Estudo sobre Habacuque 3
II. UM SALMO
(3.1-19)
Alega-se que “a maioria dos
críticos nega que esse poema seja da pena de Habacuque” (J. B. Hyatt, Peake’s
Commentary, p. 639). No entanto, há estudiosos que não vêem nenhuma
dificuldade em considerar o título, Oração do profeta Habacuque,
como uma expressão literal. Para alguns, o capítulo tem pouca ou nenhuma
“conexão direta com a profecia anterior”, e a sua aparência aqui
é atribuída a um editor que desejou reunir toda a obra remanescente
de Habacuque” (H. L. Ellison, Men Spake from God\ p. 76). Outros,
e especialmente Eaton, o consideram o “golpe de misericórdia” de toda a
composição (.TC, p. 83,4,108).
Se por trás da “fidelidade”
pela qual o “justo viverá” está a “fé” (2.4 e nr. na NVI), esse capítulo
nos apresenta o objeto de tal fé. A teofania é o fundamento da oração (v.
2), o objeto da meditação (v. 3-15) e a fonte da alegria e do tremor
(v. 16-19). Embora o salmo seja essencialmente pessoal (“eu” subentendido nos
v. 2,16; eu, me, minha e meu nos v. 18,19), as anotações
musicais (v. 1,19b, como também um triplo “Selá”) indicam que foi
designado para a adoração pública.
1) O Deus do
julgamento e da salvação (3.1-16)
Hoje se crê que a palavra
hebraica traduzida por confissão (também em SL 7.1) é uma referência ao
ritmo desordenado do cântico, correspondendo às emoções profundas
que descreve e provavelmente produz.
O “registro” (RSV) do Senhor
e das suas obras, diante das quais o profeta se
pronuncia apavorado, sem dúvida cobre tanto a revelação comunicada pela
representação da história sagrada (v. 3-15) quanto a que foi dada
por transmissão direta de Deus (1.5,6; 2.2-4). Naquela, a forma
extraordinária de Deus conduzir Israel no passado é lembrada; nesta,
as crises que o futuro reserva são vislumbradas. Mas, quanto ao
presente, a pitoresca e conhecida expressão “no meio dos anos”, em
nossa época, transmite uma impressão de depressão espiritual. A
necessidade de uma renovação evidente da atividade de Deus é aguda; é por
esse motivo que Habacuque ora. Mas ao perceber que orar por avivamento é
convidar o juízo, ele pede que a ira de Deus (caos presente e
disciplina futura) seja mitigada com a misericórdia (cf. Jr 10.24).
Inicialmente foi a função
de Deus na história humana que perturbou o profeta. Ele agora vê os caminhos de
Deus na história como prova do seu poder, tanto no âmbito da criação quanto da
redenção (v. 3-15). Essa seção do salmo é dominada pela revelação do poder
de Deus realizando a libertação dos israelitas no êxodo ao livrá-los da
escravidão, conduzindo-os através do deserto e expulsando os inimigos
diante deles. Ecos de atribuições anteriores de louvor a Deus por
essa obra reverberam em todo esse salmo (e.g., os cânticos de Moisés,
Dt 33.2; Débora e Baraque, Jz 5.4,5; Davi, SL 68.7,8; Asafe, SL 77.1619 e
Miriã, Ex 15.21). A poesia é turbulenta, o texto é difícil de ser
estabelecido (v. NBC, 3. ed., acerca do v. 9), e
muitas das palavras usadas são obscuras. Os pronomes mudam
da terceira pessoa (v. 3-6) para a primeira (v. 7) e depois paraa
segunda (v. 8-15). O estilo harmoniza com o tópico que é dramático e esmagador
para o próprio Habacuque (v. 16).
Na sua visão, o profeta vê
o Todo-poderoso avançando desde o deserto “marchando na grandeza da sua
força”. A palavra traduzida por Deus (v. 3), ’Elõah, é
encontrada quase exclusivamente na literatura poética da Bíblia (40 de 52
ocorrências em Jó). Temã, uma região ao norte de Edom, e Parã,
que fica além de Temã em direção ao Sinai, representam o território
que testemunhou o nascimento de Israel como nação e como o povo de Deus
da aliança. (Foi para essa região que o lamuriante Elias foi depois
de experimentar uma teofania acompanhada de uma tempestade; 1Rs 19.8-12). A afirmação no v.
3b encontra uma contraparte no cântico exultante dos exércitos celestiais (Lc
2.14) que celebrou o evento que englobou todas as manifestações anteriores
de Deus aos homens.
A imagem empregada para
retratar o progresso do Senhor invencível é de uma tempestade violenta. Raios
relampejantes de repente banem a escuridão em volta, e a noite se torna como
dia (v. 4a; 4b; cf. Jó 26.14). Ele é acompanhado pelos “cães de
guerra” apocalípticos — pragas e doenças terríveis (v.
5). O seu poder é absoluto: ele não precisa sair do seu lugar para fazer a
terra tremer, nem precisa fazer outra coisa se não olhar para estremecer
as nações; diante da sua eternidade, os montes antigos
desaparecem (v. 6). Não é de admirar que as frágeis tendas de Cuchã
e as tendas de Midiã (v. 8) fiquem aterrorizadas.
Os rios se transformam em
torrentes espumejantes; o mar é levado repentinamente à fúria. Surge a
pergunta: não existe aqui algo mais profundo e significativo do que a
operação das leis naturais? Não são os elementos servos dele, instrumentos nas
suas mãos para a realização do seu propósito glorioso, os teus
carros vitoriosos? (v. 8; cf. SL 104.3,4; 148.8).
Terminado o monólogo, a
descrição que Habacuque faz da tempestade continua, embora agora esteja
mesclada com metáforas de batalha; as nuvens são nuvens de guerra, raios
relampejantes e trovões são flechas que voam do arco desembainhado
(v. 9). Toda a natureza está em desordem à medida que o Senhor segue
em triunfo o seu caminho. Até mesmo o abismo, que algumas mitologias
pagãs consideravam um rival ao seu domínio, estrondou em
sobressalto e lançou ao alto as “suas mãos” (RSV) em sinal
de rendição (v. 10), enquanto O sol e a lua param nos seus
cursos à medida que a batalha procede (v. 11a possivelmente é uma alusão
a Js 10.12-14). Nem a terra nem as nações podem impedir o
seu progresso imperial (v. 12; cf. v. 6).
De repente, como um
relâmpago que ilumina a escuridão (v. 4,11), o objetivo divino no conflito é
revelado: Saíste para salvar o teu povo, para libertar o teu ungido
(v. 13a). Voluntariedade e determinação, graça e poder, estão por trás das
palavras. Além disso, as palavras soam com tom de alegria,
gratidão, esperança e confiança. Essa grande declaração também não pode
ser confinada aos dias de Habacuque, ou ao destino de Israel. Só
é cumprida de verdade quando aplicada ao advento daquele de quem foi dito:
“você deverá dar-lhe o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo
dos seus pecados” (Mt 1.21).
Os v. 13b-15 continuam a
retratar em linguagem vívida (cheia de problemas para o tradutor) a derrota de
todos que se levantam para lutar “contra o Senhor e o seu ungido”. O
pronome nos (v. 14) é inserido quando o profeta lembra o livramento
experimentado após o ataque. A visão termina com a completa vitória. Como
no êxodo, a agitação das grandes águas simboliza a derrota final
do poder alardeado do inimigo.
Contemplar a glória do
Senhor e entrar nos seus propósitos são experiências difíceis (Is 6.1-5; Ez
1.28; Jr 23.9; Dn 10.8; Mt 26.38). Foi o que Habacuque achou. A apreensão
que ele sentiu, expressa no início da visão (v. 2), se mostra
totalmente justificada, pois, quando a visão termina, ele fica num estado
de colapso (v. 16a). Sabendo que é inevitável que a angústia amarga deve
preceder o início da libertação, o profeta se prepara resolutamente para
esperar o dia da desgraça (v. 16b).
2) A confiança
dos piedosos (3.17-19)
Não há comentário mais
comovente da verdade principal dessa profecia — “o justo viverá pela sua
fidelidade” — do que o que está contido nesses versículos. A afirmação
é formulada de forma primorosa e nobre.
A fé que Habacuque professa
não é uma fé cega, pois é exercida diante da perspectiva clara da catástrofe
completa (v. 17). Por meio do desastre natural ou, o que é mais provável,
por meio da ação do inimigo, as colheitas fracassam, o gado é dizimado, a
economia do país entra em colapso e o que resulta é a fome. O ainda
assim (v. 18) do profeta é digno de ficar lado a lado com o “Mas, se
ele não...” de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego (Dn 3.18), e só
excedido pelo “contudo” de Jesus (Mt 26.39). E uma fé submissa e
determinada; ou melhor, é uma fé exultante — eu exultarei [...] e
me alegrarei. O segredo deve ser encontrado no foco da sua fé; o seu
objeto é o Senhor. Com base na repetição dos nomes e títulos
de Deus, podemos determinar com precisão que o profeta atingiu uma nova
apreciação daquele em quem ele confia.
A salvação descrita no v.
13 agora é experimentada pessoalmente — Deus da minha salvação — tanto
na adversidade (v. 17) quanto na prosperidade (v. 19). O caminho da
vida pode conduzir através do “vale de profunda escuridão” ou passar
sobre os lugares altosr, não importa para aquele que tem certeza de
que o Senhor, o Soberano está no controle total, que o alvo
dele é a salvação e que ele mesmo é a fonte da força. A nota de rodapé (v. 19b)
significa que o salmo era cantado nos cultos do templo. Em diversas
paráfrases, ainda é cantado hoje. Só isso já testemunha da relevância
duradoura dessa profecia.