A Questão do Cânon do Novo Testamento

A Questão do Cânon do Novo Testamento
(Enciclopédia Bíblica Online)

Cânon, Estudo, Análise, Teoria, QuestãoO terceiro argumento de Risinen possui maior peso. A princípio, coloca-se o seguinte questionamento: o conjunto de vinte e sete documentos, que constitui o Novo Testamento, forma de fato uma coletânea unificada e capaz de uma diferenciação válida frente a outros documentos do período? Em outras palavras, esses documentos se constituem em um adequado objeto de estudo? E correto analisar os documentos do Novo Testamento por si mesmos? Ou ainda, é certo excluir dessa análise, por exemplo, documentos escritos pelos pais apostólicos, o Evangelho de Tomé ou o Evangelho de Pedro? E possível apontar cinco argumentos em defesa do canon, sendo que, a meu ver, os quatro primeiros são bastante sólidos.

Primeiro, esses documentos foram reconhecidos por cristãos em períodos seguintes como um conjunto dc livros sagrados que gozavam do mesmo status atribuído aos escritos que os judeus aceitavam como suas Escrituras. O formato da coletânea e a essência de seu conteúdo foram fundamentalmente determinados por volta do final do segundo século da Era cristã. No entanto, foi somente no ano 367 d.C. que surgiu a primeira declaração, ainda existente, sobre a lista dos livros que mais tarde seriam quase que universalmente aceitos como canônicos.  Podemos admitir que todo o processo, no qual esses livros foram reunidos e separados dos demais, desenvolveu-se por um longo período após sua redação e, também, que não foram escritos com a intenção deliberada de formar um conjunto de livros. O próprio fato de um consenso haver surgido em torno deles, no entanto, é suficiente pan sustentar a posição de que a igreja primitiva estava certa ao reconhecer nessas obrais certas características comuns, as quais constituem a base de sua unidade.

Segundo, esses documentos foram escritos pelos primeiros seguidores de Cristo, indivíduos que participaram pessoalmente do nascimento e da expansão da igreja ou que tiveram um contato bastante próximo com os participantes. sendo que ambos viveram no primeiro século da Era cristã. Portanto, há uma base para uma possivel unidade no que diz respeito ao local e ao tempo relativamente limitados em que esses documentos foram escritos. Em terceira lugar, os livros do Novo Testamento constituem praticamente a totalidade da literatura cristã que sobreviveu do primeiro século, embora alguns documentos dos pais apostólicos (como 1Clemente e a Didaque) também sejam provavelmente do mesmo período. Da mesma forma que a disputa pela posse do território da Caxemira não significa que a Índia e o Paquistão não possam ser considerados dois países distintos, o fato de que possa existir certa coincidência entre as datas dos últimos livros do Novo Testamento e dos primeiros escritos dos pais apostólicos (e também de outros documentos cristãos do mesmo período) não é motivo suficiente para se questionar a existência de um núcleo perfeitamente identificável em ambos os tipos de literatura.

A distinção básica entre literatura cristã do primeiro e do segundo séculos continua sendo válida, mesmo que o limite entre ambas não possa ser traçado com precisão, exceto pela constituição do canon. Em quarto lugar, os livros do Novo Testamento apresentam uma unidade temática patente, perceptível, pelo fato de que todos tratam, de uma maneira ou de outra, de Jesus e da religião que se criou em tomo dele. Com toda certeza. isso não implica necessariamente que todos digam as mesmas coisas sobre o tema comum, ou que concordem uns com os outros. Entretanto, um corpo de documentos que possuam um tema central comum deve se constituir em um objeto legítimo de estudo. Por ultimo, várias vezes tem sido alegado que os documentos demonstram um tipo de pensamento sem sem paralelos na literatura posterior. Esse julgamento é evidentemente bastante subjetivo e seria possível afirmar que alguns dos documentos do segundo século (por exemplo, 2 Carta a Diagoneto) aproximam-se bastante deles em termos de espírito e qualidade. No entanto, como ponto de vista genético é passível de defesa. Ainda assim, não atribuiria muito peso a esse argumento. A tese que defendemos, portanto, é que faz sentido à luz do canon perguntar se existe uma linha teologia básica que seja comum a todos os livros que a igreja primitiva consideravam canônicos.

Evidentemente, a aceitação dessa postura não leva a exclusão de outros documentos, estranhos ao Novo Testamento, do conjunto de nossa análise. No processo de esclarecimento do conteúdo do Novo Testamento e de reconstrução histórica do período é essencial que façamos uso de todas as fontes relevantes, inclusive das diversas formas de literatura cristã existentes naquele momento. Tal método de análise foi característico de Ethelbert Stauffer, cuja proposta era contextualizar o Novo Testamento, em relação ao que designou de “antiga tradição bíblica”, o que por vezes lhe valeu a acusação atribuir quase que o mesmo status canônico ao material extracanônico. No entanto, se estamos escrevendo a história da igreja primitiva, fica claro que devemos usar todas as fontes disponíveis. No entanto, se estamos escrevendo um relato sobre a teologia do Novo Testamento, nossa tarefa é trazer à tona o conteúdo, da mesma forma que a apresentação do pensamento de Shakespeare tomaria como base suas obras, embora as inserisse no contato mais amplo de outras obras escritas por dramaturgos do memo período, ou ainda como o estudo dos fundadores do Partido Trabalhista inglês iria se basear em discursos, mas sempre no contexto do que fora dito por políticos anteriores.


FONTE: New Testament Theology de I. Howard Marshall.