica de tendências liberalizantes, como sucedeu aos judeus conservadores refletidos neste salmo. Os ultraconservadores continuam tentando “salvar a fé” e, assim fazendo, por muitas vezes obscurecem a verdadeira fé. A bibliolatria (ver a respeito no Dicionário) é um dos resultados dos esforços deles. Por outra parte, o vício do liberalismo é o ceticismo, e este é outro extremo que precisa ser evitado.