Yahweh como Refúgio nos Salmos por J. F. D. Creach
Desvendando o Livro dos Salmos sob a Lente da Teologia do Refúgio
A compreensão do Saltério, com sua rica tapeçaria de orações, louvores e lamentos, é uma tarefa contínua e desafiadora para teólogos e estudiosos bíblicos. No cenário da pesquisa contemporânea, a obra “Yahweh as Refuge and the Editing of the Hebrew Psalter”, de Jerome F. D. Creach, surge como uma contribuição instigante e necessária, prometendo lançar nova luz sobre a composição e a mensagem teológica dos Salmos. Publicado como o volume 217 da prestigiosa Journal for the Study of the Old Testament Supplement Series, este livro se propõe a explorar um tema central para a fé israelita — Yahweh como refúgio — e como essa ideia moldou a própria estrutura e edição do Saltério hebraico.
Nesta resenha, teremos a oportunidade de mergulhar no trabalho meticuloso de Creach, examinando como ele desvenda o “refúgio” não apenas como um tema recorrente nos Salmos, mas como um princípio organizador que influenciou a arranjo final de seções-chave do livro. A análise de Creach promete demonstrar que o Saltério não é uma mera coleção aleatória de poemas, mas uma obra cuidadosamente editada com intenções teológicas e pastorais específicas.
Ao longo desta exploração, abordaremos as principais teses do autor, a metodologia empregada em sua análise filológica e teológica, e as implicações de suas descobertas para a nossa compreensão da teologia do Antigo Testamento, da prática da oração e da concepção de Deus como o protetor supremo de seu povo. Convidamos o leitor a acompanhar-nos nesta jornada crítica por uma das obras mais influentes sobre os Salmos em anos recentes, buscando apreciar a profundidade da pesquisa e a relevância de suas conclusões.
Capítulo 1: Introdução
No Capítulo 1, Jerome F. D. Creach apresenta de maneira detalhada o escopo e a motivação central de sua investigação, que é estudar como a metáfora de Yahweh como refúgio permeia a estrutura literária e teológica do Livro dos Salmos em sua forma atual. O autor destaca que, embora oSaltérioseja o resultado de um processo longo e complexo de formação e compilação, a ênfase do estudo não está na história da composição de cada salmo, mas em compreender como o conceito de “refúgio” — especialmente expresso por um campo lexical específico na língua hebraica — funciona no texto final, influenciando sua organização e interpretação.
Creach inicia a introdução enfatizando que o Saltério contemporâneo não é apenas uma coleção aleatória de hinos, orações e lamentos, mas uma obra cuidadosamente estruturada, cuja forma sugere intenções específicas por parte dos editores e colecionadores finais. É nesse contexto que a metáfora de Yahweh como refúgio emerge como elemento fundamental, não apenas presente em muitos salmos, mas também atuando como fio condutor que ajuda a compreender a finalidade espiritual e teológica do livro. Esse refúgio não é entendido apenas como um lugar físico ou proteção militar, mas como um símbolo rico de proteção, segurança, confiança e dependência espiritual na relação entre o fiel e Deus.
O texto esclarece que o estudo se posiciona na confluência entre a análise literária e teológica, distanciando-se das tentativas que focam exclusivamente na reconstrução histórica da origem dos poemas. O autor reconhece que muitas perguntas sobre a origem e o contexto dos salmos permanecem sem resposta definitiva, devido a limitações na evidência histórica e textual. Nesse sentido, Creach justifica seu enfoque na forma — entendida como a maneira pela qual o texto se organiza e comunica seus sentidos — como um caminho mais frutífero para revelar o significado e a coerência interna do Saltério enquanto obra literária e devocional.
Uma contribuição importante que o autor apresenta na introdução é o uso da “teoria do campo lexical” (word field theory) para investigar o conjunto de termos relacionados ao conceito de refúgio. Esses termos pertencem ao que Creach denomina o “campo lexical hdsd/mahseh”, que reúne palavras e expressões hebraicas que tematizam proteção, confiança, ajuda, sombra e fortaleza. Essa abordagem semântica permite captar nuances e variações dentro de um ambiente conceitual mais amplo, revelando como esses diferentes campos lexicais interagem para articular uma imagem multifacetada de Yahweh como fonte última de segurança e proteção para o fiel.
Ao explorar esse campo lexical, Creach sugere que a metáfora do refúgio não é meramente um recurso literário isolado, mas uma expressão da piedade e religiosidade israelita que fundamenta o modo como o povo se relaciona com Deus. A linguagem da confiança em Yahweh, simbolizada por suas propriedades de refúgio e proteção, reflete uma prática espiritual que visa uma dependência total no Senhor, principalmente em face das ameaças externas, sejam elas políticas, militares ou existenciais. Esta visão teológica da proteção divina serve por sua vez como um guia para a vida do crente, pois oSaltérioé entendido não apenas como uma coleção de poemas, mas como um compêndio de instrução piedosa destinado a formar a vida dos adoradores em relação à confiança e ao refúgio em Deus.
Além disso, Creach ressalta que analisar oSaltérioa partir dessa perspectiva ajuda a compreender melhor a estratégia dos editores que compilaram os salmos em sua forma atual. Eles não apenas reuniram textos antigos, mas reorganizaram, selecionaram e combinaram esses poemas de maneira a exaltar determinadas ideias e práticas teológicas. A metáfora de Yahweh como refúgio é talvez o aspecto que mais contribui para a coesão do Saltério, funcionando como o eixo em torno do qual gira o propósito do livro: encorajar a escolha de Deus como protetor supremo em oposição a qualquer poder terreno, político ou militar. Essa composição literária e teológica reforça a ideia de que a segurança última do fiel reside na capitulação e confiança total em Yahweh, o rei eterno.
No processo, o autor também manifesta que sua análise não pretende afirmar que todos os salmos contêm explicitamente termos do campo lexical hdsd/mahseh, nem que a totalidade da organização editorial do Saltério tenha ocorrido sob essa única pauta conceitual. Ele reconhece que o livro é constituído por coleções pré-existentes que atualmente formam um todo coeso, porém multifacetado. Contudo, o arranjo final dessas coleções cria uma força interpretativa que coloca o refúgio em Yahweh como tema predominante para a leitura do conjunto, incentivando a reflexão e a prática da confiança em Deus como o verdadeiro sustento pessoal e comunitário.
O capítulo introduz as etapas subsequentes da pesquisa, divididas principalmente entre: a avaliação do significado das palavras ligadas ao refúgio, a análise da evolução dessa metáfora na literatura israelita e nos salmos especificamente, e o exame da repercussão dessa linguagem na forma literária e teológica do Saltério. O autor aponta que essa investigação poderá não apenas esclarecer o significado da metáfora do refúgio, mas também contribuir para uma compreensão mais ampla das intenções editoriais no arranjo final do Livro dos Salmos e sua função para a comunidade de fé que o utiliza.
O Capítulo 1 apresenta uma introdução ampla e minuciosa que fundamenta o estudo, situando-o firmemente em uma abordagem que privilegia a análise literária-semântica e teológica do Saltério, enfatizando a centralidade do conceito de Yahweh como refúgio não apenas como tema pontual, mas como elemento estruturante da psalmódia israelita. Ao fazê-lo, Jerome F. D. Creach abre caminho para uma leitura mais profunda do Saltério, que reconhece seu papel como um manual da vida devocional centrada na confiança inabalável em Deus, o verdadeiro abrigo, fortaleza e escudo para aqueles que o buscam.
Capítulo 2: Escolhendo Yahweh como Refúgio: O campo lexical de ḥāsāh.
No capítulo, intitulado originalmente “Choosing Yahweh as Refuge: The Hasa Wordfield”, Jerome F. D. Creach realiza uma investigação aprofundada sobre o conjunto lexical em hebraico que envolve a ideia de “refúgio” ou “proteção” na relação de confiança que os fiéis estabelecem com Yahweh, o Deus de Israel. Esse capítulo é fundamental para compreender não apenas a teologia subjacente nos Salmos, mas também como a editoria do livro se vale desse campo semântico para construir uma imagem coesa de Yahweh como fonte imprescindível de segurança espiritual e física.
O termo central da discussão é a raiz חָסָה (ḥāsāh), que dá origem a várias palavras derivadas, especialmente o substantivo מַחֲסֶה (maḥasé), que significa literalmente “refúgio” ou “abrigo”. Essa palavra aparece de modo recorrente noSaltériopara expressar a experiência de dependência dos fiéis, um reconhecimento explícito de que Yahweh não é apenas um Deus distante, mas um protetor ativo que oferece segurança diante do perigo e da adversidade. Ao lado de מַחֲסֶה, outras palavras do chamado “campo hasd” são exploradas, como חֶסֶד (ḥesed), סֶלַע (selaʿ, “rocha”), מָעוּז (maʿūz, “fortaleza”), מָעוֹז (maʿōz, também “fortaleza”), וּמִגְנָן (migʿnān, “escudo”), e שְׂגַב (sʿgav, “reduto” ou “refúgio firme”), entre outras. Todos esses termos trabalham conjuntamente no discurso poético e teológico doSaltériopara construir uma metáfora polifônica na qual Yahweh é a fortaleza e o refúgio do justo.
Creach inicia o capítulo reconhecendo a necessidade de considerar o uso secular e dentro do culto para compreender como a linguagem do “refúgio” foi configurada nos Salmos. Isso significa olhar para a raiz הָשָׁע (hśʿ) em suas primeiras aparições, antes de sua fixação teológica no Saltério, para enxergar nuances que podem ser perdidas caso se observe apenas o sentido comum de “abrigo”. Por isso, a análise inclui aspectos gramaticais e sintáticos dos termos, examinando como aparecem em diferentes contextos e construções sintagmáticas, o que ajuda a revelar sua função poética e devocional.
Por exemplo, a palavra מַחֲסֶה (maḥasé) é geralmente usada com a preposição ב־ (be-), como em בַּיהוָה מַחֲסִי (“em Yahweh é meu refúgio”, cf. Salmo 91.9). Essa construção enfatiza que o justo posiciona-se sob a proteção de Yahweh, buscando nele sua segurança. O verbo חָסָה, do qual מַחֲסֶה deriva, aparece conjugado em diferentes formas para comunicar ações como “buscar refúgio”, “confiar” e “esperar”, evidenciando que a relação dinâmica entre o indivíduo e Deus nem sempre é estática, mas uma atitude contínua de confiança e dependência.
A palavra חסד (ḥesed), que por vezes é traduzida como “amor leal”, “bondade” ou “misericórdia”, é mostrada como um elemento chave interligado ao campo do refúgio, ainda que tenha usualmente uma nuance mais ampla que abrange a fidelidade à aliança. Creach observa que, nos Salmos, חסד é fundamental para explicar por que Yahweh é um refúgio confiável: porque o Senhor é fiel e mantém sua aliança com o povo mesmo em meio à crise. Assim, a proteção divina é sustentada por essa fidelidade constante e generosa.
Além dessas palavras centrais, o capítulo também traz à tona termos como סֶלַע (selaʿ, “rocha”), que aparece com frequência para qualificar o caráter firme e inabalável do refúgio divino, e מָעוּז (maʿūz)/מָעוֹז (maʿōz), que indicam uma fortaleza ou reduto contra inimigos, sinalizando que a proteção de Yahweh não é apenas espiritual, mas também pode implicar defesa física.
A análise aqui é auxiliada pela observação da frequência e distribuição dos termos no Saltério, especialmente nos primeiros livros (por exemplo, o “David 1” que abrange os Salmos 3 a 41), onde essas palavras tendem a se concentrar, destacando um quadro editorial que enfatiza o justo (צַדִּיק, saddiq) como aquele que vive confiando em Yahweh. Creach nota que nesse conjunto o conceito de “refúgio” é elemento de identidade para os ímpios e piedosos, que se distinguem exatamente pelo fato de procurarem refúgio no Senhor,. Expressões como “os que buscam refúgio em Yahweh” aparecem em diversos salmos, consolidando essa figura como paradigma da piedade.
O autor ainda apontar que outras palavras, como מָגֵן (māgen, “escudo”) e שְׂגַב (sʿgav), atuam em sinergia para reforçar a imagem do protetor Yahweh, funcionando como metáforas paralelas para o mesmo conceito de proteção e segurança. Essas imagens figurativas são importantes para comunicar a experiência religiosa dos israelitas que enfrentavam ameaças políticas, militares e existenciais.
Outro aspecto importante explorado no capítulo é o desenvolvimento da metáfora do “refúgio” ao longo do tempo, em particular como essas palavras e seu significado foram apropriados editorialmente para compor o livro doSaltérioem sua forma atual. Creach destaca que o campo lexical que envolve חָסָה e מַחֲסֶה sofreu um processo de evolução e refinamento, que refletiu as mudanças históricas e teológicas da comunidade judaica, especialmente no pós-exílio. Nesse sentido, a metáfora do refúgio não é apenas um conceito estático, mas parte da dinâmica da fé que se reconfigura diante de novos desafios.
Além disso, Creach também analisa como a tradução grega do Antigo Testamento, a Septuaginta (LXX), ajuda a esclarecer a forma como os tradutores e intérpretes antigos compreenderam esses termos. A Septuaginta, ao traduzir membros do campo lexical “hdsd”, às vezes utiliza palavras gregas que trazem nuances distintas, sugerindo interpretações teológicas específicas que influenciaram a recepção desses Salmos nas comunidades helenísticas. Esse elemento evidencia a complexidade e riqueza do campo semântico, que transcende estritamente o hebraico e se torna uma categoria teológica translinguística.
Em síntese, o capítulo 2 de Creach constitui um estudo detalhado da linguagem do refúgio no Saltério, mostrando como o vocabulário baseado na raiz חָסָה e seus termos associados funcionam para expressar a atitude do fiel que busca em Yahweh proteção, confiança e segurança. A combinação das palavras מַחֲסֶה (maḥăseh), חֶסֶד (ḥesed), סֶלַע (selaʿ), מָעוּז (māʿûz), מָגֵן (māḡēn), שְׂגַב (śeḡav) e suas variações, em diferentes contextos sintáticos e estilísticos, criam uma teologia dinâmica centrada em Yahweh como protetor fiel, que constitui o fundamento da vida piedosa no Saltério.
Esse conjunto lexical, apelidado por Creach como “hdsd field”, fornece as ferramentas linguísticas para a construção da metáfora e da doutrina do refúgio que permeia os Salmos. A partir desse estudo, torna-se possível entender não apenas o uso lexical, mas também o papel editorial do conceito de refúgio na formação do Saltério, especialmente na caracterização dos ‘justos’ (צַדִּיקִים, saddiqim) como aqueles que “têm Yahweh como refúgio” (cf. Salmos 5.12; 17.7; 18.31; 31.20; 34.9, 23; 36.8; 37.40). A confiança estabelecida nesse refúgio é apresentada como uma doutrina fundamental para o culto e a fé, formando uma base para a leitura e interpretação do texto salmódico como um todo.
O capítulo 2 não apenas esclarece o significado das palavras hebraicas relacionadas a refúgio e proteção, mas também destaca a importância do conhecimento desse campo lexical para se captar a intenção teológica e editorial do Saltério. Ao enfatizar os aspectos linguísticos, históricos, literários e teológicos da terminologia do refúgio, Creach contribui decisivamente para a compreensão do Saltério como um livro que transmite não só orações e poesias, mas um ensinamento sistemático sobre a condição do justo em mundo ameaçador e a resposta adequada que é confiar em Yahweh, seu “refúgio” seguro.
Capítulo 3: ‘Yahweh é meu Refúgio’
No Capítulo 3, Creach explora detalhadamente o desenvolvimento da metáfora “Yahweh é meu refúgio” e as palavras hebraicas que compõem o campo semântico em torno dessa figura metafórica, especialmente as palavras ḥasīd (חסיד), maḥseh (מחסה) e os termos relacionados associados ao campo do ḥesed (חסד). Este capítulo é fundamental para compreender não apenas o significado teológico e literário dessa imagem no Saltério, mas também para perceber o processo pelo qual ela assumiu sua função última dentro do texto sagrado, integrada aos temas de justiça, realeza e devoção pessoal a Yahweh.
Desde o início, o autor enfatiza que o termo maḥseh, comumente traduzido como “refúgio” ou “abrigo”, possui uma carga semântica que vai além do sentido físico e literal de um lugar onde alguém se esconde ou encontra proteção contra o perigo. De fato, maḥseh equivale a uma ideia mais ampla e espiritual, sugerindo tanto a proteção contra adversidades reais quanto a segurança garantida pela presença do próprio Deus. Historicamente, esta palavra, em textos poéticos e sapienciais, refere-se a um lugar metafórico de proteção — um espaço onde o justo pode confiar com segurança, mesmo diante de ameaças externas ou perseguições. O refúgio não é um mero local físico; é uma experiência de confiança e dependência numa relação dinâmica entre Deus e o fiel, marcada pela fidelidade de Yahweh ao seu pacto.
O vocabulário do ḥesed compõe um campo lexical essencial para a compreensão do Saltério. Traduzido normalmente como “amor fiel”, “bondade leal”, ou “misericórdia”, o termo ḥesed encapsula na literatura hebraica a qualidade relacional que fundamenta a confiança em Yahweh. Pessoas descritas como ḥasīd (plurais e singulares) são aquelas que experimentam e demonstram tal fidelidade — são os piedosos, os fiéis filhos de Israel que permanecem ligados à aliança, esperando a proteção divina. O autor observa que o Saltério frequentemente associa essa fidelidade — expressa por termos derivados de ḥesed — à figura do refúgio, o que sugere que a segurança metafórica do refúgio é, na realidade, a experiência pedagógica e espiritual da relação fiel com Deus, manifestada na confiança no seu cuidado sustentador.
Um ponto de especial interesse na argumentação do autor envolve a distinção feita entre a palavra maḥseh e outros termos usados para falar de fuga e asilo no Antigo Testamento, como o verbo nus (נוס), que literalmente significa “fugir” ou “escapar”. Este verbo aparece em narrativas legais, jurídicas e históricas, especialmente em referência às chamadas “cidades de refúgio”, como as mencionadas em Êxodo 21, Números 35 e Deuteronômio 19. Nessas passagens, Israel estabelece espaços específicos para proteção física contra vingança ou retaliação, o que operacionaliza a justiça comunitária e a proteção dos inocentes. O termo miqlat (מקלט), frequentemente relacionado a essas cidades, descreve também “um lugar de refúgio”, porém num sentido civil e prático. Por outro lado, segundo Creach, a palavra maḥseh não é utilizada para esses contextos; sua ocorrência está limitada à esfera poética, lírica e teológica, onde manifesta não a proteção jurídica ou territorial, mas uma proteção existencial e espiritual proporcionada pelo próprio Deus. Como resultado, o “refúgio” que Yahweh oferece é um conceito diferente da mera “fuga” ou do “asilo” que um indivíduo pode buscar em locais físicos ou políticos.
A consequência dessa distinção é teologicamente significativa, porque muda a ênfase da busca de segurança pela força humana, estruturas políticas ou lugares reais, para a confiança na fidelidade e proteção divinas, que se expressa poeticamente através da palavra maḥseh. De fato, essa mudança aponta para uma crise ideológica em Israel, refletida várias vezes nos Salmos, onde há condenações contra aqueles que buscam apoio em reis humanos, poderes políticos ou alianças estrangeiras, em vez de em Yahweh. Assim, o refúgio divino é identificado como a única fonte legítima e confiável de segurança, não importa a situação adversa. Esse ponto é importante porque ajuda a entender que a metáfora “Yahweh é meu refúgio” é uma afirmação de fé contra a tentação de confiar em forças terrenas para proteção.
O texto chama a atenção para um segundo elemento essencial que amplifica a ideia de refúgio: o papel da Torá (תורה), a instrução divina. O autor explora um desenvolvimento marcante na linguagem do Saltério, especialmente nos Salmos mais tardios, onde a Torá é entendida como uma extensão ou até mesmo um sinônimo funcional do conceito de refúgio de Yahweh. Este é um ponto crucial, pois indica que a segurança espiritual não decorre apenas da relação pessoal com Yahweh como refúgio, mas também da aderência à instrução dele, que oferece a sabedoria e o caminho para viver em comunhão com ele diante das ameaças do mundo. Assim, a metáfora do refúgio fica associada a uma experiência prática de vida, representada pelo estudo da Torá e a obediência aos comandos de Deus. Por essa razão, o Salmo 119, por exemplo, repleto de termos do campo do ḥesed e da Torá, funciona como um culminar dessa tradição literária e teológica.
Gramaticalmente, o autor examina muitas variações nas formas do termo maḥseh e palavras correlatas. Observa-se a ocorrência do termo em variantes masculinas e femininas, assim como em plural ou singular, dependendo do manuscrito e da tradição textual consultados, incluindo o texto massorético hebraico (TMH) e os textos da Septuaginta (LXX), onde está representado por termos gregos como “kataphyge”. Essa diversidade morfológica reforça a riqueza poética e a flexibilidade teológica do conceito, além de indicar as dificuldades na tradução e interpretação desses termos ao longo dos séculos. A análise dessas formas contribui para uma melhor compreensão das nuances metafóricas e simbólicas que o termo carrega no discurso dos salmos.
Além disso, o capítulo aborda a origem e o desenvolvimento histórico dessa metáfora. Embora não sejam totalmente esclarecidas todas as raízes e contextos em que “Yahweh como refúgio” surgiu, o autor propõe que essa imagem tem forte ligação com a ideologia da realeza divina. Em textos bíblicos antigos e posteriores, Yahweh aparece como um rei protetor, o soberano que não apenas ordena, mas cuida e preserva seu povo. Essa função real de Yahweh como protetor, expresso como “refúgio”, é essencial para entender o papel do rei humano em Israel, que deveria imitar ou refletir essa proteção divina. No entanto, o autor também observa que o sentido da metáfora evolui da ideia coletiva e política para uma experiência mais pessoal e devocional — um sinal de que os editores do Saltério ajustaram e reorganizaram textos que inicialmente tinham uma função pública ou nacional para atender às necessidades espirituais individuais da comunidade de fé.
A relação entre o refúgio e a justiça é outro aspecto enfatizado. A metáfora de “refúgio” está intimamente ligada à ideia de que confiar em Yahweh implica não apenas segurança, mas também uma vida reta e justa, marcada pela fidelidade ao pacto e à Torá. O termo ḥasīd designa não só aquele que confia em Deus, mas também aquele que vive conforme essa confiança, um justo devoto. Assim, a metáfora de refúgio não é um mero recurso poético para descrever proteção divina, mas uma expressão completa da identidade ética do fiel que se alinha com Deos e seu ensino para encontrar segurança e paz.
Notavelmente, o capítulo também critica certas interpretações tradicionais, especialmente as provenientes da forma crítica, que associam o conceito de refúgio primordialmente a contextos legais ou rituais, como o uso do templo ou dos santuários como asilos. Creach argumenta que há pouca evidência que vincule diretamente a esquerda do termo ḥasīd a esses contextos, já que em textos legais que tratam de “cidades de refúgio”, o vocabulário é distinto (como o uso do verbo nus). Dessa forma, o simbólico refúgio de Yahweh na poesia e na teologia israelita deve ser visto como uma construção literária autônoma, que expressa uma confiança confiada e experienciada pelos fiéis e articulada especialmente no Saltério, e não um conceito diretamente derivado do costume tradicional da busca por asilo.
Outro ponto relevante discutido é o papel da “quietude” e da “firmeza” (hasqet) no conceito de refúgio. Passagens como Isaías 30:15 e 32:17 associam hasqet à ideia de segurança e à confiança firme na justiça de Yahweh.
Capítulo 4: Yahweh como Refúgio e a Presente Forma do Saltério
O tema central deste estudo é o conceito de Yahweh como refúgio, uma imagem que permeia profundamente o Saltério hebraico e que orienta a compreensão e a leitura desta coletânea poética e religiosa. O uso da metáfora do refúgio para descrever Deus se constitui num eixo para a fé e a experiência religiosa israelita, refletindo não apenas a dependência dos fiéis frente às ameaças externas, mas também uma expressão da confiança em Yahweh como fonte suprema de proteção, orientação e sustento. Este trabalho investiga, por meio de uma análise linguística, temática e literária, a evolução desta metáfora no Saltério, bem como sua função e relevância na forma final da coletânea.
1. A Metáfora do Refúgio em Yahweh
Tradicionalmente, a ideia de “Yahweh como refúgio” se apresenta como uma forma poética de expressar a confiança plena na soberania e no cuidado de Deus. As palavras hebraicas ḥesed (חסד), mahseh (מחסה), dentre outras relacionadas, compõem um campo lexical que remete à proteção, misericórdia e acolhimento providos pelo Senhor. Esse campo lexical funciona como um fundamento da experiência religiosa: o fiel se volta a Yahweh em busca de um lugar seguro, um abrigo contra perigos como inimigos, adversidades sociais, crises pessoais ou mesmo ameaças existenciais.
A imagem do refúgio não é uma simples declaração de segurança, mas manifesta uma postura de dependência total. No ambiente do Antigo Oriente Próximo, onde os reinos enfrentavam constantemente guerras, instabilidades políticas e ameaças naturais, afirmar que Yahweh é um refúgio enfatizava a superioridade de Deus sobre reinos humanos e poderes terrenos. Este tema é claramente expresso em diversos salmos, onde a confiança no Deus vivo é posta em contraste com a fragilidade dos seres humanos e das forças políticas que tendem a falhar.
2. Contexto e Evolução da Metáfora no Saltério
Um aspecto fundamental para compreender o uso da metáfora do refúgio no Saltério é reconhecer sua evolução histórica e literária. Como apontado nas páginas 24 e 74 do estudo, a metáfora do refúgio surge num processo dinâmico que abrange diferentes períodos e intenções redacionais. Inicialmente, metáforas semelhantes buscavam descrever ambientes físicos ou sociais de proteção, mas com o tempo tornaram-se símbolos teológicos que revelavam uma compreensão mais profunda do relacionamento entre Deus e o fiel.
Na história de Israel, a busca por refúgio não se restringia a Deus, mas chegou a incluir líderes humanos e forças políticas, o que era criticado em textos proféticos que denunciam a confiança equivocada em reinos ou alianças políticas em detrimento da fé em Yahweh. Este contexto contribuiu para a valorização da metáfora do refúgio divino como um símbolo de fidelidade e dependência religiosas verdadeiras.
O estudo ressalta que os salmos mais tardios do Saltério incorporaram conscientemente essa linguagem, refletindo ou retomando tradições anteriores para construir uma espiritualidade pessoal que também tinha raízes em um contexto nacional e real. A passagem dessa metáfora da esfera coletiva para uma expressão de devoção individual demonstra a flexibilidade e a profundidade do conceito.
3. A Linguagem do Refúgio: ḥesed, mahseh e campos lexicais
Um dos objetivos centrais da investigação é explorar como termos como ḥesed (חסד) e mahseh (מחסה) articulam uma rede semântica coesa que comunica a ideia de proteção e dependência. Conforme descrito, por exemplo, na página 24, a análise do campo lexical considera o uso secular e teológico dessas palavras, sua ocorrência em diversas partes do Saltério e a forma como foram reinterpretadas ao longo do tempo.
O termo hasd, frequentemente traduzido como “misericórdia” ou “bondade fiel”, está profundamente enraizado na concepção de proteção divina como expressão do amor e da fidelidade de Yahweh. Por sua vez, mahseh (refúgio, abrigo) evoca uma imagem tangível e concreta da segurança oferecida por Deus.
A interação entre esses termos em vários salmos não apenas reforça a metáfora do refúgio, mas também cria um conjunto de expressões complementares que sustentam a confiança religiosa. A combinação desses termos permite um aprofundamento da metáfora, tornando-a rica em conotações emocionais, espirituais e sociais.
4. A Relação entre Refúgio e Tora na Estrutura do Saltério
Outra importante implicação da metáfora do refúgio está na sua associação com a Tora, a instrução divina, que emerge como um caminho prático para a vida sob a proteção de Yahweh. Este aspecto é discutido especialmente nas páginas 74 e 106, onde se aponta que o aprendizado e a meditação na Tora não são apenas deveres religiosos, mas expressões concretas da dependência e da confiança em Deus.
Esta relação sugere que o Saltério foi provavelmente organizado ou editado para apresentar um guia de vida em que o refúgio em Yahweh se manifesta através da obediência e do estudo da Lei divina. A Torá oferece um refúgio ético e espiritual, além da proteção física ou social que a metáfora inicialmente evoca. Esta dupla dimensão amplia o significado da metáfora, integrando confiança, prática e sabedoria numa experiência religiosa integral.
5. Confessionalidade e Dependência: A Visão Ética do Saltério
Conforme destacado na página 58, o Saltério enfatiza uma postura de confissão e de dependência radical em Deus. Essa atitude é frequentemente expressa por um sentimento de fragilidade humana e insignificância diante das vicissitudes da vida, como evidenciam salmos como o 90, que ensinando sobre a brevidade da existência humana, reforçam a necessidade de buscar refúgio em Yahweh.
A confiança no refúgio divino, nesse contexto, não é uma simples crença abstrata, mas uma resposta concreta às ansiedades existenciais da vida. O fiel reconhece suas limitações e incapacidade de salvar a si mesmo, vendo em Deus a única fonte eficaz de proteção e esperança. Esta percepção ética molda o tom do Saltério, apresentando uma teologia da dependência e da humildade.
6. Reflexões sobre a Composição Final e as Intenções dos Editores
Na análise dos textos finais do Saltério, conforme apresentado nas páginas 106 e 131, há fortes indícios de que os compiladores e editores buscaram consolidar a metáfora do refúgio como um tema central e estruturante da coletânea. A presença consistente dos termos relacionados a hasd e refúgio sugere uma intenção editorial clara de promover uma visão religiosa em que Yahweh exerce um papel protetor fundamental.
Além disso, o fato de o refúgio ser associado a outras expressões de dever e devoção — como a meditação na Torá — indica que os editores desejavam que a coletânea servisse como um manual de fé e prática para o povo de Israel.
Essa perspectiva de edição compreende o Saltério não apenas como uma coleção de hymnos isolados, mas como uma construção literária coesa e teologicamente carregada, onde a imagem do refúgio exemplifica a relação fundamental entre Deus e seu povo.
7. Limitações e Perspectivas para Estudos Futuros
Apesar do detalhamento da metáfora do refúgio e de sua centralidade no Saltério, o estudo reconhece que algumas questões permanecem abertas. A origem exata da metáfora, seu desenvolvimento inicial e possíveis influências de contextos culturais externos ainda carecem de investigações mais aprofundadas.
Há também o desafio de entender adequadamente como essa imagem foi recebida e interpretada ao longo das diversas fases da história de Israel e do judaísmo, incluindo sua transformação no ambiente do Segundo Templo e além.
Além disso, a dimensão litúrgica e comunitária do Saltério, em relação ao uso da metáfora do refúgio, merece atenção, para compreender como essa imagem moldava não apenas a devoção individual, mas também a identidade coletiva dos fiéis.
8. Síntese e Conclusão
A metáfora de Yahweh como refúgio é uma das imagens mais ricas e evocativas presentes no Saltério hebraico. Ela expressa, de forma poética e teologicamente carregada, a experiência religiosa da dependência e da confiança na proteção divina diante das inseguranças do mundo.
O exame dos termos línguísticos e temáticos relacionados, sobretudo ḥesed e mahseh, mostra que esta imagem foi cuidadosamente desenvolvida ao longo da história e teve um papel decisivo na configuração final do Saltério, orientando tanto seu conteúdo quanto seu uso.
A associação estreita entre o refúgio e a Tora indica que, para o fiel do Saltério, a confiança em Yahweh se manifesta não apenas na oração, mas na prática obediente e na meditação contínua na palavra divina, que é o verdadeiro
Capítulo 5: Yahweh como Refúgio na Presente Forma do Saltério
O autor continua a aprofundar a discussão sobre a importância teológica, literária e editorial da figura de Yahweh como refúgio no contexto do Saltério hebraico. Este capítulo, que o autor deu o mesmo título do capítulo anterior, se insere na sequência do estudo que ele desenvolveu ao longo da obra, explorando não somente o conteúdo lexical das palavras em hebraico associadas à ideia de refúgio, mas também as questões gramaticais, as variações textuais e o impacto que tais elementos tiveram na edição final do texto do Salmos. Para compreender plenamente os argumentos do autor e a relevância desta metáfora, é indispensável analisar detalhadamente as palavras-chave em hebraico, suas nuances semânticas e suas aparições no corpus salmódico, assim como compreender todo o processo de formação e edição da coletânea.
O ponto de partida do capítulo é a exploração do campo lexical relacionado à palavra חֶסֶד (ḥesed), um termo essencial na teologia bíblica que expressa a misericórdia, a bondade fiel, a lealdade amorosa, ou, em outras palavras, um tipo de compromisso relacional que envolve fidelidade e benevolência contínuas. Esta palavra, derivada de uma raiz semítica que enfatiza o amor praticado e a fidelidade ativamente demonstrada, aparece em várias passagens bíblicas para qualificar o relacionamento de Deus com seu povo, caracterizando a atitude divina como uma proteção constante e confiável, que sustenta e ampara o fiel. A tradução mais comum para ḥesed é “misericórdia”, mas esta pode se restringir a um sentido emocional ou momentâneo, enquanto o termo, especialmente no contexto do Saltério, engloba uma dimensão mais ampla, que inclui a fidelidade prestada por alguém que assume um compromisso com outrem — nesse caso, a relação de Deus para com os que nele confiam.
Além disso, o autor presta especial atenção à palavra מַחְסֶה (maḥseh), que significa literalmente “refúgio”, “abrigo” ou “lugar de proteção”. Este termo não designa apenas um espaço físico como uma fortaleza ou fortificação onde alguém encontra segurança contra inimigos, mas também serve como metáfora espiritual para indicar a proteção que Yahweh oferece ao seu povo, especialmente aos justos, aos retos e àqueles que buscam sua presença. Em hebraico, maḥseh vem da raiz חסה (ḥ-s-h), que significa “buscar refúgio” ou “proteger-se”, denotando a ação e o estado de confiar numa proteção eficaz e confiável.
Creach examina também a questão gramatical das variações desses termos nos textos salmódicos, revelando que em algumas tradições textuais aparece a palavra מָעוֹן (ma’on), que significa “morada” ou “habitação”. A distinção entre ma’on e maḥseh é um dos aspectos mais interessantes da análise linguística empreendida, já que ambas as palavras carregam a ideia de proteção e abrigo, mas com nuances diferentes: ma’on enfatizaria mais a função como uma habitação estável, um lar permanente, enquanto maḥseh destacaria mais a função de proteção momentânea, o esconderijo seguro contra adversidades iminentes. A Septuaginta, tradução grega dos textos hebraicos, às vezes traduz essas palavras usando o termo grego καταφύγιον (kataphygion), que significa “refúgio” ou “abrigo”, indicando que os tradutores perceberam o sentido comum de proteção implícito nessas palavras. Essa análise demonstra a complexidade textual e a riqueza do campo semântico que envolve a expressão “Yahweh é meu refúgio”, pois é necessário considerar as variantes textuais, as traduções antigas e as alterações editoriais para compreendê-la plenamente.
O autor também observa que a palavra חֶסֶד (ḥesed) aparece frequentemente em conjunto com תּוֹרָה (tôrâh), a “instrução” ou “lei” divina, em particular nos últimos salmos compostos e incorporados na coletânea final, como o Salmo 119, extenso poema acróstico dedicado à exaltação da Tora. Essa associação é sumamente significativa porque revela que a dependência do fiel em Yahweh como refúgio não é apenas uma confiança passiva em proteção física ou emocional, mas inclui uma dimensão ativa de busca e estudo da instrução divina. A Tora, neste contexto, configura-se como um guião, um conjunto de diretrizes que possibilita o modo de viver confiante e seguro fundamentado no relacionamento com Deus. Assim, a metáfora do refúgio não se limita ao aspecto militar ou da proteção física, mas assume um sentido ético-teológico profundo que orienta a vida do crente, demonstrando que o verdadeiro refúgio é encontrado na comunhão com Deus e na obediência à sua lei.
Creach destaca que a coleção dos salmos não surgiu de maneira aleatória ou puramente espontânea, mas passou por um processo editorial complexo, no qual vários fatores foram decisivos para a seleção, organização e apresentação dos poemas. Ao focar na metáfora do refúgio e nos termos associados, o autor sugere que essa foi uma das categorias teológicas e literárias em torno das quais a coletânea foi formada. Ele apresenta evidências de que o livro foi organizado para expressar uma visão coerente da natureza do justo (saddiq, צַדִּיק) e da pessoa justa (râṣî, רָשִׁים), cuja existência é caracterizada por uma dependência profunda e absoluta em Yahweh como protetor e refúgio. Neste sentido, o livro dos Salmos está estruturado de modo que a ideia de refúgio aparece como um fio condutor, uma “diretriz abrangente” para a leitura do Saltério, como um todo.
Do ponto de vista da forma, Creach mostra que o primeiro livro dos Salmos (livros são divididos tradicionalmente em cinco partes), dá uma atenção singular à retratação do justo, destacando aquele que busca o refúgio em Deus e vive de acordo com a aliança e a instrução divinas. Ele argumenta que termos como צַדִּיקִים (saddiqim, os justos) e רְשָׁעִים (rasha’im, os ímpios) apresentam uma frequência marcante no primeiro livro, e que salmos específicos — tais como os Salmos 15, 24, 34 e 37 — estão quase inteiramente dedicados a explorar as características da pessoa justa. É nesta fase da edição que o tema do refúgio torna-se uma lente interpretativa essencial para compreender os salmos, indicando que o editor ou compilador final desejava que o leitor abordasse o livro a partir deste conceito central.
O capítulo destaca também a complexidade do desenvolvimento histórico da metáfora do refúgio no Israel antigo. Inicialmente, esta expressão está coagida a contextos nacionais e políticos, onde o refúgio se relaciona com o rei de Judá ou com proteções institucionais, mas gradualmente sofre uma transformação para uma interpretação mais pessoal e religiosa, passando a enfatizar a relação individual e a devoção a Yahweh como fonte última de proteção, em contraposição à confiança em forças humanas ou políticas. O autor revela que, em textos bíblicos anteriores e paralelismos do Antigo Oriente Próximo, embora públicos proclamem a dependência em divindades para proteção, não apresentam a noção de refúgio como um epíteto divino explícito como se vê no Saltério. Essa evolução é essencial para entender o papel da figura de Yahweh como refúgio, porque demonstra como a fé e a percepção teológica foram se modificando ao longo do tempo dentro da comunidade israelita.
Em relação às questões gramaticais, o autor destaca que a palavra מַחְסֶה (maḥseh) é um substantivo masculino que deriva da raiz חסה (ḥ-s-h), formando um substantivo verbal que indica o resultado ou local da ação de “proteger-se” ou “buscar refúgio”. Existe também a forma מָעוֹן (māʿôn), que é um substantivo masculino derivado da raiz עוּן (‘wn), que significa “habitar”, “assentar-se”, e transmite a ideia de morada, estando associado, em textos dos Salmos, a um lugar de abrigo. A alternância e até substituição desses termos dentro da tradição textual do Saltério indicam variações regionais, editoriais ou de interpretação teológica do texto. Substancialmente, esta questão também demonstra a multiplicidade de imagens utilizadas para descrever Deus como aquele que não só oferece proteção, mas é também habitação estável e segura para o fiel.
Além disso, Creach observa que os modos verbais relacionados a חסה (ḥ-s-h), como a forma imperativa ou infinitiva construto, são associados à ideia de ‘buscar refúgio’, ‘confiar’ ou ‘esperar’ em Yahweh, aproximando-se da atitude que o crente deve manifestar ao colocar sua confiança em Deus. Assim, não é simplesmente o substantivo que carrega o sentido teológico, mas também a forma verbal que expressa uma ação intencional de busca de proteção, o que configura a piedade como
Capítulo 6: Conclusão
O conceito de Yahweh como refúgio é uma metáfora profundamente enraizada na literatura bíblica hebraica, especialmente no Livro dos Salmos. Trata-se de uma figura que sintetiza a relação do povo de Israel com seu Deus, expressando uma dependência confiável, um abrigo seguro em tempos de adversidade, e uma garantia da proteção divina contra ameaças externas e internas. O presente ensaio busca oferecer uma análise abrangente dessa metáfora, investigando suas origens, seu desenvolvimento ao longo da história de Israel e sua função literária e teológica no texto do Saltério, conforme estudado por Jerome F. D. Creach no seu trabalho aqui analisado.
1. O Significado da Metáfora ‘Yahweh como Refúgio’
A metáfora do refúgio é uma das imagens centrais através das quais Israel compreendeu e expressou a proteção de Yahweh em sua história. De acordo com Creach, para falar de Yahweh como refúgio é, na sua essência, reconhecer os auspícios da soberania de Deus como rei. Esta metáfora traduz a experiência de segurança e proteção que o povo experimentava sob a tutela de Yahweh, especialmente em contextos de insegurança política, social ou pessoal. A figura verbaliza um sentimento de confiança e dependência, convidando a uma adesão não apenas normativa, mas existencial à proteção divina.
A maneira como esta metáfora está integrada no Saltério insinua que os adoradores antigos concebiam a relação com Deus em termos de proteção pessoal e nacional. O Salmo 46, por exemplo, contém uma declaração clara: “Deus é nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia” (Sl 46:1). Neste texto, o refúgio é descrito como um lugar seguro, uma fortaleza onde se pode encontrar ajuda imediata. Porém, os Salmos também expandem este conceito para dimensões espirituais e éticas, associando o refúgio à Torá (a Lei de Deus) e à ação misericordiosa do Senhor.
2. Origens e Desenvolvimento do Conceito
2.1. Perspectiva Histórica e Político-Religiosa
Identificar a origem da metáfora do refúgio para Yahweh envolve um exame cuidadoso das fontes bíblicas e da cultura do antigo Oriente Próximo. Creach aponta que, embora o termo hebraico hasid (ou da mesma raiz hdsd usada para ‘refúgio’) apareça com frequência nas Escrituras, a ideia exata de “refúgio” para a divindade não parece encontrar muitos paralelos diretos nas literaturas das culturas vizinhas, como as mesopotâmicas ou egípcias, o que torna o assunto ainda mais fascinante e peculiar.
Nos primeiros textos datados, particularmente os compositores da época do Reino Unido de Israel (séculos X a VII a.C.), a metáfora do refúgio é percebida principalmente em discursos associados à política nacional e à realeza. Nesta fase, o termo se associa claramente ao papel do rei humano como protetor do povo, que por sua vez reflete o papel do rei divino como Deus soberano. É interessante observar que em textos como Deuteronômio 32 e no Salmo 78 há indicação de que Deus é o protetor último da nação, olhando a salvaguarda contra inimigos e garantindo a prosperidade nacional.
2.2. Transição para uma Dimensão de Piedade Pessoal
Um dos aspectos mais instigantes é a transformação que o conceito sofre ao longo do tempo. Enquanto nos primeiros registros a ideia de refúgio está mais ligada ao âmbito nacional e político, nas composições posteriores, especialmente nos Salmos tardios e na literatura sapiencial, esta metáfora toma uma dimensão mais pessoal e existencial. O foco deixa de ser o estado nacional ou a figura do rei e passa a ser a vida individual do fiel, que encontra em Yahweh a demonstração de uma proteção contínua, íntima e confiável.
Essa mudança implica uma reinterpretação e ampliação da metáfora, que agora inclui elementos de devoção individual e de estudo da Torá como expressão concreta da dependência do crente em Yahweh. Este processo densifica o significado, conectando a experiência da proteção divina à prática religiosa cotidiana e à educação na vontade de Deus, sugerindo que o refúgio não é apenas um lugar, mas também um modo de vida.
3. Contexto Linguístico e Teológico
A análise do termo hebraico relacionado ao conceito de refúgio no vocabulário bíblico revela uma complexidade significativa. Palavras como hasid, misgah (refúgio, fortaleza), mesudah (fortaleza), e termos derivados são empregados para comunicar nuances da ideia de proteção e segurança. No entanto, é importante destacar que o termo hasid, frequentemente traduzido como “refúgio” ou “proteção”, não aparece com esta conotação legal em textos literais da lei, como os citados sobre as cidades de refúgio (miqlat) que aparecem em textos como Números 35 e Josué 20.
De fato, nesses textos legais, o conceito de refúgio está mais relacionado à ideia de “fuga” ou “escapatória” para proteger o homicida involuntário de vingança, enfatizando um asilo judicial estruturado pela legislação. O verbo usado para designar a fuga nesses casos é nus, que difere do vocábulo que denota o refúgio divino. Além disso, termos como miqlat aplicam-se apenas aos locais físicos específicos de asilo e não ao santuário em si.
Outro aspecto linguístico importante reside na figura das “asas de Yahweh”, uma imagem poética muito evocativa do cuidado protetor de Deus, que algumas vezes foi interpretada como uma referência indireta aos querubins no templo. No entanto, conforme salienta Creach e outros estudiosos, embora os querubins sejam mencionados como “porteiros” em alguns salmos (por exemplo, Sl 18:10; 80:1; 99:1), eles não desempenham uma função protetora metafórica emblemática. As “asas” de Deus, portanto, simbolizam a proteção divina que envolve o fiel, não uma função ritualística dos querubins.
4. Yahweh, Reino e Refúgio: Uma Relação Indissociável
A noção de Yahweh como refúgio está profundamente entrelaçada com a concepção de seu reinado soberano. Ele é o “rei dos reis”, cuja autoridade proporciona estabilidade e segurança ao seu povo.
Conforme remarcado em estudos que analisam a metáfora do rei, Yahweh é entendido como aquele que oferece proteção análoga àquela proporcionada pelas fortificações do reino, como as cidades muradas e locais seguros. Por isso, o próprio território de Israel, e especialmente Jerusalém, a “cidade do grande rei”, é considerado um símbolo físico e espiritual do refúgio que Deus oferece.
Essa ligação é expressa em textos poéticos que destacam o fato de que Deus habita na “cidade forte”, um lugar seguro e elevado, onde sua revelação ocorre e de onde sua presença acalma os fiéis. Portanto, a metáfora do refúgio funciona também como um símbolo do domínio divino e da legitimidade do reinado de Yahweh sobre o mundo criado.
5. Refúgio e Sociologia Religiosa: Implicações para Israel
A metáfora do refúgio oferece insights não apenas para a teologia, mas também para compreender os valores sociais e espirituais da antiga Israel.
O fato de que a linguagem da proteção divina foi incorporada num rico conjunto de sinônimos e imagens indica que ela correspondia a uma necessidade social indispensável: a comunidade precisava assegurar-se de que, apesar das ameaças políticas, sociais e espirituais, Deus estava sempre presente como defensor e guardião.
De acordo com a observação feita por estudiosos como H. Sperber, o número elevado de termos sinônimos para figuras de proteção (como o herói ou o guerreiro, ou neste caso, refúgio e fortaleza) reflete os interesses da sociedade israelita, que procurava exprimir, através da linguagem metafórica, sua fé e sua esperança numa fonte segura de segurança e salvação.
6. A Função da Metáfora no Saltério e na Devoção
Na obra de Jerome F. D. Creach, uma importante contribuição para o estudo do Saltério e da teologia bíblica é sua análise detalhada da metáfora de Yahweh como refúgio. Segundo ele, o Saltério não deve ser compreendido simplesmente como uma coleção heterogênea de orações, louvores, lamentações e ações de graças, mas antes como um guia coerente para a vida de fé, uma estrutura literária e espiritual que orienta o fiel na prática da dependência confiante em Yahweh. Esta metáfora, “Yahweh é meu refúgio”, funciona como um fio condutor que ajuda a articular a relação entre o crente e Deus, sobretudo na experiência do sofrimento e da adversidade — um tema recorrente no Saltério.
Creach enfatiza que o Saltério não se limita a exprimir temas religiosos ou expressar sentimentos individuais, mas desempenha também um papel pedagógico, enfatizando a confiança em Yahweh como rei e protetor, cuja proteção é acessível por intermédio da observância da Torá, a instrução divina que é apresentada como guia para a vida fiel (pp. 74-75). A metáfora do refúgio, segundo o autor, transcende o mero simbolismo poético para preencher uma função prática — ao colocar Yahweh como aquele em quem os crentes podem se esconder e confiar, ela direciona a modalidade existencial do devoto, que deve viver em dependência de Deus, especialmente em meio às dificuldades.
Um dos pontos centrais da análise de Creach está na associação da figura do refúgio com a Torá (“instrução”), que em algumas das últimas seções do Saltério, como o famoso Salmo 119, é amplamente enfatizada. Essa relação sugere que a entrega à Torá é a expressão concreta da confiança em Yahweh, estabelecendo a leitura do Saltério como uma orientação para uma vida moldada pela prática da lei divina (p. 74). Isto é, o estudo e a internalização da Torá constituem o caminho pelo qual o devoto manifesta sua fé e sua confiança na proteção e cuidado providenciais de Deus.
Tal associação entre refúgio e instrução divina tem implicações teológicas profundas porque revela que a devoção no Saltério não é passiva, mas sim uma postura ativa, dinâmica e disciplinada. O fiel é convocado a buscar proteção não somente simbolicamente em Deus, mas por meios concretos de obediência e prática espiritual. Portanto, a confiança em Yahweh, enquanto refúgio, envolve uma resposta ético-religiosa ativa, que se manifesta na adesão à Torá, formando um círculo virtuoso entre confiança, proteção divina e obediência ao ensino sagrado.
Outro elemento crucial levantado por Creach é o desenvolvimento histórico e literário da metáfora do refúgio dentro da Bíblia. Segundo ele, a metáfora aparece inicialmente em contextos de política nacional, discurso real e poder estatal (pp. 64-65). Em textos antigos, por exemplo, a ideia de Yahweh como refúgio está estreitamente ligada à proteção do rei e do povo, refletindo uma visão coletiva da experiência de segurança provida por Deus. Estes contextos incluem orações e bênçãos relacionadas à proteção nacional, com firme alusão ao papel do rei como representante da ordem e da segurança divinas.
Porém, ao longo do tempo e da evolução literária, ocorre um desdobramento significativo. A metáfora de Yahweh como refúgio começa a ser deslocada do campo da esfera coletiva para o âmbito pessoal, passando a ser usada principalmente para expressar a devoção individual de fiéis que buscam em Deus proteção contra aflições pessoais, inimigos e perigos existenciais. Este movimento indica uma valorização aumentada da relação pessoal e íntima com Deus, mostrando uma transição na função da metáfora, de um conceito político para uma expressão fundamental da vida religiosa e espiritual do indivíduo (p. 64).
Este desenvolvimento tem ainda importantes repercussões para a leitura e composição final do Saltério, pois revela que a coleção reflete e integra camadas variadas de tradição e linguagem teológica, mesclando temas coletivos e individuais e dialogando com várias fases da literatura bíblica. Essa complexidade contribui para que o Saltério funcione como um manual de devoção que combina a dimensão comunal e a experiência pessoal da fé, sempre tendo Yahweh como centro da segurança e do socorro (pp. 74-75).
Além disso, Creach aponta que as possíveis origens da metáfora são múltiplas e complementares, envolvendo tradições culturais e religiosas do antigo Israel. Ele destaca três fontes possíveis para a construção da metáfora de Yahweh como refúgio: primeiro, a ideia de que o santuário israelita funcionava como um lugar de refúgio e asilo, visando oferecer proteção real contra inimigos e perigos; segundo, a imagem protetora da ave que protege seus filhotes com as asas, símbolo que enfatiza ternura e cuidado materno; e terceiro, abrigo em esconderijos naturais na paisagem palestina, como cavernas e outros lugares onde se podia fugir para escapar de ameaças (pp. 60-62,).
Cada uma dessas origens enriquece a metáfora, que não é abstrata, mas firmemente enraizada na experiência concreta do povo, tanto na sua prática religiosa quanto em sua vivência cotidiana. O santuário, por exemplo, não era apenas um local de culto, mas uma fortaleza física e espiritual, e a imagem da ave remete a uma forma afetiva de proteção, conferindo à metáfora uma dimensão emocional profunda. Já as figuras dos esconderijos naturais evocam a situação real de vulnerabilidade diante da violência e do perigo na terra de Israel, trazendo uma perspectiva prática e existencial.
Muito além dessas imagens, a metáfora do refúgio está inexoravelmente ligada à figura de Yahweh como rei soberano, que governa e protege seu povo. Creach retoma o trabalho de outros estudiosos (pp. 51-52,) para indicar que a concepção de Yahweh como rei permeia a linguagem e as figuras metafóricas da Bíblia, sendo uma “metáfora raiz” (root-metaphor) que sustenta diversas possibilidades expressivas, entre elas, a de Deus como refúgio. Essa centralidade da realeza explica por que muitos atributos divinos reverberam a ideia de Deus como guerreiro, juiz, pastor e refúgio — todos eles componentes da função régia do Senhor.
Reconhecer esse vínculo entre reinado e refúgio ajuda a entender a metáfora sob uma perspectiva teológica ampla: a proteção oferecida por Yahweh não significa apenas socorro individual, mas implica na sua autoridade e no seu governo justo. O Saltério, então, não exalta apenas um Deus salvador, mas sobretudo um Deus rei, que exerce soberania benevolente e cujo cuidado pelo povo é uma extensão de sua majestade e poder.
Outra observação relevante de Creach é que a adoção da metáfora do refúgio ao longo do tempo inclui elementos de pesquisa e incorporação de textos anteriores e da literatura de outras correntes teológicas israelitas — especialmente da área da sabedoria e dos escritos tardios — indicando um processo de edição e desenvolvimento literário contínuo até a forma final do Saltério (p. 74). O efeito é que o livro não é apenas uma compilação passiva, mas uma construção literária e teológica cuidadosamente organizada, que busca não apenas representar a diversidade de vozes e experiências, mas também ensinar e encorajar um comportamento específico de fé.
Esta função pedagógica do Saltério se reflete na sua finalidade prática: ser um instrumento para a vivência da fé, especialmente em contextos de crise ou instabilidade. Por meio da metáfora do refúgio, o Saltério convida o leitor a encontrar em Yahweh um abrigo histórico e espiritual, mostrando que a verdadeira segurança está não nos poderes humanos ou nas fortalezas físicas, mas na dependência radical e na submissão à vontade divina expressa pela Torá.
Por fim, a análise de Creach convida a uma leitura saudável do Saltério, que integra linguagem poética e teologia prática, para uma compreensão do cultivo da confiança no Senhor que não é ilusória, mas assentada em realidades espirituais, teológicas e existenciais. O Saltério, em suma, é um manual da fé em que a metáfora central do refúgio promove um modo de vida em que o fiel se protege e se sustenta na segurança provida por Yahweh, reforçada pela vivência da lei, pela experiência da realeza divina e pela entrega pessoal ao Deus vivo.
Fonte: CREACH, Jerome F. D. Yahweh as Refuge and the Editing of the Hebrew Psalter. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996. (Journal for the Study of the Old Testament Supplement Series; 217).