Salmo 1 — Análise Bíblica

Salmo 1: Dois caminhos, dois destinos

Esse salmo de autor desconhecido ocupa um lugar de destaque no livro. Como primeiro salmo, serve de introdução para o livro todo. Não é por acaso que começa com a primeira letra do alfabeto hebraico e que a primeira letra da última palavra é a última letra do alfabeto hebraico. Conforme esse padrão indica, o salmo e o livro que ele introduz contêm a palavra de Deus de alfa a ômega, do princípio ao fim. Apesar de ser uma coletânea de hinos, Salmos é, portanto, muito mais que um hinário.

Esse fato é ressaltado pela divisão do livro em cinco se­ções ou “livros” da mesma forma que a Torá ou Pentateuco consiste em cinco livros. Como o Pentateuco, os salmos contêm instruções, orientações e ensinamentos de Deus.

Infelizmente, muitas vezes não observamos esse aspecto dos salmos nas igrejas, onde costumamos lê-los como uma invocação no início do culto, sem prestar atenção ao seu conteúdo.

O salmo 1 é, no entanto, mais que uma introdução. Também traz ensinamentos apresentados numa forma característica da literatura sapiencial do AT. Retrata nossa vida terrena como uma jornada na qual podemos seguir dois caminhos diferentes que conduzem a dois destinos diferentes. Serve de placa indicativa e aponta a direção que devemos seguir.

1:1-2 Retrato do justo

O salmo começa apresentando as características de um indivíduo justo. Descreve-o como bem-aventurado (1:1a). Seu início assevera, portanto, o veredicto do julgamento dado na conclusão (1:6). O resultado de uma vida boa é garantido desde o princípio.

O salmo retrata a natureza da vida boa primeiro em termos negativos e, depois, em termos positivos. Os três verbos na forma negativa representam níveis crescentes de intimidade: Não anda [...] não se detém [...] nem se assenta (1:16). O salmista descreve as pessoas com as quais o indivíduo desenvolve essa intimidade como ímpios [...] pecadores [...] escarnecedores. Adverte o leitor acerca do perigo de andar em más companhias. As pessoas com as quais convivemos podem exercer forte influência sobre nossa vida. A sabedoria africana trata desse assunto em vários ditados sobre os efeitos negativos de se associar aos perversos (p. ex., “O amigo do ladrão também é ladrão”). O NT argumenta de forma semelhante: “As más conversações corrompem os bons costumes” (ICo 15:33).

O AT fornece vários exemplos de pessoas que caíram porque seguiram os conselhos dos ímpios. Amnom, um dos filhos de Davi, seguiu o mau conselho de seu amigo Jonadabe e estuprou sua meia-irmã, Tamar (2Sm 13:1-20), ato que levou à desintegração da família de Davi. Roboão, sucessor de Salomão, recusou dar ouvidos ao conselho dos anciãos sábios e optou por seguir a recomendação de seus jovens amigos. Como resultado, a nação de Israel se dividiu em dois reinos que nunca mais se reuniram (1Rs 12:1-20).

O versículo 2 enfatiza os atos positivos do justo. Em vez de seguir o conselho dos ímpios, o justo segue a lei do Senhor (1:2). O termo “lei” (ou Torá) é usado duas vezes nas duas declarações paralelas desse breve versículo. Nesse contexto, não se refere aos cinco livros do Pentateuco, mas às Escrituras como um todo, inclusive Salmos, o livro que esse capítulo introduz. Aqueles que são justos não têm tempo para ficar ociosos fazendo fofocas e zombando de outros, pois meditam na lei de dia e de noite. Para eles, meditar no significado da lei e na forma como podem aplicá-la à sua vida não é um fardo, mas, sim, um prazer. Essa descrição dos justos traz à memória as palavras de Deus quando ele falou pela primeira vez a Josué e lhe revelou o segredo do ministério bem-sucedido: “Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido” (Js 1:8). Deus não diz a Josué que basta fazer uma leitura diária da lei. Além de lê-la, Josué deve refletir a seu respeito a fim de encontrar instrução, direção e conselho. Salmos 119:105 expressa a mesma verdade de outra maneira: “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e, luz para o meu caminho”.

1:3-4 O justo e o perverso

A descrição em 1:1 daquilo que o justo não faz também nos informa aquilo que o perverso faz. Em vez de descrever a vida do perverso, o salmista fornece símiles que comparam o destino do justo e do perverso.

A vida do justo é como árvore plantada junto a corrente de águas (1:3). Essa árvore dá o seu fruto com regularidade no devido tempo, e suas folhas permanecem sempre verdes. No contexto da Bíblia, dar fruto significa ser próspero, bem-sucedido e prolífico. Os escritores bíblicos empregam essa imagem para pessoas, animais, plantas e até para a terra. E a prosperidade que o Senhor prometeu ao entrar em aliança com Israel: “Ele te amará, e te abençoará, e te fará multiplicar; também abençoará os teus filhos, e o fruto da tua terra, e o teu cereal, e o teu vinho, e o teu azeite, e as crias das tuas vacas e das tuas ovelhas, na terra que, sob juramento ateus pais, prometeu dar-te” (Dt 7:13-14).

Apesar de continuar válida, a promessa da bênção de Deus tem sido distorcida por aqueles que pregam o evangelho da prosperidade e focalizam somente a ligação entre a fé em Cristo e as riquezas materiais. Cristãos pobres em países do Senegal à África do Sul, de Abidjã a Nairóbi recebem incentivo para tentar enriquecer por meio de jejuns. De acordo com seus gurus, o jejum, por vezes até de quarenta dias, é o único requisito para o sucesso. Ensinamentos desse tipo não representam, contudo, toda a verdade. Em sua graça, Deus pode conceder-nos prosperidade material, mas ela não vem de forma mecânica e passiva. Esse salmo deixa claro que a prosperidade não é uma recompensa por determinada ação, mas resultado de um estilo de vida que segue o caminho traçado por Deus, o Criador. Os justos não falharão porque seguem a direção da palavra de Deus.

Como árvores que extraem o sustento da água e do solo, os justos buscam seu sustento na palavra de Deus. Os cristãos africanos precisam aprender a dar à palavra de Deus o lugar que lhe é de direito em sua vida.

Seria de esperar que o escritor retratasse os perversos como árvores mirradas, plantadas em terra seca, mas ele escolhe um símile diferente. A vida do perverso não é nem sequer semelhante a uma árvore seca; pode ser comparada apenas a palha que o vento dispersa (1:4). Trata-se de uma imagem conhecida na África, onde mulheres colhem os cereais e depois separam os grãos da palha. Os grãos pesados caem no chão ou numa cesta onde serão guardados, enquanto a palha que é mais leve e não tem valor é levada pelo vento. Essa imagem enfatiza a leviandade dos perversos. Eles não têm peso nem valor e desaparecem quando o vento sopra.

1:5-6 O julgamento divino

Não é raro o AT associar a imagem da palha dispersa ao julgamento de Deus (Sl 35:5; Os 13:3). Devido à sua leviandade, os perversos não prevalecerão no juízo, ou seja, no julgamento final que Deus executará, e os pecadores não terão lugar na congregação dos justos (1:5). Essas palavras remetem a 1:1, que menciona as mesmas pessoas. O fato de elas serem excluídas da congregação corresponde a uma garantia de destruição.

O versículo final do salmo mostra explicitamente dois caminhos que se encontram diante de nós: o caminho dos justos e o caminho dos ímpios (1:6). Vemos os dois caminhos e sua conclusão inevitável: os justos serão bem-sucedidos porque o Senhor guarda o seu caminho; os perversos, contudo, perecerão. É Deus quem garante o sucesso da vida dos justos.

Uma vez que é um texto sapiencial, o salmo 1 exige uma decisão. O leitor deve escolher entre os dois caminhos. Que nossa escolha seja aquela defendida por Jesus ao dizer: “Antes, bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam!” (Lc 11:28).