Patrística na Idade Média e Renascimento

Patrística na Idade Média e Renascimento

por Alister E. McGrath



O período patrístico concentrou-se em torno do mundo mediterrâneo e de centros de poder como Roma e Constantinopla. A queda de Roma, ocasionada pela ação de tropas invasoras vindas do norte, lançou o mundo mediterrâneo ocidental em um completo caos. A instabilidade estendeu-se por toda a região. Os historiadores ainda se referem ao período que vai da queda de Roma até cerca do ano 1000 como a “Idade das Trevas”, em uma indicação de que a cultura e o ensino eram relativamente difíceis de obter ao longo desses séculos de instabilidade e insegurança. Embora o debate teológico tenha prosseguido na igreja ocidental, ao longo desse período, enfrentava um contexto em que imperava uma mentalidade de sobrevivência. Havia um interesse relativamente reduzido em relação a esses debates teológicos. No mundo mediterrâneo oriental também surgiu uma certa instabilidade, à medida que o islamismo começou a difundir-se por toda a região. Apesar de o cristianismo jamais ter sido totalmente suplantado, muito cedo se encontrou em uma condição de minoria, em termos de religião. Ao longo desse período da história europeia, o centro do pensamento teológico cristão deslocou-se do mundo mediterrâneo para a Europa Ocidental. Em 410, Roma foi finalmente conquistada por Alarico, um acontecimento frequentemente considerado como o início da Idade das Trevas na Europa Ocidental. A expansão do islamismo pelo mundo mediterrâneo, no século VII, provocou uma instabilidade política generalizada e posteriores mudanças estruturais na região. Até o século XI, um certo grau de estabilidade havia se estabelecido nessa área, havendo surgido três grandes sistemas de poder em substituição ao antigo Império Romano. 

1 O Império Bizantino, cujo centro era a cidade de Constantinopla (hoje Istambul, na atual Turquia). A forma de cristianismo predominante nessa região baseava-se na língua grega e era profundamente ligada aos escritos dos estudiosos patrísticos da região do mediterrâneo oriental, como Atanásio, os capadócios e João de Damasco. Uma breve discussão sobre a teologia bizantina pode ser encontrada nas pp. 98-100. 

2 A Europa Ocidental, principalmente em regiões como a França, a Alemanha, os Países Baixos e o norte da Itália. A forma de cristianismo que veio a predominar nessa região tinha como centro a cidade de Roma e seu bispo era conhecido como “o Papa”. (Entretanto, no período conhecido como o “Grande Cisma”, surgiu uma certa confusão: havia dois adversários que disputavam o papado, um deles baseado em Roma e outro, na cidade de Avignon, no sul da França.) Aqui, a teologia concentrou-se na grande catedral e nas universidades de Paris e de outros locais, tendo como base, em grande parte, os escritos em latim de Agostinho, Ambrósio e Hilário de Poitiers. 

3 O Califado, região islâmica que compreende grande parte do Extremo Oriental e do sul do Mediterrâneo. Com a queda de Constantinopla, em 1453, a expansão do islamismo prosseguiu e causou grande impacto em boa parte da Europa. O islamismo, ao final do século XV, tinha se estabelecido de forma significativa em duas regiões do continente europeu: na Espanha e nos Bálcãs. Esse avanço foi finalmente barrado pela derrota dos mouros, na Espanha, na última década do século XV, bem como pela derrota dos exércitos islâmicos fora de Viena, em 1523. Um fato de importância fundamental para a história da igreja ocorreu nesse período. Por uma série de motivos, as relações entre a igreja oriental, estabelecida em Constantinopla, e a igreja ocidental, estabelecida em Roma, tornaram-se cada vez mais hostis ao longo dos séculos IX e X. O crescente desentendimento, em torno da cláusula filioque, no credo Niceno (vide pp. 395-98) teve grande contribuição para essa atmosfera cada vez mais hostil. Outros fatores também contribuíram, incluindo a rivalidade política entre a Roma de fala latina e a Constantinopla de língua grega, assim como a crescente pretensão de autoridade por parte do Papa romano. O rompimento final entre o ocidente católico e o oriente ortodoxo é normalmente datado de 1054, embora esta data seja ligeiramente arbitrária. Um dos maiores resultados dessa tensão foi o fato de haver uma reduzida interação teológica entre oriente e ocidente. Embora teólogos ocidentais, como Tomás de Aquino, tenham se sentido à vontade para inspirar-se nos escritos dos pais gregos, essas obras tendem a preceder esse período. As obras de teólogos ortodoxos posteriores, como do notável escritor Gregório Palamas, atraíram pouca atenção no ocidente. Pode-se dizer que somente no século XX a teologia ocidental começou a redescobrir as riquezas da tradição ortodoxa. Nosso interesse neste capítulo está voltado primordialmente para a teologia europeia, a qual teve um profundo impacto sobre o pensamento cristão moderno. O termo “teologia medieval” normalmente é usado com referência à teologia ocidental que havia nesse período, ao passo que o termo “teologia bizantina” é utilizado com relação à teologia da igreja oriental, que havia nesse mesmo período, aproximadamente, anterior à queda de Constantinopla em 1453. Durante esse período, na história europeia ocidental os centros da teologia cristã gradualmente se transferiram para o norte, para a região central da França e da Alemanha. Embora Roma tenha permanecido como centro do poder cristão na região, a atividade intelectual gradualmente migrou para os monastérios da França, como Chartres, Reims e Bec. Com a fundação das universidades medievais, a teologia rapidamente se consolidou como uma área central de estudos acadêmicos. Uma típica universidade medieval oferecia quatro faculdades: o curso básico de humanidades e os três cursos superiores de teologia, medicina e direito. 

Esclarecimento dos termos 

Definir períodos históricos é algo notoriamente complexo. Parte do problema encontra-se na falta de consenso universal em torno das características que identificam um determinado período. E especificamente isso o que ocorre com a “Idade Média”, o “Renascimento” e a “Idade Moderna”. Há também imensas dificuldades para se chegar a uma definição em relação a alguns dos movimentos intelectuais do período, especialmente o humanismo. 

O período analisado neste capítulo deu origem a dois dos mais importantes movimentos intelectuais da história do pensamento: o escolasticismo e o humanismo. Ambos dominaram o mundo intelectual - inclusive o teológico - entre 1300 e 1500. Embora se pudesse argumentar que, no ano de 1500, o escolasticismo estivesse em decadência, esse movimento ainda exercia uma grande influência sobre muitas universidades europeias, como a Universidade de Paris. Uma compreensão acerca da natureza desses movimentos é algo essencial a qualquer tentativa no sentido de entender a evolução da teologia cristã desse período ou para compreender as pressões religiosas e intelectuais, que ao final ocasionaram a Reforma. Os dois movimentos relacionam-se pelo fato do último ser geralmente considerado como uma reação à pobreza cultural e à excessiva precisão teológica do primeiro. A seguir, tentaremos esclarecer alguns dos termos utilizados na literatura que se relacionam a esse relevante período da teologia cristã. 

A Idade Média 

O termo “Idade Média” foi criado por escritores do Renascimento e parece ter sido adotado, de maneira geral, perto do final do século XVI. Os autores renascentistas ansiavam por desacreditar o período intermediário, que se instalara entre as glórias da Antiguidade clássica e sua época. Portanto, eles criaram o termo “Idade Média” como referência a uma fase monótona e estagnada, que separava dois períodos importantes e criativos. O adjetivo “medieval” significa “relacionado à Idade Média”. A expressão “teologia medieval” passou a ser de uso geral e pode, em sentido amplo, ser interpretada como “a teologia da Europa Ocidental, no período que se situa entre o final da Idade das Trevas e o século XVI”. Entretanto, essa expressão é imprecisa, contestada e possibilita vários tipos de interpretação. Na Europa, ao fim da Idade das Trevas e início da Idade Média, estava preparado o cenário para o reavivamento de cada área do trabalho acadêmico. Na França, ao final do século XI, a recuperação de uma certa estabilidade política, estimulou o ressurgimento da Universidade de Paris, que rapidamente se tornou conhecida como o centro intelectual da Europa. Em Paris, uma série de “escolas” teológicas foram abertas na margem esquerda do Sena e em Ile de la Cité, à sombra da recém-construída Catedral de Notre Dame. Uma dessas escolas foi o Collège de la Sorbonne que, posteriormente, alcançou tamanha fama, tornando a expressão “a Sorbonne” uma forma abreviada de referir-se à Universidade de Paris. Já no século XVI, Paris era amplamente reconhecida como um avançado centro de estudos teológicos e filosóficos, possuindo entre seus estudantes indivíduos famosos como Erasmo de Roterdã e João Calvino. Outros centros de estudo semelhantes foram logo criados em outras partes da Europa. Instaurou-se um novo programa de desenvolvimento teológico voltado à consolidação dos aspectos intelectual, legal e espiritual da vida da igreja cristã. A fase inicial do período medieval é dominada pelos progressos feitos na França. Vários monastérios produziram brilhantes autores e intelectuais cristãos como, por exemplo, Lanfranc (c. 1010-89) e Anselmo (c. 1033-1109), ambos oriundos do monastério de Bec, na Normandia. Rapidamente, a Universidade de Paris consolidou-se como um avançado centro de investigação teológica com estudiosos como Pedro Abelardo (1079-1142), Alberto, o Magno (c. 1200-80), Tomás de Aquino (c. 1225-74) e Boaventura (c. 1217-74). Os séculos XIV e XV assistiram a uma considerável expansão do setor universitário na Europa Ocidental com a criação de importantes universidades na Alemanha e em outros locais. Um elemento crucial para o novo interesse medieval pela teologia também está associado à Paris. Pouco antes de 1140, Pedro Lombardo chegou à universidade para dar aulas. Uma de suas principais preocupações era fazer com que seus estudantes se empenhassem para dominar os penosos temas da teologia. Como forma de contribuir para isso, ele escreveu um livro-de-texto — talvez um dos livros mais maçantes já escritos. Sua obra, Sententiarum libriquattuor ou Four books of the Sentences [Quatro livros d e sentenças], é uma combinação de citações da Bíblia e de autores patrísticos organizadas por tópicos. A tarefa que ele dava a seus estudantes era simples: encontrar o sentido das citações, compreendê-las. O livro mostrou-se de grande relevância para o avanço do legado de Agostinho, pois os estudantes eram forçados a se empenhar para compreender as ideias de Agostinho e para conciliar textos aparentemente contraditórios por meio da elaboração de explicações teológicas adequadas sobre suas incongruências (vide p. 180). Alguns autores tentaram fazer com que o livro fosse censurado, destacando seus ocasionais enunciados imprudentes (como a perspectiva de que Cristo não existiu como ser humano, uma visão que veio a ser conhecida como “niilismo cristológico”). Entretanto, até 1215, a obra havia se firmado como o livro-de-texto mais importante da época. O estudo e o comentário da obra de Pedro Lombardo tornaram-se obrigatórios para os teólogos. O trabalho resultante, conhecido como Commentaries on the Sentences [Comentários sobre as sentenças], tornou-se um dos mais conhecidos gêneros literários da teologia na Idade Média. Entre notáveis exemplos incluem-se os comentários de Tomás de Aquino, Boaventura e Duns Scotus. 

O Renascimento 

O termo, derivado da palavra francesa “renaissance”, é hoje empregado universalmente para designar o avivamento literário e artístico que ocorreu na Itália dos séculos XIV e XV. Paolo Giovio, em 1546, referiu-se ao século XIV como “aquele afortunado século, em que as letras latinas renasceram (renatae)”, de certa forma antecipando a nomenclatura dada ao período. Certos historiadores, especialmente Jacob Burckhardt, alegam que o renascimento deu origem à Idade Moderna. De acordo com Burckhardt, foi nesse período que o ser humano começou a pensar sobre si mesmo como indivíduo. A definição de Burckhardt, sob vários aspectos, explica o Renascimento em termos puramente individualistas, o que é altamente questionável. No entanto, ele está indubitavelmente correto em um sentido: algo de novo e empolgante ocorreu na Itália renascentista que se mostrou capaz de exercer um grande fascínio sobre várias gerações de intelectuais. Não fica inteiramente claro o motivo pelo qual a Itália veio a tornar-se o berço desse novo e brilhante movimento na história das ideias. Diversos fatores foram identificados como detentores de certa influência nessa questão. 

1 A teologia escolástica — a mais importante força intelectual do- período medieval — jamais teve particular influência na Itália. Embora muitos italianos tenham sido famosos teólogos (inclusive Tomás de Aquino e Gregório de Rimini), eles geralmente viviam e trabalhavam no norte da Europa. Portanto, havia um vácuo intelectual na Itália ao longo do século XIV. Espaços vazios tendem a ser ocupados — e o humanismo renascentista empenhou-se para ocupar essa brecha em particular. 

2 A Itália estava repleta de visíveis e tangíveis resquícios de grandeza da Antiguidade. As ruínas de antigos monumentos e construções romanas espalhavam se por todo o país e parecem haver despertado, na época do Renascimento, o interesse pela antiga civilização romana, atuando como estímulo para que seus intelectuais resgatassem a vitalidade da cultura clássico-romana, em uma época que era culturalmente árida e estéril. 

3 À medida que teve início a decadência do Império Bizantino — Constantinopla caiu, finalmente, em 1453 - ocorreu um êxodo de intelectuais de fala grega em direção ao ocidente. A Itália, por mero acaso, ficava convenientemente perto de Constantinopla, resultando no fato de que muitos desses imigrantes estabeleceram-se em cidades da Itália. Um avivamento da língua grega foi, portanto, inevitável e, juntamente com ele, uma retomada do interesse pelos clássicos gregos. Ficará bastante evidente que um componente central da cosmovisão do Renascimento italiano é um retorno ao esplendor cultural da Antiguidade e uma marginalização das conquistas intelectuais da Idade Média. Escritores renascentistas tinham pouco respeito em relação a essas conquistas, considerando que as grandes conquistas da Antiguidade eram superiores às da Idade Média. O que era válido para a cultura em geral, também o era em relação à teologia: considerava-se o antigo período clássico como algo que ofuscou totalmente a produção teológica da Idade Média, tanto em conteúdo quanto em estilo. Na verdade, o Renascimento pode ser parcialmente visto como uma reação contra o tipo de abordagem progressivamente associado às faculdades de humanidades e teologia, das universidades do norte da Europa. Irritados pela natureza técnica da linguagem e dos debates escolásticos, os escritores do Renascimento os deixaram totalmente de lado. No caso da teologia cristã, a chave para o futuro encontrava-se em um engajamento direto com o texto das Escrituras e com os escritos do período patrístico. Devemos explorar essa questão um pouco mais adiante (vide pp. 95-98). 

O escolasticismo 

O escolasticismo é provavelmente um dos movimentos intelectuais mais desprezados na história da humanidade. Seu nome é derivado das grandes scholae (“escolas”) medievais, nas quais se debatiam questões de teologia e filosofia, frequentemente com tamanha complexidade que tem surpreendido, bem como divertido aos historiadores posteriores. A palavra inglesa “dunce” (cheio) deriva-se do nome de um dos maiores escritores escolásticos, Duns Scotus. Os pensadores escolásticos — os “escolásticos” — são frequentemente retratados a debater com grande seriedade, ainda que inutilmente, a respeito de quantos anjos poderiam dançar na cabeça de um alfinete. Embora esse debate em particular nunca, na verdade, tenha ocorrido, mesmo considerando-se que seu resultado teria sido, inquestionavelmente, intrigante, ele resume com precisão a maneira como o escolasticismo era considerado pela maioria das pessoas, especialmente os humanistas, no início do século XVI: uma inútil e árida especulação intelectual a respeito de trivialidades. Erasmo de Roterdã, a quem deveremos analisar mais detalhadamente em breve, passou alguns meses, perto do final do século XV, na Universidade de Paris, dominada pelo escolasticismo. Ele escreveu extensamente a respeito de muitas coisas de Paris que detestou: os piolhos, a comida escassa, as latrinas fétidas e os debates absolutamente tediosos que angustiavam os escolásticos. Deus poderia ter se tornado um pepino, em vez de homem? Ou poderia Deus desfazer o passado, por exemplo, fazendo com que uma prostituta se tornasse virgem? Se havia seriedade por trás desses debates, o sarcasmo de Erasmo de Roterdã desviou a atenção das questões em si para a maneira frívola e ridícula em que eram discutidas. Pode-se alegar que o próprio termo “escolasticismo” foi inventado por escritores humanistas que ansiavam por desacreditar o movimento por ela representado. Já observamos que a expressão “Idade Média” foi, em grande parte, uma criação humanista, cunhada por escritores humanistas, do século XVI, em referência pejorativa a um insípido período de estagnação, situado entre a Antiguidade (o período clássico) e a Modernidade (o Renascimento). A Idade Média é vista como nada mais do que um intermezzo entre o esplendor cultural da Antiguidade e seu ressurgimento, no Renascimento. Da mesma forma, o termo “escolástica” (scholastici) era empregado pelos humanistas em referência, igualmente pejorativa, às ideias da Idade Média. Em sua preocupação de desacreditar as ideais do período medieval, com a finalidade de aumentar os atrativos do período clássico, os humanistas pouco se interessaram em traçar diferenças entre os diversos tipos de “escolásticos” - como os tomistas e os seguidores de Duns Scotus. Portanto, a palavra “escolasticismo” é ao mesmo tempo pejorativa e imprecisa — contudo, o historiador não pode deixar de usá-la. 

Como podemos definir o escolasticismo? Da mesma forma que ocorre com muitos outros termos culturais importantes como “humanismo” e “iluminismo”, é difícil oferecer uma definição exata que faça justiça a todas as distintas posições das maiores escolas ao longo da Idade Média. Talvez, a seguinte definição prática possa ser útil: o escolasticismo é mais conhecido como o movimento medieval, surgido entre 1250 e 1500, que enfatizou a justificação racional da crença religiosa bem como a apresentação dessas crenças de forma sistemática. Logo, o termo “escolasticismo” não se refere a um sistema específico de crenças, mas a um modo particular de se produzir e sistematizar a teologia - um método altamente desenvolvido de apresentação de conteúdos por meio de requintadas diferenciações, pretendendo alcançar uma visão abrangente da teologia. Talvez seja compreensível porque, sob a ótica de seus críticos humanistas, o escolasticismo pareceu degenerar-se em nada mais do que uma lógica concentrada em detalhes pequenos e sem importância. 

Entretanto, o escolasticismo fez contribuições importantes para áreas fundamentais da teologia cristã, especialmente em relação à discussão sobre o papel da razão e da lógica na teologia. Os escritos de Tomás de Aquino, Duns Scotus e Guilherme de Occam — frequentemente destacados como os três mais influentes autores escolásticos — contribuíram de forma impressionante para o desenvolvimento dessa área da teologia, sendo, desde essa época, considerados como marcos. Afinal, que tipos de escolasticismo existiam? Assim como acontece com o “humanismo”, o termo “escolasticismo” define uma abordagem ou um método, em vez de um conjunto de doutrinas específicas resultantes da aplicação desse método. Portanto, há vários tipos de escolasticismo. Esta parte do capítulo irá investigar brevemente algumas de suas principais correntes ou “escolas”, conferindo particular atenção àquelas que foram relevantes, no período medieval, para o desenvolvimento teológico. Começaremos por traçar a diferenciação entre “realismo” e “nominalismo”, duas teorias do conhecimento bastante divergentes que tiveram um impacto decisivo no desenvolvimento do escolasticismo. 

O realismo e o nominalismo A diferenciação entre o realismo e o nominalismo possui uma importância considerável para a compreensão da teologia medieval, o que nos obriga, portanto, a analisá-la de forma mais detalhada. A fase inicial do período escolástico (c. 1200 — c. 1350) foi dominada pelo realismo, embora em sua fase final (c. 1350 — c. 1500) o nominalismo fosse preponderante. A diferença entre as duas correntes pode ser descrita da seguinte forma. Considere duas pedras brancas. O realismo afirma que há um conceito universal de “brancura” que essas duas pedras incorporam. Essas duas pedras brancas, em particular, possuem a característica universal da “brancura”. Embora as pedras brancas existam no tempo e no espaço, o conceito universal de “brancura” existe em um plano metafísico distinto. O nominalismo, porém, afirma que o conceito universal de “brancura” é desnecessário e, em vez disso, argumenta que devemos nos concentrar em particulares. Essas duas pedras brancas existem - e não há qualquer necessidade de apelar para algum “conceito universal de brancura”. A ideia de “universal”, aqui utilizada sem qualquer definição, precisa ser melhor analisada. Pense em Sócrates. Ele é um ser humano e, portanto, um exemplo de humanidade. Pense agora em Platão e Aristóteles. Da mesma forma, são seres humanos e exemplos de humanidade. Poderíamos continuar fazendo esse tipo de raciocínio indefinidamente, nomeando quantos indivíduos desejássemos, porém, o mesmo padrão básico sempre aparece: os indivíduos nomeados são exemplos de humanidade. O realismo alega que a ideia abstrata de “humanidade” possui uma existência própria. Ela é o conceito universal; os indivíduos - como Sócrates, Platão e Aristóteles - são exemplos particulares desse conceito universal. A característica comum da humanidade, que une esses três indivíduos, possui existência autônoma e real. Duas grandes “escolas” desse movimento, que sofreram a influência do realismo, dominaram o início do período medieval. São elas o Tomismo e o Scotismo, respectivamente derivadas dos escritos de Tomás de Aquino e de Duns Scotus. No entanto, o final do escolasticismo foi dominado por outras duas escolas, ambas comprometidas com o nominalismo, e não com o realismo. Geralmente são conhecidas como o “caminho moderno” (via moderna) e a “escola Agostiniana moderna” (schola Augustiniana moderna). 

O caminho moderno 

O termo via moderna — o “caminho moderno” — vem sendo atualmente aceito como a melhor maneira de referir-se ao movimento uma vez conhecido como “nominalismo”, o qual incluía entre seus adeptos intelectuais dos séculos XIV e XV, figuras como Guilherme de Occam, Pierre dAilly, Robert Holcot e Gabriel Biel. Ao longo do século XV, o “caminho moderno” iniciou incursões significativas em muitas das universidades do norte da Europa — por exemplo, em Paris, Heidelberg e Erfurt. Além de sua filosofia nominalista, o movimento adotava uma doutrina da justificação que muitos de seus críticos rotularam como pelagiana. Em oposição a esse contexto, define-se a origem da teologia de Martinho Lutero. Devemos analisar este aspecto no capítulo seguinte. 

A escola agostiniana moderna No início do século XIV, um dos bastiões do “caminho moderno” foi a Universidade de Oxford. Foi também neste local que ocorreu a primeira reação negativa relevante contra o movimento. Thomas Bradwardine, que posteriormente tornou-se o Arcebispo de Cantuária, foi o responsável por essa reação. Bradwardine escreveu um livro, intitulado The case of God against Pelagius [A defesa de Deus contra Pelágio], atacando de forma veemente as ideias do “caminho moderno” de Oxford. Nessa obra, ele desenvolveu uma teoria sobre a justificação que representava um retorno às perspectivas de Agostinho de Hipona, encontradas em seus últimos escritos antipelagianos. As ideias de Bradwardine seriam desenvolvidas na Inglaterra por John Wycliffe. Porém, a Guerra dos Cem Anos, de 1337 a 1453, levou a Inglaterra a um progressivo isolamento em relação ao continente europeu. As radicais ideias agostinianas associadas a Bradwardine foram adotadas no continente europeu por Gregório de Rimini, na Universidade de Paris. Ele tinha uma vantagem particularmente significativa sobre Bradwardine: Gregório era membro de uma ordem religiosa (a Ordem dos Monges Eremitas de Santo Agostinho, geralmente chamada de “Ordem dos Agostinianos”). E, da mesma forma que os monges dominicanos difundiram as perspectivas de Tomás de Aquino e os franciscanos as ideias de Duns Scotus, também os agostinianos promoveram as ideias de Gregório de Rimini. Essa transmissão da tradição agostiniana no seio da Ordem dos agostinianos, derivada de Gregório de Rimini, é progressivamente chamada de schola Augustinianam oderna ou “escola Agostiniana moderna”. Que ideias foram essas? Primeiro, Gregório adotou a postura nominalista na questão de regras universais. Como muitos intelectuais de seu tempo, ele tinha pouca simpatia pelo realismo de Tomás de Aquino ou de Duns Scotus. Nesse aspecto, ele tinha muito em comum com intelectuais do “caminho moderno” como Robert Holcot e Gabriel Biel. Segundo, Gregório desenvolveu uma soteriologia ou doutrina da salvação, que retratava as ideias características de Agostinho. Por exemplo, podemos perceber a ênfase em relação à necessidade da graça, à condição de decadência e pecado da humanidade, à iniciativa de Deus na justificação, bem como em relação à predestinação divina. A salvação é vista como obra exclusivamente divina, do início ao fim. Enquanto os adeptos do “caminho moderno” alegavam que os seres humanos poderiam iniciar sua justificação ao “dar o melhor de si”, Gregório insistia que somente Deus poderia desencadear o processo de justificação. 

O “caminho moderno” defendia que a maior parte dos recursos necessários (mas nem todos) para a salvação eram inerentes à natureza humana. As virtudes de Cristo são exemplo de recursos que se encontram fora da natureza humana; a capacidade de resistir ao pecado e voltar-se para a virtude representa, para um escritor como Biel, um vivo exemplo de um recurso soteriológico que se encontra na própria natureza humana. Em clara oposição, Gregório de Rimini alegava que esses meios encontravam-se exclusivamente fora da natureza humana. Mesmo a capacidade de renunciar ao pecado e voltar-se para a virtude surgia por meio da ação de Deus e, não do ser humano. É evidente que essas duas abordagens representam duas formas completamente distintas de entendimento do papel de Deus e do homem na justificação. Embora o agostinianismo acadêmico de Gregório fosse particularmente associado à Ordem dos Agostinianos, nem todo monastério ou toda universidade filiados a essa ordem parece haver adotado suas ideias. No entanto, parece que, ao final da Idade Média e na iminência da Reforma, havia uma corrente de pensamento cujo caráter era bastante agostiniano. De muitos modos, os reformadores de Wittenberg, com sua particular ênfase sobre os escritos antipelagianos de Agostinho, podem ser considerados como aqueles que redescobriram e revitalizaram essa tradição.