Evangelho de João — Propósito da Escrita

Evangelho de João — Propósito da Escrita

Propósito da Escrita do Evangelho de João

É realmente afortunado o fato de que, diferentemente dos autores Sinópticos, o autor do quarto Evangelho tenha incluído uma declaração do propósito de seu Evangelho. Este propósito declarado encontra-se em João 20:31: “Estes, porém, estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome.” Mesmo com uma declaração direta como esta, foram escritos volumes acerca do propósito específico do autor. Um dos problemas que intrigam e complicam na interpretação é a variação textual com a palavra creiais. Três das mais antigas testemunhas do manuscrito grego (P66, Sinaiticus e Vaticanus) e um importante manuscrito posterior (koridethi) têm o presente do subjuntivo (“possais continuar (ou) continuem crendo”), enquanto a maioria dos manuscritos tem o subjuntivo aoristo (“possais começar a crer”). O tempo aoristo sugere que o quarto Evangelho foi evangelístico quanto ao propósito e dirigido a não-cristãos. O tempo presente sugere que o propósito foi fortalecer a fé daqueles que já criam. Seja qual for o tempo, João francamente declara que ele escreveu para mostrar que Jesus é o Cristo (palavra grega para “Messias”), o Filho de Deus. É interessante observar que, dos escritores do Novo Testamento, só João preserva o termo hebraico ou aramaico Messias (1:41; 4:25) e indica que Cristo traduz esta palavra.

O interesse do Livro dos Sinais (João 2-12) nos judeus é bem evidente. Isto pareceria indicar que o quarto Evangelho foi endereçado aos judeus. Do livro de Atos, vê-se que os primeiros missionários testemunharam primeiramente aos judeus e depois aos gentios, quando se iniciou um novo trabalho. Esses missionários procuravam provar, nas sinagogas, que Jesus era o Messias, o Ungido havia muito esperado. João prova, por sinais, que o Jesus histórico crucificado é o prometido de Deus através dos profetas, e que os judeus da diáspora não precisavam cometer o mesmo erro de seus compatriotas palestinos, recusando-se a crer. O verbo usado para “fé” (traduzido “crer”) ocorre 99 vezes em João, sugerindo a necessidade de uma resposta ativa à mensagem de Jesus que Deus deu. Certamente, um conhecimento do Velho Testamento é necessário para se entender inteiramente o quarto Evangelho, pois está pressuposto em toda parte. A mensagem aos judeus da diáspora poderia muito bem ser o propósito principal do livro.

Foi considerado que, por causa do uso, por João, do termo judeus (cerca de 68 vezes), o quarto Evangelho é uma polêmica contra os judeus. Deve ser observado que, quando João faz uso desta palavra, geralmente é com uma má conotação (5:15,16,18; 6:41; 7:1, etc). Contudo, observa-se que João não usa esta palavra neste sentido com referência à nação como um todo, mas, sim, quanto aos lideres da nação que rejeitaram Jesus e ocasionaram sua Crucificação. João geralmente emprega este termo para denotar aqueles que não crêem e que, conseqüentemente, são inimigos tanto de Jesus quanto de seus seguidores. Pareceria que a polêmica é mais contra a incredulidade do que contra os judeus, pois em toda parte, no quarto Evangelho, João mostra pessoas (judeus) respondendo ao chamado à fé. João realmente deseja, todavia, que seus leitores judeus não cometam o mesmo erro dos líderes judeus, rejeitando o Messias. A vida eterna depende da decisão de crer em Jesus como o Cristo.

Sugeriu-se, pela época de Clemente de Alexandria, que João escreveu para fornecer informação que não se encontrava nos Sinópticos. Esta idéia tem alguns defensores até hoje. Já vimos que João não conheceu necessariamente, nenhum dos documentos dos outros Evangelhos e que era bem independente deles. Foi mostrado que, basicamente, os Sinópticos precisam de João para esclarecer muito de suas pressuposições, e não o contrário. João pode permanecer sozinho na proclamação do ministério de Jesus. Achar esta idéia de completação ou suplementação dos Sinópticos como sendo o propósito do autor é ler o quarto Evangelho de maneira muito superficial.

De natureza mais séria é a conclusão de que João escreveu para combater o gnosticismo ou uma forma desta heresia. Este tipo de abordagem do propósito de João está geralmente ligado à datação do quarto Evangelho para o fim do primeiro século ou começo do segundo. Diz-se que João escreveu para combater uma forma específica do gnosticismo, denominada docetismo (de doceo = parecer). Que isto foi um segmento desenvolvido do gnosticismo no segundo século está fora de contestação, e alguns críticos datam o quarto Evangelho o mais tardiamente possível, para encontrar esta doutrina desenvolvida dentro de seus conteúdos. Esta heresia ensinava que, por causa da diferença essencial entre o eterno e o temporal (o espiritual e o físico), Deus (o Lógos eterno) não poderia ter entrado fisicamente no mundo material. Jesus, portanto, não foi uma pessoa real; ele apenas “parecia” ter uma forma física.

Diz-se que João escreveu para provar a seus leitores que o Jesus histórico, de carne e sangue, de fato era o Cristo, o Lógos, o filho de Deus. No seu Evangelho, João mostra que Jesus exibiu muitos dos traços humanos básicos: fome, sede, cansaço, emoção e um corpo que podia sangrar quando ferido. Os estudiosos mais recentes estão mostrando, todavia, que o gnosticismo de João é aquele que nasceu no primeiro século e não vai além daqueles termos simples encontrados nos rolos do Mar Morto. É instrutivo o fato de que muitas das palavras básicas para os ensinos gnósticos não aparecem no quarto Evangelho (gnosis, pistis, sofia)

Rudolf Bultmann (Das Evangelium des Johannes — O Evangelho de João, 1941) tentou mostrar que a chave para o propósito de João está no mito do redentor gnóstico de um Lógos que veio de Deus e que volta para Deus. Isto pode soar convincente no fato de que o quarto Evangelho realmente apresenta Jesus tendo vindo de Deus e, tendo realizado sua missão de salvação, volta para Deus. Contudo, a existência de tal mito em qualquer forma pré-cristã não foi definitivamente provada; o primeiro aparecimento de tal ensino é encontrado nos escritos dos cristãos heréticos do segundo século. A teoria de Bultmann, quanto ao propósito, está baseada em sua abordagem filosófica geral no que concerne ao cristianismo, e não é de surpreender que ele encontre contatos entre esta forma de gnosticismo e João.

Por toda a sua popularidade nos círculos teológicos hoje, o gnosticismo deve ser posto de lado como o propósito do quarto Evangelho. O gnosticismo que conhecemos hoje é um sistema desenvolvido, que levou muitos anos. O segundo século viu a produção de algumas dessas idéias, que se desenvolviam, mas a nossa literatura para essa heresia é de uma data muito posterior, por volta de 700 d.C. Não há razão, todavia, para se supor que o gnosticismo não teve seu início nos dois séculos anteriores ao segundo século, pois essa heresia é uma religião sincretista colhida de várias idéias religiosas do mundo helênico. Alguns dos conceitos básicos que deviam definitivamente formar uma parte integrante do sistema existiam quando João escreveu. João possivelmente tomou conhecimento de algumas dessas idéias heréticas incipientes e escreveu alguma coisa contra elas. Mas dizer-se que este foi o propósito da escrita simplesmente não se encontra dentro do próprio Evangelho. Faltam coisas demais para se postular tal idéia.

Um propósito secundário para a escrita poderia ter sido em relação aos seguidores de João Batista. Ainda pela época do ministério de Paulo, em Éfeso, encontravam-se seguidores do Batista (At. 19:1-7). A literatura Pseudo-Clementina do início do terceiro século aparentemente afirma que naquela época os seguidores do Batista formavam uma das quatro seitas judaicas que se opunham ao cristianismo (Recognitions, (I, 54, 60). Pode-se achar no Evangelho de João o testemunho do Batista e sua posição subordinada a Jesus (1:8, 15, 19-34; 3:22-36; etc). Juntamente com este propósito negativo de se restringir as pretensões dos seguidores do Batista, contudo, está a apresentação positiva da importância do Batista na teologia cristã. Ele é visto como a testemunha ideal (1:7,29, 36) e amigo (3:29), que cumpriu a grande tarefa como precursor do Messias (3:30; 5:33-35). A existência de tal grupo de discípulos pode ter influenciado o material das cenas introdutórias do quarto Evangelho. É interessante que, de todos os Evangelhos, só João não relata o batismo de Jesus, embora isto esteja entendido nas palavras do Batista em 1:29-34.

O propósito declarado do autor deve ser mantido diante de nós para encontrarmos o propósito do quarto Evangelho. Deve ser reconhecido que os conceitos fundamentais encontrados em João são básicos para o e do cristianismo. O interesse de João é que seus leitores saibam, fora de dúvida, que o Jesus de Nazaré é de fato o Cristo (Messias), o Filho de Deus. É uma chamada a “vir e ver” (1:39) e à certeza (7:17). Este conhecimento produz salvação e assegura a pessoa acerca da vida eterna. Se a ênfase parece estar dirigida à comunidade judaica, isso estaria em consonância cornos métodos da proclamação primitiva cristã do evangelho aos judeus primeiramente. Se existem elementos helênicos presentes no Evangelho, então está demonstrado que o autor escreveu aos judeus da diáspora. Que ele escreveu para confrontar os conceitos religiosos dessa época está fora de contestação. Mesmo com estes fatos em mente, o tom universal do Evangelho (3:16; 10:16; 12:32) é uma advertência contra uma identificação estrita dos receptores num sentido estreito e limitado. O propósito deve estar relacionado tanto com o evangelismo quanto com o movimento do discípulo até a maturidade. Isto sozinho parece cobrir adequadamente o propósito declarado de que “estes foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome”.

Já foi sugerido que João parece ter construído seu Evangelho em torno de sinais que Jesus fez. Aparentemente, escolheu um número limitado de milagres (20:30,31) para apresentar suas provas acerca do messiado de Jesus. O esboço a seguir está baseado nessa pressuposição. Será observado que dois milagres foram agrupados juntos (porque eles se seguem estreitamente, sem discurso interposto) e que a ressurreição é o sinal supremo da natureza essencial de Jesus. O último milagre está incluído no epílogo.