FARMAKEIA [Feitiçaria] — Obras da Carne

FARMAKEIA B, ARC, ARA, BJ, P, BLH, BV: feitiçaria(s); Mar.: magia. A palavra farmakeia seguiu um processo de degeneração no significado. Farmakon é uma droga, e farmakeia é o uso de drogas. Há três etapas no significado da palavra.

i. Farmakeia é usada como uma palavra médica sem o menor mau sentido. Platão fala dos diferentes tipos de tratamento médico; a cauterização, a incisão, o uso de drogas, a privação dos alimentos (Platão:Protágoras 354 A). Dá sua própria opinião de que as doenças não-perigosas nunca devem ser complicadas ainda mais pelo uso de drogas (Platão: Timeu 89 B). A esta altura farmakeia é simplesmente uma palavra médica para uso medicinal das drogas.

ii. A palavra passa, então, a denotar o abuso das drogas, ou seja: o uso de drogas para envenenar e não para curar. Assim, lemos acerca da lei a respeito do envenenamento (Platão: Leis 933 B), e Demóstenes acusa um homem mau de envenenamento e de todos os tipos de vilezas (Demóstenes 40.57). Este é o começo do mau sentido da palavra.

iii. Por fim, a palavra assume o significado da feitiçaria e bruxaria. É usada, por exemplo, repetidas vezes para os feiticeiros e mágicos egípcios que competiam com Moisés quando Faraó não queria deixar Israel ir (Êx 7.11, 22; 8.18; Sab. 7.12; 18.13); a magia, bruxaria e feitiçaria são pecados por causa dos quais Isaías prediz a destruição da Babilônia pela ira de Deus (Is 47.9, 12). A palavra completou um círculo inteiro. A partir do significado de uma droga que cura, veio a significar um envolvimento vicioso e maligno na bruxaria e feitiçaria. O cristianismo desenvolveu-se numa era em que o uso da feitiçaria e das artes mágicas era generalizado, e freqüentemente com intenções criminosas.

Sabemos pouca coisa, ou nada, no tocante à feitiçaria, bruxaria e magia nos primeiros séculos da literatura grega. Plínio tem uma história que diz que a magia foi introduzida na Grécia por certo persa chamado Óstanes nos tempos das guerras persas (Plínio: História Natural 30.1). A primeira referência à feitiçaria criminosa acha-se nos discursos de Demóstenes. No discurso contra Aristogeiton refere-se a Teoris de Lemnos, “a feiticeira imunda”, que foi devidamente executada por causa dos seus maus caminhos. Em Roma. já nos dias das Doze Tábuas, achamos um regulamento que proíbe a danificação das colheitas alheias mediante a feitiçaria (Sêneca: Questões Naturais 14.7). Mas foi perto do fim do Império que a magia se generalizou em Roma. J. R. Mozley escreve: “É impossível negar que neste período, tentativas eram feitas no sentido de lesar inimigos e obter vantagens particulares por meios sobrenaturais, de tal maneira que a magia era exibida como prática realmente malévola, senão também maléfica” (Artigo sobre Superstitio, em W. Smith: Dictionary of Greek and Roman Antiquities). Não são poucas as inscrições em túmulos para homenagear as pessoas cuja morte, segundo se declarava, tinha sido provocada pela magia.

Uma delas diz: “Eunia Fructuosa jaz aqui. Morreu de modo imerecido. Paralisada por sortilégios, ficou deitada por longo tempo, de modo que seu espírito foi torturado violentamente até sair dela, antes de ser devolvido à Natureza. Os Fantasmas ou os deuses celestiais serão os vingadores deste crime” (C.I.L. 2756).

Podemos dar uma rápida olhada em algumas destas práticas mágicas que decerto constavam entre aquelas que Paulo proibia. O nome da pessoa a ser lesada era escrita numa tábua com sinais e palavras sinistros. Uma imagem de cera da pessoa era feita e depois derretida lentamente, ou destruída de outra maneira (Virgílio: Éclogas 8.80; Horácio. Sátiras 1.8, 32). Eram feitas tiras de chumbo com o nome da pessoa atacada inscrita nelas, e com uma oração de maldição dedicada aos espíritos do mundo do além. A tira de chumbo passava, então, a ser introduzida num túmulo de modo que os espíritos do mundo do além a vissem e agissem à altura da maldição ali escrita.

Ossos eram enterrados debaixo da casa de algum homem para planejar a sua morte, conforme Tácito conta que foi feito no caso do assassinato de Germânico (Tácito: Anais 2.69; Horácio: Sátiras 2.8.22). Poções de amor eram comuns; a astrologia grassava numa tentativa de se ver o futuro; havia eternas receitas mágicas para fabricar ouro a partir de metais menos valiosos. Galeno, o médico, condena a estultícia daqueles que acrescentam feitiçarias e encantações ao uso das ervas e das drogas. Não é esta, diz ele, a prática da medicina (Galeno:Z) e Simpl. 6). O mau olhado era universalmente temido (Alcifrão: Cartas 1.15; Plínio: História Natural 7.16; Plutarco: Simpósio 7). Ele era especialmente fatal para as crianças. Era possível guardar-se contra ele cuspindo-se nas dobras do casaco (Teócrito: Idflios 6.39; Plínio: História Natural 7.16). Era possível guardar-se contra ele por meio do uso de talismãs. Por estranho que pareça, o talismã consistia num modelo pequeno de falo pendurado no pescoço (turpiculares, Varro o chama: Varro: Lingua Latina 7.37). O mesmo amuleto estranho de proteção também era visto nos jardins e nas lareiras (Plínio:História Natural 19.50).

O mundo antigo estava repleto de práticas mágicas. Em Atos 19.19 lemos a respeito dos peritos nas ciências mágicas em Efeso que queimaram os seus livros quando foram convertidos pelas demonstrações que Paulo fez do poder do nome de Jesus. Quanto tempo isto durou, e quão sério problema era até mesmo na Igreja Cristã pode ser percebido no vigésimo - quarto cânon do Concilio de Ancira em 314 ou 315 d.C, onde foi estipulado que “os que praticam a divinação, e seguem os costumes dos pagãos, ou que levam os homens para as suas casas para a invenção de feitiçarias, ou para purificações” devem passar por “cinco anos de penitência de acordo com os graus estabelecidos”. Deve ter sido extraordinariamente difícil desarraigar de um mundo supersticioso as práticas que se tinham tornado parte integrante da vida cotidiana. E, na realidade, algumas práticas não foram tanto eliminadas quanto cristianizadas, porque achamos cristãos usando pendurados no pescoço, não os amuletos antigos, mas textos cristãos, e até mesmo pequenas cópias em miniatura de partes do NT, fabricadas com este propósito em vista, segundo parece.

Talvez seja esta a melhor oportunidade para notar um fato sinistro a respeito das obras da carne. Sem exceção, cada uma delas é uma perversão de alguma coisa que é boa em si mesma. A imoralidade, a impureza, a libertinagem ou lascívia são perversões do instinto sexual que, por si só, é uma coisa bela e faz parte do amor. A idolatria é uma perversão da adoração, e foi iniciada como uma ajuda à adoração. A feitiçaria é uma perversão do uso das drogas terapêuticas na medicina. As invejas, os ciúmes e as contendas são perversões da nobre ambição e desejo de ser bem-sucedido que pode ser um incentivo à grandeza.

A inimizade e a ira são uma perversão da justa indignação sem a qual a paixão pela bondade não pode existir. As dissenções e as facções são uma perversão da dedicação aos princípios que pode produzir o mártir. As bebedices e as glutonarias são a perversão da alegria do convívio social e das coisas que os homens podem desfrutar de modo satisfatório e legítimo. Em lugar nenhum há uma melhor ilustração do poder do mal ao lançar mão da beleza e torcê-la até torná-la em feldade e ao tomar as coisas mais nobres e fazer delas uma avenida para o pecado. O terror do poder para pecar acha-se exatamente na sua capacidade de tomar a matéria-prima da bondade em potencial e transformá-la em matéria do mal.


FONTE: Obras da Carne e o Fruto do Espírito de William Barclay.