A Nova Aliança na Teologia de Paulo
Nas cartas geralmente
aceitas como paulinas, há oito ocorrências de Aliança (diathêkê): Romanos 9,4; 11,27; 1 Coríntios 11,25; 2 Coríntios
3,6.14; Gálatas 3,15.17; 4,24 (cf. também Ef 2,12). Entre essas ocorrências,
merecem menção especial Gálatas 4,24 (duas alianças), 2 Coríntios 3,6 (o único
uso em Paulo de nova Aliança, kainê
diathêkê, além da passagem eucarística em ICor 11,25) e 2 Coríntios 3,14, onde
encontramos a única referência à antiga Aliança, palaia diathêkê [TEB, BMD, “Antigo Testamento”]. Essas referências
indicam que aliança não era um tema preponderante na teologia paulina, mas não
há concordância a respeito dessa questão.
É possível argumentar
que nem sempre o que se costuma supor precisa ser declarado explicitamente.
Isso com certeza se aplica à teologia da Aliança no caso de alguém como Paulo,
que cresceu em uma tradição farisaica (ver Paulo, o judeu). Talvez também haja
boas razões para Paulo não usar a palavra com mais freqüência, como a
possibilidade de seus adversários usarem-na e a interpretarem de maneira diferente.
Em vista disso e conscientes da importância dos temas “antiga e nova Aliança”
para a interpretação do Novo Testamento, prosseguiremos com cautela, examinando
os exemplos da palavra aliança em cada uma das cartas de Paulo, sempre que
possível deixando o texto falar por si mesmo e evitando lê-los a partir de outras
passagens do NT.
1. Gálatas
2. 1 e 2 Coríntios
3. Romanos
4. Conclusão
1. Gálatas
A teologia da Aliança
é, em essência, um meio de descrever o relacionamento de Deus com seu povo. Tal
relacionamento não existe no vazio, mas em um tempo e lugar. Assim, surge uma questão
a respeito do entendimento da revelação e da atividade divinas na história e,
de modo mais específico, em relação à história de Israel. Embora a narrativa de
Abraão faça realmente parte da discussão, a carta paulina aos Gálatas não dá
muita importância à história de Israel como tal, pelo menos não da maneira como
Romanos o faz. Em Gálatas 3,15-17, por meio de um exemplo de ratificação de um
testamento humano, Paulo procura defender a prioridade e inviolabilidade da
aliança abraâmica.
Visto que os
testamentos humanos só podem ser aumentados ou modificados pelo testador, a
Aliança de Deus com Abraão, na qual os cristãos, a “descendência” de Abraão,
estão incorporados em Cristo, não é nem anulada nem aumentada pela Aliança mais
tardia do Sinai, que lhe é subsidiária. Gálatas 4.21-32 é uma passagem à
maneira de midrash na qual talvez Paulo adote os argumentos e as citações
bíblicas dos adversários. Por isso, parte do conteúdo não tem características
paulinas, embora sem dúvida ele partilhasse elementos de crença com outros
judeucristãos e judeus. Embora aqui Paulo fale de duas alianças (dyo diathêkai), ele descreve
explicitamente seu uso dessas duas alianças como “alegoria”. Além disso, a
impressão que recebemos não é a de uma Aliança sendo substituída por outra, mas
sim de duas opções de alianças paralelas que, possivelmente de maneira alegórica,
se referem a duas missões simultâneas aos gentios: 1) uma observante da lei, dirigida
pelos adversários paulinos (ver Judaizantes) e em oposição a 2) a de sua missão
aos gentios.
Com toda a
probabilidade, Paulo pretende que a aliança de Sara represente não o
cristianismo (contra a aliança de Hagar, i.e., o judaísmo), mas, antes, a
missão aos gentios, que não dependia da lei. A discussão toda pode ser tomada
como dois processos de gerar “filhos de Deus” (ver Adoção, filiação). Na missão
paulina e por meio dela, os gálatas receberam o Espírito porque escutaram “a
mensagem da fé”; nenhuma missão contrária que defenda a circuncisão ou a
observância da lei pelos gentios poderia aperfeiçoar ou melhorar a posição dos
que estão em Cristo pela fé. Paulo os exorta a permanecer firmes na liberdade
de Cristo (G15,1). Uma missão de observância da lei para os gentios é agora
tratada como anacronismo. Esse entendimento da passagem livra-nos de qualquer
interpretação que afirme estar Paulo se referindo a duas alianças sucessivas, a
primeira com o judaísmo, seguida pela segunda, com o cristianismo. Os problemas
da passagem são seu conteúdo de midrash e o uso paulino de alegoria. Contudo, o
ponto importante que Paulo deseja ressaltar é que, na geração de filhos, o tipo
ou a qualidade desses filhos depende da linhagem dos pais, o que está de acordo
com o sentido geral de Aliança que, necessariamente, tem no centro algum tipo
de continuidade, mesmo que não seja uma continuidade terrena, mas apenas a
continuidade teológica dos que foram gerados pela Palavra de Deus.
2. 1 e 2 Coríntios
1 Coríntios 11,25
traduz as palavras de Jesus na última ceia como “Este cálice é a nova Aliança (kainê diathêkê) no meu sangue”. Lucas
também inclui o adjetivo “novo”, mas há uma forte tradição erudita que
considera a forma marcana das palavras da instituição a mais antiga (Jeremias).
O importante para nosso estudo é se o acréscimo da palavra “nova” significa
alguma coisa de diferença substancial. Talvez seja antes um recurso a algo já
implícito na morte de Cristo (ver Ceia do Senhor). Em 2 Coríntios 3,6, em uma
passagem da carta que gerou numerosas interpretações divergentes, encontramos a
única outra referência à nova Aliança em Paulo (“Aliança nova”). Em 2 Coríntios
3,14, encontramos a única referência a “antiga Aliança” (“Antigo Testamento”; palaia diathêkê). A única ocorrência em
Paulo dos adjetivos antiga e nova em relação a Aliança na correspondência
coríntia indica a provável existência em Corinto de algum motivo para atribuir um
significado especial a essas designações. Por exemplo, D. Georgi acha que os
adversários de Paulo introduziram a expressão nova Aliança. No passado, a
teologia cristã inclinava-se a ver em 2 Coríntios 3 um contraste entre a nova e
a antiga dispensação.
Entretanto, embora
tal contraste possa se justificar, não está, de modo algum, claro se ele era o
centro imediato do pensamento paulino quando a carta foi enviada aos coríntios.
Os comentaristas concordam que Paulo usa três vezes um argumento a fortiori (“quanto
mais”) para contrastar a quantidade de glória que se liga a dois ministérios
diferentes. Êxodo 34 é claramente discutido aqui e também pode ser verdade que
interpretações que considerem a passagem um midrash
estejam por trás dos comentários paulinos. A introdução de Moisés na discussão
levou alguns intérpretes a ver aqui um contraste simples e explícito entre a
dispensação antiga e a nova — daí a estranha tradução de diakonia pela RSV como “dispensação” em vez de “ministério”! Entretanto,
o contexto indica que Paulo entristeceu-se porque cartas de recomendação de missionários
rivais impressionaram os coríntios. Paulo não deseja fazer um auto-elogio, nem
precisa, como alguns, dessas cartas de recomendação.
A “carta” de Paulo
são os próprios coríntios e o autor dessa carta é Cristo; a carta do apóstolo foi
escrita com o Espírito do Deus vivo, não com tinta no papiro (ver Espírito
Santo). Paulo tem em mente Ezequiel 11,19 (36,26), não Jeremias 38,31 (LXX). S.
J. Hafemann insiste que o tema do coração foi tirado da passagem de Ezequiel,
que inclui o tema do Espírito, omitindo inteiramente o texto de Jeremias. Ele
também observa que, quando tomamos como ponto de partida as verdadeiras
passagens que Paulo tem em mente, não precisamos propor contrastes óbvios entre
tinta e espírito ou pedra e coração, nem mesmo transformar esses contrastes em
antítese completa entre a dispensação da lei e a nova dispensação do Evangelho.
Ezequiel não achava que a esperança da obra futura de Deus no coração alterasse
a validade da lei. A verdadeira comparação pretendida aqui é que Paulo entendia
seu ministério para os convertidos como equivalente à dispensação da lei. Paulo
se considera ministro do Espírito no ministério do Evangelho, exatamente como
Moisés foi o ministro da lei. A relação entre a atividade de Deus em Moisés,
ministro da lei, e sua nova atividade em Paulo, ministro do Espírito,
expressa-se melhor no tipo de argumento qal
wahomer, “quanto mais”. O movimento é de algo glorioso para algo mais
glorioso ainda. De qualquer modo, quando Paulo diz em 2 Coríntios 3,13 que
Moisés punha um véu sobre o rosto para evitar que os israelitas vissem to telas tou katargoumenou (“o fim de um
resplendor passageiro”), não é possível que se refira à aliança como
transitória, pois diathêkê é
substantivo feminino e o (resplendor) passageiro é indicado por um particípio
neutro.
A questão imediata em
2 Coríntios 3-4 são dois conceitos do ministério cristão. Paulo não se dirige
aos israelitas no Sinai, mas sim aos cristãos coríntios e seus adversários. Foi
a inteligência destes últimos que se obscureceu e é sobre o coração deles que
há um véu. Portanto, concluímos que, apesar de um caso singular de antiga
Aliança [“Antigo Testamento”] nesta passagem, não temos justificativa para
interpretá-la como o contraste perfeito de duas maneiras antitéticas de
salvação, típicas de uma teologia cristã mais tardia.
3. Romanos
A relação de aliança
está subentendida quando Paulo se dirige aos romanos como agapêtoi theou (“diletos de Deus”) e klêtoi hagioi (“santos pelo chamado [de Deus]”). Há só duas
referências explícitas à aliança na carta: Romanos 9,4 e 11,27. Em Romanos
9,4-5, Paulo relaciona as alianças como um dos privilégios pertencentes a
Israel, ao lado da adoção (ver Adoção), da glória, da lei, do culto, das
promessas e dos pais. Independente de seguirmos ou não a interpretação de “aliança”
em /ouo plural “alianças”, conforme defendido pela maioria dos manuscritos,
parece que aqui Paulo tem em mira primordialmente a Aliança abraâmica. O
enfoque está no chamado e na eleição de Abraão que, em Romanos 4, foi descrito
como paradigma do crente.
Em Romanos 11,27,
Paulo mistura duas citações de Isaías 59,12 e Isaías 27,9 e cria uma promessa
de redenção futura para Israel apesar de sua recusa atual do Evangelho: “E eis
qual será a minha aliança com eles, quando eu eliminar os seus pecados”. O
argumento a respeito da oliveira e o tema de Romanos 11 em geral são que,
apesar da atual hostilidade quanto ao Evangelho, a eleição de Israel ainda
permanece. “Teria Deus rejeitado seu povo? De modo nenhum” (Rm 11,1.7). A
aliança está a salvo e não há dúvida quanto à eleição, “pois os dons e o
chamamento de Deus são irrevogáveis” (Rm 11,29). Embora não possamos insistir
que a teologia de Paulo dizia respeito a alianças no sentido de usar
explicitamente terminologia referente a alianças, talvez houvesse em Roma um
equívoco quanto à aliança com Israel, surgido do sucesso da missão paulina com
os gentios (ver Campbell). Diante disso, em Romanos, Paulo concentrou o pensamento
no tema da aliança. Enquanto, em Gálatas, Cristo é “a descendência”, em Romanos
o povo de fé é “a descendência” e há continuidade “de fé para fé”, sendo a
aliança ampliada para incluir também os gentios.
4. Conclusão
R. D. Kaylor afirma
que, na teologia paulina, o papel da aliança opera em dois níveis — no de ideia
e no de convicção. Embora Paulo possa nem sempre ter tido essa distinção em
mente, mesmo assim Kaylor afirma que a aliança como convicção atua como
presença persistente e realidade dominante na vida, na obra e no pensamento
paulinos. Se Romanos tivesse sido escrita antes de Gálatas, talvez afirmássemos
que o pensamento em relação a alianças ou heilsgeschichtlich
(histórico da salvação) é relíquia do passado judaico de Paulo e deve ser
abandonado. Mas o assunto é bastante complicado. Centraliza-se no problema do
significado de “descendência de Abraão”. No caso de Sara — em que parecia inevitável
a descontinuidade (e o fracasso da aliança) —, Deus interveio milagrosamente para
proporcionar um herdeiro (cf. Is 54,1). Isso parece indicar que Deus mantém a
continuidade terrena (cf. Rm 4,19); mas, de fato, também pode ser considerado o
contrário — a atividade divina da nova criação. Entretanto, devemos observar
que, no caso de Sara, é criatividade divina em relação a um povo da promessa.
Somente mais tarde na história essa criatividade se estendeu além de Israel,
para os gentios e, mesmo então, por meio de Jesus Cristo — “da estirpe de
David”.
O conceito de aliança
indica continuidade do propósito divino na história. Depende primordialmente da
fidelidade de Deus (e.g., Rm 3,21-26). Mas como é possível dar uma explicação
adequada de uma continuidade terrena em fé-Abraão-Isaac-Jesus? Em Romanos 9,21,
Paulo afirma que não são os de descendência física apenas que são filhos de
Abraão, são os de descendência física que também compartilham a fé de seu pai
Abraão. Somente em Romanos 9,22-24 Paulo menciona a inclusão dos gentios. Estes
são incluídos não em si mesmos e por si mesmos, mas integrados aos fiéis de
Israel e juntamente com eles (cf. Ef 2,11-22). Com razão, Kãsemann insiste que
a relação correta e a justiça só são nossas na medida em que Deus no-las dá de
novo a cada dia (i.e., na fé). Mas isso significa que a revelação de Deus só
chega às pessoas de uma forma escrupulosa como “um acontecimento inesperado”? Ou
a revelação tende a ocorrer no contexto de uma família crente ou de uma
comunidade de fé mais ampla? O problema com esta última perspectiva é que a
história é o registro não simplesmente da realização divina, mas também da pecaminosidade
humana. Foi o desespero de Jeremias por causa de tal pecaminosidade última que
o levou a propor uma “nova aliança”. Os cristãos tendem a considerar a nova aliança
de Jeremias a base clara para o conceito cristão plenamente desenvolvido de uma
nova dispensação, que é, então, adaptada aos escritos paulinos por meio de
Hebreus. Entretanto, não está de modo algum claro que “nova aliança” fosse
expressão amplamente usada no cristianismo mais primitivo. É, com certeza,
razoavelmente correto afirmar que “antiga aliança” era um conceito raro até a
época da morte de Paulo.
Parece que, por
várias razões, Paulo não usou com freqüência uma terminologia explícita de
aliança. Contudo, essa terminologia ocorre realmente em pontos importantes de
seus escritos. A freqüência de “chamamento”, eleição e termos relacionados em 1
Coríntios, por exemplo, talvez indique que a aliança era importante no
pensamento paulino. Mas, não importa o que concluirmos do que expusemos acima,
está claro que quando usou as expressões antiga e nova aliança Paulo não
incluiu muitas das ideias a elas associadas por um cristianismo mais
desenvolvido e mais tardio. Como nos lembra W. D. Davies, Jeremias não ansiava
por uma nova lei, mas pela “minha instrução”, e o adjetivo hãdãs em Jeremias 31,31, que Paulo traduziu como kainè, aplica-se à lua nova, que é
simplesmente a lua velha sob uma nova luz.
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