Livros Apócrifos — Part I
Livros Apócrifos
A palavra grega apókryfos é usada no seu sentido original em três textos bíblicos como se referindo a coisas ‘cuidadosamente ocultas’. (Mr 4:22; Lu 8:17; Col 2:3) Conforme aplicada a escritos, referia-se originalmente àqueles que não eram lidos em público, portanto, ‘ocultos’ de outros. Mais tarde, contudo, a palavra assumiu o sentido de espúrio ou não-canônico, e atualmente é usada mais comumente para referir-se aos escritos adicionais declarados pela Igreja Católica Romana, no Concílio de Trento (1546), como fazendo parte do cânon da Bíblia. Os escritores católicos se referem a tais livros como deuterocanônicos, que significa “do segundo (ou posterior) cânon”, para diferenciá-los dos protocanônicos.
Esses escritos adicionais são Tobias, Judite, Sabedoria (de Salomão), Eclesiástico (não Eclesiastes), Baruc, 1 e 2 Macabeus, suplementos de Ester, e três adições a Daniel, com nomes diversos, tais como: Cântico dos Três Jovens, Susana e os Anciãos, e A Destruição de Bel e do Dragão. O tempo exato de sua escrita é incerto, mas a evidência indica uma época não anterior ao segundo ou terceiro séculos AEC.
I. Evidência Contra a Canonicidade.
Embora, em alguns casos, apresentem certo valor histórico, qualquer afirmação de canonicidade por parte destes escritos não dispõe de nenhuma base sólida. A evidência aponta para o término do cânon hebraico depois da escrita dos livros de Esdras, Neemias e Malaquias, no quinto século AEC. Os escritos apócrifos jamais foram incluídos no cânon judaico das Escrituras inspiradas, e não fazem parte dele atualmente.
Josefo, historiador judeu do primeiro século, mostra o reconhecimento dado apenas a esses poucos livros (do cânon hebraico) considerados sagrados, dizendo: “Não possuímos miríades de livros incoerentes, que discordam entre si. Nossos livros, os devidamente acreditados, são apenas vinte e dois [equivalentes aos 39 livros das Escrituras Hebraicas segundo a divisão moderna], e contêm o registro de todos os tempos.” Daí, ele mostra de forma clara ter consciência da existência de livros apócrifos e de sua exclusão do cânon hebraico, por acrescentar: “Desde o tempo de Artaxerxes até o nosso próprio tempo, a história completa foi escrita, mas não foi considerada digna de crédito igual aos registros anteriores, porque cessou a sucessão exata dos profetas.” — Against Apion (Contra Apião), I, 38, 41 (8).
II. Inclusão na “Septuaginta”.
Os argumentos a favor da canonicidade dos escritos geralmente giram em torno do fato de que estes escritos apócrifos podem ser encontrados em muitas cópias primitivas da tradução Septuaginta grega das Escrituras Hebraicas, tradução iniciada no Egito por volta de 280 AEC. No entanto, visto que não existem cópias originais da Septuaginta, não se pode afirmar categoricamente que os livros apócrifos foram originalmente incluídos nesta obra. Muitos, talvez a maioria, dos escritos apócrifos foram admitidamente escritos depois do início do trabalho de tradução da Septuaginta, e assim, obviamente, não constavam da original lista de livros escolhidos para a tradução por parte do grupo de tradutores. No máximo, então, só poderiam ser reputados como acréscimos a tal obra.
Adicionalmente, embora os judeus de língua grega de Alexandria com o tempo inserissem tais escritos apócrifos na Septuaginta grega, e, pelo que parece, os considerassem como parte dum cânon ampliado de escritos sagrados, a declaração de Josefo, já citada, mostra que jamais foram incluídos no cânon de Jerusalém, ou Palestino, e, no máximo, eram considerados como apenas escritos secundários, e não de origem divina. Assim, o judaico Concílio de Jâmnia (por volta de 90 EC) excluiu especificamente do cânon hebraico todos esses escritos.
A necessidade de se dar a devida consideração à posição judaica sobre esse assunto é claramente especificada pelo apóstolo Paulo em Romanos 3:1, 2.
III. Testemunho antigo adicional.
Uma das principais evidências externas contra a canonicidade dos Apócrifos é que nenhum dos escritores bíblicos cristãos citou tais livros. Embora isso, por si só, não seja conclusivo, visto que em seus escritos também faltam citações de alguns livros reconhecidos como canônicos, tais como Ester, Eclesiastes e O Cântico de Salomão, todavia, o fato de que nenhum dos escritos dos Apócrifos é citado sequer uma só vez é certamente significativo.
Não deixa de ter seu peso, também, o fato de que os principais peritos bíblicos e “pais da igreja” dos primeiros séculos da Era Comum, no todo, deram aos Apócrifos uma posição inferior. Orígenes, do início do terceiro século EC, em resultado de cuidadosa investigação, fez tal diferenciação entre esses escritos e os do cânon verdadeiro. Atanásio, Cirilo de Jerusalém, Gregório Nazianzeno e Anfíloco, todos do quarto século EC, prepararam catálogos que alistavam os escritos sagrados de acordo com o cânon hebraico, e, ou desconsideraram esses escritos adicionais ou os colocaram numa classe secundária.
Jerônimo, descrito como “o melhor perito hebraico” da igreja primitiva, e que terminou a tradução da Vulgata latina em 405 EC, adotou uma posição definida contra tais livros apócrifos, e foi na realidade o primeiro a usar a palavra “apócrifos” explicitamente no sentido de não-canônicos, como se aplicando a tais escritos.
Assim, no seu prólogo aos livros de Samuel e de Reis, Jerônimo alista os livros inspirados das Escrituras Hebraicas em harmonia com o cânon hebraico (em que os 39 livros estão agrupados como 22) e então diz: “De modo que há vinte e dois livros . . . Este prólogo das Escrituras pode servir como enfoque fortificado para todos os livros que traduzimos do hebraico para o latim; de modo que saibamos que tudo o que for além destes precisa ser colocado entre os apócrifos.” Ao escrever a uma senhora chamada Laeta, sobre a educação da filha dela, Jerônimo aconselhou-a: “Todos os livros apócrifos devem ser evitados; mas, se ela quiser alguma vez lê-los, não para determinar a verdade das suas doutrinas, mas por respeito pelos seus maravilhosos contos, deve dar-se conta de que não foram realmente escritos por aqueles a quem são atribuídos, que eles contêm muitos elementos falhos, e que requer grande perícia para achar ouro na lama.” — Select Letters (Cartas Seletas), CVII.
IV. Conceitos católicos divergentes.
A tendência para incluir estes escritos adicionais como canônicos foi primariamente iniciada por Agostinho (354-430 EC), embora até mesmo ele, em obras posteriores, reconhecesse que havia uma distinção definida entre os livros do cânon hebraico e tais “livros alheios”. No entanto, a Igreja Católica, seguindo o exemplo de Agostinho, incluiu esses escritos adicionais no cânon dos livros sagrados determinado pelo Concílio de Cartago em 397 EC. Todavia, não foi senão muito mais tarde, em 1546 EC, no Concílio de Trento, que a Igreja Católica Romana confirmou definitivamente sua aceitação dessas adições no seu catálogo dos livros da Bíblia, e esta ação foi julgada necessária porque, mesmo dentro da igreja, a opinião ainda estava dividida quanto a tais escritos. João Wycliffe, o sacerdote e perito católico romano que, com a subseqüente ajuda de Nicolas de Hereford, no século 14, fez a primeira tradução da Bíblia para o inglês, não incluiu os Apócrifos em sua obra, e o prefácio desta tradução declarava que tais escritos “não têm a autoridade de crença”. O cardeal dominicano Cajetan, o mais destacado teólogo católico do seu tempo (1469-1534 EC) e chamado por Clemente VII de “lâmpada da Igreja”, também discriminou os livros do verdadeiro cânon hebraico das obras apócrifas, apelando para os escritos de Jerônimo como autoridade.
Deve-se observar também que o Concílio de Trento não aceitou todos os escritos anteriormente aprovados pelo precedente Concílio de Cartago, mas deixou de lado três deles: a Oração de Manassés, e 1 e 2 Esdras [não os livros de 1 e 2 Esdras que, em algumas versões católicas, correspondem a Esdras e Neemias]. Assim, estes três escritos, que haviam aparecido por mais de 1.100 anos na aprovada Vulgata latina, foram então excluídos.
V. Evidência interna.
A evidência interna destes escritos apócrifos tem ainda maior peso contra a sua canonicidade do que a externa. Falta-lhes completamente o elemento profético. Seu conteúdo e seus ensinos às vezes contradizem os dos livros canônicos e também são contraditórios entre si. Estão repletos de inexatidões históricas e geográficas, e de anacronismos. Os escritores, em alguns casos, são culpados de desonestidade, ao representarem falsamente suas obras como sendo de anteriores escritores inspirados.
Mostram-se sob influência grega pagã, por vezes até recorrendo a uma linguagem extravagante e a um estilo literário inteiramente estranho às Escrituras inspiradas. Dois dos escritores dão a entender que não foram inspirados. (Veja o Prólogo de Eclesiástico, CBC; 2 Macabeus 2:24-32; 15:38-40, So.) Assim, pode-se dizer que a melhor evidência contra a canonicidade dos Apócrifos são os próprios Apócrifos. Segue aqui uma consideração dos livros individuais:
VI. Tobias (Tobit).
O relato de um judeu pio da tribo de Naftali, que é deportado para Nínive e que fica cego por lhe ter caído esterco de pássaro em ambos os olhos. Ele manda seu filho, Tobias, à Média para cobrar uma dívida, e Tobias é guiado por um anjo, que se faz passar por homem, a Ecbátana (Ragés). Em caminho, ele obtém o coração, o fígado e o fel dum peixe. Encontra-se com uma viúva, a qual, embora casada sete vezes, continua virgem, visto que cada marido foi morto na noite das núpcias por Asmodeu, o mau espírito. Incentivado pelo anjo, Tobias casa-se com a virgem enviuvada, e por queimar o coração e o fígado do peixe, expulsa o demônio. Retornando para casa, restabelece a visão do pai por usar o fel do peixe.
É provável que a história tenha sido originalmente escrita em aramaico, e calcula-se que ela seja aproximadamente do terceiro século AEC. Obviamente, ela não é inspirada por Deus, por causa da superstição e do erro encontrados na narrativa. Entre as inexatidões encontradas nela está a seguinte: O relato diz que Tobias, na sua juventude, viu a revolta das tribos setentrionais, que ocorreu em 997 AEC, após a morte de Salomão (Tobias 1:4, 5, BJ), também, que ele foi posteriormente deportado para Nínive, junto com a tribo de Naftali, em 740 AEC. (Tobias 1:11-13, CBC, So) Isto significaria que ele viveu por mais de 257 anos. No entanto, Tobias 14:1-3 (CBC) diz que ele tinha 102 anos de idade quando morreu.
VII. Judite.
Este é o relato sobre uma bela viúva judia da cidade de “Betúlia”. Nabucodonosor envia seu oficial Holofernes numa campanha para o O, para destruir toda a adoração, exceto a do próprio Nabucodonosor. Os judeus em Betúlia são sitiados, mas Judite finge ser traidora da causa judaica e é admitida ao acampamento de Holofernes, onde ela lhe dá um relatório falso sobre as condições da cidade. Num banquete, no qual Holofernes fica embriagado, ela consegue decapitá-lo com a própria espada dele e então retornar a Betúlia com a cabeça dele. Na manhã seguinte, o acampamento inimigo é lançado em confusão, e os judeus ganham uma vitória completa.
Conforme comenta a tradução católica de A Bíblia de Jerusalém na sua Introdução aos livros de Tobias, Judite e Ester: “O livro de Judite, sobretudo, manifesta uma soberba indiferença pela história e pela geografia.” Entre as incoerências indicadas nesta introdução encontra-se esta: Declara-se que os eventos ocorreram durante o reinado de Nabucodonosor, que é chamado de rei “que reinou sobre os assírios em Nínive, a grande cidade”. (Judite 1:1, 7 [1:5, 10, CBC, So]) A introdução e as notas desta tradução indicam que Nabucodonosor era rei de Babilônia e nunca reinou em Nínive, visto que Nínive havia sido destruída anteriormente pelo pai de Nabucodonosor, Nabopolassar.
Acerca do itinerário do exército de Holofernes, esta Introdução declara que é “um desafio à geografia”. O Novo Dicionário da Bíblia (Vol. 1, p. 92) comenta: “A história não passa de franca ficção — doutro modo suas inexatidões seriam incríveis.” — Editor organizador J. D. Douglas, 1966, Edições Vida Nova, São Paulo.
Pensa-se que o livro fora escrito na Palestina durante o período grego, perto do fim do segundo século ou do começo do primeiro século AEC. Crê-se que fora originalmente escrito em hebraico.
A palavra grega apókryfos é usada no seu sentido original em três textos bíblicos como se referindo a coisas ‘cuidadosamente ocultas’. (Mr 4:22; Lu 8:17; Col 2:3) Conforme aplicada a escritos, referia-se originalmente àqueles que não eram lidos em público, portanto, ‘ocultos’ de outros. Mais tarde, contudo, a palavra assumiu o sentido de espúrio ou não-canônico, e atualmente é usada mais comumente para referir-se aos escritos adicionais declarados pela Igreja Católica Romana, no Concílio de Trento (1546), como fazendo parte do cânon da Bíblia. Os escritores católicos se referem a tais livros como deuterocanônicos, que significa “do segundo (ou posterior) cânon”, para diferenciá-los dos protocanônicos.
Esses escritos adicionais são Tobias, Judite, Sabedoria (de Salomão), Eclesiástico (não Eclesiastes), Baruc, 1 e 2 Macabeus, suplementos de Ester, e três adições a Daniel, com nomes diversos, tais como: Cântico dos Três Jovens, Susana e os Anciãos, e A Destruição de Bel e do Dragão. O tempo exato de sua escrita é incerto, mas a evidência indica uma época não anterior ao segundo ou terceiro séculos AEC.
I. Evidência Contra a Canonicidade.
Embora, em alguns casos, apresentem certo valor histórico, qualquer afirmação de canonicidade por parte destes escritos não dispõe de nenhuma base sólida. A evidência aponta para o término do cânon hebraico depois da escrita dos livros de Esdras, Neemias e Malaquias, no quinto século AEC. Os escritos apócrifos jamais foram incluídos no cânon judaico das Escrituras inspiradas, e não fazem parte dele atualmente.
Josefo, historiador judeu do primeiro século, mostra o reconhecimento dado apenas a esses poucos livros (do cânon hebraico) considerados sagrados, dizendo: “Não possuímos miríades de livros incoerentes, que discordam entre si. Nossos livros, os devidamente acreditados, são apenas vinte e dois [equivalentes aos 39 livros das Escrituras Hebraicas segundo a divisão moderna], e contêm o registro de todos os tempos.” Daí, ele mostra de forma clara ter consciência da existência de livros apócrifos e de sua exclusão do cânon hebraico, por acrescentar: “Desde o tempo de Artaxerxes até o nosso próprio tempo, a história completa foi escrita, mas não foi considerada digna de crédito igual aos registros anteriores, porque cessou a sucessão exata dos profetas.” — Against Apion (Contra Apião), I, 38, 41 (8).
II. Inclusão na “Septuaginta”.
Os argumentos a favor da canonicidade dos escritos geralmente giram em torno do fato de que estes escritos apócrifos podem ser encontrados em muitas cópias primitivas da tradução Septuaginta grega das Escrituras Hebraicas, tradução iniciada no Egito por volta de 280 AEC. No entanto, visto que não existem cópias originais da Septuaginta, não se pode afirmar categoricamente que os livros apócrifos foram originalmente incluídos nesta obra. Muitos, talvez a maioria, dos escritos apócrifos foram admitidamente escritos depois do início do trabalho de tradução da Septuaginta, e assim, obviamente, não constavam da original lista de livros escolhidos para a tradução por parte do grupo de tradutores. No máximo, então, só poderiam ser reputados como acréscimos a tal obra.
Adicionalmente, embora os judeus de língua grega de Alexandria com o tempo inserissem tais escritos apócrifos na Septuaginta grega, e, pelo que parece, os considerassem como parte dum cânon ampliado de escritos sagrados, a declaração de Josefo, já citada, mostra que jamais foram incluídos no cânon de Jerusalém, ou Palestino, e, no máximo, eram considerados como apenas escritos secundários, e não de origem divina. Assim, o judaico Concílio de Jâmnia (por volta de 90 EC) excluiu especificamente do cânon hebraico todos esses escritos.
A necessidade de se dar a devida consideração à posição judaica sobre esse assunto é claramente especificada pelo apóstolo Paulo em Romanos 3:1, 2.
III. Testemunho antigo adicional.
Uma das principais evidências externas contra a canonicidade dos Apócrifos é que nenhum dos escritores bíblicos cristãos citou tais livros. Embora isso, por si só, não seja conclusivo, visto que em seus escritos também faltam citações de alguns livros reconhecidos como canônicos, tais como Ester, Eclesiastes e O Cântico de Salomão, todavia, o fato de que nenhum dos escritos dos Apócrifos é citado sequer uma só vez é certamente significativo.
Não deixa de ter seu peso, também, o fato de que os principais peritos bíblicos e “pais da igreja” dos primeiros séculos da Era Comum, no todo, deram aos Apócrifos uma posição inferior. Orígenes, do início do terceiro século EC, em resultado de cuidadosa investigação, fez tal diferenciação entre esses escritos e os do cânon verdadeiro. Atanásio, Cirilo de Jerusalém, Gregório Nazianzeno e Anfíloco, todos do quarto século EC, prepararam catálogos que alistavam os escritos sagrados de acordo com o cânon hebraico, e, ou desconsideraram esses escritos adicionais ou os colocaram numa classe secundária.
Jerônimo, descrito como “o melhor perito hebraico” da igreja primitiva, e que terminou a tradução da Vulgata latina em 405 EC, adotou uma posição definida contra tais livros apócrifos, e foi na realidade o primeiro a usar a palavra “apócrifos” explicitamente no sentido de não-canônicos, como se aplicando a tais escritos.
Assim, no seu prólogo aos livros de Samuel e de Reis, Jerônimo alista os livros inspirados das Escrituras Hebraicas em harmonia com o cânon hebraico (em que os 39 livros estão agrupados como 22) e então diz: “De modo que há vinte e dois livros . . . Este prólogo das Escrituras pode servir como enfoque fortificado para todos os livros que traduzimos do hebraico para o latim; de modo que saibamos que tudo o que for além destes precisa ser colocado entre os apócrifos.” Ao escrever a uma senhora chamada Laeta, sobre a educação da filha dela, Jerônimo aconselhou-a: “Todos os livros apócrifos devem ser evitados; mas, se ela quiser alguma vez lê-los, não para determinar a verdade das suas doutrinas, mas por respeito pelos seus maravilhosos contos, deve dar-se conta de que não foram realmente escritos por aqueles a quem são atribuídos, que eles contêm muitos elementos falhos, e que requer grande perícia para achar ouro na lama.” — Select Letters (Cartas Seletas), CVII.
IV. Conceitos católicos divergentes.
A tendência para incluir estes escritos adicionais como canônicos foi primariamente iniciada por Agostinho (354-430 EC), embora até mesmo ele, em obras posteriores, reconhecesse que havia uma distinção definida entre os livros do cânon hebraico e tais “livros alheios”. No entanto, a Igreja Católica, seguindo o exemplo de Agostinho, incluiu esses escritos adicionais no cânon dos livros sagrados determinado pelo Concílio de Cartago em 397 EC. Todavia, não foi senão muito mais tarde, em 1546 EC, no Concílio de Trento, que a Igreja Católica Romana confirmou definitivamente sua aceitação dessas adições no seu catálogo dos livros da Bíblia, e esta ação foi julgada necessária porque, mesmo dentro da igreja, a opinião ainda estava dividida quanto a tais escritos. João Wycliffe, o sacerdote e perito católico romano que, com a subseqüente ajuda de Nicolas de Hereford, no século 14, fez a primeira tradução da Bíblia para o inglês, não incluiu os Apócrifos em sua obra, e o prefácio desta tradução declarava que tais escritos “não têm a autoridade de crença”. O cardeal dominicano Cajetan, o mais destacado teólogo católico do seu tempo (1469-1534 EC) e chamado por Clemente VII de “lâmpada da Igreja”, também discriminou os livros do verdadeiro cânon hebraico das obras apócrifas, apelando para os escritos de Jerônimo como autoridade.
Deve-se observar também que o Concílio de Trento não aceitou todos os escritos anteriormente aprovados pelo precedente Concílio de Cartago, mas deixou de lado três deles: a Oração de Manassés, e 1 e 2 Esdras [não os livros de 1 e 2 Esdras que, em algumas versões católicas, correspondem a Esdras e Neemias]. Assim, estes três escritos, que haviam aparecido por mais de 1.100 anos na aprovada Vulgata latina, foram então excluídos.
V. Evidência interna.
A evidência interna destes escritos apócrifos tem ainda maior peso contra a sua canonicidade do que a externa. Falta-lhes completamente o elemento profético. Seu conteúdo e seus ensinos às vezes contradizem os dos livros canônicos e também são contraditórios entre si. Estão repletos de inexatidões históricas e geográficas, e de anacronismos. Os escritores, em alguns casos, são culpados de desonestidade, ao representarem falsamente suas obras como sendo de anteriores escritores inspirados.
Mostram-se sob influência grega pagã, por vezes até recorrendo a uma linguagem extravagante e a um estilo literário inteiramente estranho às Escrituras inspiradas. Dois dos escritores dão a entender que não foram inspirados. (Veja o Prólogo de Eclesiástico, CBC; 2 Macabeus 2:24-32; 15:38-40, So.) Assim, pode-se dizer que a melhor evidência contra a canonicidade dos Apócrifos são os próprios Apócrifos. Segue aqui uma consideração dos livros individuais:
VI. Tobias (Tobit).
O relato de um judeu pio da tribo de Naftali, que é deportado para Nínive e que fica cego por lhe ter caído esterco de pássaro em ambos os olhos. Ele manda seu filho, Tobias, à Média para cobrar uma dívida, e Tobias é guiado por um anjo, que se faz passar por homem, a Ecbátana (Ragés). Em caminho, ele obtém o coração, o fígado e o fel dum peixe. Encontra-se com uma viúva, a qual, embora casada sete vezes, continua virgem, visto que cada marido foi morto na noite das núpcias por Asmodeu, o mau espírito. Incentivado pelo anjo, Tobias casa-se com a virgem enviuvada, e por queimar o coração e o fígado do peixe, expulsa o demônio. Retornando para casa, restabelece a visão do pai por usar o fel do peixe.
É provável que a história tenha sido originalmente escrita em aramaico, e calcula-se que ela seja aproximadamente do terceiro século AEC. Obviamente, ela não é inspirada por Deus, por causa da superstição e do erro encontrados na narrativa. Entre as inexatidões encontradas nela está a seguinte: O relato diz que Tobias, na sua juventude, viu a revolta das tribos setentrionais, que ocorreu em 997 AEC, após a morte de Salomão (Tobias 1:4, 5, BJ), também, que ele foi posteriormente deportado para Nínive, junto com a tribo de Naftali, em 740 AEC. (Tobias 1:11-13, CBC, So) Isto significaria que ele viveu por mais de 257 anos. No entanto, Tobias 14:1-3 (CBC) diz que ele tinha 102 anos de idade quando morreu.
VII. Judite.
Este é o relato sobre uma bela viúva judia da cidade de “Betúlia”. Nabucodonosor envia seu oficial Holofernes numa campanha para o O, para destruir toda a adoração, exceto a do próprio Nabucodonosor. Os judeus em Betúlia são sitiados, mas Judite finge ser traidora da causa judaica e é admitida ao acampamento de Holofernes, onde ela lhe dá um relatório falso sobre as condições da cidade. Num banquete, no qual Holofernes fica embriagado, ela consegue decapitá-lo com a própria espada dele e então retornar a Betúlia com a cabeça dele. Na manhã seguinte, o acampamento inimigo é lançado em confusão, e os judeus ganham uma vitória completa.
Conforme comenta a tradução católica de A Bíblia de Jerusalém na sua Introdução aos livros de Tobias, Judite e Ester: “O livro de Judite, sobretudo, manifesta uma soberba indiferença pela história e pela geografia.” Entre as incoerências indicadas nesta introdução encontra-se esta: Declara-se que os eventos ocorreram durante o reinado de Nabucodonosor, que é chamado de rei “que reinou sobre os assírios em Nínive, a grande cidade”. (Judite 1:1, 7 [1:5, 10, CBC, So]) A introdução e as notas desta tradução indicam que Nabucodonosor era rei de Babilônia e nunca reinou em Nínive, visto que Nínive havia sido destruída anteriormente pelo pai de Nabucodonosor, Nabopolassar.
Acerca do itinerário do exército de Holofernes, esta Introdução declara que é “um desafio à geografia”. O Novo Dicionário da Bíblia (Vol. 1, p. 92) comenta: “A história não passa de franca ficção — doutro modo suas inexatidões seriam incríveis.” — Editor organizador J. D. Douglas, 1966, Edições Vida Nova, São Paulo.
Pensa-se que o livro fora escrito na Palestina durante o período grego, perto do fim do segundo século ou do começo do primeiro século AEC. Crê-se que fora originalmente escrito em hebraico.