Isaías 55: Significado, Explicação e Devocional
Isaías 55
Isaías 55 é um capítulo do livro de Isaías que contém uma mensagem de convite e esperança ao povo de Israel. O capítulo começa com um convite a todos os que têm sede de vir beber da água da vida. Isaías clama ao povo para vir e comprar comida sem dinheiro e beber sem custo, pois o Deus deles proverá todas as suas necessidades.
O capítulo continua falando do amor inabalável e da fidelidade de Deus. Isaías lembra o povo da aliança que Deus fez com eles e os encoraja a buscar a Deus enquanto se pode achar. Ele assegurou-lhes que os caminhos de Deus são mais elevados do que os caminhos deles e que seus pensamentos são mais elevados do que os pensamentos deles.
Na última parte do capítulo, Isaías fala do poder da palavra de Deus. Ele declara que a palavra de Deus não voltará para ele vazia, mas cumprirá o propósito para o qual foi enviada. Ele encoraja o povo a ouvir a palavra de Deus e seguir seus mandamentos, pois assim eles encontrarão paz e prosperidade.
Isaías 55 é uma poderosa mensagem de convite e esperança para o povo de Israel. Isso os lembra de que seu Deus é um provedor e que satisfará suas necessidades mais profundas. O capítulo encoraja o povo a buscar a Deus e a ouvir sua palavra, pois assim encontrará a verdadeira paz e a prosperidade. É uma mensagem de segurança e conforto para aqueles que estão lutando, lembrando-os de que Deus está sempre presente e que seu amor e fidelidade são imutáveis.
I. Esboço de Isaías 55
A. Convite universal ao banquete da graça (55:1–3)
a. Chamado aos sedentos para virem às águas, ao vinho e ao leite sem dinheiro e sem preço (55:1)
b. Advertência contra gastar recursos no que não satisfaz e convite a ouvir diligentemente (55:2)
c. Promessa de vida para a alma e de aliança eterna, baseada nas firmes misericórdias prometidas a Davi (55:3)
B. Aliança davídica e vocação missionária entre as nações (55:4–5)
a. Davi como testemunha, líder e comandante dos povos (55:4)
b. Chamado de uma nação desconhecida e sua corrida em direção a Sião (55:5a)
c. Atração das nações “por causa do Senhor teu Deus” e da exaltação concedida por ele (55:5b)
C. Chamado urgente à busca do Senhor e ao arrependimento (55:6–7)
a. Buscar o Senhor enquanto se pode achá-lo e invocá-lo enquanto está perto (55:6)
b. Abandono do caminho perverso e dos pensamentos iníquos (55:7a)
c. Conversão ao Senhor que se compadece e ao Deus que multiplica o perdão (55:7b)
D. Superioridade dos caminhos e pensamentos de Deus (55:8–9)
a. Distinção radical entre os pensamentos de Deus e os pensamentos humanos (55:8)
b. Metáfora dos céus e da terra como medida da distância entre caminhos divinos e humanos (55:9a)
c. Chamado implícito à confiança e submissão à sabedoria e ao desígnio de Deus (55:9b)
E. Eficácia infalível da palavra de Deus (55:10–11)
a. A chuva e a neve que descem dos céus, regam a terra, produzem e fazem brotar (55:10)
b. A palavra que sai da boca de Deus e não volta para ele vazia (55:11a)
c. Realização do que agrada a Deus e êxito no propósito para o qual a palavra é enviada (55:11b)
F. Alegria escatológica, paz e renovação da criação (55:12–13)
a. Saída com alegria e condução em paz do povo redimido (55:12a)
b. Participação cósmica na celebração: montes e colinas cantando, árvores batendo palmas (55:12b)
c. Reversão da maldição: espinheiro substituído pelo cipreste, abrolho pela murta, como nome e sinal eterno do Senhor (55:13)
II. Explicação de Isaías 55
Isaías 55:1
Ó, todos os sedentos, vinde às águas; e vós, os que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; sim, vinde, comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite. (Hb.: hôy kol-ṣāmēʾ ləḵû lammayim waʾăšer ʾên-lô kāsep̄ ləḵû šibrû weʾeḵōlû ûləḵû šibrû bə-lōʾ kesef ûḇəlōʾ məḥîr yayin wəḥālāv — “Ah! Todo sedento, ide às águas, e aquele que não tem prata, ide, comprai e comei; sim, ide, comprai, sem prata e sem preço, vinho e leite.”) A frase inteira é um grande convite em forma de clamor, uma sucessão de imperativos que soam como o pregão de um mercado em dia de festa, mas o mercado aqui vende graça: tudo é gratuito. A paisagem vocabular começa com hôy (“ah!, ó!”), interjeição usada tanto em oráculos de juízo quanto em chamados solenes; em Isaías 55 ela não anuncia desgraça, mas abre um convite urgente e cheio de ternura. O sintagma kol-ṣāmēʾ reúne kol (“todo, cada”) com o particípio ṣāmēʾ (“sedento”) do verbo ṣāmeʾ (“ter sede”), designando não um grupo social específico, mas qualquer criatura que se reconheça em estado de carência vital; o campo semântico de ṣāmēʾ abrange tanto a sede física no deserto quanto a metáfora da alma ressequida em busca de Deus (como em Salmos 42:2; 63:1). O verbo de movimento hālak (“ir, andar”), aqui na forma imperativa ləḵû, converte essa sede num gesto: não basta desejar, é preciso levantar-se e ir até as águas. Mayim (“águas”) evoca, ao mesmo tempo, a água literal que sustenta o corpo e a imagem da vida que Deus oferece, frequentemente associada à Torá ou ao Espírito (cf. Jeremias 2:13; João 7:37–39). O termo kāsep̄ (“prata”, por extensão “dinheiro”) abre a dimensão econômica do versículo: trata-se de um convite para um mercado em que os bens mais caros (“vinho” yayin e “leite” ḥālāv) são oferecidos “sem dinheiro e sem preço”; yayin é símbolo de alegria e celebração, enquanto ḥālāv sugere alimento nutritivo, a provisão básica que sustenta a vida. O verbo šābar em sua acepção II (“comprar grão, comprar alimento”) aparece aqui na forma imperativa šibrû e remete ao contexto de fome e provisão (como em Gênesis 41–43), agora transposto ao plano espiritual: comprar sem dinheiro aquilo que verdadeiramente alimenta. O substantivo məḥîr (“preço, valor pago”) reforça a ironia teológica: há um custo real, mas não é pago pela criatura; e sim, implicitamente, pelo próprio Deus que assume o “preço” da aliança (tema que o contexto de Isaías 53–55 já preparou).
Isaías 55:1 se organiza como cadeia de vocativos e imperativos. Hôy é interjeição invariável, sem flexão de gênero ou número, funcionando como partícula exclamativa que introduz todo o oráculo. Kol é substantivo masculino singular em estado construto, ligando-se a ṣāmēʾ para formar “todo sedento”, onde ṣāmēʾ é particípio qal masculino singular de ṣāmeʾ (“ter sede”), usado substantivamente e em função de vocativo, dirigindo-se a um grupo indefinido de ouvintes. Ləḵû é qal imperativo 2ª pessoa masc. plural de hālak (“ir, andar”), com sujeito implícito “vós”, funcionando como núcleo verbal da primeira cláusula; lammayim combina a preposição לְ com o artigo e o substantivo masculino plural absoluto mayim (“águas”), formando o complemento de direção (“para as águas”). A sequência waʾăšer reúne a conjunção coordenativa wə- e o pronome relativo invariável ʾăšer (“e o que / e aquele que”), introduzindo uma oração relativa qualificativa: ʾên-lô kāsep̄. Nessa oração, ʾên é a partícula de existência negativa, equivalente a “não há”; lô é preposição לְ + sufixo pronominal de 3ª masc. sing. (“para ele / nele”), formando com ʾên o padrão idiomático “não há para ele = ele não tem”; kāsep̄ é substantivo masculino singular absoluto (“prata, dinheiro”), desempenhando o papel de sujeito lógico do predicado existencial negativo (“não há para ele prata”). A seguir, repete-se ləḵû (qal imperativo 2ª masc. pl.), desta vez seguido de šibrû, também qal imperativo 2ª masc. pl. de šābar II (“comprar alimento”), formando uma cadeia de dois imperativos coordenados (“vinde, comprai”). Weʾeḵōlû acrescenta um terceiro imperativo qal 2ª masc. pl. do verbo ʾāḵal (“comer”), precedido de wə- consecutivo, ainda com sujeito implícito “vós”, pedindo não só a aquisição, mas o desfrute do alimento espiritual. Na última parte, ûləḵû šibrû retoma a mesma sequência de imperativos, agora modificada pela locução preposicional bə-lōʾ kesef ûḇəlōʾ məḥîr: bə- é preposição “em, com”, combinada com lōʾ (“não”) para formar “sem”; kesef é novamente substantivo masc. sing. (“prata, dinheiro”); ûḇəlōʾ repete a preposição + partícula negativa, desta vez diante de məḥîr, substantivo masc. sing. (“preço, valor”). O par final yayin wəḥālāv apresenta dois substantivos masculinos singulares absolutos (“vinho e leite”) como objeto direto implícito dos imperativos “comprai” e “comei”, representando os bens que Deus oferece gratuitamente.
O versículo compõe uma espécie de escada poética de convites. A primeira cláusula, “hôy kol-ṣāmēʾ ləḵû lammayim”, tem estrutura exclamativa + vocativo + predicado verbal: a interjeição estabelece o tom, o vocativo “todo sedento” delimita o destinatário, e o imperativo “ide às águas” constitui o núcleo predicativo. A seguir, a cláusula relativa introduzida por waʾăšer (“e o que não tem prata”) funciona como especificação adicional do público: além de “todo sedento”, especialmente “aquele que não tem dinheiro”. A oração existencial “ʾên-lô kāsep̄ ” é uma predicação nominal negativa, com elipse de cópula (“não há para ele prata”), onde a relação dativa (lô) marca posse. Sobre essa estrutura nominal incidem três verbos imperativos coordenados: “vinde, comprai e comei”, em sequência enfática. A última oração (“e vinde, comprai sem dinheiro e sem preço vinho e leite”) retoma a cadeia de imperativos, agora governando um bloco preposicional (“sem dinheiro e sem preço”) que funciona como adjunto instrumental/modal (“sem qualquer pagamento”), seguido do objeto direto (“vinho e leite”). O paralelismo sintático entre “todo sedento” e “aquele que não tem prata” reforça a ideia de que a pobreza material não exclui, antes qualifica os convidados; a duplicação de “vinde, comprai” e a menção tardia de “vinho e leite” intensificam o crescendo retórico.
Na comparação de versões, as traduções literais em inglês, como a Young’s Literal Translation, procuram preservar de perto a estrutura hebraica: “Ho, every thirsty one, come ye to the waters, and he who hath no money, come ye, buy and eat, yea, come, buy without money and without price, wine and milk” (“Ah, todo sedento, vinde às águas, e o que não tem dinheiro, vinde, comprai e comei; sim, vinde, comprai sem dinheiro e sem preço, vinho e leite”). A KJV segue linha semelhante, com leve arcaísmo, conservando o triplo imperativo e a cadência solene. Em português, a Almeida Corrigida Fiel praticamente espelha as duas: “Ó vós, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei; sim, vinde, comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite.” A NVI suaviza a forma de mercado, enfatizando o convite universal e a gratuidade: “Venham, todos vocês que estão com sede, venham às águas; vocês que não possuem dinheiro algum, venham, comprem e comam! Venham, comprem vinho e leite sem dinheiro e sem custo.” A NVT intensifica o tom coloquial: “Alguém tem sede? Venha e beba, mesmo que não tenha dinheiro! Venha, beba vinho ou leite; é tudo de graça!”, condensando “sem dinheiro e sem preço” em “é tudo de graça”, o que capta bem o sentido, embora deixe de lado a dupla negação formal. Em todas elas, o essencial permanece: sede, falta de recursos, convite insistente, bens abundantes e completamente gratuitos. As versões em inglês de viés mais interpretativo (como NLT ou GW) acentuam a dimensão pastoral (“It’s all free”), traduzindo o choque econômico do texto em linguagem contemporânea.
A versão grega da Septuaginta, embora mantenha a estrutura geral, introduz nuances interessantes. O texto lê aproximadamente: “Hoi dipsōntes, poreuesthe epi to hydōr, kai hosoi mē echete argyrion, badisantes agorasate kai phagete, badisantes agorasate aneu argyriou kai timēs oinon kai stear” — “Vós, os que tendes sede, ide à água, e todos os que não tendes prata, indo, comprai e comei; indo, comprai sem prata e sem preço vinho e gordura.” O vocativo hoi dipsōntes (“os que têm sede”) corresponde bem a kol-ṣāmēʾ, e argyrion (“prata, dinheiro”) retoma kāsep̄. A locução aneu argyriou kai timēs (“sem prata e sem preço”) traduz de forma transparente bə-lōʾ kesef ûḇəlōʾ məḥîr. A diferença mais notável está em oinon kai stear (“vinho e gordura”) em vez de “vinho e leite”, possivelmente por leitura de um texto hebraico ligeiramente distinto ou por harmonização com a imagem da gordura abundante como símbolo de bênção (cf. Isaías 55:2; Isaías 25:6). Em termos teológicos, o efeito é semelhante: não se trata de ração mínima de sobrevivência, mas de mesa farta, banquete gratuito oferecido por Deus aos que nada podem pagar.
O versículo é um portal para todo o capítulo. No contexto de Isaías 40–55, após a proclamação do Servo sofredor que carrega as iniquidades (Isaías 53) e das promessas de restauração (Isaías 54), Deus irrompe com um convite universal: o exílio não é o último capítulo, e a culpa não é a palavra final. A imagem dos “sedentos” articula a condição humana em termos de carência e desejo: assim como o corpo seco no deserto clama por água, o coração saturado de ídolos e frustrações clama, mesmo sem saber, por uma fonte que não se esgota (cf. Jeremias 2:13; João 4:13–14). A ausência de “prata” indica que nada no ser humano — mérito, obra, prestígio, linhagem — pode servir de moeda para adquirir o que Deus oferece; a triade “vinde, comprai, comei” dramatiza o movimento da fé: aproximar-se, receber, participar. O paradoxo “comprai sem dinheiro e sem preço” antecipa a lógica da graça neotestamentária: há um preço, mas pago por outro (cf. Marcos 10:45; 1 Pedro 1:18–19); por isso, para o pecador, tudo é gratuito. A ligação com Apocalipse 22:17 é explícita: “Quem tem sede, venha, e quem quiser receba de graça a água da vida.” O mesmo convite ecoa na voz de Jesus em João 7:37: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba.”
O mercado de Isaías 55 se cumpre na pessoa de Cristo, que se oferece como água viva, pão do céu, vinho novo da aliança, leite que nutre os recém-nascidos na fé (1 Pedro 2:2). A lógica prática do versículo desmascara tanto a autossuficiência religiosa quanto o consumismo secular: nenhum investimento humano, por mais custoso, sacia a alma; por outro lado, aquele que se sabe sedento e vazio é exatamente quem se encontra em melhor posição para acolher a oferta divina. Viver esse versículo significa, na prática, admitir a própria sede, abandonar a ilusão de que podemos comprar a paz com moeda de desempenho, e responder ao convite com a obediência simples dos imperativos: “vinde, comprai, comei.” No plano comunitário, este texto funda uma espiritualidade de hospitalidade: a igreja que bebe dessas águas não pode transformar a graça em mercadoria, nem erguer pedágios sobre aquilo que Deus declarou “sem dinheiro e sem preço”; ao contrário, é chamada a ecoar a voz do próprio Senhor: “venham às águas”, abrindo espaço para os sedentos, especialmente para aqueles que não têm “prata” alguma para ostentar, pois justamente estes são os primeiros na fila do banquete da graça.
Cristologia: Jesus é Água e Alimento
Isaías 55 abre com um grito que, como vimos, é um convite estranho: comprar sem dinheiro, beber e comer sem pagar. O profeta fala a um povo cansado de exílio, de ídolos que não respondem e de trabalhos que não saciam. A sede aqui é mais do que biológica; é sede de sentido, de perdão, de aliança restaurada. O próprio Deus se oferece como fonte, pão e vinho. Quando o Novo Testamento se abre e vemos Jesus sentado junto ao poço de Jacó, em João 4, percebemos que essa voz de Isaías ganhou rosto e voz humana.
Na cena com a samaritana, Jesus começa pedindo um pouco de água, mas rapidamente inverte os papéis: “Se você conhecesse o dom de Deus… ele lhe teria dado água viva.” (João 4:10) A mulher vem ao poço com um cântaro e uma história de relacionamentos quebrados; ela gastou a vida em “pães” que não alimentam, em vínculos que não saciam o coração. Isaías perguntava: “Por que gastar dinheiro naquilo que não é pão e o seu trabalho naquilo que não satisfaz?” (Isaías 55:1-2) Jesus responde, em plena tarde samaritana, oferecendo uma água que se torna fonte interior, jorrando para a vida eterna. A gratuidade de Isaías 55 aparece de novo: não há tarifa espiritual, não há exigência de currículo moral impecável; há um dom. A única condição é admitir a sede e estender as mãos vazias. Onde Isaías falava de águas, vinho e leite gratuitos, Jesus se apresenta como a própria água, dada de graça a uma mulher marginalizada religiosa e socialmente. Aquele que, em Isaías, chamava “todos os sedentos” agora procura uma sedenta específica, como se dissesse: o grande convite cósmico passa também por encontros pessoais.
Em Mateus 14:13-21, essa mesma lógica se amplia. Depois de alimentar cerca de cinco mil homens com cinco pães e dois peixes, de modo que “todos comeram e se fartaram” e ainda sobraram cestos de pedaços, Jesus revela que o sinal não termina no pão multiplicado. A multidão volta a procurá-lo, e ele denuncia: vocês estão me buscando “porque comeram dos pães e ficaram satisfeitos”, e então os chama a não trabalhar “pela comida que se estraga, mas pela que permanece para a vida eterna”. (João 6:35) Aqui o eco de Isaías 55:2 é direto: não gastar a vida inteira no que não é pão verdadeiro, não investir o coração em coisas que alimentam apenas por algumas horas. É nesse contexto que Jesus declara: “Eu sou o pão da vida. Aquele que vem a mim nunca terá fome, e quem crê em mim nunca terá sede.” Água viva e pão da vida se unem: a promessa de Isaías de comer “o que é bom” e “deliciar-se com a melhor comida” encontra no corpo e na pessoa de Cristo o seu cumprimento. O que Isaías via como mesa abundante, Jesus encarna como presença: ele mesmo é o alimento.
Quando então chegamos à ceia pascal, às vésperas da cruz, a linguagem de comer e beber atinge o ponto mais profundo. Jesus toma o pão, dá graças, parte e diz: “Isto é o meu corpo”; toma o cálice e afirma: “Este é o meu sangue da aliança, derramado em favor de muitos.” (Marcos 14:22-25, Lucas 22:18-20,1 Corintíos 11:23-25) O convite de Isaías, “venham, comprem e comam… sem dinheiro”, ganha agora um preço escondido: para nós é sem dinheiro, mas para o Filho é corpo quebrado e sangue derramado. O banquete é gratuito para o convidado porque foi infinitamente caro para o anfitrião. Na mesa do Senhor, o pão e o vinho se tornam sinal visível do que Isaías chamava de “aliança eterna” e “firmes misericórdias de Davi”: Deus compromete-se para sempre com um povo, selando a nova aliança no sangue de Cristo. Comer e beber na ceia é, devocionalmente, dizer: “Eu aceito o convite de Isaías 55; eu recebo em mim mesmo o pão e a água que o Senhor oferece.” É uma resposta de fé encarnada em gesto.
As multiplicações de pães, vistas à luz de Isaías 55, deixam de ser apenas demonstrações de poder e se tornam parábolas vivas da graça. Jesus vê a multidão cansada, num lugar deserto; os discípulos sugerem que ele os mande embora para comprarem comida, mas ele responde: “Vocês é que devem dar-lhes de comer.” (Mateus 14:13-21, Marcos 6:30-33, Lucas 9:10-17, João 6:1-13) Com poucos pães nas mãos, Jesus abençoa, parte, distribui, e há o suficiente para todos e ainda sobra. É Isaías 55 em forma de piquenique: gente pobre, sem dinheiro suficiente para comprar alimento, recebendo pão abundante das mãos do Messias. De novo, a lógica é a mesma: o que tínhamos era quase nada; o que Cristo faz é multiplicar até sobrar. E, como em Isaías, a abundância material aponta para uma realidade mais funda: ele é o verdadeiro pão; se me contento apenas com os pães e peixes, estou “gastando dinheiro no que não é pão”. As multiplicações são ensaios do banquete messiânico, prenúncios de uma mesa em que famintos de justiça, pecadores arrependidos, pais aflitos, jovens confusos, multidões anônimas são nutridos pelo próprio Cristo.
Isaías 55 também insiste na escuta: “Inclinem o ouvido… escutem-me, e vocês comerão o que é bom”. A fé não se descreve apenas como comer e beber, mas também como ouvir. No evangelho de João, essa mesma dinâmica aparece: “Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna” (João 5; ecoando vários lugares). Ouvir e comer se entrelaçam: pela escuta da Palavra o coração é aberto, e pela fé essa Palavra se torna alimento. Para um pai ou mãe, isso significa que alimentar os filhos espiritualmente é muito mais do que prover comida na mesa; é expô-los amorosamente à Palavra de Cristo, ler o evangelho em casa, orar com eles, levá-los à água viva para que aprendam a beber por si mesmos. Para um pregador, significa que o sermão não é palestra para gente curiosa, mas distribuição de pão e oferta de água aos sedentos; cada texto pregado é uma cesta que sai das mãos de Jesus, passa pelos dedos do pregador e chega às bocas famintas da congregação.
Moralmente, o capítulo de Isaías denuncia a idolatria dos “pães” falsos e das “águas” envenenadas: projetos de vida centrados na acumulação, relações que objetificam, práticas religiosas que tentam comprar Deus com boas obras ou rituais vazios. Jesus expõe isso de formas diferentes: na samaritana, ele desmascara a busca de saciedade em afetos desordenados; na multidão, desvela a busca apenas por milagre material; nos discípulos, combate a tentação de despachar o povo faminto. Em todos os casos, oferece algo melhor: água que sacia de dentro para fora, pão que não se estraga, corpo e sangue dados “por muitos”. Receber essa oferta gratuita tem implicações concretas: se fui saciado de graça, não posso negar pão ao faminto; se bebi misericórdia sem pagar, não posso vender perdão caro aos que me ofendem. A ceia do Senhor, se recebida com fé, transforma quem participa em gente eucarística, gente que reparte, que perdoa, que se torna semente de Isaías 55 na rua, no trabalho, na família.
Toda essa rede de textos — Isaías 55, João 4, João 6, as ceias e as multiplicações — desenha um único movimento: Deus se oferecendo. Ele chama, ele desce, ele senta à beira de um poço, ele parte o pão, ele se deixa partir. Água viva, pão da vida, corpo e sangue, pães multiplicados: são imagens diferentes do mesmo presente, Cristo. A mensagem é que a sede mais funda, a fome mais radical, não se resolve com mais uma relação, mais um salário, mais um “milagre” utilitário, mas com uma Pessoa que se doa. Isaías viu à distância um banquete gratuito para sedentos; o evangelho mostra o anfitrião com um cálice na mão, dizendo: “Tomem, comam, bebam.” A vida cristã, então, é aprender a viver diariamente de Isaías 55: levantar-se cada manhã como alguém que não tem com que pagar, mas tem um convite na mão; aproximar-se do poço, da mesa, da Palavra, e deixar que a graça, como água silenciosa, vá enchendo o cântaro rachado da nossa alma até transbordar em serviço, compaixão e adoração.
Isaías 55:2
Por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão, e o produto do vosso trabalho naquilo que não satisfaz? Ouvi-me atentamente e comei o que é bom, e a vossa alma se deleitará na gordura.(Hb.: lāmmāh tišqəlû kesep̄ bə-lōʾ leḥem wîgîaʿăḵem bə-lōʾ ləśāḇəʿāh; shimʿû šāmôaʿ ʾēlay wĕʾiḵlû ṭôḇ wĕ-tiṯʿannag baddešen nap̄šəḵem — “Por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão, e o produto do vosso trabalho naquilo que não satisfaz? Ouvi-me atentamente e comei o que é bom, e a vossa alma se deleitará na gordura.”) O versículo começa com o advérbio interrogativo lāmmāh (“por quê?”), que abre uma pergunta de crítica e espanto, não de mera curiosidade. O verbo subjacente é šāqal (“pesar, pesar para pagar, desembolsar”), de onde vem tišqəlû (“vós pesais/gastais”), termo usado em contextos de pagamento em prata, como em Gênesis 23:16, onde Abraão “pesou” o dinheiro a Efrom pelo campo, o que explica a nuance comercial de “gastar” aqui. A seguir, kesep̄ designa “prata, dinheiro”, tanto o metal quanto a moeda, um vocábulo que atravessa o Antigo Testamento como símbolo do valor econômico, mas também daquilo que o coração cobiça (Provérbios 30:8; Eclesiastes 5:10). O objeto em que esse dinheiro é despendido é negado: bə-lōʾ leḥem, “para não-pão”, expressão que recorre ao núcleo semântico de leḥem, “pão, alimento, sustento”, o termo mais comum para o alimento básico, tanto literal como metaforicamente (por exemplo, “pão de lágrimas” em Salmos 80:5). O paralelo da segunda metade da pergunta traz wîgîaʿăḵem, “e o vosso cansaço/trabalho”, de yǝgîaʿ, substantivo ligado ao verbo yāgaʿ (“labutar, fatigar-se, penar”), que pode indicar tanto a fadiga em si quanto o produto duramente conquistado dessa labuta (cf. Salmos 127:2; Eclesiastes 5:18). Esse suor é direcionado bə-lōʾ ləśāḇəʿāh, “para não-satisfação”, onde śāḇəʿāh vem de sāḇaʿ (“estar saciado, cheio”), campo semântico de plenitude, saciedade e contentamento (como em Salmos 17:15; Provérbios 13:25).
Na sequência exortativa, o verbo dominante é šāmaʿ (“ouvir, escutar, obedecer”): shimʿû šāmôaʿ ʾēlay intensifica a ideia de “escutai, escutando”, onde o infinitivo absoluto reforça o imperativo, como um chamado insistente que não se contenta com uma audição superficial. O convite “e comei” emprega ʾāḵal(“comer”), verbo que no Antigo Testamento transita com naturalidade da alimentação física à dimensão espiritual (“comer as boas coisas da terra” em Isaías 1:19). O objeto, ṭôḇ, “o que é bom”, concentra um campo semântico riquíssimo que abrange bondade ética, agrado estético e benfazeja qualidade daquilo que provém de Deus, ecoando o “Deus viu que era bom” de Gênesis 1. Por fim, o fecho do versículo desloca-se para a linguagem do deleite: wĕ-tiṯʿannag baddešen nap̄šəḵem; o verbo ʿānaḡ em hitpael (“deleitar-se, ter prazer delicado”) é usado em contextos de prazer refinado em Deus (Salmos 37:4), enquanto dešen (“gordura, gordura sacrificial, abundância”) aponta tanto para a parte mais rica do alimento quanto, metaforicamente, para prosperidade espiritual. E tudo converge para nep̄eš, “alma, vida, pessoa”, que não é uma abstração desencarnada, mas a própria vida concreta na sua sede e apetites, o centro da pessoa diante de Deus.
O verso abre com lāmmāh, advérbio interrogativo não verbal, introduzindo uma pergunta retórica dirigida à segunda pessoa do plural. Tišqəlû é Qal imperfeito 2ª masc. pl. de šāqal, com valor presente–habitual ou prospectivo (“por que estais gastando/por que gastareis?”), funcionando como predicado verbal principal; o sujeito é o “vós” implícito, a comunidade interpelada. Kesep̄ é substantivo masc. sing. absoluto, objeto direto do verbo, enquanto bə-lōʾ leḥem traz a preposição bə seguida da partícula negativa lōʾ e do substantivo masc. sing. absoluto leḥem, formando um complemento preposicional final (“para aquilo que não é pão”). A forma wîgîaʿăḵem é uma sequência de conjunção wə + substantivo masc. sing. em estado construto (yǝgîaʿ, “trabalho, suor”) + sufixo pronominal 2ª masc. pl. (-ḵem), funcionando como segundo termo paralelo, ainda sob o alcance do verbo “gastar/pesar”, embora não repetido explicitamente. A construção bə-lōʾ ləśāḇəʿāh combina a preposição bə + lōʾ com lə + substantivo fem. sing. absoluto śāḇəʿāh (“saciedade”), criando a ideia de direção frustrada (“não em direção à satisfação”).
Na segunda metade, shimʿû é Qal imperativo 2ª masc. pl. (forma plural masculina, dirigindo-se ao povo como um todo), e šāmôaʿ é Qal infinitivo absoluto do mesmo verbo, usado advérbio-intensificador, de modo que a expressão inteira implica “escutai com atenção, escutai de verdade”. A palavra ʾēlay combina a preposição ʾel (“para, em direção a”) com o sufixo de 1ª sing. (-ay), funcionando como complemento indireto (“para mim”). Wĕʾiḵlû liga a conjunção wə a um Qal imperativo 2ª masc. pl. de ʾāḵal, retomando a cadeia de imperativos com valor coordenado. Ṭôḇ aparece aqui como substantivo/adjetivo masc. sing. absoluto, em função de objeto direto (“comei o que é bom”). Na cláusula final, wĕ-tiṯʿannag mostra o prefixo wə sobre um hitpael imperfeito 3ª fem. sing. de ʿānaḡ, funcionando como forma consecutiva jussiva (“e que se delicie”), cujo sujeito é nap̄šəḵem, substantivo fem. sing. em construto com sufixo 2ª masc. pl. (“a vossa alma”). Baddešen é preposição bə + artigo assimilado + substantivo masc. sing. absoluto dešen, formando um sintagma locativo de modo (“em gordura, em abundância”), que funciona como complemento circunstancial de lugar–modo da ação de deleitar-se. A estrutura, portanto, é profundamente paralelística: duas perguntas com verbos no imperfeito dirigidos ao uso insensato de kesep̄ e yǝgîaʿ, seguidas por três imperativos cumulativos (shimʿû, šāmôaʿ, ʾiḵlû) que culminam num jussivo de deleite (tiṯʿannag) cuja realização depende da obediência aos imperativos.
Sintaticamente, o versículo apresenta primeiro uma dupla cláusula interrogativa coordenada por paralelismo semântico. A primeira cláusula, “lāmmāh tišqəlû kesep̄ bə-lōʾ leḥem”, pode ser analisada como oração verbal com advérbio interrogativo no início, verbo finito Qal, objeto direto (kesep̄) e complemento preposicional (bə-lōʾ leḥem), exprimindo a insensatez de gastar recursos em algo ontologicamente “não-pão”, isto é, incapaz de nutrir. A segunda cláusula, “wîgîaʿăḵem bə-lōʾ ləśāḇəʿāh”, retoma a estrutura de modo elíptico: o sujeito sintático é “o produto do vosso trabalho” e o predicado verbal é entendido a partir do primeiro membro (“por que [gastais] o vosso trabalho naquilo que não conduz à saciedade?”). Na parte exortativa, temos uma cadeia de orações imperativas: “shimʿû šāmôaʿ ʾēlay” (Oração 1: verbo imperativo + infinitivo absoluto + complemento indireto), “wĕʾiḵlû ṭôḇ” (Oração 2: verbo imperativo + objeto direto), seguidas por “wĕ-tiṯʿannag baddešen nap̄šəḵem” (Oração 3: forma jussiva com sujeito pós-verbal e adjunto locativo). A progressão sintática acompanha a lógica: da pergunta acusatória (“por que?”) à ordem compassiva (“ouvi-me”, “comei”), culminando numa promessa condicional (“a vossa alma se deleitará em abundância”), de forma que a última oração funciona como apódose implícita para o cumprimento dos imperativos.
Na comparação de versões, as traduções literais em inglês acentuam em uníssono a imagem econômica. Young’s Literal Translation, por exemplo, verte: “Why do ye weigh money for that which is not bread? And your labour for that which is not for satiety? Hearken diligently unto me, and eat good, and your soul doth delight itself in fatness” (“Por que pesais dinheiro por aquilo que não é pão? E o vosso trabalho por aquilo que não é para saciedade? Ouvi atentamente a mim e comei o que é bom, e a vossa alma se deleita em gordura”). A KJV segue praticamente a mesma linha, apenas trocando “weigh” por “spend” e realçando “satisfieth not” (“não satisfaz”), o que aproxima o inglês do campo semântico de śāḇəʿāh como plenitude interior, não apenas enchimento físico. Em português, a Almeida Revista e Atualizada traz: “Por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão, e o vosso suor, naquilo que não satisfaz? Ouvi-me atentamente, comei o que é bom e vos deleitareis com finos manjares”, enfatizando “vosso suor” como tradução interpretativa de yǝgîaʿăḵem e traduzindo dešen por “finos manjares”, deslocando a imagem da gordura para a ideia de alimento nobre. A Almeida Corrigida (ARC) prefere: “Por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão? E o produto do vosso trabalho naquilo que não pode satisfazer? Ouvi-me atentamente e comei o que é bom, e a vossa alma se deleite com a gordura”, aqui mais próxima do hebraico em manter “produto do vosso trabalho” e “gordura”. A NVI atualiza o vocabulário, mas preserva a lógica: “Por que gastar dinheiro naquilo que não é pão e o seu trabalho árduo naquilo que não satisfaz? Escutem, escutem-me, e comam o que é bom, e a alma de vocês se deliciará na mais fina refeição”, em que “refeição” explicita a metáfora do banquete espiritual. A NVT, por sua vez, expande a imagem alimentar (“comida que não fortalece”, “alimentos mais saborosos”), interpretando leḥem e dešen em chave homilética, mas fiel ao movimento geral do texto.
A Septuaginta oferece uma janela interessante para a recepção antiga do versículo: “hina ti timāsthe argyriou kai ton mochthon hymōn ouk eis plēsmonēn; akousate mou kai phagete agatha, kai entruphēsei en agathois hē psychē hymōn” ( — “por que vos valorizais com prata, e o vosso esforço não é para plenitude? ouvi-me e comei coisas boas, e a vossa alma se deleitará em bens”). O tradutor grego substitui tišqəlû por timāsthe (“honrar, avaliar, pagar”), mantendo a cena comercial, e verte yǝgîaʿăḵem por móχthos (“trabalho penoso, fadiga”), enquanto plēsmonē (“plenitude, saciedade”) rende bem śāḇəʿāh. O deleite final é expresso por entruphēsei (“regalar-se, deliciar-se”), verbo que acentua a suavidade prazenteira da comunhão com Deus, de modo que LXX e MT convergem tanto na crítica à economia espiritual distorcida quanto no convite ao banquete gracioso.
Isaías 55:2 é uma denúncia do economizar-se para a morte e um convite ao desperdício da graça. O “dinheiro” e o “produto do trabalho” não são, em si, condenados; Isaías fala a um povo que voltou do exílio ou vive às portas dele, familiarizado com escassez e com o suor da sobrevivência. O alvo da crítica, porém, é a direção desse gasto: recursos finitos são investidos em “não-pão” e em projetos que não conduzem à śāḇəʿāh, à saciedade profunda da nep̄eš. Em termos canônicos, isso dialoga com Eclesiastes, onde “comer e beber” podem ser dons de Deus (Eclesiastes 2:24), mas também podem se tornar vãos quando desligados dele (Eclesiastes 5:10–17). Esta leitura é uma inferência minha, sustentada pela afinidade temática entre os textos. A tríplice ordem “ouvi-me… comei… deleitai-vos” ecoa o convite do versículo anterior (“vinde às águas… vinde, comprai e comei” em Isaías 55:1) e antecipa a lógica cristológica de João 6:27, quando Jesus manda não trabalhar “pela comida que perece, mas pela comida que permanece para a vida eterna”, deslocando o esforço do estômago para a comunhão com a sua pessoa.
Na lógica prática do versículo, a ordem é profundamente pedagógica. Primeiro, Deus desmascara a irracionalidade de um coração que troca a mesa do pacto por migalhas de mercado: gastar dinheiro e suor em “não-pão” é a imagem do coração que busca identidade, segurança e alegria em ídolos — sejam eles bens, status, ideologias ou mesmo religiosidades que não alimentam. Depois, ele não apenas proíbe essa insensatez, mas oferece um banquete alternativo: “comei o que é bom”, isto é, alimentai-vos da sua palavra, das suas promessas e, em última instância, do próprio Servo que em Isaías 53 entrega sua vida como oferta pela culpa, para que em Isaías 55 o convite já possa ser gratuito (“sem dinheiro e sem preço” em 55:1). A promessa de que “a vossa alma se deleitará na gordura” não é um chamado ao luxo, mas à superabundância da graça: como em Salmos 36:8–9, em que os que se abrigam junto de Deus “se fartarão da gordura da tua casa”, a “gordura” aqui é metáfora da porção mais rica da comunhão com o Senhor. Esta conexão com Salmos 36:8–9 é uma inferência minha, ainda que semânticamente sustentada pela recorrência de dešen nesses contextos.
Isaías 55:2 põe diante de nós dois mercados: o mercado onde se compra “não-pão” ao preço da alma, e a feira da graça onde se recebe o banquete de Deus “sem dinheiro e sem preço”. Entre gastar-se por aquilo que nunca satisfaz e gastar o ouvido em atenção ao Deus que fala, o versículo escolhe o caminho da escuta obediente que desemboca numa mesa posta. A teologia do texto convida o cristão a reorientar sua economia existencial: tempo, afetos, inteligência, vocação — tudo deve ser deslocado daquilo que não alimenta para o Cristo que se dá como pão da vida, de modo que, na prática da fé, a alma aprenda a saborear Deus como seu bem supremo (Salmos 73:25–26). Esta aplicação é uma inferência minha, construída a partir da leitura conjunta de Isaías 55, João 6 e Salmos 73, e não de um comentário específico.
Isaías 55:3
Inclinai os vossos ouvidos e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco farei uma aliança perpétua, as fiéis misericórdias prometidas a Davi. (Hb.: haṭṭû ʾoznəḵem ûləkû ʾēlay; shimʿû ûtəḥî napšəḵem, wəʾeḵrəṯā lākem bərît ʿôlām, ḥasdê dāwid haneʾĕmānîm — “inclinem o vosso ouvido e venham a mim; ouçam, e a vossa alma viverá; e eu farei convosco uma aliança eterna, as bondades de Davi, as fiéis”). Do ponto de vista etimológico, o primeiro verbo haṭṭû (“inclinai”) deriva da raiz nāṭāh (H5186), cujo campo semântico reúne ideias de “estender, alongar, inclinar, desviar, dobrar” tanto física como moralmente, sugerindo um movimento deliberado de se curvar ou de fazer pender algo em direção a outrem, inclusive no sentido de “inclinar o ouvido” como gesto de atenção receptiva. A injunção “ouvi” (shimʿû) provém da raiz šāmaʿ (H8085), que não significa apenas perceber sons, mas “ouvir inteligentemente”, com a conotação de atenção obediente, de acolher a palavra de tal modo que se traduza em resposta concreta, por isso o verbo é frequentemente glosado como “ouvir/obedecer”. Em seguida, o verbo que governa a promessa, təḥî (“viverá”), procede da raiz ḥāyâ (H2421), cuja carga semântica vai de “estar vivo” até “reviver, preservar, restaurar”, incluindo tanto vida biológica quanto vitalidade espiritual e restauração de um estado quebrado. O substantivo nepeš (“alma”, napšəḵem) designa a pessoa vivente enquanto centro de vida, desejo, emoção e identidade, não uma “parte” desencarnada, mas o próprio ser em sua interioridade respirante — “vida, ser, pessoa, alma vivente”. Quando o versículo avança para a promessa de “aliança perpétua”, bərît ʿôlām, entra em cena o vocabulário de pacto: bərît (“aliança”) é o termo técnico para o vínculo jurídico-relacional que Deus estabelece com o seu povo, enquanto ʿôlām
sinaliza duração indefinida, “perpétua, para sempre”, compondo a figura de um pacto que atravessa épocas e não se dissolve com as marés da história. Finalmente, a expressão ḥasdê dāwid haneʾĕmānîm condensa o coração teológico do texto: ḥesed (plural construto ḥasdê) é o famoso termo da lealdade amorosa de aliança, frequentemente vertido como “misericórdia, bondade, benignidade leal, amor fiel” (H2617); não é mera emoção benevolente, mas compromisso duradouro de fidelidade. A isto se acrescenta o participial neʾĕmānîm, ligado à raiz ʾāman (H539), que descreve o que é “firme, estabelecido, confiável, digno de fé”; aplicado às “misericórdias de Davi”, faz delas promessas sólidas, inabaláveis, ancoradas na confiabilidade do próprio Deus. Assim, o verso inteiro é uma sinfonia de termos que falam de inclinar-se, ouvir obedientemente, viver e ser envolvido em uma aliança cuja trama é feita de amor leal e fidelidade robusta, enraizada na história davídica.Quanto à morfologia, o verso se abre com uma cadeia de imperativos na 2ª masc. plural, dirigidos à coletividade: haṭṭû é Hifil imperativo 2ª masc. pl. de nāṭāh, com valor causativo (“fazei inclinar o vosso ouvido”), tendo ʾoznəḵem como complemento direto — substantivo feminino singular absoluto ʾōzen (“orelha, ouvido”) com sufixo pronominal de 2ª masc. pl., funcionando sintaticamente como objeto direto interno (“o ouvido de vocês”) do mandamento de inclinar. A seguir, ûləkû combina a conjunção coordenativa wə com o imperativo Qal 2ª masc. pl. de hālak (“ir, andar”), tendo ʾēlay (“a mim”; ʾel + sufixo de 1ª comum singular) como complemento de direção; a coordenação sem verbo cópula explícito cria uma cadência de ações: inclinar o ouvido → vir ao Senhor. O terceiro imperativo, shimʿû, é Qal 2ª masc. pl. de šāmaʿ, sem objeto lexicalizado, mas com objeto lógico implícito (“ouvi [a minha voz / as minhas palavras]”), preparando a cláusula resultativa ûtəḥî napšəḵem. Aqui, ûtəḥî é forma de imperfeito Qal 3ª fem. sing. de ḥāyâ, com a conjunção wə introduzindo valor consecutivo-jussivo (“e a vossa alma viverá”), concordando com o sujeito gramatical napšəḵem — substantivo feminino singular nepeš com sufixo de 2ª masc. pl. Este par imperativo + weqatal desenha uma relação condicional implícita: se ouvirem (imperativo), então a vossa alma viverá (forma consecutiva com valor de promessa). A segunda metade do versículo traz o perfeito 1ª comum singular wəʾeḵrəṯā (Qal com he cohortativa de kārat, “cortar, fazer [aliança]”), ligado a bərît ʿôlām como objeto direto (“cortarei/farei convosco uma aliança eterna”), e lākem (“para vós”) como dativo de vantagem; a forma perfeita com wə aqui tem claro valor futuro-promissivo: Deus se compromete a agir, não apenas relata algo já feito. Por fim, ḥasdê dāwid haneʾĕmānîm é um sintagma nominal em que ḥasdê (masc. plural construto de ḥesed) toma dāwid (substantivo próprio masc. sing.) como complemento genitivo (“as bondades de Davi”), ao passo que haneʾĕmānîm (particípio Nifal masc. pl. com artigo) atua como adjetivo atributivo pós-posto, qualificando essas “misericórdias” como firmes, fidedignas. Não há verbo finito nesta expressão final, que funciona como aposto explicativo ao núcleo “aliança eterna”: poderíamos paráfraseá-la como “uma aliança eterna, a saber, as bondades de Davi, aquelas que são fiéis”.
Sintaticamente, o versículo se organiza em duas grandes sequências coordenadas. A primeira: “haṭṭû ʾoznəḵem ûləkû ʾēlay; shimʿû ûtəḥî napšəḵem” — é uma série de imperativos e forma consecutiva com valor de promessa. Temos uma predicação verbal múltipla, com sujeito implícito “vós” e quatro verbos principais: “inclinar, ir, ouvir, viver”. Os complementos são predominantemente preposicionais: “o vosso ouvido” (ʾoznəḵem) como objeto direto de haṭṭû, “a mim” (ʾēlay) como complemento de direção para ûləkû, e “a vossa alma” (napšəḵem) como sujeito lógico de təḥî. A conjunção wə costura a progressão: inclinação interior (ouvido) → movimento exterior (vir) → atenção obediente (ouvir) → vida restaurada (viver). Na cláusula específica “ouvi, e a vossa alma viverá”, o imperativo shimʿû introduz o apelo, e a sequência ûtəḥî napšəḵem age como oração consequente, com ordem verbo–sujeito típica de hebraico poético, configurando uma promessa condicional implícita em ritmo lapidar. A segunda sequência sintática é “wəʾeḵrəṯā lākem bərît ʿôlām, ḥasdê dāwid haneʾĕmānîm”, em que o sujeito é o próprio Deus (implícito no verbo 1ª sing.), lākem desempenha o papel de dativo de vantagem (“em vosso favor”), bərît ʿôlām é o objeto direto (“aliança eterna”), e ḥasdê dāwid haneʾĕmānîm funciona como aposto explicativo, quase uma glosa teológica do conteúdo desse pacto. Desta forma, temos uma macroestrutura: convoca-se o povo a ouvir e vir, para que viva; em resposta a esse ouvir, Deus promete firmar com eles um pacto cuja substância é o mesmo ḥesed que Ele demonstrou a Davi.
Na comparação de versões, a Almeida Revista e Atualizada verte: “Inclinai os ouvidos e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco farei uma aliança perpétua, que consiste nas fiéis misericórdias prometidas a Davi”, realçando o caráter “perpétuo” da aliança e interpretando ḥasdê dāwid como “misericórdias prometidas”, isto é, as promessas davídicas feitas por Deus ao rei. A Almeida Corrigida Fiel diz: “Inclinai os vossos ouvidos, e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco farei uma aliança perpétua, dando-vos as firmes beneficências de Davi”, onde “firmes beneficências” procura reproduzir o plural de ḥesed e o adjetivo neʾĕmānîm. A Nova Versão Internacional ajusta o sujeito explícito do amor de aliança: “Deem-me ouvidos e venham a mim; ouçam-me, para que a sua alma viva. Farei uma aliança eterna com vocês, conforme a minha fidelidade prometida a Davi”, entendendo ḥasdê dāwid não como misericórdias que Davi tem, mas como a fidelidade que Deus prometeu em relação a Davi.
Em inglês, versões como a KJV registram: “Incline your ear, and come unto me: hear, and your soul shall live; and I will make an everlasting covenant with you, even the sure mercies of David”, enquanto a YLT traz: “Incline your ear, and come unto Me, hear, and your soul doth live, and I make for you a covenant age-during, The kind acts of David that are stedfast”. Ambas mantêm “everlasting covenant” e convergem em “sure mercies of David”, que ecoa o adjetivo neʾĕmānîm como “seguras, firmes”. A LXX amplia um pouco a imagem: “prosechete tois ōtiois hymōn kai epakolouthēsate tais hodois mou; epakousate mou, kai zēsetai en agathois hē psychē hymōn; kai diathēsomai hymin diathēkēn aiōnion, ta hosia Dauid ta pista” — “prestai atenção com os vossos ouvidos e segui os meus caminhos; ouvi-me, e a vossa alma viverá em bens; e farei convosco uma aliança eterna, as coisas santas de Davi, as fiéis”. Aqui, ta hosia Dauid ta pista (“as coisas santas de Davi, as fiéis”) enfatiza a santidade das promessas davídicas e prepara, no grego bíblico, a citação direta que Paulo faz em Atos 13:34 (“I will give you the holy and sure blessings of David”), lendo Isaías 55:3 à luz da ressurreição de Cristo.
Do ponto de vista exegético, a sequência “inclinai... vinde... ouvi... e a vossa alma viverá” desenha uma espiritualidade que começa no ouvido e termina na ressurreição da pessoa inteira. O ouvido inclinado (haṭṭû ʾoznəḵem) é a metáfora da disposição interior, como em Provérbios 4:20 (“Inclina o teu ouvido às minhas palavras”), em que a vida brota da atenção perseverante à palavra de Deus. O movimento “vinde a mim” (ûləkû ʾēlay) desloca o centro da religião: não se trata apenas de aderir a um código, mas de aproximar-se de uma Pessoa. Quando a cláusula central “ouvi, e a vossa alma viverá” é isolada, vemos a estrutura de uma promessa evangélica em miniatura: o imperativo shimʿû demanda uma escuta que inclui confiança e obediência, e a resposta divina é a vivificação da nepeš — a pessoa inteira, com seus apetites, afetos e história, sendo trazida de um estado de seca para uma vitalidade nova. O verbo ḥāyâ, com seu campo semântico de “reviver, restaurar, tornar a viver”, sugere não apenas a manutenção de uma vida já plena, mas a reversão de um estado de morte ou languidez espiritual; o eco com promessas como Deuteronômio 30:19–20 (“para que vivas, tu e a tua descendência... pois ele é a tua vida”) é evidente na teologia da vida que nasce do ouvir obediente. Em termos cristológicos, o Novo Testamento retoma essa lógica quando Jesus declara que “vem a hora... em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão” (João 5:25), fazendo do ouvir uma passagem da morte para a vida, exatamente como Isaías 55:3 estrutura a promessa.
A segunda parte do versículo desloca o foco do convite para a promessa pactuai: “e eu farei convosco uma aliança eterna, as bondades de Davi, as fiéis”. A forma verbal wəʾeḵrəṯā (“e eu cortarei/farei”) retoma a linguagem clássica de “cortar uma aliança”, ligada ao pacto davídico em 2 Samuel 7, onde Deus promete a Davi uma casa, um trono e um reino firmados para sempre. Isaías 55 lê esse pacto agora como “aliança eterna” estendida ao povo em geral, não apenas à dinastia, e designa o conteúdo dessa aliança como ḥasdê dāwid haneʾĕmānîm — as manifestações concretas do ḥesed que Deus mostrou a Davi, agora apresentadas como “fiéis”, isto é, irrevogáveis. De textos como Jeremias 32:40 (“Farei com eles uma aliança eterna: nunca deixarei de fazer-lhes o bem...”) e Hebreus 13:20 (“o sangue da aliança eterna”) emerge a percepção de que a “aliança eterna” é, ao fim, a mesma que será selada no sangue do Messias, o Filho de Davi. Paulo, em Atos 13:34, cita exatamente a fórmula da LXX (“ta hosia Dauid ta pista”) para interpretar a ressurreição de Jesus como a realização final das “santas e fiéis bênçãos de Davi”: o Filho de Davi ressuscitado é a garantia viva de que o ḥesed de Deus não se quebrará. Assim, Isaías 55:3 é como uma ponte: toma o pacto com Davi no passado, projeta-o como “aliança eterna” para o povo no presente do profeta, e antecipa sua plenitude na Páscoa de Cristo.
A lógica prática do versículo é de uma simplicidade abissal: Deus oferece vida e pacto não em troca de moeda, mas em resposta ao ouvir e ao vir (em continuidade com Isaías 55:1–2, onde os sedentos são chamados a comprar “sem dinheiro e sem preço”). O gesto de “inclinar o ouvido” é a forma espiritual de pobreza: reconhecer que não temos palavras próprias que nos sustentem, e por isso precisamos receber. “Vinde a mim” desloca a esperança dos ídolos políticos, econômicos ou religiosos para o rosto do próprio Deus. “Ouvi, e a vossa alma viverá” é a promessa de que a resposta obediente à voz de Deus — que para o cristão é, em última análise, a voz de Cristo — não termina numa renúncia seca, mas numa vitalidade nova, em que a nepeš encontra alimento verdadeiro, como a imagem do “vinho e leite” do versículo anterior já sugeria. A “aliança eterna” garante que essa vida não é apenas um lampejo momentâneo: é a inscrição da fidelidade divina na própria biografia do povo, de modo que as “misericórdias de Davi” — preservação, perdão, promessas apesar do pecado de Davi — se tornam o paradigma do que Deus está disposto a fazer com todos os que vêm e ouvem. Em termos práticos, o versículo convoca o leitor a uma resposta contínua: cada vez que a Palavra é ouvida, renova-se o drama de inclinar-se, aproximar-se e escutar, com a confiança de que, por trás desse movimento humilde, está um Deus que se compromete com um pacto que não pode ser desfeito, porque repousa no ḥesed que Ele mesmo nomeia como “fiel”.
Isaías 55:4
Eis que eu o dei por testemunha aos povos, como líder e comandante dos povos. (Hb.: hēn ʿēd le’ummîm netattîw nāgîd ûməṣawwê le’ummîm — “Eis que eu o dei por testemunha aos povos, um líder e comandante para os povos.”) Do ponto de vista etimológico, hēn (“eis que”) é interjeição que introduz uma declaração solene, chamando a atenção para um ato divino já decidido, como se Deus erguesse o dedo e dissesse “olhem bem isto”. O núcleo nominal ʿēd (“testemunha”) deriva de uma raiz ligada à ideia de testemunho e confirmação, podendo designar tanto a pessoa que depõe quanto o próprio testemunho que garante algo; vários léxicos sublinham esse duplo aspecto — concreto (“testemunha”) e quase institucional, como alguém que representa oficialmente a verdade diante de muitos. Le’ummîm (“aos povos”) vem de uma raiz associada a “povo reunido, nação”, empregada muitas vezes para nações em geral, inclusive gentílicas, de modo que o horizonte aqui já é universal e não apenas israelita. O verbo subjacente nātan, na forma netattîw (“eu o dei”), é o verbo extremamente amplo “dar, conceder, pôr”, que aqui assume nuances de “designar” ou “instituir”, donde se vê o uso “dar, designar”. Nāgîd (“líder, príncipe”) pertence ao campo de liderança régia ou oficial — “chefe, governador, príncipe” — e aparece em contextos de autoridade político-religiosa, designando aquele que está diante do povo para o representar e dirigir. Por fim, məṣawwê (“que ordena, comandante”) é particípio intensivo de ṣāvāh (“ordenar”), um verbo que em muitos contextos expressa ordens divinas e mandamentos; aqui, aplicado a essa figura dada por Deus, enfatiza que ele não só lidera, mas emite instruções vinculantes às nações, articulando um governo baseado em palavra autorizada, como confirma a entrada morfológica.
Na morfologia, hēn funciona como interjeição independente, sem flexão, abrindo a sentença com força de dêixis enfática. ʿēd é substantivo masculino singular absoluto, desempenhando aqui um papel de predicativo: ele define “o que” esta figura é perante os povos. Le’ummîm é a preposição lə- (“para, a”) ligada a substantivo masculino plural, formando um complemento preposicional que indica o âmbito do testemunho: “para os povos”, “em favor dos povos”. Netattîw é Qal perfeito 1ª pessoa comum singular com sufixo de 3ª masc. sing. (-w), “eu o dei”: aspecto perfeito (ato completo), sujeito explícito na morfologia (YHWH falando em primeira pessoa), e objeto direto pronominal masculino singular (“ele”), a figura-testemunha. Nāgîd é outro substantivo masculino singular absoluto, atuando como segundo predicativo, em paralelismo com ʿēd, agora acentuando a faceta de liderança. Ûməṣawwê traz a conjunção û- (“e”) + particípio Piel masc. sing. de ṣāvāh (“ordenar”), com valor adjetival verbal: “e [um que] comanda”, funcionando como predicativo adicional que descreve o modo de exercício dessa liderança. O último le’ummîm repete a construção preposição + substantivo masc. pl., ecoando e ampliando o alvo dessa missão: “para os povos”. Sintaticamente, temos um enunciado unitário: “Eis que [hēn] [eu o dei] [netattîw] [por testemunha aos povos, líder e comandante para os povos] [ʿēd le’ummîm… nāgîd ûməṣawwê le’ummîm]”. O verbo finito netattîw forma o núcleo verbal com sujeito de 1ª pessoa (“eu”, Deus) e objeto direto pronominal (“o dei”), enquanto os substantivos ʿēd e nāgîd mais o particípio məṣawwê funcionam como predicativos do objeto (“eu o constituí testemunha… líder… comandante”), e os dois le’ummîm são complementos preposicionais paralelos indicando o campo de atuação (“para os povos”). Trata-se, portanto, de uma oração verbal, não de sentença nominal, com forte paralelismo semântico: testemunho → liderança → comando, sempre “em direção às nações”.
Quando se cotejam as versões, o hebraico é seguido de perto por diversas traduções. A ACF verte: “Eis que eu o dei por testemunha aos povos, como líder e governador dos povos.” A ARA traz: “Eis que eu o dei por testemunho aos povos, como príncipe e governador dos povos.” (Isaías 55:4-6) A NVI: “Vejam, eu fiz dele uma testemunha aos povos, um líder e governante dos povos.” E a NVT acentua o aspecto de manifestação do poder: “Vejam como eu o usei para mostrar meu poder aos povos; eu o fiz governante das nações.” Em inglês, versões como a KJV mantêm a estrutura próxima ao hebraico: “Behold, I have given him for a witness to the people, a leader and commander to the people.” e a Young’s Literal Translation sublinha o paralelismo: “Lo, a witness to peoples I have given him, A leader and commander to peoples.” A LXX, por sua vez, verte: idou martyrion en ethnesin edōka auton, archonta kai prostassonta ethnesin (“Eis que eu o dei como testemunho entre as nações, um príncipe e aquele que ordena às nações”). A concordância é notável: martyrion corresponde a ʿēd, archonta a nāgîd e prostassonta (particípio de prostassō, “ordenar”) espelha məṣawwê, o que mostra que a tradição grega leu o versículo como uma tríplice função de uma mesma figura: testemunha, líder, comandante, voltada às nações.
Na leitura exegética, a grande questão é: quem é esse “ele” que Deus diz ter dado “por testemunha aos povos, líder e comandante dos povos”? Parte da tradição o entende primeiramente como Davi histórico e sua casa, a partir do fluxo de Isaías 55:3 (“firmes beneficências de Davi”); alguns comentários observam que YHWH “fala de Davi, filho de Jessé, como aquele que foi dado por testemunha, líder e comandante” e veem o versículo como releitura do papel davídico à luz da universalização da promessa. Outros intérpretes argumentam que, no contexto de Isaías 40–55, essa figura se confunde com o Servo do Senhor, aquele que é “aliança do povo e luz dos gentios” (Isaías 42:6; 49:6,8), de modo que a vocação de Davi como testemunha das nações seria agora mediada e ampliada pelo Servo ungido; esta linha aparece, por exemplo, em estudos recentes sobre Isaías 55 e sua relação com Atos 13, que falam explicitamente da transferência da função de “testemunha” para esse descendente servo. Uma leitura cristã clássica, apoiada em comentadores devocionais e expositivos, enxerga, no fim, Cristo como o cumprimento pleno dos três títulos: Ele é a Testemunha fiel (Apocalipse 1:5), o Líder davídico que governa o povo de Deus, e o Comandante que dá ordens ao mundo, como notam exposições pastorais que mostram como Jesus “cumpre perfeitamente cada um desses títulos: Testemunha, Líder e Comandante”.
Do ponto de vista teológico, o versículo faz a ponte entre a “aliança eterna” e “as firmes misericórdias de Davi” (Isaías 55:3) e a missão às nações em Isaías 55:5 (“nações que não te conhecem correrão para ti”). A figura que é dada por Deus como ʿēd(“testemunha”), nāgîd (“líder”) e məṣawwê (“comandante”) torna-se o rosto visível da fidelidade de YHWH, alguém cuja própria existência e atuação narram quem Deus é e quais são seus caminhos; a literatura expositiva ressalta que Deus “deu Davi e sua notável liderança como dom a Israel, e aqui promete manter esse dom segundo o padrão mostrado em Davi”, apontando para uma continuidade da graça davídica ao longo da história da salvação. Em chave cristológica, essa continuidade se cristaliza quando Atos 13 aplica Isaías 55 à ressurreição de Cristo, apresentando-o como aquele em quem as promessas feitas a Davi se tornam “santas e fiéis” (Atos 13:34), de modo que a função de testemunha às nações se realiza em Jesus, que proclama a verdade de Deus, reúne um povo de todas as línguas e comanda uma obediência que nasce da fé. Esta conexão entre Isaías 55:3–4 e Atos 13 é explicitada em estudos acadêmicos que analisam como a aliança davídica é relida em termos de missão universal e de ressurreição. Na prática espiritual, o versículo denuncia a ilusão de que o povo de Deus exista para si mesmo: Israel é chamado a reconhecer que a própria eleição tem um rosto — essa testemunha-líder-comandante — e que esse rosto está voltado “aos povos”. Para o cristão, isso significa reconhecer em Cristo não apenas Salvador individual, mas Testemunha pública da verdade, Rei que orienta as nações e Comandante que convoca à obediência da fé; e, por participação, a igreja é chamada a espelhar esse tríplice ofício, vivendo de tal modo que sua existência coletiva funcione como testemunho vivo, liderança serva e palavra que orienta o mundo para o Deus da aliança. Esta última aplicação é uma inferência minha a partir da estrutura do texto e das leituras cristológicas citadas, procurando traduzir em termos pastorais a lógica interna do oráculo de Isaías 55.
Isaías 55:5a
Eis que chamarás uma nação que não conheces, e uma nação que não te conhece correrá para ti
(Hb.: hēn gôy lōʾ tēdaʿ tiqrāʾ wĕgôy lōʾ yĕdāʿûḵā ʾēlêḵā yārûṣu — “Eis que chamarás uma nação que não conheces, e uma nação que não te conhece correrá para ti”. A interjeição hēn (“eis”, “olha”) abre o quadro como um dedo profético apontando para um futuro ainda não visto, carregando surpresa reverente e chamando a atenção para o que Deus está prestes a fazer. O substantivo gôy (“nação”) é masculino singular absoluto, de um campo semântico ligado à ideia de povo reunido em massa; designa, na maioria das vezes, povos gentios, mas também pode referir-se à descendência de Abraão ou a Israel, e aqui funciona como um coletivo representativo: uma “nação” que, em seu singular, contém muitas gentes. O verbo yādaʿ (“conhecer”) em tēdaʿ e yĕdāʿûḵā não se limita a saber “sobre” alguém, mas traz a ideia de perceber, reconhecer, relacionar-se; é o verbo típico da aliança, usado tanto para o conhecimento de Deus em relação ao seu povo quanto para o conhecimento recíproco dentro da comunhão (por exemplo, Oséias 2:20). O verbo qārāʾ em tiqrāʾ (“chamarás”) vem de raiz que significa clamar, proclamar, nomear e convocar, sendo o verbo da pregação, do culto e da vocação: o mesmo verbo que descreve quem “invoca” o nome de YHWH e quem é “chamado” pelo seu nome. Já rûṣ em yārûṣu (“correrão”) é um verbo que, no Qal, significa correr, precipitar-se, apressar-se, muitas vezes em contextos de mensageiros, fuga ou busca ansiosa de refúgio; aqui sugere uma corrida alegre, quase uma peregrinação apressada ao encontro de uma luz que se acende.
Do ponto de vista morfológico, hēn é uma partícula exclamativa sem função oracional obrigatória, mas de forte valor pragmático, marcando o início de uma nova visão. Gôy é substantivo masculino singular absoluto, funcionando, na primeira cláusula, como objeto direto de tiqrāʾ (“tu chamarás uma nação”). Lōʾ (“não”) é partícula negativa que, com tēdaʿ (Qal imperfeito 2ª masc. sing.), forma a oração relativa “que não conheces”, com o verbo no final, como é típico da prosa hebraica. Tiqrāʾ é Qal imperfeito 2ª masc. sing., com sujeito implícito “tu”, retomando o interlocutor dos vv. 3–4 (Sião/servo), e atua como núcleo verbal da primeira oração: há um sujeito “tu” que chama, em obediência ao desígnio divino. Na segunda metade, wĕgôy (“e [uma] nação”) introduz uma cláusula paralela; lōʾ yĕdāʿûḵā combina a negação lōʾ com o verbo yĕdāʿûḵā (Qal perfeito 3ª masc. pl. com sufixo de 2ª masc. sing.), funcionalmente uma oração relativa anterior que qualifica essa nação: “uma nação que não te conheceu”. O perfeito aqui tem valor resultativo/gnômico — até então não havia conhecimento — realçando o contraste entre passado de ignorância e futuro de aproximação. ʾĒlêḵā resulta da preposição ʾel (“para”, “em direção a”) com sufixo de 2ª masc. sing., indicando direção e relação (“para ti”). Yārûṣu é Qal imperfeito 3ª masc. pl., com sujeito “eles” (a nação entendida como coletivo), formando o núcleo verbal da resposta: “correrão para ti”. A estrutura sintática é de paralelismo coordenado: primeiro, a iniciativa ativa do “tu” que chama uma nação que desconhece; depois, a resposta ativa da nação que, não conhecendo o “tu”, agora corre ao seu encontro. As partículas wĕ (“e”) ligam as duas metades, desenhando um movimento dialogal entre o chamado e a corrida.
Na comparação de versões, a KJV verte: “Behold, thou shalt call a nation that thou knowest not, and nations that knew not thee shall run unto thee”, no segundo hemistíquio trocando o singular gôy por “nations” e explicitando o alcance mais amplo do texto. A ESV e a NASB mantêm o singular em ambas as metades: “Behold, you shall call a nation that you do not know, and a nation that did not know you shall run to you”, respeitando mais de perto a morfologia e ainda assim deixando claro que se trata de um povo inteiro, não de um indivíduo. Em português, a ARA diz: “Eis que chamarás a uma nação que não conheces, e uma nação que nunca te conheceu correrá para junto de ti”; a ACF, de forma muito próxima, traduz: “Eis que chamarás uma nação que não conheces, e uma nação que nunca te conheceu correrá para ti, por amor do Senhor teu Deus, e do Santo de Israel; porque ele te glorificou.” A NVI expande o plural: “Você convocará nações que não conhece, e nações que não o conhecem acorrerão a você”, e a NVT retoma a mesma linha: “Você convocará nações que não conhece, e povos que não o conhecem correrão para onde você está”, preferindo pluralizar para enfatizar o caráter internacional da cena. A Young’s Literal Translation, por sua vez, mantém a cadência literal: “Lo, a nation thou knowest not, thou callest, And a nation who know thee not unto thee do run”, e fecha com “Because He hath beautified thee”, traduzindo pēʾărāḵ com “embelezado”, o que já prepara a ligação com a segunda cláusula. A LXX apresenta uma variante interessante: em vez de pôr o “tu” chamando, lê “nações que não te conheciam te invocarão, e povos que não te conhecem correrão para ti, por causa do teu Deus, o Santo de Israel, porque ele te glorificou” (epikalesontai se… epi se katapheuxontai), deslocando parte da ênfase para a resposta litúrgica das nações que começam a invocar e a refugiar-se naquele que Deus glorificou.
Essa primeira cláusula é um retrato denso da missão: um povo/servo, carregando as promessas de Davi (vv. 3–4), é comissionado a chamar aquilo que lhe é estranho, uma nação que ele não conhece; em resposta, essa mesma nação, que não conhecia o servo-Sião, começa a correr para ele. O desconhecimento é duplo, mas a iniciativa é unilateral: é o “tu” vocacionado que chama, e esse chamado gera corrida. O quadro se harmoniza com a promessa feita a Abraão de que todas as famílias da terra seriam abençoadas nele (Gênesis 12:3), com o oráculo de Isaías 2:2–3, em que “todas as nações acorrerão” ao monte do Senhor para aprender sua lei, e com Isaías 49:6, onde o servo é posto “como luz das nações”. No horizonte cristão, o “chamar” se cumpre na proclamação do evangelho por aquele que é “testemunha aos povos, príncipe e comandante de povos” (Isaías 55:4; Atos 13:47), e o “correr” das nações se desenha nas multidões de diferentes línguas que acorrem a Cristo e à comunidade messiânica (Atos 2; Apocalipse 5:9–10). A sabedoria do texto está em mostrar que, quando Deus fala e convoca por meio de seu povo, povos inteiros que viviam em ignorância passam a correr não para um império, mas para uma presença — a presença daquele que chamou.
Isaías 55:5b
...por causa do Senhor teu Deus, e do Santo de Israel, porque ele te engrandeceu (Hb.: lĕmaʿan YHWH ʾĕlōheḵā wĕliqədôš yiśrāʾēl kî pēʾărāḵ — “por causa de YHWH, teu Deus, e por causa do Santo de Israel, porque ele te glorificou”). A locução lĕmaʿan (“por causa de”, “com o propósito de”) vem de um substantivo que significa “propósito, intenção” e, com a preposição lə, funciona como marcador teleológico e causal importante no hebraico bíblico; é termo típico para ligar ação e finalidade: aquilo que as nações fazem — correr para o povo/servo — é “por causa de” Deus, não por mérito da cidade em si. O título qədôš yiśrāʾēl (“Santo de Israel”) deriva de qādôš (“santo”), vocábulo que designa o que é separado, consagrado, moralmente puro e exaltado; em Isaías, essa expressão é quase um nome próprio de Deus, sublinhando que Ele é, ao mesmo tempo, o totalmente outro e o Deus que se liga a Israel. O verbo pāʾar em pēʾărāḵ (“ele te glorificou”, “ele te embelezou/engrandeceu”) é Piel perfeito 3ª masc. sing. com sufixo de 2ª masc. sing., e seu campo semântico inclui embelezar, adornar, glorificar, fazer brilhar; o mesmo verbo aparece, por exemplo, em Isaías 60:7 e 60:13 para descrever o modo como YHWH “embelezará” o lugar de seu santuário e, em termos mais amplos, como ele se glorifica em seu povo.
Na estrutura morfológica do versículo, lĕmaʿan introduz um complemento de causa/finalidade que governa os dois sintagmas seguintes: “YHWH, teu Deus” e “o Santo de Israel”. YHWH é o nome pessoal de Deus; ʾĕlōheḵā (“teu Deus”) é substantivo masculino morfologicamente plural (plural de majestade), em estado absoluto com sufixo de 2ª masc. sing., em aposição que explicita a relação de aliança: o Deus que está por detrás da corrida das nações é aquele que se comprometeu pessoalmente com o “tu”. Wĕliqədôš yiśrāʾēl combina o wĕ coordenativo (“e”) com li- (“para, por causa de”) + qədôš (“santo”) em função substantiva e yiśrāʾēl (“Israel”), formando o título teológico “o Santo de Israel”. Kî atua como conjunção causal (“porque”), introduzindo a justificativa final; pēʾărāḵ é o núcleo verbal da oração, Piel perfeito 3ª masc. sing. com sufixo 2ª masc. sing., cujo sujeito implícito é YHWH e cujo objeto é o “tu” coletivo (Sião/servo). Sintaticamente, a cadeia pode ser lida assim: “As nações correrão para ti por causa de YHWH, teu Deus, e do Santo de Israel, porque ele te glorificou”. A primeira causa (lĕmaʿan YHWH ʾĕlōheḵā wĕliqədôš yiśrāʾēl) aponta para quem Deus é; a segunda (kî pēʾărāḵ) aponta para o que Deus fez em ti: Ele te revestiu de glória, beleza e honra, transformando-te em sinal visível da sua santidade.
As traduções inglesas clássicas preservam com muita nitidez a ideia de um ato já consumado de Deus. A NASB 1995 termina com o eco perfeito do hebraico pāʾar (“adornar, glorificar”) ao dizer: “For He has glorified you.” A ESV acompanha a mesma linha, com a forma ligeiramente reduzida “for he has glorified you”. A KJV, na sua cadência elisabetana, mantém o perfeito com sabor solene: “for he hath glorified thee”. Em todas elas, o foco recai nesse “glorificar” já realizado, que fundamenta a corrida das nações para o povo chamado.
Em português, a ARA verte o final com a mesma ênfase: “por amor do SENHOR, teu Deus, e do Santo de Israel, porque este te glorificou”, e a ACF é praticamente paralela, concluindo: “porque ele te glorificou”. Ambas guardam não só o perfeito verbal, mas a estrutura causal “por amor do Senhor… porque ele te glorificou”, que amarra teologicamente a eleição das nações à ação já efetuada de Deus.
As versões contemporâneas em português procuram explicitar o matiz estético de pāʾar. A NVI afirma: “Com certeza você convocará nações que você não conhece… e conclui que o Santo de Israel “lhe concedeu esplendor”, fazendo aparecer a ideia de um povo ornado pela glória recebida. A NVT segue caminho semelhante: “Vocês também darão ordens a nações que não conhecem… pois o Santo de Israel “os tornei gloriosos”. O vocabulário de “esplendor” e “gloriosos” explicita, em português corrente, esse embelezamento que não é apenas jurídico, mas quase estético, como se Deus vestisse o povo de uma luz que atrai.
A YLT, com sua fidelidade quase mecânica ao hebraico, verte o final como “Because He hath beautified thee”, deixando transparecer diretamente o campo semântico de embelezar/adornar mais do que simplesmente declarar justo. Essa pequena diferença lexical aproxima a tradução inglesa da nuance imagética do verbo hebraico.
Por trás de todas essas versões paira a LXX, que fala das nações e povos que “… ep’ se katapheuxontai heneken tou theou sou tou hagiou Israēl” (“… se refugiarão em ti por causa do teu Deus, o Santo de Israel”), com o verbo grego doxazō na cláusula final (“glorificar”), reforçando a ponte com o vocabulário neotestamentário da “glória” concedida por Deus ao seu servo/povo. Assim, seja no inglês clássico e literal, seja nas versões portuguesas tradicionais ou nas mais recentes, o fio que se mantém é o mesmo: a vocação universal das nações está ancorada nesse ato prévio e definitivo em que Deus reveste o seu povo de glória, esplendor e beleza.
No plano exegético e teológico, essa cláusula funciona como coração explicativo do versículo: as nações não correm porque Israel se tornou um centro econômico, político ou militar, mas porque o Deus santo decidiu glorificar esse povo. A atração missionária é reflexo da glória divina, não da auto-exaltação humana. O título “Santo de Israel” remete a textos como Isaías 41:14, 43:3 e 54:5, em que YHWH se apresenta como Redentor e Esposo de Israel; agora, o mesmo Deus que santifica e redime é aquele que “adereça” seu povo como vitrine de sua graça. Essa glória, porém, não é um fim em si: ela é “por causa de YHWH, teu Deus” — isto é, a honra conferida a Sião serve à honra do próprio Deus. No quadro maior de Isaías 40–66, a glória que repousa sobre o servo humilhado e exaltado (Isaías 52:13–15) se espalha sobre a cidade outrora abandonada (Isaías 54) e se manifesta como convite aberto aos sedentos (Isaías 55:1–3); aqui, essa mesma glória se torna força centrípeta que faz uma nação correr. Na leitura cristã, a linguagem encontra eco em João 17:22 (“Eu lhes dei a glória que tu me deste”) e em Filipenses 2:9–11, onde Deus exalta Jesus e, por meio dele, atrai todos os joelhos. A lógica prática do versículo, portanto, é profundamente espiritual: quanto mais a igreja se deixa glorificar no sentido bíblico — isto é, se deixa conformar ao caráter santo de Deus, vivendo sob a sua mão e sob sua graça — mais se torna um espaço para o qual correm aqueles que antes não a conheciam, não por fascínio com a instituição, mas porque, nela, percebem o brilho do Santo de Israel.
Isaías 55:6
Buscai o SENHOR enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto. (Hb.: diršû YHWH behimmāṣʾô qerāʾûhû bihyōtô qārōb — “Buscai YHWH em seu ser-encontrado; chamai-o em seu estar-perto”.) Etimologicamente, o verbo dāraš (“buscar”, “inquirir”, “consultar”) está por trás de diršû e designa não uma busca distraída, mas uma procura diligente, quase “pisar um caminho” de tanto frequentá-lo, sendo usado tanto para consultar o oráculo quanto para buscar a face de Deus em obediência e culto, como mostram os usos em textos como Deuteronômio 4:29 e 1 Crônicas 16:11, e o léxico de dāraš realça exatamente essa nuance de procura cuidadosa e insistente. O verbo qārāʾ (“chamar”, “clamar”, “convocar”), que está na forma qerāʾûhû (“chamai-o”), tem um campo semântico que vai de nomear alguém a clamar a Deus em oração, de modo que “invocar” aqui não é mera recitação, mas um grito intencional que busca relação e socorro, como se vê no uso recorrente de qārāʾ em cenas de oração e súplica.
O infinitivo himmāṣʾô deriva de māṣāʾ (“achar”, “encontrar”), no Niphal (“ser encontrado”), e o léxico destaca o valor de “ser achado disponível”, inclusive em contextos teológicos onde Deus “se deixa achar” por quem o busca, como em Jeremias 29:14, o que dá à expressão “enquanto se pode achar” um peso de oportunidade graciosa e não garantida. Já hāyâ (“ser”, “tornar-se”), base de bihyōtô (“em seu estar”), é o verbo existencial por excelência, usado tanto para a simples cópula quanto para mudanças de estado; aqui, ligado a qārōb (“perto”, “próximo”), indica o estado de proximidade real de Deus, não apenas espacial, mas relacional, evocando textos em que YHWH é descrito como “perto” dos que o invocam com sinceridade (por exemplo, Salmos 145:18 nos paralelos lexicais).
O adjetivo qārōb (“perto”, “próximo”) aparece frequentemente na tradição bíblica para marcar a presença acessível de Deus ao seu povo, em contraste com ídolos distantes ou deuses que não respondem, e essa proximidade é a contraface do verbo “buscar”: o imperativo humano se ancora no fato de que o Deus da aliança se pôs ao alcance, como o sublinham tanto o comentário clássico de Keil & Delitzsch quanto leituras contemporâneas que associam esse versículo ao “tempo aceitável” de Isaías 49:8 e 2 Coríntios 6:2. Na leitura grega da Septuaginta, o versículo é traduzido com os verbos zētēsate (“buscai”), epikalesasthe (“invocai”, “chamai”) e eggizē (“aproxima-se”, “chega perto”), ligados aos lexemas zēteō, epikaleō e engizō, cujos léxicos gregos em Blue Letter Bible ressaltam, respectivamente, o sentido de procurar até adorar, clamar como quem apela e aproximar-se até “chegar junto”; a LXX, assim, reforça a nuance de busca perseverante e de chamada confiante a um Deus que se aproxima.
O versículo organiza dois imperativos paralelos dirigidos a um sujeito de 2ª pessoa masculina plural, implícito nas formas verbais: diršû é Qal imperativo 2ª masc. pl. de dāraš (“buscar”), com sujeito “vós” elíptico, e rege como objeto direto o nome divino YHWH, substantivo próprio masculino singular que ocupa o lugar de complemento de paciente da ação de buscar, como confirma a análise morfológica de Bíblia Hebraica Stuttgartensia. A seguir surge o complexo behimmāṣʾô, constituído de preposição bə- (“em”, “quando”, “enquanto”), mais o infinitivo construto Niphal de māṣāʾ com sufixo pronominal de 3ª masc. sing., “ser encontrado por ele / ser ele encontrado”, funcionando como locução infinitiva temporal, “enquanto ele é achado”, com o pronome referindo-se a YHWH. Ainda no mesmo versículo, qerāʾûhû apresenta o Qal imperativo 2ª masc. pl. de qārāʾ com sufixo de 3ª masc. sing. (-hû), “chamai-o”, de novo com o sujeito “vós” implícito; o verbo traz, assim, em si mesmo o objeto direto pronominal, retomando YHWH já nomeado. O segundo sintagma preposicional, bihyōtô qārōb, é formado por bə + infinitivo construto Qal de hāyâ com sufixo 3ª masc. sing. (-ô), literalmente “em seu estar”, seguido do adjetivo masculino singular qārōb (“perto”), que aqui exerce função predicativa, “em seu estar próximo”. As formas verbais são todas não finitas, exceto os dois imperativos; não há verbo finito com sujeito expresso, e a estrutura combina imperativos com infinitivos construtos que se comportam como verbos em orações temporais, dando ao versículo uma dinâmica de ordem (“buscai, chamai”) enquadrada por circunstâncias temporais (“enquanto…”).
Isaías 55:6 se organiza em dois cola paralelos: (1) diršû YHWH behimmāṣʾô — “Buscai YHWH enquanto ele é encontrado”; (2) qerāʾûhû bihyōtô qārōb — “chamai-o enquanto ele está perto”. Em ambos, o verbo imperativo abre o cola, seguido do objeto direto (nome próprio ou pronome), ao qual se acrescenta uma oração temporal reduzida: a preposição bə faz a ponte com o infinitivo construto (himmāṣʾô, hyōtô), e esses infinitivos, acrescidos do pronome de 3ª pessoa, equivalem a orações do tipo “quando ele é achado / quando ele está”. Não há cópula expressa entre hyōtô e qārōb porque o próprio infinitivo “ser” já cumpre essa função, e qārōb atua como predicativo do sujeito implícito no sufixo pronominal. A ausência de verbos finitos de tempo “normal” reforça o tom proverbial e atemporal da máxima: os imperativos projetam a ação para o futuro dos ouvintes, enquanto as orações com infinitivo situam essa ação dentro de uma “janela” de oportunidade: o tempo em que YHWH se deixa encontrar e se faz próximo. A segunda linha é uma espécie de paralelismo sinonímico da primeira: “buscar” e “invocar” se entrecruzam, assim como “ser encontrado” e “estar perto”, o que a própria tradição exegética reconhece ao tratar o par “buscar/chamar” como duas faces da mesma resposta humana à oferta divina.
Na comparação de versões, as principais traduções convergem na ideia de urgência e oportunidade. Em português, a Almeida Revista e Atualizada verte: “Buscai o SENHOR enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto.” A Almeida Corrigida (ACF) registra: “Buscai ao Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto.”, com a preposição “ao” sem alteração substantiva do sentido, mas menos aderente à transitividade direta de dāraš. A Nova Versão Internacional diz: “Busquem o Senhor enquanto se pode achá-lo; clamem por ele enquanto está perto.”, explicitando o pronome em “achá-lo” e substituindo “invocai-o” por “clamem por ele”, o que reforça o caráter de súplica. A Nova Almeida Atualizada segue linha semelhante: “Busquem o Senhor enquanto ele pode ser encontrado; invoquem-no enquanto ele está perto.”, aproximando-se ainda mais da forma hebraica “ser encontrado” do Niphal. Em inglês, versões como a King James Version trazem: “Seek ye the LORD while he may be found, call ye upon him while he is near.”, enquanto a Young’s Literal Translation registra: “Seek ye Jehovah, while He is to be found, call ye Him, while He is near.”, preservando o paralelismo imperativo e o valor de possibilidade temporal. A Nova Versão Internacional inglesa lê: “Seek the LORD while he may be found; call on him while he is near.”, convergindo com a tradição clássica. A LXX, por sua vez, traduz o hebraico por “Buscai o Deus e, quando o encontrardes, invocai-o, quando ele se aproximar de vós”, segundo a reconstrução de Brenton e o texto grego atestado em Blue Letter Bible, o que torna mais explícita a sequência “encontrar → invocar → experimentar a aproximação”, mas sem alterar o núcleo: há um tempo em que Deus está acessível e um chamado a aproveitar esse tempo.
Exegética e hermeneuticamente, o versículo se insere no grande convite de Isaías 55: depois da descrição do Servo sofredor em Isaías 53 e da promessa de restauração em Isaías 54, Deus convoca o povo sedento a vir às águas, receber gratuitamente alimento e entrar numa “aliança eterna” baseada nas “firmes misericórdias de Davi” (Isaías 55:1–3). É nesse cenário de graça exuberante que irrompe o imperativo: não basta contemplar a promessa à distância; é preciso “buscar o SENHOR” e “invocá-lo” no tempo em que ele se deixa encontrar. Comentadores clássicos notam que dāraš aqui implica não apenas um movimento mental, mas uma “pressão” para dentro da comunhão com YHWH, uma entrada viva na esfera da sua presença, e que a locução “enquanto se pode achar / enquanto está perto” ecoa o “tempo aceitável” de Isaías 49:8, desenvolvido por Paulo em 2 Coríntios 6:2 como “tempo favorável” e “dia da salvação”. Assim, o versículo fixa uma tensão entre a liberalidade da oferta (“vinde, comprai sem dinheiro” em Isaías 55:1) e a seriedade da resposta: a graça é gratuita, mas não é eternamente desprezível; há uma janela histórica em que Deus se aproxima da comunidade, convoca, visita, e, se essa visitação é recusada, o texto insinua que o “achar” já não será tão simples.
Na lógica prática do versículo, “buscar” e “invocar” não são atos concorrentes, mas complementares: buscar é ordenar toda a existência em direção a Deus, como quem abre trilhas repetidas na direção da sua presença; invocar é transformar essa busca em palavra dirigida, clamor, confissão, louvor, arrependimento. Essa dupla se concretiza no contexto imediato de Isaías 55:7, onde o chamado a buscar é imediatamente ligado ao abandono do “caminho do ímpio” e dos “pensamentos” injustos, numa conversão que envolve rota externa e mapa interno, comportamento e imaginação. É decisivo que o objeto da busca não seja uma experiência vaga, mas o próprio SENHOR da aliança; por isso o versículo não diz “buscai bênçãos” ou “buscai livramento”, mas “Buscai o SENHOR…”, e, ao mesmo tempo, o pronome “invocai-o… chamai por ele” impede que a relação se dilua em mero ideal moral: trata-se de voltar-se a uma Pessoa viva que se deixa encontrar. Aqui convergem as promessas de textos como Jeremias 29:13 (“buscar-me-eis e me achareis, quando me buscardes de todo o vosso coração”) e Salmos 32:6 (“todo aquele que é piedoso ore a ti, em tempo em que podes ser achado”), que a tradição cristã há muito lê à luz deste chamado de Isaías.
O versículo desenha uma espiritualidade atravessada por duas linhas que se cruzam: a linha descendente da iniciativa divina — Deus que se torna “encontrável”, que “vem perto”, que fala, que oferece banquete — e a linha ascendente da resposta humana — buscar, invocar, abandonar caminhos, voltar-se para ele. Comentários recentes sobre Isaías 55 sublinham que esse “buscar” não é um pré-requisito meritório, mas o próprio modo como a graça se realiza na história: Deus desperta o desejo, abre o acesso, e, no entanto, respeita o mistério do tempo, de modo que o convite não pode ser adiado indefinidamente. Para a leitura cristã, esse chamado ecoa na proclamação apostólica de que “hoje” é o dia da salvação (2 Coríntios 6:2) e que endurecer o coração diante da voz de Deus é perder a visitação (Hebreus 3:7–15). No plano devocional, Isaías 55:6 impele a uma vida em que a oração deixa de ser adereço periférico e se torna a respiração da consciência de que Deus está perto; mas essa proximidade, longe de ser uma banalidade, é um milagre que deve ser acolhido antes que a porta se feche.
Isaías 55:7a
Que o ímpio abandone o seu caminho, e o homem da iniquidade, os seus pensamentos... (Hb.: yaʿăzov rāšāʿ darkô wĕʾîš ʾāwen maḥšĕḇōtāw — “que abandone o ímpio o seu caminho, e o homem de iniquidade, os seus pensamentos”) Já no vocabulário, o versículo põe em tensão a estrada exterior e o labirinto interior. Rāšāʿ (“ímpio, culpado”) designa, etimológica e juridicamente, aquele que é declarado culpado em tribunal, em contraste com o ṣaddîq (“justo”); é um termo forense, mais que psicológico, e descreve quem está do lado errado da própria ordem moral de Deus, como mostram usos em Provérbios 11:5 e 17:15. Derek (“caminho”) é, ao mesmo tempo, estrada literal e modo de vida, rota habitual da conduta, com frequência metafórica em textos sapienciais (Salmos 1:6; Provérbios 4:11). ʾĀwen(“iniquidade, vaidade, maldade”) nomeia tanto injustiça quanto vazio fraudulento, sendo usado inclusive para renomear Betel como “Bete-Áven”, “casa da iniquidade”, em Oséias 10:5; carrega a ideia de falsidade pesada, culpável. E maḥšĕḇōtāw, plural de maḥšāḇāh (“pensamento, plano, desígnio”), deriva do verbo ḥāšav (“pensar, planejar, tramar, tecer”), o mesmo campo semântico que em Gênesis 50:20 (“vocês intentaram o mal contra mim, mas Deus o transformou em bem”); sugere planos deliberadamente urdidos, não meros devaneios passageiros. Há, portanto, um par: caminho visível que os pés trilham, e pensamentos invisíveis que a mente tece — ambos, aqui, saturados de culpa.
O termo yaʿăzov é verbo Qal imperfeito, 3ª pessoa masc. sing., com valor jussivo: “que abandone, deixe” e não apenas “ele abandona”. Funciona como núcleo do predicado verbal, com sujeito expresso em seguida. Rāšāʿ, classificado como adjetivo masc. sing., atua aqui substantivado, sendo o sujeito lógico da oração: “o ímpio” é quem deve operar o abandono. Darkô é substantivo comum masc. sing. em estado construto com sufixo de 3ª masc. sing., “o seu caminho”, funcionando como objeto direto de yaʿăzov, aquilo que deve ser largado para trás. A segunda metade do cola mantém o paralelismo: wĕʾîš apresenta a conjunção wĕ (“e”) seguida de ʾîšcomo substantivo masc. sing., introduzindo um sujeito paralelo, “o homem”; ʾāwen é substantivo masc. sing., funcionando como genitivo de qualidade: “homem de iniquidade”, um retrato moral interno. Maḥšĕḇōtāw é substantivo fem. plural em construto com sufixo 3ª masc. sing., “os pensamentos dele”, e desempenha o papel de objeto direto elíptico do mesmo verbo yaʿăzov: o verbo não se repete, mas rege tanto “caminho” quanto “pensamentos” num paralelismo sintático típico da poesia hebraica. A estrutura, portanto, é de uma oração verbal jussiva com paralelismo antitético interno: “Que o ímpio abandone o seu caminho // e o homem de iniquidade [abandone] os seus pensamentos”.
Aqui, temos dois membros coordenados: sujeito + verbo + objeto (“o ímpio — [que] abandone — seu caminho”) e sujeito + objeto com elipse do verbo (“o homem de iniquidade — [abandone] seus pensamentos”). O foco recai sobre a ligação estreita entre o caminho (conduta exterior) e os pensamentos (arquitetura interna da intenção). A conjunção simples wĕ costura o paralelismo e reforça que não se trata de duas pessoas distintas, mas de uma mesma figura retratada sob dois ângulos: quem é declarado culpado no tribunal de Deus é justamente aquele cujo caminho e cujos planos são saturados de ʾāwen(“maldade, falsidade”).
Na comparação de versões, a NVI verte: “Que o ímpio abandone seu caminho, e o homem mau, os seus pensamentos. Volte-se ele para o Senhor, que terá misericórdia dele; volte-se para o nosso Deus, pois ele perdoará de bom grado.” A NAA é muito próxima: “Que o ímpio abandone o seu mau caminho, e o homem mau, os seus pensamentos; converta-se ao Senhor, que se compadecerá dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em perdoar.” Ambas captam corretamente o tom jussivo (“que o ímpio abandone”), alinhadas à classificação verbal de yaʿăzov como imperfeito jussivo. No campo inglês, a KJV segue o mesmo desenho: “Let the wicked forsake his way, and the unrighteous man his thoughts…”, enquanto a Young’s Literal Translation preserva até mesmo o estranhamento da ordem: “Forsake doth the wicked his way, And the man of iniquity his thoughts”, que poderíamos verter livremente: “Abandona o ímpio o seu caminho, e o homem da iniquidade, os seus pensamentos”. A Septuaginta amplia a imagem: apolipetō ho asebēs tas hodous autou kai anēr anomos tas boulas autou (“que deixe o ímpio os seus caminhos, e o homem sem lei os seus conselhos”), substituindo “pensamentos” por “conselhos” (boulai), e falando em “caminhos” no plural; isso intensifica a ideia de múltiplas rotas e planos deformados que precisam ser abandonados.
O versículo começa desenhando a conversão como uma ruptura dupla: desviar os pés e desentranhar os pensamentos. Não basta uma correção periférica do comportamento; o “caminho” precisa ser trocado, mas os “pensamentos” (maḥšĕḇōtāw) — os projetos, as arquiteturas interiores — também precisam ser desmontados. Há eco claro da denúncia de Gênesis 6:5 (“toda a imaginação dos pensamentos do seu coração era continuamente má”) e da promessa de Jeremias 31:33 (“porei a minha lei no seu interior e a escreverei no seu coração”), ou seja, Deus não conserta apenas trilhas, ele reescreve mapas interiores. Ao chamar o indivíduo de ʾîš ʾāwen (“homem de iniquidade”), o texto não rotula apenas atos, mas um ser tornado quase sinônimo do seu próprio mal; e, ainda assim, justamente esse homem é convocado: o convite não é para o semi-culpado, mas para o culpado manifesto, o que alinha Isaías 55:7 a Ezequiel 18:21–23, onde o ímpio que se converte de todas as suas transgressões encontra vida, não morte. A lógica espiritual é simples e profunda: quem deseja encontrar a água gratuita do capítulo (Isaías 55:1–2) precisa largar não só a jarra errada, mas também a sede deformada.
Isaías 55:7b
…então ele se converta ao Senhor, e este se compadece dele, e se converta ao nosso Deus, porque ele multiplica o perdão. (Hb.: wĕyāšov ʾel YHWH wîraḥămēhû wĕʾel ʾĕlohênû kî yarbeh lisloaḥ — “e que ele volte para o Senhor, e este terá compaixão dele, e para o nosso Deus, porque ele multiplicará em perdoar”) Os verbos aqui são o coração pulsante da esperança. Šûḇ (yāšov) significa “voltar, retornar, converter-se”; no uso teológico, é o verbo clássico para arrependimento, usado em Oseias 14:1 (“volta, ó Israel, para o Senhor teu Deus”) e em Joel 2:12–13. Rāḥam (“ter compaixão, mostrar misericórdia”) descreve entranhas que se movem em favor de alguém, um termo emocionado, visceral, associado ao amor compassivo de Deus, como em Salmos 103:13. Rābâ (yarbeh) significa “multiplicar, tornar abundante” e, no hifil, “fazer abundar, causar multiplicação”; aplicado a perdão, pinta um Deus que não perdoa com conta-gotas, mas com transbordamento. Sālaḥ (lisloaḥ), empregado frequentemente em contextos cultuais (Levítico 4–5) e penitenciais (Salmos 32; 51), é o verbo técnico para o perdão divino, exclusivo de Deus no Antigo Testamento. A expressão completa “multiplicar para perdoar” sugere não apenas disposição, mas uma infinita elasticidade da misericórdia.
A expressão wĕyāšov é classificado como Qal imperfeito jussivo, 3ª masc. sing., com conjunção waw. Mantém o mesmo tom de apelo da primeira parte: “e que ele volte”, com sujeito implícito retomando o “ímpio/homem de iniquidade” dos membros anteriores. ʾEl YHWH traz a preposição ʾel (“para, em direção a”) seguida do nome próprio divino, formando um complemento de direção/destino: o movimento do arrependido não é apenas afastar-se do mal, é voltar-se para o Senhor. Wîraḥămēhû combina conjunção wĭ com verbo em V-Piel-ConjImperf-3ms + sufixo 3ª masc. sing.: “e ele (o Senhor) terá compaixão dele”. A voz Piel intensifica a ação: não é um sentimento frio, mas um exercício ativo de misericórdia. Wĕʾel ʾĕlohênû repete a preposição, agora com ʾĕlōhîm no plural morfológico com sufixo 1ª comum plural: “nosso Deus”, marcando a dimensão comunitária: o Deus de Israel, que se apresenta como nosso. A conjunção kî (“porque”) introduz a cláusula causal: yarbeh é verbo V-Hifil-Imperf-3ms, “ele fará abundar”, “ele multiplicará”; lisloaḥ é Prep-l | V-Qal-Inf, infinitivo construto em lamed que especifica o campo dessa abundância: “no perdoar”, “em perdoar”. A última cláusula é, assim, uma causa firme: o retorno é possível porque o perdão de Deus é exponencial.
Este trecho do versículo prossegue em cadeia de jussivos: “que o ímpio abandone… que o homem da iniquidade [abandone]… e que ele volte ao Senhor…”, mas, ao chegar ao verbo de Deus, há uma nuances: o jussivo humano abre espaço para o imperfeito divino, que pode ser lido como promessa: “ele terá compaixão”, “ele multiplicará para perdoar”. Há uma coreografia: primeiro, o sujeito humano se desloca (“volte para o Senhor”), depois o Sujeito divino se inclina (“ele terá compaixão dele”), e, finalmente, o narrador proclama a natureza desse Deus: “porque ele multiplica o perdoar”. A conjunção wĕ articula cada passo, e kî dá a razão teológica que sustenta a ordem ética.
Nas versões, a NAA conserva essa lógica: “converta-se ao Senhor, que se compadecerá dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em perdoar.” A NVI oferece: “Volte-se ele para o Senhor, que terá misericórdia dele; volte-se para o nosso Deus, pois ele perdoará de bom grado.” Ambas mantêm o paralelismo do duplo movimento de retorno e a certeza da misericórdia. Em inglês, a KJV diz: “and let him return unto the LORD, and he will have mercy upon him; and to our God, for he will abundantly pardon.”, enquanto a YLT preserva o hebraísmo: “And he returneth to Jehovah, and He pitieth him, And unto our God for He multiplieth to pardon.” Já a Septuaginta acrescenta: kai epistraphētō epi kyrion kai eleēthēsetai, hoti epi polu aphēsei tas hamartias hymōn (“e que ele se volte para o Senhor e será alvo de misericórdia, porque em grande medida perdoará os vossos pecados”), deslocando o objeto para “os vossos pecados” e explicitando, na forma de 2ª pessoa plural, o caráter comunitário do perdão.
Na leitura teológica, o versículo é um pequeno evangelho em miniatura, antecipando o padrão que se tornará cristalino no Novo Testamento: há um chamado à metanoia — à conversão de caminho e de mente — e uma promessa de que o coração de Deus está mais pronto para perdoar do que o coração humano para se arrepender. Ezequiel 18, já mencionado, mostra que Deus não se compraz na morte do ímpio, antes deseja que ele se converta e viva; Miquéias 7:18–19 pergunta: “Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniquidade…?” e responde que Ele “lançará todos os nossos pecados nas profundezas do mar”. Isaías 55:7 se encaixa nesse coro: o Deus que fala é o mesmo Deus que, em 1 João 1:9, se mostra “fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça”, e em Atos 3:19 chama: “Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que sejam apagados os vossos pecados”.
A lógica prática, portanto, é de uma dupla renúncia e de um duplo abraço. Renúncia: largar o caminho velho e os pensamentos antigos, reconhecer-se “homem de iniquidade” e, ainda assim, responder ao convite. Abraço: voltar-se ao Senhor e descobrir que Ele já vinha em nossa direção, com entranhas de rāḥam (“compaixão”) e com um estoque inesgotável de sālaḥ (“perdão”). O texto não descreve um Deus relutante, mas um Deus que “multiplica em perdoar”, o que, no horizonte cristão, ressoa na figura de Cristo acolhendo publicanos, prostitutas e ladrões (Lucas 15; 23:39–43), como encarnação viva desta promessa: onde a culpa é plural, o perdão é superabundante.
Isaías 55:8
Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR.” (Hb.: kî lōʾ maḥăšĕḇōtay maḥăšĕḇōtêkhem wĕlōʾ darkêkhem dĕrāḵay nĕʾum YHWH — “porque não são os meus pensamentos os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, oráculo do SENHOR”). Desde a primeira palavra “kî” (“porque”), o versículo se apresenta como explicação da convocação anterior ao arrependimento em Isaías 55:6–7; Deus justifica o apelo para que o perverso deixe “o seu caminho” e “os seus pensamentos” (Isaías 55:7) com a declaração de que os seus próprios maḥăšĕḇōt (“pensamentos, planos”) e os seus dĕrāḵîm (“caminhos, modos de agir”) pertencem a outra ordem. O substantivo maḥăšĕḇāh deriva da raiz ḥ-š-b, “pensar, calcular, projetar”, e designa tanto o ato de refletir quanto o plano resultante, podendo ser usado tanto para desígnios de Deus (Jeremias 29:11) quanto para tramas humanas ou até maquinações malignas (Gênesis 6:5). O campo semântico oscila entre pensamento interior e plano concreto, de modo que “pensamentos” aqui não são meras ideias abstratas, mas projetos e intenções eficazes. Já derek (“caminho”) pertence a um dos eixos mais importantes da metafórica sapienciai: a raiz d-r-k descreve “pisar, trilhar”, e o substantivo passa a nomear tanto o trajeto físico quanto o estilo de vida, o comportamento moral, a rota existencial de uma pessoa ou de um povo (Salmos 1:6; Provérbios 14:12). Por fim, nĕʾum (“declaração, oráculo”) provém da raiz n-ʾ-m, empregada tecnicamente em fórmulas proféticas; é um substantivo que funciona como carimbo de autenticidade: não se trata de opinião de Isaías, mas de um oráculo solene, “afirmação do SENHOR”.
Do ponto de vista morfológico, o versículo é composto apenas de substantivos, partículas e pronomes, sem verbo finito expresso, o que produz duas orações nominais paralelas seguidas de uma fórmula oracular final. Kî é conjunção subordinativa causal/explicativa que conecta Isaías 55:8–9 com o imperativo de arrependimento do versículo 7. Lōʾ é a partícula negativa simples, repetida duas vezes para negar a identidade entre os termos pareados. Maḥăšĕḇōtay (“meus pensamentos”) é um substantivo feminino plural em estado absoluto com sufixo pronominal de 1ª pessoa comum singular; funciona como um dos termos da oração equativa, ocupando a posição de tópico/sujeito lógico na primeira cláusula. Maḥăšĕḇōtêkhem (“vossos pensamentos”) é o mesmo substantivo no feminino plural com sufixo de 2ª pessoa masculina plural; desempenha o papel de segundo termo da equação, funcionando como predicativo do sujeito ou, em uma leitura mais simétrica, como coreferente em uma estrutura de contraste: “meus pensamentos ≠ vossos pensamentos”. Darkêkhem (“os vossos caminhos”) é forma plural de derek com sufixo de 2ª pessoa masculina plural, substantivo comum (gramaticalmente masculino singular, mas aqui no plural), atuando como sujeito lógico da segunda oração nominal, em paralelismo com maḥăšĕḇōtêkhem. Dĕrāḵay (“os meus caminhos”) é plural de derek com sufixo de 1ª pessoa singular, funcionando como o termo correlato em paralelo com maḥăšĕḇōtay. Nĕʾum é substantivo masculino singular em estado construto, ligado a YHWH (“SENHOR”) como genitivo: nĕʾum YHWH significa literalmente “declaração de YHWH”, funcionando aqui como oração nominal elíptica (“[é] declaração do SENHOR”), selando o versículo com uma assinatura divina.
Sintaticamente, temos duas cláusulas equativas negativas em paralelismo, seguidas de uma breve cláusula nominal oracular. A primeira cláusula, kî lōʾ maḥăšĕḇōtay maḥăšĕḇōtêkhem, pode ser descrita como predicação nominal com cópula elíptica: “porque não [são] meus pensamentos os vossos pensamentos”. A ausência do verbo hāyâ (“ser”) é típica do hebraico bíblico em construções no tempo presente ou gnômico. A ordem dos elementos, com maḥăšĕḇōtay em posição inicial, confere destaque retórico ao sujeito divino: o foco recai primeiro sobre a esfera dos pensamentos de Deus, para depois negar sua identidade com os pensamentos humanos. A segunda cláusula, wĕlōʾ darkêkhem dĕrāḵay, repete a estrutura, mas (notavelmente) inverte a ordem dos pronomes: “e não [são] os vossos caminhos os meus caminhos” em ARA, ou, de modo mais literal, “e não [são] os vossos caminhos [iguais a] os meus caminhos”. A conjunção wĕ introduz paralelismo sinonímico reforçado pela mesma partícula negativa lōʾ. Nessa segunda linha, o sujeito lógico é “os vossos caminhos” e o predicativo é “os meus caminhos”, deixando ainda mais claro o contraste entre a rota moral e existencial do povo e a rota do próprio Deus. A cláusula final nĕʾum YHWH é uma frase nominal de identificação: substantivo em construto + nome divino, funcionando como coda oracular que autentica as duas declarações anteriores.
As traduções em português conservam bem essa estrutura. A Almeida Revista e Atualizada apresenta: “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor”, preservando a ordem inicial dos pensamentos e repetindo o possessivo “meus” / “vossos” em paralelismo. A Nova Versão Internacional explicita mais claramente a diferença de sujeitos: “Porque os meus pensamentos não são os pensamentos de vocês, nem os seus caminhos são os meus caminhos”, declara o SENHOR, aproximando-se da construção da NVT: “Meus pensamentos são muito diferentes dos seus, diz o Senhor, e meus caminhos vão muito além de seus caminhos”, que introduz o advérbio “muito” e a expressão “vão muito além”, já antecipando o desenvolvimento do versículo 9. Em inglês, a Young’s Literal Translation ecoa de forma quase interlinear a ordem hebraica: “For not My thoughts [are] your thoughts, Nor your ways My ways, -- an affirmation of Jehovah”, preservando inclusive a nuance de nĕʾum ao traduzir “an affirmation of Jehovah”. A King James Version, por sua vez, verte: “For my thoughts are not your thoughts, neither are your ways my ways, saith the LORD”, mantendo a cadência paralela, porém com a ordem inglesa habitual “For my thoughts are not your thoughts”.
A Septuaginta acentua o aspecto de conselho deliberado ao traduzir maḥăšĕḇōt por boulai e derek por hodoi: ou gar eisin hai boulai mou hōsper hai boulai hymōn oudè hōsper hai hodoi hymōn hai hodoi mou, legei kyrios (“pois os meus conselhos não são como os vossos conselhos, nem os vossos caminhos como os meus caminhos, diz o Senhor”). O vocábulo grego boulē designa não apenas “pensamento” em abstrato, mas o propósito, o plano deliberado, o que sublinha que não se trata de mera diferença de opinião, e sim de um projeto divino que ultrapassa a lógica humana. A escolha de hodoi para derek mantém a metáfora do caminho, tão cara também ao Novo Testamento, onde “o caminho” se torna designação do próprio Cristo (João 14:6; Atos 9:2).
Do ponto de vista exegético, Isaías 55:8 não aparece isolado, mas como justificativa para o apelo radical dos versículos 6–7: “Buscai o SENHOR enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto. Deixe o perverso o seu caminho, o iníquo, os seus pensamentos; converta-se ao SENHOR, que se compadecerá dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em perdoar.” A cadeia é clara: abandonar caminho e pensamentos (derek e maḥăšĕḇāh humanos) → voltar-se para o SENHOR → experimentar um perdão “rico”, abundante. O “porque” do versículo 8 explica por que esse arrependimento é necessário: os caminhos e pensamentos humanos não são apenas “imperfeitos” em relação aos de Deus; pertencem a um outro regime, marcado por vingança, cálculo de merecimento, lógica de retribuição imediata. O contraste não é apenas ontológico (criatura versus Criador), mas sobretudo moral e soteriológico: o que os homens imaginam ser justo e razoável — castigo proporcional, desconfiança, limite à misericórdia — é desmentido pelo modo como Deus pensa e age em relação ao pecador.
O versículo aqui ecoa e prepara outros grandes textos sobre a incomensurabilidade dos desígnios divinos. A indignação de Jonas ao ver Nínive poupada revela o choque entre os “pensamentos” de um profeta zeloso pela justiça punitiva e os “caminhos” de um Deus que prefere a vida à morte do ímpio (Jonas 4:1–11; Ezequiel 18:23). Romanos 11:33–36 retomará essa nota em tom de doxologia: a sabedoria e o conhecimento de Deus são inescrutáveis, os seus juízos, insondáveis, os seus caminhos, imperscrutáveis. Hebraicamente, Isaías 55:8–9 diz algo semelhante, mas num registro mais pastoral: não é que Deus seja arbitrário ou irracional; é que a aritmética da graça não cabe na contabilidade humana. A mente de Deus não “pensa como nós pensamos” quando se trata de perdoar, restaurar e redimir.
Na lógica prática do versículo, o fiel é chamado a um deslocamento interior. Se maḥăšĕḇōtay (“meus pensamentos”) e dĕrāḵay (“meus caminhos”) não coincidem com os nossos, então o caminho da fé não consiste em pedir que Deus “assine embaixo” dos nossos projetos, mas em permitir que a Palavra reoriente nossos afetos, nossa ética e nossa esperança, como a chuva que desce e não volta sem antes fazer a terra frutificar (Isaías 55:10–11). Isso implica abandonar o caminho que parece direito ao próprio homem, mas cujo fim é morte (Provérbios 14:12), para aprender o caminho do SENHOR (Salmos 25:4–5). A distância entre “meus pensamentos” e “vossos pensamentos” não tem por objetivo esmagar o ser humano em sua pequenez, mas libertá-lo da prisão dos seus próprios esquemas, abrindo espaço para um horizonte de graça que ele, por si só, não conceberia.
Lido à luz do evangelho, Isaías 55:8 converge para a figura de Cristo, em quem o “caminho” de Deus se encarna de modo paradoxal: a via da cruz, loucura para os que se perdem e sabedoria de Deus para os que são salvos (1 Coríntios 1:18–25). A lógica divina que exalta o caminho da humilhação, do serviço e do perdão incondicional não é resultado de um cálculo utilitarista, mas expressão dos “pensamentos” eternos do Pai, “concebidos” antes da fundação do mundo (Efésios 1:4–5). Entre os “caminhos” humanos, marcados pela autodefesa e pela busca de vantagem, e os “caminhos” de Deus, marcados pela autodoação, há um abismo que só pode ser transposto pela conversão: não apenas uma mudança de conduta exterior, mas uma transformação de maḥăšĕḇōt — um aprender a pensar com a mente de Cristo (1 Coríntios 2:16). Neste sentido, Isaías 55:8 é ao mesmo tempo diagnóstico da distância e convite à travessia: no coração daquele que se deixa conduzir, os “pensamentos” de Deus começam a desenhar novos “caminhos”, e o que antes parecia absurdo — perdoar setenta vezes sete, amar inimigos, confiar em promessas invisíveis — revela-se justamente a forma mais alta e mais lúcida de sabedoria.
Isaías 55:9
Porque os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos (Hb.: kî gāḇhû šāmayim mēʾāreṣ kēn gāḇhû dĕrāḵay middarkêḵem ûmaḥšĕvōtay mimmāḥšĕvōtêḵem — “porque se elevaram os céus acima da terra, assim se elevaram os meus caminhos acima dos vossos caminhos, e os meus pensamentos acima dos vossos pensamentos”.) A palavra verbal-chave é o verbo gāḇah (“ser elevado, ser alto”), raiz de gāḇhû; trata-se de um verbo que denota elevação física ou metafórica — altura de terreno, de estruturas, mas também exaltação de status ou de modo de agir, inclusive aplicado aos “caminhos” de Deus em sentido positivo, em contraste com a altivez arrogante do homem. O substantivo šāmayim (“céus”) designa o céu visível, o firmamento com estrelas, e também, por extensão, a esfera transcendente da habitação de Deus, formando um campo semântico que vai da meteorologia à teologia da presença divina. Em contraste, ʾāreṣ(“terra”) aponta tanto para a terra firme quanto para a terra habitada, o mundo humano em sua pequenez perante o alto dos céus. O termo derek (“caminho”) descreve, literalmente, a estrada batida, mas em uso metafórico recorrente nos livros sapienciais torna-se imagem para “curso de vida, conduta, modo de agir”, incluindo o comportamento moral e o rumo histórico que alguém trilha. Já maḥăšāḇā (“pensamento, plano, desígnio”) remete tanto às cogitações internas quanto a projetos deliberados — ora bons, ora maus —, podendo significar “propósito, plano, intenção” no sentido de uma arquitetura mental que se desdobra em história. Nesse versículo, o contraste não é apenas entre “ideias” abstratas de Deus e do homem, mas entre desígnios estruturantes da realidade: os planos de Deus pairam tão acima quanto os céus em relação à terra, enquanto os planos humanos se limitam à superfície do pó.
O versículo começa com kî (“porque”), conjunção que introduz a fundamentação do que foi afirmado no versículo anterior sobre a distância entre pensamentos e caminhos humanos e divinos (verso 8). Em seguida vem gāḇhû, forma Qal perfeito, 3ª pessoa comum plural, sem sufixo, funcionando como núcleo verbal de uma cláusula verbal estativa: “foram elevados / são mais altos”. O sujeito dessa cláusula é šāmayim (substantivo masculino plural), posposto ao verbo em ordem verbo–sujeito típica do hebraico bíblico (gāḇhû šāmayim — “se elevaram os céus”). O sintagma mēʾāreṣ combina a preposição min (“de, desde, a partir de”) com o substantivo ʾereṣ(feminino singular, “terra”), criando um complemento preposicional de comparação: “mais altos do que a terra”. Em seguida, o advérbio kên (“assim, do mesmo modo”) introduz a segunda parte da comparação, reforçando a relação como-assim entre o mundo físico e o paralelo teológico.
O verbo gāḇhû reaparece (mesmo binyan, aspecto e pessoa: Qal perfeito, 3cp), mas agora com sujeito diferente: dĕrāḵay (“os meus caminhos”), substantivo masculino plural em estado construto com sufixo de 1ª pessoa comum singular (-ay), que faz do termo o “caminho de mim” → “os meus caminhos”. A forma middarkêḵem é a preposição min assimilada a derek no plural construto com sufixo de 2ª pessoa masc. plural (-ḵem), formando “dos vossos caminhos / do que os vossos caminhos”, em função secundária de termo de comparação na mesma construção comparativa da cláusula anterior. Por fim, ûmaḥšĕvōtay combina a conjunção wĕ (“e”) com maḥšĕvōt (plural de maḥăšāḇā, feminino plural absoluto) e o sufixo de 1ª pessoa comum singular (-ay), resultando em “e os meus pensamentos”; essa forma é o sujeito de uma terceira cláusula, elíptica do verbo gāḇhû, que se entende por paralelismo. O termo correspondente mimmāḥšĕvōtêḵem combina min com maḥšĕvōt (feminino plural construto) e sufixo de 2ª masc. plural (-ḵem), “do que os vossos pensamentos”, novamente como complemento preposicional comparativo. Assim, todos os elementos principais estão articulados em torno de um único verbo repetido, em perfeito gnômico (valor geral, atemporal), exprimindo uma relação fixa: desde sempre e para sempre, os “caminhos” e “pensamentos” de Deus permanecem em altura qualitativa superior à dos projetos humanos.
Neste trecho, temos uma oração complexa introduzida pelo kî causal: “porque”. A primeira cláusula verbal (gāḇhû šāmayim mēʾāreṣ) traz sujeito expresso (šāmayim) após o verbo e um complemento preposicional comparativo (mēʾāreṣ). A segunda cláusula, introduzida pelo advérbio kên, retoma a estrutura: gāḇhû dĕrāḵay middarkêḵem (“assim se elevaram os meus caminhos acima dos vossos caminhos”), com sujeito em 1ª pessoa (Deus falando) e objeto comparativo em 2ª pessoa (os destinatários humanos). A terceira parte, ûmaḥšĕvōtay mimmāḥšĕvōtêḵem, é uma cláusula nominal com verbo elíptico: o gāḇhû anterior se projeta sobre ela, de modo que o paralelismo estrutura o sentido: “e [igualmente elevados são] os meus pensamentos, acima dos vossos pensamentos”. Não há aqui dativos de relação; o foco recai em comparativos, marcados sistematicamente por min (“do que”) após o termo padrão de altura (šāmayim, dĕrāḵay, maḥšĕvōtay). A sintaxe é toda construída para produzir um crescendo: do espaço físico (céus / terra) para o plano ético-existencial (caminhos) e, enfim, para o plano intelectual e volitivo (pensamentos).
Na comparação de versões, a King James Version verte: “For as the heavens are higher than the earth, so are my ways higher than your ways, and my thoughts than your thoughts”, preservando a forma comparativa e a repetição de “higher”. A Young’s Literal Translation enfatiza a ideia de elevação já consumada: “For high have the heavens been above the earth, So high have been My ways above your ways, And My thoughts above your thoughts” , refletindo bem o perfeito hebraico como estado estabelecido — “têm sido elevados”. Em português, a Almeida Revista e Atualizada diz: “porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos” , captando com precisão o paralelismo triplo. A NVI, por sua vez, escreve: “Assim como os céus são mais altos do que a terra, também os meus caminhos são mais altos do que os seus caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os seus pensamentos” ; o “também” reforça o paralelismo (“assim como… também”), sem perder o sentido original. A NAA explicita a comparação com pronome: “Porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim os meus caminhos são mais altos do que os seus caminhos, e os meus pensamentos são mais altos do que os pensamentos de vocês” ; ao acrescentar o verbo “são” na terceira cola, ela explicita a elipse hebraica e torna o paralelismo mais evidente para o leitor moderno. A NVT, com linguagem mais contemporânea, verte: “Pois, assim como os céus são mais altos que a terra, meus caminhos são mais altos que os seus caminhos, e meus pensamentos, mais altos que os seus pensamentos” , preservando a estrutura mas simplificando a cadência.
A Septuaginta traduz: “hōs gar hypsēloi hoi ouranoi apo tēs gēs, houtōs anōteroi eisin hai hodoi mou apo tōn hodōn hymōn, kai ta dianoēmata mou apo tōn dianoōn hymōn” (“porque, assim como são altos os céus acima da terra, assim mais elevadas são as minhas vias do que as vossas vias, e os meus pensamentos do que os vossos pensamentos”). O verbo grego hypsēloi (“altos”) e o adjetivo comparativo anōteroi (“mais elevados”) mantêm a mesma imagem de altura; hodoi (“caminhos”) traduz dĕrāḵay, e dianoēmata (“pensamentos, intenções”) espelha bem o campo semântico de maḥăšāḇā. A LXX, portanto, confirma a leitura tradicional: trata-se de uma comparação ontológica e ética, não apenas de distância “emocional”; os “caminhos” de Deus são “mais elevados” em tipo e qualidade, assim como seus “pensamentos” o são em profundidade e alcance.
Isaías 55:9 aprofunda o contraste aberto no versículo anterior (“os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos”): aqui, a metáfora espacial torna-se medida qualitativa. A distância entre céu e terra, uma das maiores imagens de desproporção na Bíblia (cf. Salmo 103:11: “pois, quanto o céu se alteia acima da terra, assim é grande o seu amor para com os que o temem”), é usada como régua para o amor, a misericórdia e a sabedoria de Deus. Assim como ninguém consegue encurtar a distância física entre o firmamento e o chão, ninguém consegue, por esforço próprio, nivelar seus “caminhos” e “pensamentos” aos de Deus. Porém, o contexto de Isaías 55 não é de mero abatimento, mas de convite gracioso: o Deus cujos planos são inalcançáveis em altura desce, pela sua palavra (versos 10–11) e pela sua aliança davídica (versos 3–5), para compartilhar com o povo os frutos desses pensamentos superiores.
Isso significa que o crente é chamado a confiar em um Deus cujas decisões frequentemente excedem a compreensão imediata: percursos de sofrimento, exílio, disciplina e restauração que, aos olhos humanos, parecem tortos, mas que, sob a perspectiva dos “céus”, revelam um desenho de misericórdia e justiça. O contraste entre dĕrāḵay (“os meus caminhos”) e derek “os vossos caminhos” recorda textos como Salmo 77:19 (“O teu caminho foi pelo mar, as tuas veredas, pelas grandes águas, e não se descobrem as tuas pegadas”) e Romanos 11:33–36, onde Paulo exclama: “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria, como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos!”. O paralelo entre maḥšĕvōtay e maḥšĕvōtêḵem distingue nitidamente o conselho divino (que salva, restaura, cumpre promessa) dos raciocínios humanos marcados por idolatria, autossuficiência e miopia moral; pensar como Deus pensa exige arrependimento e conversão (verso 7), um abandono de caminhos e pensamentos próprios para acolher os desígnios superiores da graça. Assim, o versículo não é apenas um lembrete da transcendência divina, mas um convite à humildade confiante: levantar os olhos para os céus e, aceitando a distância intransponível, viver sob a direção de quem vê o todo que nós não vemos.
Isaías 55:10
Pois, assim como a chuva e a neve descem dos céus e para lá não tornam, mas regam a terra e a fazem produzir e brotar, dando semente ao semeador e pão ao que come” (Hb.: kî kaʾăšer yērēd haggešem wĕhaššeleḡ min-haššāmayim wĕšāmmāh lōʾ yāšûḇ kî ʾim-hirwâ ʾet-hāʾāreṣ wĕhôlîḏāh wĕhiṣmîḥāh wĕnātan zeraʿ lazzōrēaʿ wĕleḥem lāʾōḵēl — “porque assim como desce a chuva e a neve dos céus, e para lá não voltam, mas regam a terra, fazem-na dar fruto e brotar, dando semente ao semeador e pão ao que come”). O tecido vocabular deste versículo é todo feito de palavras que já carregam em si um mundo de imagens. Gešem (“chuva”) é o termo usual para a chuva que cai em massa e sacia a terra, distinto, por exemplo, de mātār (“chuva” num sentido mais geral), e aparece como um dos dons fundamentais de Deus para a fertilidade da terra. Ao lado dele, šeleḡ (“neve”) amplia o quadro: em Israel, a neve é menos frequente, mas o termo evoca a água em estado acumulado, que se derrete e alimenta os lençóis e cursos d’água. Šāmayim (“céus”) designa o firmamento, o “lugar” de onde vem a chuva, contraposto a ʾāreṣ (“terra”), que é ao mesmo tempo solo físico e território habitado, palco da história humana. O verbo yārad (“descer”) em yērēd (“desce”) sugere um movimento unilateral, de cima para baixo, típico da iniciativa divina; šûb (“voltar”) em yāšûḇ (“retorna”) marca o fato de que essa água não volta “vazia”, não regride ao céu sem cumprir o ciclo para o qual foi enviada. A sequência de hifil — hirwâ de ravâ (“saturar, regar abundantemente”), hôlîḏāh de yālad (“fazer gerar”), hiṣmîḥāh de ṣāmaḥ (“fazer brotar”) — desenha um crescendo: primeiro a terra é embebida, depois “dá à luz” e, por fim, “faz brotar”. No fim do processo, nātan (“dar”) produz zeraʿ (“semente”) e leḥem (“pão, alimento”), ligados a dois particípios: zōrēaʿ de zāraʿ (“semear”) e ʾōḵēl de ʾākal (“comer”), formando as fórmulas “ao semeador” e “ao que come”: é a mesma água que sustenta o ciclo inteiro, do agricultor que lança a semente até o faminto que leva o pão à boca.
A frase abre com kî kaʾăšer yērēd haggešem wĕhaššeleḡ min-haššāmayim: kî funciona como conjunção causal-comparativa (“pois/porque”), enquanto kaʾăšer combina a preposição k- com o relativo ʾăšer, produzindo o sentido “assim como”. Yērēd é Qal imperfeito 3ª masc. sing. de yārad (“descer”), sem sufixo, funcionando como núcleo verbal da oração e governando o sujeito composto haggešem wĕhaššeleḡ (“a chuva e a neve”), ambos substantivos masculinos singulares com artigo definido. Min-haššāmayim traz a preposição min (“de, desde”) seguida de šāmayim (“céus”) no masculino plural com artigo, formando o complemento de origem: “desde os céus”. A seguir, wĕšāmmāh lōʾ yāšûḇ introduz, com wĕ (“e”) e o advérbio locativo šāmmāh (“para lá”), a negação lōʾ e o verbo yāšûḇ (Qal imperfeito 3ª masc. sing. de šûb, “voltar”), ainda com o mesmo sujeito implícito, indicando que chuva e neve não retornam ao céu antes de cumprir sua função.
Na sequência, kî ʾim-hirwâ ʾet-hāʾāreṣ desloca o foco com kî ʾim (“mas, e sim”), reforçando o contraste: hirwâ é Hifil perfeito 3ª masc. sing. de ravâ (“saturar, regar”), com ʾet como marcador de objeto direto e hāʾāreṣ (“a terra”) — substantivo feminino singular com artigo — como objeto. Wĕhôlîḏāh wĕhiṣmîḥāh são formas Hifil perfeitas 3ª masc. sing. de yālad e ṣāmaḥ, cada uma seguida de um sufixo pronominal 3ª fem. sing. que retoma a terra: “e a faz dar à luz, e a faz brotar”. Por fim, wĕnātan zeraʿ lazzōrēaʿ wĕleḥem lāʾōḵēl traz wĕnātan como Qal perfeito 3ª masc. sing. de nātan (“dar”), com dois objetos: zeraʿ (“semente”) e leḥem (“pão”); lazzōrēaʿ e lāʾōḵēl combinam a preposição l- (“para”), artigo e particípios Qal masculinos singulares de zāraʿ (“semear”) e ʾākal (“comer”), funcionando como dativos de vantagem: “para o semeador” e “para o que come”.
O versículo inteiro é uma grande oração comparativa, cujo verbo principal está no imperfeito (yērēd — “desce”) e cujo sujeito composto é “a chuva e a neve”, com uma cadeia de orações coordenadas que descreve o efeito progressivo dessa descida. A primeira oração estabelece o movimento inicial: “pois, assim como descem dos céus a chuva e a neve”. A segunda oração, ainda sob o mesmo sujeito, introduz a negação: “e para lá não voltam”, estrutura verbo–advérbio, onde wĕšāmmāh define o alvo e yāšûḇ indica o retorno que não acontece antes do tempo. Em seguida, a construção kî ʾim abre o bloco contrastivo/resultativo: “mas regam a terra”, com hirwâ como verbo transitivo e hāʾāreṣ como objeto direto explícito. As duas formas hifil seguintes, com sufixo feminino, funcionam como predicados adicionais que retomam implicitamente “a terra”: “e a fazem produzir e brotar”, formando uma série de três verbos causativos aplicados ao mesmo objeto. A última oração (“e [ela] dá semente ao semeador e pão ao que come”) completa o quadro com uma dupla complementação: zeraʿ lazzōrēaʿ e leḥem lāʾōḵēl configuram dativos que indicam os beneficiários finais da ação: o agricultor que lança a semente e o comensal que se alimenta. Em termos de macroestrutura, todo o versículo é a prótase de uma comparação cujo apódose virá no versículo seguinte: a eficácia da palavra de Deus será como essa eficácia silenciosa e irreversível da água que desce.
As versões mostram nuances interessantes na recepção dessa imagem. A João Ferreira de Almeida Atualizada verte: “Porque, assim como a chuva e a neve descem dos céus e para lá não tornam, mas regam a terra, e a fazem produzir e brotar, para que dê semente ao semeador, e pão ao que come,”, realçando a finalidade com “para que dê” na cláusula final. A Young’s Literal Translation, em inglês, traduz: “For, as come down doth the shower, and the snow from the heavens, and thither returneth not, but hath watered the earth, and hath caused it to yield, and to spring up, and hath given seed to the sower, and bread to the eater,” (“Pois, assim como desce o aguaceiro e a neve dos céus, e para lá não torna, mas regou a terra e a fez produzir e brotar, e deu semente ao semeador e pão ao que come”). A Nova Versão Internacional diz: “As the rain and the snow come down from heaven, and do not return to it without watering the earth and making it bud and flourish, so that it yields seed for the sower and bread for the eater,” (“Assim como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam para eles sem regarem a terra e fazerem-na brotar e florescer, para que ela produza semente para o semeador e pão para o que come”). A Septuaginta grega introduz leves variações: “Ὡς γὰρ ἂν καταβῇ ὁ ὑετὸς ἢ χιὼν ἐκ τοῦ οὐρανοῦ, καὶ οὐ μὴ ἀποστραφῇ ἕως ἂν μεθύσῃ τὴν γῆν, καὶ ἐκτέκῃ, καὶ ἐκβλαστήσῃ, καὶ δῷ σπέρμα τῷ σπείροντι, καὶ ἄρτον εἰς βρῶσιν” (“Pois, assim como a chuva ou a neve descem do céu e de modo nenhum retornam até que tenham embriagado a terra, e a tenham feito dar à luz e brotar, e tenham dado semente ao que semeia e pão para alimento”). Nela, o par ὑετός (“chuva”) e χιών (“neve”) corresponde a gešem e šeleḡ, γῆ (“terra”) a ʾāreṣ, σπέρμα (“semente”) a zeraʿ, ἄρτος (“pão”) a leḥem, e o participial τῷ σπείροντι (“ao que semeia”) ecoa diretamente lazzōrēaʿ, assim como εἰς βρῶσιν (“para alimento”) retoma o sentido de lāʾōḵēl (“para o que come”), de modo que a LXX reforça a linha de leitura agrícola e providencial do texto hebraico.
Na leitura exegética, o versículo funciona como ponte entre a transcendência dos pensamentos de Deus (Isaías 55:8–9) e a promessa de eficácia da sua palavra (Isaías 55:11). A imagem da chuva e da neve não é neutra: no Antigo Testamento, a chuva é símbolo clássico da bênção fiel de Deus sobre a terra e sobre o povo, a ponto de sua ausência ser vista como juízo (por exemplo, em Deuteronômio 11:13–17) e sua abundância como sinal de favor (Isaías 30:23; cf. a cadeia de referências em Isaías 55:10 na NVI). Aqui, o movimento é: dos céus à terra, da saturação do solo à frutificação, e desta à provisão concreta de semente e pão. O uso insistente do Hifil — hirwâ, hôlîḏāh, hiṣmîḥāh — sublinha que a terra não é autossuficiente: ela é “fazida” a produzir, “fazida” a brotar. A chuva é instrumento da ação divina, mas o sujeito último, oculto na metáfora, é o próprio Senhor, que preside ao ciclo da fertilidade. Quando Paulo retoma a fórmula “semente ao que semeia e pão ao que come” em 2 Coríntios 9:10, ele lê essa dinâmica como figura do modo como Deus sustenta tanto a generosidade da comunidade quanto as necessidades diárias dos santos, unindo a “semente” que é replantada ao “pão” que é consumido. Essa dupla dimensão está presente aqui: Deus não apenas garante colheitas futuras, mas também provê o pão de hoje.
O versículo responde à pergunta silenciosa que paira sobre todo o convite de Isaías 55: se os caminhos e pensamentos de Deus são tão mais altos que os nossos, e se ele convida gratuitamente ao vinho e ao leite (Isaías 55:1–3), como saber que sua promessa não é apenas retórica? A resposta vem por meio da metáfora meteorológica: a chuva nunca cai em vão; ainda que o agricultor não veja imediatamente a germinação, a água já está operando em profundidade, saturando a terra, dissolvendo, fazendo “dar à luz” e brotar. Assim também, a palavra de Deus desce, se infiltra na história e no coração, e, num tempo que escapa à pressa humana, faz nascer o que não existia, brotar o que parecia seco, dar “semente” — novas possibilidades, novos começos — àqueles que ousam semear na justiça (Oséias 10:12) e “pão” — sustento, consolação, esperança concreta — àqueles que se alimentam dela. A lógica prática embutida no versículo é que o discípulo não mede a eficácia da palavra pelo instante, mas pela colheita: quem se expõe persistentemente à chuva da Escritura e do evangelho, quem permite que ela sature a terra endurecida das rotinas e desejos, acabará colhendo não só fruto interior, mas também pão compartilhado, pois a mesma palavra que o nutre interiormente o torna, aos olhos de Deus, um semeador que espalha semente para outros.
Isaías 55:11
Assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei” (Hb.: kēn yihyeh dĕvarî ʾăšer yēṣēʾ mippî lōʾ yāšûb ʾēlay rêqām kî ʾim-ʿāśāh ʾet-ʾăšer ḥāp̄aṣtî wĕhiṣlîaḥ ʾăšer šĕlaḥtîw — “assim será a minha palavra que sai da minha boca: não voltará para mim vazia; antes realizará o que eu desejo e fará prosperar aquilo para o qual eu a enviei”). Começando pela tessitura lexical, dābār (“palavra”, “fala”, “assunto”, “evento”) é o eixo em torno do qual o versículo gravita: não é apenas som, mas realidade que se concretiza, aquilo que Deus diz e, dizendo, faz ser. O campo semântico de dābār abrange tanto oráculos quanto acontecimentos (“palavra que veio a Jeremias”, “palavra do Senhor” como evento histórico), o que permite que aqui “minha palavra” seja, ao mesmo tempo, promessa, decreto e obra em andamento. A expressão rêqām (“vazio”, “em vão”, “sem efeito”) intensifica, por contraste, a ideia de eficácia: a palavra divina nunca volta “ociosa”, sem ter deixado rastro de juízo ou graça. Os verbos principais aprofundam esse campo: ʿāśāh (“fazer”, “realizar”, “executar”) aponta para a concretização de um plano, desde o uso cotidiano (“fazer um trabalho”) até a execução de desígnios divinos; ḥāp̄ēṣ (“ter prazer”, “deleitar-se”, “querer”) colore a ação de Deus com desejo e beneplácito, não mero determinismo frio; hiṣlîaḥ (Hifil de ṣālaḥ, “fazer prosperar”, “fazer avançar com sucesso”) descreve a palavra como força que abre caminho e conduz ao êxito do propósito de Deus; e šālaḥ (“enviar”, “despachar”) insere uma dimensão missionária: a palavra é enviada com destino preciso e não erra o endereço. Na tradução grega da LXX, dābār é vertido por rhēma (“palavra proferida, dito”), e o verbo correspondente a hiṣlîaḥ é euodoō (“fazer prosperar, fazer avançar no caminho”), reforçando a imagem de um discurso divino que abre veredas na história.
No plano morfológico, kēn é advérbio que introduz a comparação com o versículo anterior: “assim, da mesma maneira” como a chuva e a neve não voltam ao céu sem regar a terra (Is 55:10), “assim” será a palavra. Yihyeh é Qal imperfeito, 3ª pessoa masc. sing., de hāyâ (“ser”, “tornar-se”), funcionando como núcleo verbal da oração principal, com valor de futuro certo (“será”, “há de ser”), e tendo como sujeito dĕvarî. Dĕvarî é substantivo masc. sing. em construto com sufixo de 1ª pessoa comum sing. (“minha palavra”), funcionando como sujeito gramatical, qualificado pela oração relativa seguinte. ʾĂšer é pronome relativo que introduz a oração “que sai da minha boca” e tem função de conector que retoma dĕvarî. Yēṣēʾ é Qal imperfeito, 3ª masc. sing., de yāṣāʾ (“sair”, “ir para fora”), aqui com aspecto durativo/gnómico — é característico da palavra divina “sair” constantemente da boca do Senhor em forma de promessa, ordenança e anúncio; o sujeito implícito continua sendo “palavra”. Mippî combina a preposição min (“de”, “a partir de”) com o substantivo pe (“boca”) e sufixo de 1ª sing., formando “da minha boca”, complemento de origem do verbo yēṣēʾ.
A segunda parte do versículo traz a negação enfática: lōʾ-yāšûb ʾēlay rêqām. Lōʾ é advérbio de negação absoluta; yāšûb é Qal imperfeito, 3ª masc. sing., de šûb (“voltar”, “retornar”), com sujeito ainda “palavra”, e exprime uma ação futura/gnómica — “não voltará”. ʾĒlay une a preposição ʾel (“para”, “em direção a”) a sufixo de 1ª sing., compondo “para mim”, complemento indireto (dativo de alvo). Rêqām funciona aqui como advérbio/predicativo de retorno (“vazia”, “em vão”), qualificando o modo como a palavra poderia voltar: semanticamente, faz as vezes de predicativo do sujeito tácito (“não voltará para mim em estado de vazio”). Na sequência, a construção kî ʾim (“mas, senão”) introduz oposição enfática: não é isso que acontecerá, “mas” outra coisa. ʿĀśāh é Qal perfeito, 3ª masc. sing., indicando ação completiva vista como certa (“terá feito, realizará”), com a palavra como sujeito, e com objeto direto marcado por ʾet: ʾet-ʾăšer ḥāp̄aṣtî (“aquilo que eu desejei”). Ḥāp̄aṣtî é Qal perfeito, 1ª sing., de ḥāp̄ēṣ, com Deus como sujeito (“eu desejei”, “tenho prazer”), determinando a natureza do propósito que a palavra executa: aquilo que está em harmonia com o beneplácito divino.
Em “wĕhiṣlîaḥ ʾăšer šĕlaḥtîw”, wĕ é conjunção coordenativa simples (“e”), ligando este segundo resultado ao primeiro (“realizará” / “prosperará”); hiṣlîaḥ é Hifil consecutivo-perfeito, 3ª masc. sing., de ṣālaḥ: o Hifil confere nuance causativa, “fará prosperar, fará avançar com sucesso”, ainda com a palavra como sujeito. ʾĂšer reabre uma oração relativa, agora com valor final/resultativo (“naquilo para o qual”), e šĕlaḥtîw é Qal perfeito, 1ª sing., com sufixo de 3ª masc. sing. (“eu o enviei”), em que o objeto pronominal retoma “palavra”. Sintaticamente, temos uma oração principal verbal (“assim será a minha palavra”), uma relativa especificadora (“que sai da minha boca”), uma oração negativa coordenada (“não voltará para mim vazia”) e duas orações resultativas introduzidas por kî ʾim e wĕ (“mas fará… e fará prosperar…”), ambas com relativo que esclarece o âmbito de eficácia: “aquilo que eu desejo”, “aquilo para o qual eu a enviei”.
Na comparação das versões, a KJV verte: “So shall my word be that goeth forth out of my mouth: it shall not return unto me void” (“Assim será a minha palavra que sai da minha boca: não retornará a mim vazia”), preservando o paralelismo e a metáfora da palavra como emissária eficaz. A YLT reforça a nuance gnómica: “So is My word that goeth out of My mouth, It turneth not back unto Me empty, But hath done that which I desired, And prosperously effected that for which I sent it”, acentuando a anterioridade certa do resultado (“hath done”, “prosperously effected”). Em português, a NVI diz: “assim também ocorre com a palavra que sai da minha boca: ela não voltará para mim vazia, mas fará o que desejo e atingirá o propósito para o qual a enviei”, sublinhando o teleos (“propósito”) que a palavra atinge. A NVT expande a imagem agrícola latente desde o versículo anterior: “O mesmo acontece à minha palavra: eu a envio, e ela sempre produz frutos. Ela fará o que desejo e prosperará aonde quer que eu a enviar”, trazendo à superfície a ideia de “frutos” que está implícita no paralelismo com a chuva que dá “semente ao semeador e pão ao que come” (Is 55:10). A ACF/JFRC mantém a cadência tradicional: “assim será a minha palavra, que sair da minha boca; ela não voltará para mim vazia, antes fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a enviei”, em harmonia estreita com o hebraico.
A LXX oferece um matiz interessante: houtōs estai to rhēma mou ho ean exelthē ek tou stomatos mou; ou mē apostraphē heōs an syntelesthē hosa ēthelēsa, kai euodōsō tas hodous sou kai ta entalmata mou — “assim será a minha palavra que sair da minha boca; de modo nenhum voltará atrás até que se cumpra o que eu quis, e farei prosperar os teus caminhos e os meus mandamentos”. Além de reforçar, com ou mē apostraphē, a impossibilidade absoluta de retorno vazio, o tradutor grego introduz a fórmula “os teus caminhos e os meus mandamentos”, que não está no texto massorético, provavelmente por influência de temas sapienciais e deuteronomistas onde “caminhos” e “mandamentos” são o campo natural em que a palavra de Deus produz prosperidade (cf. Deuteronômio 8:6–8; Salmos 1:2–3). Isso mostra que, já no judaísmo helenista, o versículo era lido em chave de Torá eficaz, não apenas de oráculo isolado.
No horizonte bíblico mais amplo, Isaías 55:11 retoma o padrão de Gênesis 1, em que o cosmos nasce de um fiat divino: “Disse Deus: Haja luz; e houve luz” (Gn 1:3, ARA). Em Salmos 33, a mesma lógica é condensada em forma poética: “Os céus por sua palavra se fizeram, e, pelo sopro de sua boca, o exército deles” (Sl 33:6), e logo adiante: “Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo passou a existir” (Sl 33:9). Aquele que cria pela palavra é o mesmo que, em Jeremias 1:12, declara: “eu velo sobre a minha palavra para a cumprir”, ligando a fidelidade do Deus da aliança à eficácia do que é prometido. No Novo Testamento, Hebreus 4:12 retoma essa intuição sob a forma de uma cristologia da Palavra: “Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes” — não apenas informativa, mas incisiva, julgando “pensamentos e propósitos do coração”.
O versículo é um antídoto contra qualquer visão de Deus como mero comentarista distante dos acontecimentos. A palavra que sai da “boca” do Senhor não é opinião, é agente. Quando Ele convoca os sedentos às águas (Is 55:1), promete deleite verdadeiro (55:2) e oferece “aliança eterna” com base nas misericórdias concedidas a Davi (55:3), essas declarações não são slogans piedosos: são sementes que, como a chuva, descem, infiltram-se na história e, no tempo oportuno, brotam em salvação, juízo e restauração. A imagem da palavra que “não volta vazia” também adverte: se a palavra de graça é rejeitada, ela não volta sem efeito, porque sua recusa se converte em juízo (cf. João 12:48, onde Jesus diz que a palavra por Ele proferida julgará no último dia). E, em perspectiva cristológica, o Verbo encarnado é a personalização máxima dessa dinâmica: enviado ao mundo (šĕlaḥtîw ecoa, em chave sapiencial, a linguagem de envio), Ele “sempre produz frutos” (NVT) e “prospera” na missão para a qual o Pai o designou (cf. João 6:37–39). Na vida prática, isso significa que cada promessa de perdão, de presença e de juízo, uma vez proferida por Deus, entra em órbita como chuva certeira; pode demorar aos nossos relógios, mas nunca regressa ao céu como nuvem estérea — volta como colheita, ora de consolação, ora de correção, sempre de fidelidade.
Isaías 55:12
Vocês sairão com alegria e em paz serão conduzidos; os montes e as colinas irromperão em cânticos diante de vocês, e todas as árvores do campo baterão palmas. (Hb.: kî bĕśimḥāh tēṣēʾû ûḇĕšālôm tûbālûn hehārîm wĕhagĕḇāʿôt yip̄ṣĕḥû lip̄nêḵem rinnāh wĕkāl-ʿăṣê haśśādeh yimḥăʾû-kāf — “porque com alegria saireis e com paz sereis conduzidos; os montes e as colinas romperão diante de vós em canto jubiloso, e todas as árvores do campo baterão palmas”). O texto massorético, atestado em edições como Westminster Leningrad Codex e no Tanakh on-line de Chabad, organiza o versículo em três cola paralelos. No plano etimológico, o núcleo semântico abre com śimḥāh (“alegria”) — substantivo feminino singular, de raiz שׂמח, que em BDB se associa a júbilo festivo, muitas vezes ligado a libertação e culto (por exemplo, festas e peregrinações); e com šālôm (“paz”), substantivo masculino singular da raiz שלם, cujo campo semântico ultrapassa a mera ausência de conflito, abrangendo integridade, bem-estar, harmonia restaurada entre Deus, seu povo e a criação. O verbo yāṣāʾ (“sair”) sustenta a imagética do êxodo renovado, enquanto yāḇal (“conduzir, levar, guiar”) descreve a ação divina que toma o povo pela mão e o leva de volta, como um pastor conduz o rebanho. Na segunda metade, a raiz פצח, em pāṣaḥ (“irromper, romper em canto”), é usada para descrever o “estalar” do louvor, e rinnāh (“canto, grito de júbilo”) designa o som exuberante dessa explosão de alegria; por fim, māḥāʾ em yimḥăʾû (“bater, golpear”) pintará as árvores “batendo palmas”, enquanto kāf (“palma da mão”) torna a metáfora corporal e quase visível.
A morfologia do versículo conduz essa música das palavras. O conector inicial kî funciona como conjunção causal (“pois, porque”), ligando o quadro de alegria à promessa precedente (vv. 10–11). A locução bĕśimḥāh representa a preposição bĕ (“em, com”) seguida do substantivo feminino singular absoluto śimḥāh (“alegria”), funcionando como adjunto adverbial de modo (“com alegria”). O verbo tēṣēʾû é Qal imperfeito, 2ª pessoa masc. plural, sem sufixo, de yāṣāʾ; o aspecto imperfectivo projeta uma ação futura (“vocês sairão”), e o sujeito é o “vocês” implícito na forma verbal. Em seguida, ûḇĕšālôm (“e com paz”) combina a conjunção û (“e”) com a preposição bĕ e o substantivo masculino singular šālôm; também aqui temos um adjunto adverbial de modo, em paralelismo com bĕśimḥāh. A forma tûbālûn é Hophal imperfeito, 2ª masc. plural, com nun paragógica, da raiz yāḇal (“conduzir”), exprimindo passividade: “vocês serão conduzidos”, ou “serão levados em paz”, com o sujeito novamente implícito na desinência de 2ª plural.
O sintagma hehārîm wĕhagĕḇāʿôt (“os montes e as colinas”) traz artigo definido em ambos os substantivos — hār (“monte”, masc. plural) e gĕḇāʿâ (“colina”, fem. plural) — formando um sujeito composto, ao qual se liga o verbo yip̄ṣĕḥû (Qal imperfeito, 3ª masc. plural, de פצח), que funciona como núcleo predicativo (“romperão, irromperão”), com aspecto novamente imperfectivo de futuro. O complemento lip̄nêḵem é construído a partir de lĕ + pānîm (“faces”) na forma construta pĕnê, mais o sufixo de 2ª masc. plural -ḵem, resultando em “diante de vós”; sintaticamente, trata-se de locução adverbial de lugar, indicando o cenário em que o louvor irrompe. O substantivo rinnāh (“canto jubilos[o]”, fem. singular absoluto) funciona como acusativo de resultado ou de conteúdo: os montes “irrompem em canto”, e o que se ouve é essa rinnāh.
Na terceira cola, wĕkāl-ʿăṣê haśśādeh combina a conjunção wĕ com o quantificador kāl (“todo”) e o substantivo plural construto ʿăṣê (“árvores de”), ligado a haśśādeh (“o campo”, masc. singular com artigo), formando o sujeito “todas as árvores do campo”; o verbo yimḥăʾû é Qal imperfeito, 3ª masc. plural, de māḥāʾ (“bater, golpear”), com aspecto de ação iterativa ou pictórica no futuro (“baterão”), e kāf (“palma (da mão)”, fem. singular absoluta) é o objeto direto, figurativamente a palma que se entrechoca em aplauso. O versículo, portanto, não apresenta predicação nominal nem cópula elíptica; são três cláusulas verbais coordenadas sob a conjunção causal kî, com paralelismo bem marcado: “sair em alegria” ↔ “ser conduzido em paz” e “montes e colinas cantam” ↔ “árvores batem palmas”.
Na comparação de versões, a Young’s Literal Translation verte: “For with joy ye go forth, And with peace ye are brought in, The mountains and the hills Break forth before you with singing, And all trees of the field clap the hand.” Aqui se nota a escolha por “ye are brought in” (“sois introduzidos”), que enfatiza a direção de retorno para dentro da terra, e o paralelismo “go forth”/“are brought in” ajuda a visualizar o êxodo e o reingresso na terra prometida como um único movimento de libertação. A NVI diz: “Vocês sairão em júbilo e serão conduzidos em paz; os montes e as colinas irromperão em gritos de alegria diante de vocês, e todas as árvores do campo baterão palmas.”; esse “sair em júbilo” capta bem bĕśimḥāh, e “serão conduzidos em paz” faz justiça ao Hophal de yāḇal, evitando uma formulação vaga como “ser recebidos”. Na LXX, o versículo é expandido em termos ligeiramente distintos: “ἐν γὰρ εὐφροσύνῃ ἐξελεύσεσθε καὶ ἐν χαρᾷ διδαχθήσεσθε· τὰ γὰρ ὄρη καὶ οἱ βουνοὶ ἐξαλοῦνται προσδεχόμενοι ὑμᾶς ἐν χαρᾷ, καὶ πάντα τὰ ξύλα τοῦ ἀγροῦ ἐπικροτήσει τοῖς κλάδοις”: ela interpreta o segundo verbo não como “ser conduzidos”, mas como “sereis ensinados com alegria” (didachthēsesthe), deslocando o foco para a dimensão didática da salvação — o povo libertado é, ao mesmo tempo, um povo discipulado. As imagens cósmicas se mantêm: “montes e colinas” (ta orē kai hoi bounoi) “saltam” (exalountai) e “todas as árvores do campo baterão (as mãos) com os ramos” (epikrotēsei tois kladois), reforçando a personificação da criação.
Isaías 55:12 é o desfecho melodioso da promessa da eficácia da palavra de Deus (vv. 10–11): porque a palavra que sai da boca do Senhor não volta vazia, a saída do exílio não será uma fuga ansiosa, mas uma procissão de alegria e paz. A dupla śimḥāh (“alegria”) e šālôm (“paz”) não descreve apenas estados emocionais; ela desenha uma experiência total de redenção em que a libertação exterior (o “sair”) e a condução interior (o “ser guiado”) se entrelaçam. A forma passiva tûbālûn o sublinha: o povo não se auto-liberta; é conduzido, levado pela mão de Deus, como já se insinuava em outras passagens de retorno, como Isaías 35:10 e 51:11, em que os resgatados do Senhor voltam a Sião “com cânticos” e “alegria eterna sobre suas cabeças”. Aqui, porém, a cena se alarga: a natureza inteira parece entrar na liturgia do retorno. “Montes e colinas” — símbolos bíblicos recorrentes de estabilidade, mas também de lugares altos idolátricos — agora irrompem em cânticos diante do povo restaurado; e “todas as árvores do campo batem palmas”, como se a criação, antes gemendo sob a tirania do pecado (tema que Paulo retomará em Romanos 8:19–22), batesse palmas ao ver os filhos de Deus finalmente conduzidos à liberdade.
O hebraico realça o contraste: aquilo que era cenário mudo da história humana torna-se coro e plateia jubilosa; o universo inteiro se converte em anfiteatro do evangelho pré-anunciado. Para o leitor cristão, a lógica prática desse versículo é dupla. De um lado, ele lê o retorno de Babilônia como tipo da salvação em Cristo: sair “com alegria” de uma escravidão que não se podia romper sozinho, ser “conduzido em paz” pelo Pastor que vai adiante, encontrar na própria criação — céu, terra, árvores, montes — sinais sacramentais da alegria de Deus. De outro, ele é convidado a entender a vida cristã como peregrinação sob essa mesma promessa: cada êxodo pessoal — libertação de pecados antigos, de vícios arraigados, de cativeiros interiores — não é apenas uma mudança de endereço moral, mas uma caminhada em que a palavra eficaz de Deus o toma pela mão, o faz sair, o conduz, o cerca de sinais de alegria e o insere numa comunhão em que até as coisas mais simples (uma árvore, uma colina, um pedaço de céu) podem tornar-se palmas, coro e trilha sonora da graça. Pequena nota de tradução: em vez de “com paz são recebidos”, a forma verbal tûbālûn (Hophal imperfeito, 2ª masc. pl.) aponta especificamente para a ideia de “ser conduzido”, razão pela qual optei por “em paz serão conduzidos”, em maior aderência à voz passiva e ao uso de yāḇal no hebraico.
Isaías 55:13
Em lugar do espinheiro crescerá o cipreste, e em lugar da sarça crescerá a murta; e será isto glória para o SENHOR e memorial eterno, que jamais será extinto. (Hb.: taḥat hannaʿăṣûṣ yaʿăleh berosh, wĕtaḥat hassirpād yaʿăleh hadas; wĕhāyāh laYHWH lĕšēm lĕʾot ʿolam lo yikkāret — “Em lugar do espinheiro subirá o cipreste, e em lugar do abrolho subirá a murta; e será isto para o SENHOR por nome, por sinal eterno, que não será cortado.”) Do ponto de vista etimológico, o versículo é tecido com vocábulos que nascem do chão áspero do deserto e se elevam até a promessa de um jardim restaurado. Naʿăṣûṣ (“espinheiro”) provém de uma família semântica ligada à ideia de espinho que fere e incomoda; Strong H5285 o define como um arbusto espinhoso, termo raro, usado para designar vegetação hostil que ocupa o lugar onde deveria haver cultivo frutífero. Em contraste, berosh (“cipreste/pinheiro”) é um conífero nobre, associado a madeira de construção valiosa e a plantios majestosos, como em Isaías 41:19, onde o cipreste aparece entre as árvores que Deus planta no deserto. Sirpād (“abrolho/urtiga”), de campo semântico próximo ao de plantas urticantes ou cheias de espinho, acentua a imagem da terra amaldiçoada, enquanto hadas (“murta”) [Strong H1918] é um arbusto aromático ligado a festa, alegria e restauração, como em Neemias 8:15. Na cláusula final, šēm (“nome”, šēm — “nome”, “renome”) não é apenas rótulo, mas reputação e memorial, um nome que permanece na memória da comunidade, como mostram os léxicos para H8034, enquanto ʾot (“sinal”) designa sinal, marca ou monumento que aponta para uma realidade maior, termo recorrente para sinais de aliança, prodígios e marcas visíveis da ação de Deus. A palavra ʿolam (ʿolam — “eternidade”, “perpetuidade”) acrescenta a dimensão temporal: trata-se de um sinal que atravessa as eras, não um brilho efêmero. Por fim, o verbo ligado à raiz kārat (kārat — “cortar”, “extirpar”) em lo yikkāret (“não será cortado”) ecoa todo um campo semântico de “ser cortado/elimando”, muitas vezes associado a juízo e exclusão da aliança, de acordo com o levantamento de H3772. O quadro lexical é, portanto, o de uma reversão: o vocabulário do espinho e do corte cede lugar ao vocabulário da árvore perene, do nome e do sinal que permanecem.)
A primeira metade do versículo é organizada em duas cláusulas paralelas quase idênticas. Em taḥat hannaʿăṣûṣ yaʿăleh berosh, taḥat (“em lugar de”) funciona como preposição simples, introduzindo o complemento de substituição “o espinheiro”; hannaʿăṣûṣ (“espinheiro”) é substantivo masculino singular absoluto com artigo definido, objeto da preposição, marcando o elemento substituído. O verbo yaʿăleh (“subir”, “brotar”) é Qal imperfeito, 3ª pessoa masculina singular, sem sufixos, com valor futurativo (“subirá”, “surgirá”), e tem como sujeito posposto berosh (berosh — “cipreste/pinheiro”), substantivo masculino singular absoluto, sem artigo, funcionando como sujeito gramatical da ação verbal, conforme o parse interlinear de Isaías 55:13. Na segunda cláusula, wĕtaḥat hassirpād yaʿăleh hadas, wĕ- é conjunção coordenativa (“e”), agregada a taḥat, repetindo a preposição em construção idêntica; hassirpād (“abrolho/urtiga”) é substantivo masculino singular com artigo, de novo objeto da preposição; yaʿăleh mantém a mesma forma verbal Qal imperfeito 3ª masc. sing.; e hadas (“murta”) é substantivo masculino singular absoluto, sujeito do verbo. A cadência morfológica é marcada: preposição + SN com artigo (aquilo que será removido), verbo Qal imperfeito, SN sem artigo (aquilo que brota em seu lugar.)
A cláusula final complexa, wĕhāyāh laYHWH lĕšēm lĕʾot ʿolam lo yikkāret, começa com wĕhāyāh (hāyāh — “ser”, “tornar-se”), forma Qal perfeito 3ª masc. sing. com waw conversivo, projetando o perfeito em valor futuro (“e será”), e tomando por sujeito implícito todo o evento descrito: a transformação do espinheiro em cipreste e do abrolho em murta. O grupo preposicional laYHWH (YHWH — “SENHOR”) é dativo de vantagem (“para o SENHOR”), indicando a quem pertence o benefício e a glória dessa transformação. Seguem-se duas expressões preposicionais paralelas, lĕšēm (šēm — “nome”, “renome”) e lĕʾot ʿolam (“sinal eterno”), ambas em função de predicativo do sujeito, especificando em que sentido esse acontecimento “será” algo para o SENHOR: será para Ele um Nome (um título de honra, uma fama de restaurador) e será um sinal permanente. ʿolam (“eterno”, “perpétuo”), substantivo masculino singular em aposto/estado de genitivo sem marca, restringe ʾot (“sinal”), qualificando a duração do sinal. A oração final lo yikkāret apresenta lo (“não”) como partícula negativa e yikkāret (kārat — “cortar”, “ser cortado”) como Nifal imperfeito 3ª pessoa masculina singular, sem sufixo, com valor passivo (“não será cortado/ extinto”), retomando como sujeito, por elipse, esse “sinal eterno”: o sinal não será arrancado, não será destruído.
Isaías 55:13 compõe um paralelismo emblemático: duas linhas que expressam a substituição de vegetação maldita por árvores nobres e, depois, uma linha que interpreta teologicamente esse quadro. As duas primeiras cláusulas apresentam fronting do sintagma preposicional taḥat + SN, com a sequência “em lugar de X subirá Y”, de modo que o foco recai na substituição: é “em lugar do espinheiro” que algo novo se levanta. O verbo em cada cola, yaʿăleh, é o mesmo, o que reforça a estruturação em paralelismo sinonímico: o espinheiro dá lugar ao cipreste, o abrolho dá lugar à murta. A terceira parte, introduzida por wĕhāyāh, é uma oração verbal que, no entanto, desempenha função quase nominal: ela não descreve uma ação adicional da paisagem, mas atribui um valor a tudo o que foi descrito — será “para o SENHOR” um nome e um sinal. A oração final “que não será cortado” funciona como oração relativa reduzida, mesmo sem o pronome relativo expresso, restringindo o “sinal eterno”: é eterno precisamente porque não pode ser arrancado ou interrompido. A sintaxe espelha, assim, o caminho da maldição à memória: da descrição concreta do campo à declaração abstrata de um nome e de um sinal que perduram.
Nas versões, essa arquitetura se deixa ver em diferentes escolhas lexicais. A King James Version verte: “Instead of the thorn shall come up the fir tree, and instead of the brier shall come up the myrtle: and it shall be to the LORD for a name, for an everlasting sign that shall not be cut off…”, sublinhando “fir tree” (“árvore de abeto/pinheiro”) e “everlasting sign that shall not be cut off” (“sinal eterno que não será cortado”). A New International Version em inglês diz: “Instead of the thornbush will grow the juniper, and instead of briers the myrtle will grow. This will be for the LORD’s renown, for an everlasting sign, that will endure forever.” Nessa escolha, “juniper” colore berosh como zimbro e a cláusula final interpreta lo yikkāret com “that will endure forever” (“que perdurará para sempre”), enfatizando a permanência mais do que a imagem do corte. Entre as versões em português, a Almeida Revista e Atualizada traz: “Em lugar do espinheiro, crescerá o cipreste, e em lugar da sarça crescerá a murta; e será isto glória para o SENHOR e memorial eterno, que jamais será extinto.” A NVI em português lê: “No lugar do espinheiro crescerá o pinheiro, e em vez de roseiras bravas crescerá a murta. Isso resultará em renome para o SENHOR, para sinal eterno, que não será destruído.” Em ambas, “cipreste/pinheiro” tenta captar o valor de berosh, e “memorial eterno / renome… sinal eterno” traduzem o binômio šēm + ʾot ʿolam. (Por restrições de direitos autorais, as citações de versões modernas são apresentadas de forma parcial; o texto integral pode ser conferido nos links indicados.)
A Septuaginta reforça e, ao mesmo tempo, interpreta o hebraico com certa liberdade: “kai anti tēs stoibēs anabēsetai kyparissos, anti de tēs konyzēs anabēsetai myrsinē, kai estai kyrios eis onoma kai eis sēmeion aiōnion, kai ouk ekleipsei.” Em transliteração, (“e, em vez da pilha de mato seco, subirá o cipreste, e, em vez da erva daninha, subirá a murta; e o Senhor será por nome e por sinal eterno, e não desaparecerá”). O grego escolhe kyparissos (“cipreste”) e myrsinē (“murta”), em consonância com berosh e hadas, mas traduz o espinheiro e o abrolho com termos que sugerem mato seco/erva daninha (stoibē, konyzē). Ao final, troca o “sinal que não será cortado” por “sinal eterno, e não desaparecerá” (ouk ekleipsei), deslocando a imagem do “corte” para a do “desaparecer/falhar”, mas mantendo a ideia de irrevogabilidade. A LXX, assim, confirma a leitura de uma transformação botânica concreta e, ao mesmo tempo, projeta o versículo numa chave de liturgia e memória: Deus mesmo se torna “nome” e “sinal eterno” na história.
Isaías 55:13 é, dentro do capítulo, o fecho visual de uma sinfonia de promessa. O contexto imediato, em Isaías 55:10-11, fala da palavra de Deus que desce como chuva e neve, rega a terra, faz produzir e brotar, dando semente ao semeador e pão ao que come; essa mesma palavra não volta vazia, mas realiza o propósito do Senhor. Em seguida, Isaías 55:12 descreve o êxodo escatológico do povo com alegria e paz, montes e colinas cantando, árvores batendo palmas. Nosso versículo recolhe todas essas imagens e as condensa em um quadro de reversão da maldição: espinheiros e abrolhos, que evocam Gênesis 3:18 (“espinhos e abrolhos” que a terra faz brotar após o pecado), cedem lugar a ciprestes e murtas, árvores que evocam sombra, beleza, madeira útil, perfume. Em termos teológicos, é como se o profeta dissesse: onde o pecado fez nascer a esterilidade, a palavra eficaz de Deus faz nascer uma nova criação; onde a terra gerava dor, agora produzirá jardim. O “nome” e o “sinal eterno” indicam que essa transformação não é apenas agrária, mas simbólica: ela marca, para sempre, quem é o Deus que fala e cumpre, o Deus cuja palavra cria realidades novas.
Na lógica prática do versículo, o texto se torna um espelho para a vida do leitor. Cada “espinheiro” — estruturas de pecado, dureza de coração, injustiças sociais — é algo que, pela ação da palavra de Deus, pode ser substituído por “cipreste” e “murta”: modos de vida que se tornam úteis, firmes, perfumados para o bem do próximo e para a glória do Senhor. A recorrência de taḥat (“em lugar de”) funciona como martelo poético: Deus não apenas arranca o mal, Ele o substitui por um bem superior. E como o sinal é “eterno” e “não será cortado”, o horizonte não é apenas a restauração momentânea de Judá pós-exílio, mas o arco longo de uma redenção que culmina na nova criação, onde não haverá mais maldição (Apocalipse 22:3). Cada vez que a graça transforma um coração endurecido em vida frutífera, um “cipreste” se ergue onde havia “espinheiro”, e o nome de Deus é escrito de novo na paisagem do mundo como um sinal que não se apaga. Assim, Isaías 55:13 nos convoca a crer que a palavra do Senhor não apenas informa, mas reforma; não apenas instrui, mas faz brotar — até que o campo inteiro da existência seja replantado com árvores de justiça.
Devocional de Isaías 55
Isaías 55 é como uma estrada aberta no meio do deserto, onde uma voz divina chama os sedentos para um banquete sem preço, convida pecadores a deixarem seus caminhos tortos, revela pensamentos tão altos quanto os céus e promete uma palavra que desce como chuva e nunca volta de mãos vazias, até transformar espinheiros em jardins e exílios em procissões de alegria; ao percorrermos devocionalmente este capítulo, descobrimos não apenas doutrina, mas um mapa vivo de relacionamento com Deus que toca a alma de filhos, pais, pregadores e cidadãos, ensinando-nos a aproximar-nos do Senhor com sede humilde, a alinhar decisões e afetos à vontade dele, a semear justiça no cotidiano e a caminhar na esperança de uma vida tão restaurada que até a criação à nossa volta pareça aplaudir a fidelidade daquele que falou, cumpriu e nos conduziu em paz.
A. Um Deus que chama os sedentos (Isaías 55:1–3)
Isaías 55 começa com um clamor que parece encher o ar do deserto: “Ó, todos vocês que têm sede, venham às águas…”. A cena é de gente cansada, com a garganta seca e as mãos vazias, ouvindo uma voz que oferece água, leite e vinho, sem dinheiro e sem preço. O coração do capítulo está aqui: o relacionamento com Deus não começa numa mesa de negócios, mas numa fonte de graça. Deus não pede que o homem traga méritos, currículo ou moedas; pede apenas que traga sede. Gente que reconhece a própria falta é justamente quem está mais perto da porta do Reino.
Devocionalmente, isso confronta nossa maneira de nos aproximarmos de Deus. Quantas vezes você se achega à oração como alguém que precisa provar que merece ser ouvido, e não como um sedento que precisa apenas abrir a boca? Jesus ecoa esse convite quando diz: “Venham a mim todos vocês que estão cansados e sobrecarregados” (Mateus 11; João 7). Para um pai ou mãe, Isaías 55 ensina que o maior legado não é encher a vida dos filhos de coisas, mas ensiná-los a reconhecer a própria sede. É melhor que uma criança aprenda cedo a dizer “eu preciso de Deus” do que cresça pensando que é autossuficiente. Para um pregador, o texto corrige a tentação de transformar o evangelho em barganha: não se anuncia um mercado espiritual, anuncia-se um banquete gratuito. Para um filho, esse convite rasga o medo: o Pai fala com voz de anfitrião, não de cobrador. No plano moral, o princípio é claro: toda vida saudável com Deus nasce de humildade, não de performance; de fome e sede de justiça (Mateus 5), não de fachada religiosa.
B. Deixar caminhos e pensamentos (Isaías 55:6–7)
Depois do convite, vem o chamado à decisão: “Buscai o Senhor enquanto se pode achar… Deixe o ímpio o seu caminho, e o homem maligno os seus pensamentos; converta-se ao Senhor, que se compadecerá dele…”. O texto toca numa linha muito delicada: Deus não apenas oferece descanso, Ele exige mudança. Caminhos e pensamentos não são detalhes: são trilhas e mapas da alma. Mudar de caminho é mudar de direção concreta; mudar de pensamentos é trocar o mapa interior que justifica certas escolhas. Não basta “gostar de Deus”; é preciso abandonar veredas tortas e raciocínios que defendem o pecado.
Para quem é genitor, Isaías 55 oferece uma pedagogia da sinceridade. Ser pai ou mãe à luz desse texto é, antes de mandar os filhos se arrependerem, mostrar-lhes como se arrepende. Filhos observam mais o caminho dos pais do que os discursos dos pais. Quando uma criança vê um pai pedir perdão, vê um adulto admitir que havia pensamentos e caminhos que precisavam ser deixados, ela aprende que arrependimento não é humilhação estéril, mas passagem para uma vida mais limpa. Para um pregador, esse trecho impede uma mensagem mutilada: não há evangelho cheio da misericórdia de Isaías 55:7 sem o apelo corajoso de “deixar o caminho” e “abandonar pensamentos”. No dia a dia, para quem quer ser um bom cidadão ou profissional, esse trecho lembra que ética não é verniz: é trilha. O discípulo de Cristo é chamado a recusar caminhos de corrupção, mentira, injustiça, mesmo que pareçam mais curtos; e a expor ao Senhor pensamentos de rancor, vingança, orgulho, para que sejam substituídos pelos pensamentos do Reino (Romanos 12:2; Efésios 4).
C. Entre os pensamentos de Deus e os nossos (Isaías 55:8–9)
“Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos… Assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos…” Essas frases descansam como dois céus sobre Isaías 55. Deus não está apenas um pouco acima de nós; Ele está tão acima quanto o firmamento está do chão. E ainda assim, é justamente esse Deus infinitamente acima que se inclina para conversar com o homem.
Devocionalmente, isso nos livra de duas distorções. De um lado, nos livra da presunção: não temos autorização para domesticar Deus aos nossos critérios. Quando algo na Palavra nos confronta, não é Deus que precisa se “atualizar”, somos nós que precisamos aprender a pensar com Ele. De outro lado, nos livra do desespero: se os caminhos de Deus são mais altos, então Ele enxerga curvas que nossa vista curta não alcança. Há lágrimas que Ele permite hoje para colher frutos que só veremos amanhã. Para pais e mães, esse texto é consolo e correção: muitas vezes, o “não” que damos ao filho, inspirado pelo temor do Senhor, parece duro no momento, mas faz parte de um caminho mais alto. Para pregadores, é um lembrete de humildade: não se prega para impressionar Deus com nossa teologia, mas para ajoelhar o coração da igreja diante dos pensamentos de Deus — que muitas vezes contradizem a lógica do mundo (1 Coríntios 1–2). Para um filho que tenta obedecer a Deus na juventude, essa diferença entre céus e terra é estímulo: não é perda viver contra a maré; é alinhar-se com uma sabedoria que vem de cima (Tiago 3).
D. A Palavra que desce como chuva (Isaías 55:10–11)
Quando Isaías compara a Palavra de Deus à chuva e à neve que descem, regam a terra, fazem brotar e não voltam vazias, ele está descrevendo um ciclo invisível e infalível. A chuva cai em silêncio, às vezes na madrugada, e, sem que a gente perceba, a semente escondida começa a inchar, romper, nascer. Assim também a Palavra: ela desce do céu, cai em ouvidos distraídos, pousa em corações rachados, mas não volta para Deus de mãos vazias. Sempre realiza algo: conforta, disciplina, salva, endurece, consola, julga.
Na vida devocional, isso é puro consolo. Quantas vezes você lê a Bíblia cansado, ora com pouco ânimo, ouve um sermão e sai achando que “não aproveitou nada”? O texto diz que, mesmo quando você não sente, a Palavra está trabalhando debaixo da superfície, como água descendo para as raízes. Ela pode estar amolecendo um trauma antigo, corroendo um ídolo, abrindo espaço para um perdão que ainda parece impossível. No Antigo Testamento, o Salmo 1 fala do justo como árvore plantada junto às águas; no Novo Testamento, Jesus descreve a Palavra como semente lançada em solos diferentes (Mateus 13). Isaías 55 reúne essas imagens e acrescenta: essa semente, regada pela própria voz de Deus, não fracassa.
Para pais, isso é ânimo para as pequenas fidelidades: ler um salmo com os filhos antes de dormir, orar com eles pela manhã, repetir promessas da Escritura na mesa. Talvez eles pareçam distraídos, mas a Palavra está descendo. Para pregadores, corrige a ansiedade por resultados imediatos: a eficácia do evangelho não depende do brilho da retórica, mas do próprio Deus que envia sua Palavra. O pregador é apenas a nuvem; a chuva é de Deus. Para o cidadão que tenta agir de modo justo, a Palavra é a referência que continuamente molha a consciência e a impede de secar: textos proféticos contra a injustiça, sermão do monte, parábolas do Reino. Para um filho diante de decisões difíceis, a Palavra é a chuva que limpa o ar, clareia motivações, revela caminhos.
E. Alegria, paz e uma criação em festa (Isaías 55:12–13)
No fim do capítulo, o cenário muda de tom: o povo sai “com alegria” e é “conduzido em paz”; montes e colinas rompem em cânticos; árvores batem palmas; espinheiros dão lugar a ciprestes; abrolhos são substituídos por murtas. É uma procissão de retorno, mas também uma visão de nova criação. O que era deserto se torna jardim; aquilo que falava de maldição (espinhos) agora fala de beleza e utilidade.
Devocionalmente, isso desenha o horizonte da caminhada com Deus. Isaías 55 não promete uma vida sem dores, mas promete que o destino final da Palavra eficaz de Deus é festa. A graça não apenas tira o povo da Babilônia; conduz o povo a Sião com cantos. Para quem é pai ou mãe, isso abre uma perspectiva de esperança: educar os filhos na fé não é apenas protegê-los de perigos, é ensiná-los a caminhar rumo a uma alegria maior do que qualquer entretenimento imediato. O mundo oferece risos de momento; o Senhor promete uma alegria que faz até montes cantarem. Para pregadores, esses versículos lembram que o conteúdo último da mensagem não é culpa, mas libertação; não é apenas cruz, mas também ressurreição; não é só arrependimento, mas também “alegria indizível e cheia de glória” (1 Pedro 1).
No plano moral e social, o quadro da criação restaurada também fala de cidadania. O discípulo de Cristo é chamado a ser, nessa história, um “cipreste” onde havia espinheiro: alguém que, pela presença e prática do bem, torna o ambiente mais habitável. Em ambientes marcados por violência verbal, ele se torna sombra de mansidão; em espaços corrompidos por injustiça, torna-se árvore firme de integridade. A transformação do espinheiro em cipreste e do abrolho em murta antecipa aquilo que Paulo dirá em Romanos 8: a criação geme esperando a manifestação dos filhos de Deus. Cada gesto de reconciliação, cada ato de justiça, cada perdão concedido reescreve um pedaço de paisagem: onde havia espinhos de ressentimento, nasce murta de paz; onde havia abrolhos de egoísmo, surge cipreste de serviço.
Para o filho que quer honrar pai e mãe, Isaías 55 sugere que verdadeira honra não é só obediência externa, mas participar desse movimento de Deus: tornar-se, dentro de casa, um sinal da Palavra eficaz. Responder com mansidão em lugar de espinho; oferecer mão cheia de frutos em vez de palavras ásperas; ser o primeiro a pedir perdão. Para quem deseja se aproximar mais de Deus, o capítulo todo aponta um caminho: reconhecer a sede, ouvir o convite, deixar caminhos e pensamentos que se opõem à vontade de Deus, confiar que Seus planos são mais altos, expor-se diariamente à Palavra que desce, e caminhar com os olhos voltados para o dia em que até as árvores baterão palmas. Nesse itinerário, a vida — como um campo replantado — vai, pouco a pouco, deixando de ser só poeira e espinho, e passa a carregar, na própria paisagem, o Nome e o Sinal eterno de um Deus que fala, transforma e nunca volta atrás em sua promessa.
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GALVÃO, Eduardo. Isaías 55: Significado, Explicação e Devocional. In: Biblioteca Bíblica. [S. l.], 3 mar. 2015. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 3 dez. 2025].
