Absalão — Enciclopédia da Bíblia Online

ABSALÃO

Personagem bíblico cujo nome significa “Pai [isto é, Deus] É Paz” — aparece nas fontes com múltiplas formas e transliterações: Hb. ʾaḇšālōm; Gr. Apsalōmos, Abessalōm. Também é evidentemente chamado Abisalão em 1 Reis 15:2, 10 (Veja 2Cr 11:20, 21).

I. Linhagem, descendência e conexões dinásticas

Terceiro dentre seis filhos varões de Davi, nascidos em Hébron, filho de Maacá, filha de Talmai, rei de Gesur (2Sm 3:3-5; = 2 Sm 3:3; 1 Cr 3:2). Tornou-se pai de três filhos e uma filha (2Sm 14:27), cuja beleza — “aparência muitíssimo bela” — evoca a da tia Tamar (2Sm 14:25-27; 13:1). Presume-se ser antepassado de Maacá, esposa de Roboão e mãe de Abias (1Rs 15:2, 10). Se Abishalom de 1Rs 15:2, 10 for o mesmo personagem, então, além da filha homônima de sua irmã, há ainda laços dinásticos via Maacá (contra a OG de 2Sm 14:27b). — Nota dinástica: A promessa de Deus a Davi sobre um futuro “descendente” para herdar o trono foi feita depois do nascimento de Absalão, de modo que ele sabia não ser o escolhido de Yahweh para a realeza (2Sm 7:12).

II. Beleza física, carisma e simbolismo do cabelo

“Todo Israel” louvava sua formosura: “não havia nele defeito, da planta do pé ao alto da cabeça” (2Sm 14:21–27). Sua cabeleira crescia profusamente; quando cortada anualmente, pesava cerca de 200 siclos (cerca de 2,3 kg) — ou “about five pounds” —, peso possivelmente acentuado pelo óleo/unguentos. O dossiê de caráter nas fontes o apresenta como belo e carismático (1Sm 16:12; 2Sm 14:25), persuasivo (3:36; 15:1–6) e astuto no trato com inimigos (2Sm 13; 1Rs 2:5–6), traçando um “negativo” do próprio Davi.

III. O caso Tamar–Amnom e o homicídio premeditado

A beleza de Tamar, irmã de Absalão, inflamou Amnom, meio-irmão mais velho (2Sm 13:1). Com o ardil de Jonadabe e o pretexto de enfermidade, Amnom a violentou (2Sm 13:1–6, 15–19). Rechaçada e humilhada, Tamar rasgou a veste listrada das filhas virgens do rei e cobriu-se de cinzas (2Sm 13:19). Absalão “rapidamente avaliou a situação”, intuiu o papel de Amnom, acolheu a irmã em sua casa e guardou silêncio — ódio homicida por dentro, contenção por fora —, à espera do momento (2Sm 13:1-20, 21-22; A; cf. Pv 26:24-26; Lv 19:17).

Segundo John Kitto, em famílias polígamas os irmãos uterinos são mais coesos, e as filhas ficam “sob o cuidado e a proteção especiais de seu irmão (...) mais procurado do que o próprio pai” (Daily Bible Illustrations, Samuel, Saul e Davi, 1857, p. 384). A moldura remete a Levi e Simeão vingando a desonra de Diná (Gn 34:25).

Dois anos depois, em Baal-Hazor (c. 22 km ao NNE de Jerusalém), por ocasião da tosquia (festa pastoral), Absalão promoveu um banquete, obteve de Davi a presença de Amnom (2Sm 13:23-38; cf. o paralelo festivo com Nabal em 1Sm 25:1–8) e, quando o rival “se estava sentindo bem por causa do vinho”, deu a ordem: morte. Os príncipes montaram os mulos (insígnia nobre) e fugiram. Absalão correu para o exílio junto ao avô sírio, em Gesur, a leste do mar da Galileia (2Sm 13:23-38). Nesse desfecho, a “espada” profetizada por Natã entrou na “casa” de Davi (2Sm 12:10).

IV. Exílio em Gesur e saudades de Davi

Três anos mitigaram a dor de Davi por seu primogênito, e saudades paternais por Absalão emergiram (2Sm 13:39). O rei, porém, aparece “nobre porém passivo”, reagindo com ira (2Sm 13:21) mas sem ação judicativa (cf. Dt 19:15). Absalão permaneceu três anos na casa de Talmai (2Sm 13:37-39).

V. Retorno, reconciliação parcial e o incêndio no campo de Joabe

Joabe, sobrinho e general, “engenharia” o retorno (2 Samuel 14): convoca uma “mulher sábia de Tecoa”, cujo parábola-forense espelha a trama de Natã. Davi, com juramento em nome de Yahweh (2Sm 14:11), concede perdão condicional: repatriação sem acesso à corte (2Sm 14:1-24). Dois anos de banimento interno depois, Absalão exige definição: “se houver em mim qualquer erro, então terá de entregar-me à morte” (2Sm 14:28-33). Negligenciado por Joabe, incendeia o campo de cevada do general; constrangido, Joabe media o encontro. Absalão prostra-se, e Davi sela com o beijo do perdão (2Sm 14:28-33).

VI. A campanha política, a conspiração em Hébron e a questão dos “quarenta/quatro anos”

Restituído ao status real, Absalão inicia campanha sub-reptícia: cavalos, carros e cinquenta homens abrem caminho; ele madruga aos portões, abraça e beija suplicantes, afirma reconhecer causas justas que a corte não atende, e assim “roubou o coração dos homens de Israel” (2Sm 15:1–6). Reivindica ser homem do povo, com ênfase nos de outras tribos além de Judá.

Crux cronológica (2Sm 15:7): o MT traz “quarenta anos”; Septuaginta (edição de Lagarde), Peshita e Vulgata: “quatro anos”. Conroy propõe “40 dias ou 4 anos” (Conroy 1978: 106–7, n. 40). “A maioria das autoridades (...) concorda” com “after four years” desde o retorno de Gesur.

Com o pretexto de um voto, viaja a Hébron — antiga capital de Judá e local da aclamação de Davi —, instala agentes por todo o reino para proclamar sua coroação ao som de trombetas (2Sm 15:7-12). Oferece sacrifícios, convoca Aitofel, conselheiro máximo de Davi. Muitos migram para seu lado (2Sm 15:7-12).

VII. A fuga de Davi, aliados e opositores a caminho do Jordão

Ante a crise, Davi abandona o palácio, seguido por leais — queretitas, peletitas, geteus; os sacerdotes Abiatar e Zadoque retornam a Jerusalém como líderes de ligação portando a arca (mas sem acompanhá-lo: 2Sm 15:24–29). Husai, “companheiro” do rei, é enviado como agente duplo (2Sm 15:13-37). No caminho, Davi recusa “arrancar a cabeça” de Simei (2Sm 16:1-14), resignado: “meu próprio filho (...) procura a minha alma; quanto mais agora um benjaminita! (...) Talvez Yahweh veja (...) e me restitua a bondade” (2Sm 16:1-14). Davi sobe o Monte das Oliveiras, descalço, cabeça coberta, chorando (2Sm 15:30).

VIII. Jerusalém ocupada, concubinas do rei e o duelo de conselhos (Aitofel vs. Husai)

Absalão entra em Jerusalém sem resistência (16:15). Aitofel aconselha tomar as concubinas do pai, gesto público de ruptura e legitimação (2Sm 16:15-23), cumprindo a etapa final da profecia de Natã (2Sm 12:11). Em seguida, Aitofel propõe golpe seletivo para matar somente Davi naquela mesma noite (2Sm 17:1–4). Husai, para ganhar tempo, recomenda mobilização ampla sob comando do próprio Absalão, lisonjeando sua vaidade (2Sm 17:1-14). “Pela direção de Yahweh” prevalece o conselho de Husai (2Sm 17:14). Aitofel, prevendo o fracasso, suicida-se (2Sm 17:1-14, 23).

IX. Rede de inteligência e logística do contragolpe

Zadoque e Abiatar permanecem em Jerusalém; seus filhos Ahimaaz e Jonathan operam como mensageiros (2Sm 15:32–37; 17:11–24). Apesar dos esforços de captura, a mensagem alcança Davi, que cruza o Jordão e sobe a Gileade até Maanaim/Mahanaim (2Sm 17:15–22). Ali, recebe generosidade e organiza o exército em três divisões sob Joabe, Abisai/Abishai e Itai/Ittai o geteu (2Sm 17:15–18:5; 2Sm 18:1–2). Davi, ficando na cidade, ordena publicamente: “Tratai suavemente o moço Absalão, por minha causa” (2Sm 18:5).

X. A Batalha na Floresta de Efraim e a morte de Absalão

As forças de Absalão sucumbem aos veteranos de Davi; a Floresta de Efraim “devora” muitos (18:1–8). Em fuga, montado em mulo, Absalão fica preso pela cabeça nos ramos de um carvalho (2Sm 18:6-17; 18:9–14). Um homem recusa matá-lo, mesmo por “mil moedas de prata [se forem siclos, c. US$ 2.200]”; Joabe, ignorando o pedido de Davi, atira três dardos/lanças em seu coração e dez escudeiros completam o ato (2Sm 18:6-17). O corpo é lançado num barranco e coberto por um montão de pedras (2Sm 18:6-17; cf. Js 7:26; 8:29).

XI. Lamento de Davi, correção de Joabe e a leitura teológica

Ao receber as boas e más novas (2Sm 18:24-32), Davi pergunta primeiro por seu filho; ao saber da morte, caminha no terraço clamando: “Meu filho Absalão (...) que eu, eu mesmo, tivesse morrido em teu lugar” (2Sm 18:24-33; cf. 18:33; 19:4). Joabe o repreende com franqueza para que reassuma o comando e console os leais (2Sm 19:1-8). O episódio personifica Pv 24:21, 22 e sustenta a rubrica de Salmo 3, “escrito por Davi por ocasião da revolta de Absalão”.

XII. Monumentos, túmulo e memória posterior

Absalão erigiu uma coluna na “Baixada do Rei”/Baixada de Savé (próx. Jerusalém; Gn 14:17), “Monumento de Absalão”, por “não ter filhos varões” (2Sm 18:18; King’s Valley, cf. Jos. Ant. 7.10.3). Seus três filhos (2Sm 14:27) parecem ter morrido jovens (A, D). O monumento não coincide com o chamado “Túmulo de Absalão” no vale do Cédron/Kidron — obra greco-romana, talvez dos dias de Herodes. Absalão foi sepultado na floresta de Efraim, não junto à coluna (2Sm 18:6, 17).

XIII. Outros personagens chamados Absalom/Abessalōm/Apsalōmos

(2) Absalom/Abishalom pode nomear o pai de Maacá, esposa de Roboão, mãe de Abias e (avó) de Asa (2Rs 15:2, 10, 13; cf. 2Cr 11:20–22).

(3) Um dos dois emissários enviados por Judas Macabeu a Lísias em 164 a.C. (2 Macc. 11:17, Abessalōm). Alguns associam à menção da “Casa de Absalão” no 1QpHab.

(4) Pai de Mattatias, comandante no exército de Jônatas Macabeu em 145 a.C. (1 Macc 11:70), provavelmente o mesmo pai de Jonathan enviado por Simão a Joppe em 143 a.C. (1 Macc 13:11; “Apsalōmos”).

XIV. Perfil e avaliação de caráter (síntese das fontes)

As narrativas compõem um retrato ambivalente: terno, zeloso e feroz no zelo por Tamar; ardiloso, falso, sinistro ao manipular Davi e Amnom; ousado, temerário no homicídio; ambicioso, cobiçoso, impetuoso na pretensão ao trono. Sua estada por três anos com realeza pagã pode ter fomentado a ambição. Considerou-se talvez herdeiro por sangue real paterno e materno; Quileabe (Daniel), segundo na linha, desaparece após o nascimento (2Sm 3:3; 1Cr 3:1), possivelmente falecido. Ainda que “moço” (2Sm 18:5), encarna um príncipe moderno: propaganda, populismo, rede de espiões, sinalização sonora com trombetas, teatro político (concubinas; 2Sm 16:15-23), e comando militar que subavalia o adversário.

XV. Notas literárias: “Narrativa da Sucessão” e cautelas críticas

A história de Absalão é frequentemente inserida na “Succession Narrative” (2Sm 9–20; 1Rs 1–2; Rost 1982; Whybray 1968), que privilegia a disputa pela sucessão. Contudo, tal hipótese não faz jus ao apêndice de 2 Samuel (21–24) e, dentro de 2Sm 13–18 [ou 20], o tema sucessório é meager; cautela é recomendada para não subordinar demais a leitura a esse único eixo (Conroy 1978: 101–5; IOTS: 266–80). Ainda assim, as fontes destacam como Yahweh dirige o enredo (2Sm 17:14), como conselhos divergentes (Aitofel/Husai) definem tempos e desfechos, e como o pathos do lamento de Davi reorienta a moral do leitor.

XVI. Salmo 3 como moldura litúrgica

O Salmo 3 traz cabeçalho que o situa “por ocasião da revolta de Absalão”. Como peça litúrgica, insere o drama político na oração: o rei perseguido confia no Deus escudo, e a memória do filho rebelde torna-se catequese para reinos e igrejas sobre poder, culpa, perdão e justiça.

XVII. Apêndice: cronologia e geografia em nota

A frase “ao fim de quarenta anos” (2Sm 15:7) tem aplicação incerta; LXX (Lagarde), Peshita e Vulgata trazem “quatro anos”; Conroy admite “40 dias ou 4 anos”. Para alguns, o marco de “40” contaria a partir da primeira unção de Davi por Samuel, o que manteria Absalão como “moço” (2Sm 18:5), nascido entre 1077 e 1070 AEC. Baal-Hazor situa-se c. 22 km ao NNE de Jerusalém. Absalão possuía terras ao norte (território de Benjamim). Maanaim/Mahanaim, a leste do Jordão, serviu-lhe de refúgio. Kidron/Cédron abriga o chamado “Túmulo de Absalão”, mas de período greco-romano.

Bibliografia

CONROY, Charles. Absalom, Absalom!: Narrative and Language in 2 Sam 13–20. (Analecta Biblica 81). Rome: Biblical Institute Press, 1978.
KITTO, John. Daily Bible Illustrations. v. 3: Samuel, Saul, and David. Edinburgh: William Oliphant and Sons, 1857.
ROST, Leonhard. The Succession to the Throne of David. (Historic Texts and Interpreters in Biblical Scholarship 1). Trad. M. D. Rutter; D. M. Gunn. Sheffield: The Almond Press, 1982.
WHYBRAY, R. N. The Succession Narrative: A Study of II Samuel 9–20; I Kings 1 and 2. (Studies in Biblical Theology, 2d ser., 9). Naperville, IL: A. R. Allenson, 1968.

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GALVÃO, Eduardo. Absalão. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], ago. 2009. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].