A Literatura — Judaísmo

A Literatura no Judaísmo


Mais do que qualquer outra nação da antiguidade, os judeus eram um povo de um livro. Outros povos tiveram uma literatura maior e mais variada e até mais antiga; mas nenhum outro povo, nem mesmo os gregos no auge do século de Péricles, mostrou um interesse tão absorvente na sua literatura nacional como os judeus na sua lei. Para eles o Torá não era simplesmente representativo duma cultura nacional muito querida; era a voz de Deus. Os seus preceitos eram obedecidos indiscutivelmente, e as suas mais profundas implicações eram consideradas mandamentos sagrados. As ordenanças eram tecidas no pano real da sua vida e o subjacente teísmo da lei dava cor a todo o seu pensamento.

A influência das escrituras judaicas canônicas sobre o Novo Testamento é tão óbvia que quase não precisa de ser comentada. O Senhor Jesus Cristo e os Seus discípulos tinham com elas familiaridade desde a infância. Jesus fazia com igual facilidade citações da Lei, dos Saumos e dos Profetas (Lc 24:44), as três divisões da Bíblia Hebraica, e argumentava delas como base de autoritária revelação a respeito da Sua própria pessoa (Jo 10:34-36). Através dos Atos e das Epístolas, mostram os escritores apostólicos a sua familiaridade com o Antigo Testamento, quer citando do texto Hebraico, quer do Grego Septuaginta. Paulo afirmou que o Antigo Testamento era “Espirado por Deus” (inspirado por Deus, 2 Tm 3:16) e declarou a Timóteo que as Escrituras do Antigo Testamento o podiam “fazer sábio para a salvação pela fé que há em Cristo Jesus” (2 Tm 3:15). A primitividade cristã apoderou-se das Escrituras de tal maneira que foi feita uma nova versão judaica do Antigo Testamento em grego, porque a Septuaginta tinha-se tornado, para todas as finalidades e propósitos, um livro cristão. Foi feita, por fim, uma nova tradução nos primeiros séculos para fornecer uma mais literal versão do texto hebraico menos adaptável ao uso cristão.

A seguir à era do Antigo Testamento, que se encerrou com Malaquias, aí por 450 a . C., apareceu no Judaísmo da Palestina um grupo de livros que mais tarde se denominaram Apócrifos.. O térmo Apócrifos, de origem grega, significa “escondidos”, “recônditos” ou “Secretos”, como aplicados a assuntos que não devem ser revelados ao povo comum, mas só a alguns judeus iniciados. Com o tempo, esta designação foi aplicada aos livros que tinham aroma bíblico ou religioso, mas cuja autoridade não era geralmente admitida. Podiam ser lidos para fins morais ou educacionais, mas não podiam ser tidos na mesma conta dos textos autorizados. Os Apócrifos do Antigo Testamento apareceram como parte integrante da Septuaginta, distribuídos pelo seu texto e não agrupados num lugar: apareciam também na Vulgata Latina e, mais tarde, em algumas das versões inglesas como a Bíblia Grande de 1539 e a original Versão do Rei Tiago, de 1611.

Os Apócrifos são dados a seguir, na sua ordem usual: 1 de Esdras, 2 de Esdras, Tobias, Judite, Resto de Ester, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico, Baruque, Cântico das Três Crianças Sagradas, História de Susana, Bel e o Dragão, Oração de Manassés, 1 de Macabeus, 2 de Macabeus. Esta ordem não é cronológica. Dara data exata é impossível, mas damos uma data aproximada de quando foram escritos, de acordo com as sequências propostas por Oesterley. [1]

A maior parte destes livros foi escrita em período de perturbação nacional e luta entre a volta do exílio e a destruição de Jerusalém. Refletem a inquietação e o espírito insatisfeito dos judeus, que estavam ainda a sonhar com um estado independente. Os seus assuntos mostram a reação judaica contra a opressão, a incerteza, a esperança que caracterizou o período inteiro.

Da lista dada acima, três livros são históricos:

1 de Esdras, que corresponde em conteúdo aproximadamente a Esdras e Neemias; o 1 de Macabeus, que é uma narrativa simples e honesta da revolta de Matatias e seus filhos em 168 a.C., que terminou na derrota dos Sírios e o estabelecimento do estado Asmoneu; e o 2 de Macabeus, uma inferior compilação da obra de Josão de Cirene, que completa, em certo grau, o conteúdo do 1 de Macabeus. Tobias, Judite, O Resto de Ester e a História de Susana são contos românticos que ilustram a justiça de Deus em defesa do Seu povo. Bel e o Dragão, adição espúria ao livro de Daniel, pertence à mesma categoria. A Sabedoria de Salomão e o Eclesiástico são tratados filosóficos na forma de epigramas, um tanto parecidos com o livro de Provérbios. O Cântico das Três Crianças Sagradas e a Oração de Manassés são expressões de devoção para com Deus e de esperança nas Suas promessas.
A linguagem e o estilo de todos estes livros parecem-se com a do Antigo Testamento Canônico; mas, com exceção de 1 de Macabeus, as suas alusões históricas não são exatas e também se não pode determinar solidamente a sua autoria. O seu efeito sobre os escritores do Novo Testamento foi nulo, embora eventualmente apareçam quaisquer referências a eles no texto. Eclesiástico 44:16, “Enoque agradou a Deus e foi trasladado”, pode ter ecoado em Hebreus 11:5:

Pela fé foi trasladado Enoque para não ver a morte, e não foi achado, porque Deus o havia trasladado. Pois antes da sua trasladação teve o testemunho de haver agradado a Deus.

Estas duas passagens não correspondem tão exatamente que se não possa dizer que uma é citação da outra. Ambas podem ter sido originadas de comentários independentes sobre a narração dada no Gênesis.

Uma segunda lista de obras que nunca chegaram a ser incluídas nas escrituras, quer judaicas, quer cristãs, damo-la a seguir:
  1. Livro dos Jubileus
  2. Testemunho dos doze Patriarcas Salmos de Salomão
  3. 3 de Macabeus
  4. 4 de Macabeus
  5. Assunção de Moisés
  6. Adão e Eva Martírio de Isaías
  7. Livro de Enoque
  8. 2 de Baruque
  9. Oráculos Sibilinos
Alguns destes livros dados nesta lista podem ser datados com aproximação, mas outros não. O Livro de Enoque, por exemplo, é, ao que parece, composto de partes escritas em ocasiões diferentes; partes essas que foram finalmente reunidas pouco antes da era cristã. No Novo Testamento aparece fraseologia paralela à dele, especialmente a conhecida passagem de Judas 14, 15, que é uma cópia exata de Enoque 1:9:

“A estes também é que profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, quando disse: Eis que o SENHOR veio com miríades de seus santos a executar juízo sobre todos e a convencer a todos das obras ímpias, que Impiamente cometeram, e de todas as palavras duras que pecadores ímpios pronunciaram contra ele.”

O Livro de Enoque, a Assunção de Moisés, o 2 de Baruque, o 2 de Esdras e parte dos Oráculos Sibilinos pertencem ao tipo de literatura apocalíptica. A literatura apocalíptica é profética, usando geralmente um simbolismo que parece grotesco e muitas vezes incoerente consigo próprio. Profetiza uniformemente terríveis sentenças físicas sobre os réprobos, condenações de que os retos serão libertados pela intervenção sobrenatural de Deus. Os atores freqüentes do drama apocalíptico são os anjos. Muitas obras apocalípticas são de autores pseudônimos ou atribuídos falsamente a homens eminentes que nunca as teriam escrito. O Livro de Enoque, por exemplo, não foi escrito por Enoque, mas foi-lhe atribuída a sua autoria porque Enoque tinha reputação de piedade e de sabedoria.

Em estilo e imagens, os livros de Ezequiel e Daniel, no Antigo Testamento, têm sido classificados como apocalípticos, ainda que não pudessem com razão ser chamados pseudônimos. O Apocalipse ou Revelação, do Novo Testamento, pertence ao mesmo tipo literário.

A literatura apocalíptica era produzida geralmente em período de perseguição, quando as esperanças dos homens se voltavam para o livramento futuro. Era destinado a estimular os crentes a persistirem na sua lealdade para com Deus e as suas imagens desanimavam os leitores inimigos de tentarem sondar o seu significado. O fato de certos livros canônicos serem apocalípticos não os desqualifica como livros inspirados, visto que a inspiração do Espírito aparece em toda a qualidade de literatura contida na Bíblia.

Com a queda de Jerusalém em 70 d.C., o Judaísmo perdeu a sua expressão política independente e começou a ser semente uma religião. Com o cessar dos sacrifícios do templo, veio o declinar do sacerdócio e o aparecimento do rabinado. O estudo da lei tomou o lugar das ofertas e o professor suplantou o sacerdote. Na proporção em que os professores procuravam interpretar a lei, codificavam as tradições que se tinham desenvolvido em volta dela e por fim reduziram-nas a escrito. Os fariseus consideravam essas tradições como contemporâneas da lei escrita e como igualmente obrigatórias, enquanto que os saduceus as repudiavam completamente.

Havia indubitavelmente padrões éticos que eram observados entre os hebreus antes da dádiva da lei no Sinai. Certas regras e observâncias estavam ligadas à vida de Noé e de Abraão, registradas no Gênesis, e dificilmente se poderia ter dado a perpetuação da unidade durante a escravidão do Egito, se não tivesse havido alguma forma estável de ética e de culto que mantivessem o povo unido. Se estas tradições foram realmente transmitidas através das muitas vicissitudes da história de Israel até o primeiro e segundo séculos depois de Cristo, disso é que não há a certeza. Uma coisa é certa — a massa de tradição contida no Talmud inclui muita coisa mais antiga do que o próprio livro. A existência da lei oral é atestada pelas referências que Jesus fez “à tradição dos anciãos” (Mc 7:3).

A coleção destas tradições com os comentários que lhes foram feitos pelos primitivos rabis é que constituem o Talmud. Esta palavra é derivada do verbo lammid, que significa “ensinar”. O Talmud é constituído por dois elementos, o Mishna e o Gemara. O Mishna é a lei oral como era conhecida até o fim do segundo século d . C. O Gemara é a interpretação da lei oral que os doutores da Babilônia e de Jerusalém produziram entre o princípio do terceiro século d.C. e o fim do quinto. Estas interpretações ou discussões eram de duas qualidades: o Halakah, que dizia respeito ao código da lei, e o Haggadah, que era pregação em geral, ou tudo o que não era o Halakah.

O Halakah estabelecia a regra ou estatuto pelo qual a pessoa é guiada, a aplicação religiosa definida do dia. Strack diz que qualquer coisa se torna Halakah: 1) Quando é conservada com aceitação durante um largo período; 2) Quando é confirmada por autoridade reconhecida; 3) Quando é apoiada por prova recebida da Escritura; 4) Quando é estabelecida por voto de maioria. Qualquer uma destas razões podia estabelecer um princípio de lei oral (2) . Desde que nenhum princípio ou lei podiam ser estabelecidos por invenção, mas sim por relação com um princípio que já existisse, os rabis tornavam-se especialistas em deduzir inferências da lei existente, ou oral ou escrita, a fim de abranger todos os casos que possivelmente lhes viessem a ser postos. Os registos asses casos e dos respectivos argumentos é que constituíam o Halakath.

O Haggadah compreendia todas as interpretações das Escrituras que não fossem características do Halakah. Era uma tentativa para desenvolver o significado das implicações da lei e não para aumentar as suas declarações explicitas. O argumento de Jesus extraído do Êxodo 3:6 acerca da ressurreição segue um tanto o modelo de um processo hagadico (Mt 22:31-33). 0 Halakah e o Haggadah juntos constituíam o Midrash, palavra do verbo hebraico darash, que significa “esquadrinhar” ou “conduzir” uma investigação. A investigação do significado da lei, oral ou escrita, constituía, assim, uma parte do Talmud.

O Talmud é constituído por sessenta e três seções ou tratados, tratando cada um deles de qualquer aspecto da lei. Existem dois Talmudes, o da escola dos Amoraim, ou doutores, da Palestina, e o da escola dos Amoraim, ou doutores, da Babilônia. O Talmud Palestiniano, que é o menor dos dois, escrito em Aramaico Oriental, data do fim do quarto século. O Talmud Babilônico foi escrito pelos fins do século quinto em dialeto Aramaico Ocidental. São ambos incompletos, faltando-lhes seções inteiras ou partes de seções. No século treze, foi o Talmud excomungado pela Igreja e foram destruídos ou danificados tantos exemplares que foi até ameaçada a sua sobrevivência. E maravilhoso que depois de tudo ainda exista.

Hoje o Talmud é o padrão do Judaísmo ortodoxo, regular da fé e da prática ritual. Dá a interpretação da lei e influi muitas vêzes mais diretamente nas doutrinas e na vida do que o próprio Antigo Testamento.



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NOTAS
[1] W. O. E. Oesterley, An Introduction to the Books of the Apocrypha (New York: The Macmillan Company, n. d.), pp. 24, 25.
[2] Hermann L. Strack, Introduction to the Talmud and Midrash (Tradução autorizada da Quinta Edição Alemã. Philadelphia: The Jewish Publication Society of America, 1945), pp. 5 a 7.