Eclesiastes 1: Significado, Teologia e Exegese
Eclesiastes 1
Eclesiastes 1 funciona como um prólogo existencial e teológico que introduz não apenas o tom do livro, mas também o método do Pregador (qōhelet) em sua investigação sobre o sentido da vida. Com palavras profundas e provocativas, ele inicia sua reflexão com a famosa declaração: “Vaidade de vaidades, diz o Pregador, vaidade de vaidades, tudo é vaidade” (Ec 1:2). Esta frase não é apenas um desabafo melancólico, mas a tese central de todo o livro, que será repetida e demonstrada sob múltiplas perspectivas ao longo dos seus capítulos: a vida vivida “debaixo do sol”, quando desconectada de Deus, é marcada por transitoriedade, frustração e futilidade.
A palavra-chave heḇel (הֶבֶל), traduzida por “vaidade”, significa literalmente “vapor”, “sopro”, “névoa”. Não se trata, portanto, de um niilismo absoluto, mas da constatação de que tudo o que é humano é instável, efêmero e incapaz de produzir satisfação duradoura. O capítulo 1 apresenta as duas primeiras evidências dessa conclusão: a regularidade cíclica da criação que não leva a lugar algum (vv. 4–11), e a busca humana por sabedoria e conhecimento que termina em frustração (vv. 12–18). Em ambos os casos, Salomão conduz sua análise com honestidade radical: observação, experimentação e introspecção. Ele não assume respostas religiosas prontas, mas parte do mundo como ele é: marcado pelo tempo, pela fadiga e pela limitação humana.
Literariamente, o livro de Eclesiastes assume uma forma única dentro da literatura sapiencial bíblica. Embora compartilhe semelhanças com Provérbios e Jó, seu estilo é marcado por uma introspecção filosófica e um tom existencial que se aproximam mais da literatura de sabedoria do Antigo Oriente Próximo (como os textos egípcios de Harpef ou o Diálogo de um desesperado com sua alma) do que dos discursos proféticos ou legais. O Pregador não fala ex cathedra, mas como um observador desiludido, um homem experiente, que ensina não por mandamento, mas por testemunho. Sua linguagem é poética, com paralelismos, repetições enfáticas e interrogações retóricas, refletindo tanto beleza quanto inquietação.
A conexão de Eclesiastes 1 com o Novo Testamento é sutil, mas profunda. Sua teologia da vaidade é a base sobre a qual o Evangelho se ergue. Paulo retoma esse diagnóstico em Romanos 8:20, ao dizer que “a criação foi sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou”, aludindo à mesma condição que Salomão descreve: uma criação boa, mas agora frustrada, incapaz de prover realização plena. Ao mesmo tempo, o Novo Testamento responde a essa vaidade com a promessa de restauração em Cristo: a redenção da criação e do homem (Rm 8:21). A limitação da sabedoria descrita por Salomão em Eclesiastes 1:18 encontra eco em 1 Coríntios 1:20–25, onde Paulo afirma que “o mundo, na sabedoria de Deus, não conheceu a Deus pela sua própria sabedoria”, e que é pela loucura da cruz que o verdadeiro sentido é revelado. A sabedoria debaixo do sol é insuficiente; é necessária a sabedoria que vem do alto (Tg 3:17).
O primeiro capítulo de Eclesiastes, portanto, lança o fundamento para toda a jornada do livro: uma busca honesta e profunda por significado, que passa pela frustração humana e culmina na percepção de que só em Deus, e na Sua revelação — que no Novo Testamento se dá plenamente em Cristo — a vida pode ser endireitada. Como João 1:4 afirma: “Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens”. Essa luz é precisamente o que falta ao mundo sob o sol, mas que agora brilha na revelação final do Filho de Deus.
📖 Comentário de Eclesiastes 1
Eclesiastes 1:1 diz: “As palavras de Qohelet, filho de Davi, rei em Jerusalém.” Logo de início, o texto apresenta três palavras importantes: “palavras” (divrê), “Qohelet” (קֹהֶלֶת), e “rei” (melekh). Vamos entender melhor o que isso significa.
A palavra hebraica divrê vem de davar, que significa “palavra”, mas também pode significar “assunto”, “mensagem” ou até “evento”. Isso mostra que não se trata apenas de palavras no sentido de fala, mas de algo mais sério — é como se fossem declarações pesadas, reflexões profundas, uma mensagem que vem com autoridade e experiência. O mesmo termo aparece, por exemplo, em Jeremias 1:1, onde também se diz “As palavras de Jeremias...”, ou seja, esse é o estilo de um profeta ou sábio que entrega uma mensagem com peso e valor.
A segunda palavra importante é קֹהֶלֶת (Qohelet). Essa palavra vem do verbo qahal, que significa “ajuntar”, “reunir”, “convocar uma assembleia”. Portanto, Qohelet é alguém que fala diante de um grupo — alguém que ensina em público. Por isso muitas traduções usam “o Pregador” ou “o Mestre”. Mas como o termo não aparece em nenhum outro lugar da Bíblia como nome próprio, muitos estudiosos acham melhor não traduzir e apenas manter Qohelet, como um título simbólico — provavelmente um pseudônimo de Salomão, usado para representar uma figura de sabedoria que ensina sobre o sentido da vida.
A terceira expressão chave é melekh biYerushalayim — “rei em Jerusalém”. Isso liga Qohelet diretamente a Salomão, o filho de Davi, que foi rei em Jerusalém e conhecido por sua sabedoria extraordinária (cf. 1 Reis 3:12, onde Deus diz: “Eis que te dou um coração sábio e inteligente...”). Essa referência inicial também ecoa Provérbios 1:1, onde se lê: “Provérbios de Salomão, filho de Davi, rei de Israel”. Ou seja, o autor quer que vejamos Qohelet na mesma linha de sabedoria inspirada por Deus que vemos em Provérbios.
No Novo Testamento, essa ideia de alguém que fala com autoridade diante do povo é assumida plenamente por Jesus. Em Mateus 23:34, Jesus diz: “Eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas...”, e em Mateus 7:28-29, o povo se admira da sua doutrina porque “ensinava como quem tem autoridade”. Assim como Qohelet convoca a assembleia para ensinar sobre a vida, Jesus faz o mesmo, mas levando a sabedoria a uma profundidade maior, revelando o próprio coração de Deus.
Portanto, já no primeiro versículo de Eclesiastes, vemos que essa não é uma simples introdução. É um convite a ouvir alguém que se coloca na posição de sábio — alguém que experimentou a vida, que pensou profundamente sobre ela, e agora deseja transmitir o que aprendeu. É a voz de um mestre que fala para todos os que querem entender o verdadeiro sentido da existência.
Eclesiastes 1:1-2 inicia um dos livros mais surpreendentes da Bíblia com um tom de profunda reflexão existencial: “As palavras de Qohelet, filho de Davi, rei em Jerusalém. Vaidade das vaidades, diz Qohelet; vaidade das vaidades, tudo é vaidade.”
O título “Qohelet” (קֹהֶלֶת) não é um nome próprio, mas um termo hebraico derivado da raiz qahal (קהל), que significa “ajuntar”, “reunir”. Por isso, Qohelet pode ser entendido como “o que convoca a assembleia”, ou “aquele que fala diante do povo reunido” — um pregador, um mestre, um sábio. Embora muitos identifiquem esta figura com Salomão, o texto nunca diz isso explicitamente, preferindo uma identidade simbólica que representa sabedoria vivida. Em paralelo a Provérbios 1:1, que inicia com “Os provérbios de Salomão, filho de Davi”, Eclesiastes também apela à autoridade real e sapiencial, mas aqui de modo mais sombrio, menos proverbial e mais existencial.
A seguir, Qohelet não começa com introduções amenas ou histórias inspiradoras. Ele vai direto ao ponto: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. A palavra traduzida por “vaidade” é hevel, que literalmente significa “vapor”, “hálito”, “sopro”. Assim como o vapor da respiração em uma manhã fria, hevel indica algo que aparece por um instante e logo desaparece — intangível, fugaz, impossível de agarrar. Essa é a imagem com que o Pregador quer que comecemos: tudo na vida é como um sopro que se dissipa.
A construção “vaidade das vaidades” (hevel havalim) é uma forma hebraica de superlativo, como em “cântico dos cânticos” ou “santo dos santos”. Assim, a frase poderia ser traduzida como “a mais vaidade de todas as vaidades”, ou, em outras palavras, “o mais vazio dos vazios”. Qohelet repete a expressão para marcar a força de sua conclusão: ele não está lançando uma ideia abstrata, mas abrindo um diagnóstico existencial a partir de tudo o que viveu, testou e observou no mundo.
Essa constatação levou muitos a interpretarem o livro como negativo, cínico ou até mesmo desesperançoso — uma visão da vida sem Deus. Porém, essa leitura é precipitada. O texto não diz que a vida é vaidade “fora de Deus”, nem oferece explicações do tipo “exceto para os que são piedosos”. Pelo contrário, o próprio Qohelet afirma que a vida como um todo — mesmo quando considerada com sabedoria, riqueza ou poder — continua sendo hevel: algo passageiro, que não pode ser segurado, previsto ou controlado. Essa é a natureza do mundo “debaixo do sol”.
Esse termo — debaixo do sol — se tornará recorrente ao longo do livro. Ele designa a vida tal como a vemos na nossa realidade terrena, limitada, sujeita ao tempo e à morte. Quando Qohelet diz que “tudo é vaidade”, ele fala de tudo o que está sujeito ao tempo e ao ciclo do nascer e morrer. Isso não é um grito de desespero, mas a observação sóbria de quem viu o que o mundo pode oferecer, e descobriu que mesmo as melhores coisas da vida são como névoa: belas, mas passageiras.
Qohelet não fala como um eremita amargurado que nunca viveu, nem como um pobre revoltado que critica o mundo por não tê-lo experimentado. Pelo contrário — ele fala como alguém que teve tudo. Sabedoria, riquezas, prazeres, realizações, palácios e servos (cf. Eclesiastes 2:4-10). Sua tristeza não é ignorância, mas lucidez. Por isso, sua voz ecoa como um alerta: mesmo o melhor da vida é insuficiente para dar sentido ao coração humano.
Contudo, isso não significa que Qohelet seja um pessimista sem fé. O uso repetido de hevel (38 vezes no livro) serve para despertar o leitor para a fragilidade da existência e, assim, abrir os olhos para aquilo que não é hevel. Em outros momentos, o próprio Pregador afirmará que o melhor da vida é receber com gratidão as dádivas simples de Deus — comer, beber, trabalhar, amar — como presentes que têm valor justamente porque são transitórios (cf. Eclesiastes 2:24–25; 3:12–13).
No Novo Testamento, essa tensão é levada adiante. Em Romanos 8:20, Paulo diz que “a criação foi sujeita à vaidade” (mataiotēti, uma tradução grega da ideia de hevel) não por sua vontade, mas pela vontade daquele que a sujeitou, “na esperança”. Isso mostra que a vida passageira, mesmo sendo vaidade, não é sem propósito: ela aponta para algo além de si mesma. Em 1 João 2:17, lemos que “o mundo e a sua concupiscência passam, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre” — um contraste direto com o que é hevel. E em 2 Coríntios 4:16-18, Paulo diz que embora nosso “homem exterior se corrompa”, temos um peso de glória “eterno”, invisível, e não sujeito à vaidade.
Assim, o que Eclesiastes nos oferece não é uma conclusão niilista, mas um convite à sabedoria. Ele nos chama a reconhecer que a vida passa rápido, que tudo é incerto, e que não temos controle. Mas isso não é motivo para desespero — é motivo para viver com reverência, gratidão e consciência de que somente o que vem de Deus é eterno. Viver debaixo do sol com os olhos postos “acima do sol” — eis o desafio de Qohelet. Ele nos prepara para reconhecer que “o temor do Senhor” é o princípio de toda sabedoria, e que tudo mais... é vapor.
Depois de declarar com força que “tudo é vaidade” — ou melhor, que tudo é como vapor que passa — Qohelet, o Pregador, faz uma pergunta que vai atravessar todo o livro de Eclesiastes como um fio condutor: “Que proveito tem o homem de todo o seu trabalho que faz debaixo do sol?” (Eclesiastes 1:3).
A palavra hebraica aqui traduzida como “proveito” é yitron, uma palavra rara, que aparece apenas no livro de Eclesiastes. Ela vem da ideia de “restante”, “excedente”, como num cálculo contábil: depois de todo o esforço, suor e investimento... o que sobra? O que permanece? No contexto da época, era uma pergunta com um sabor comercial — como perguntar qual é o “lucro líquido” da existência. Em outras palavras: o que o ser humano realmente ganha, no final das contas, por todo o seu trabalho neste mundo?
A palavra hebraica para “trabalho” é ʿāmāl, que não se refere apenas ao ato de trabalhar, mas carrega uma conotação de esforço penoso, fadiga, desgaste. É o mesmo termo usado em Gênesis 3:17, onde Deus diz a Adão que ele comeria do solo com sofrimento: “com fadiga comerás dela todos os dias da tua vida”. Ou seja, desde a queda, o trabalho passou a carregar consigo o peso do cansaço e da frustração. Aqui em Eclesiastes, esse mesmo vocábulo descreve a vida do homem como uma batalha constante por sustento, reconhecimento e realização — mas sempre com a sensação de que o esforço nunca é plenamente recompensado.
Essa pergunta é feita “debaixo do sol” — expressão que se repetirá quase trinta vezes ao longo do livro. No hebraico, taḥat haššemeš marca a perspectiva terrestre, horizontal, limitada ao que se pode ver com os olhos humanos. Em outras partes do livro, também aparece a expressão taḥat haššāmayim — “debaixo do céu” — mas a ideia é semelhante: a vida que vivemos aqui, neste mundo físico, marcado pelo tempo, pela morte, pelas limitações da carne. Quando se vive apenas “debaixo do sol”, sem referência ao eterno, tudo se torna cíclico, repetitivo, frustrante. Nada é realmente novo, nada é plenamente satisfatório.
O versículo não responde a sua própria pergunta — não ainda. Mas já insinua a resposta: nenhum lucro permanece. Por mais que o homem trabalhe, construa, invista, acumule, ao final ele deixa tudo para trás. É o que Qohelet demonstrará nos capítulos seguintes: o trabalho humano, por mais digno que seja, não tem poder de gerar um ganho duradouro. Outros virão e continuarão o que foi começado, muitas vezes destruindo ou ignorando o esforço de quem veio antes (cf. Eclesiastes 2:18-21). E assim o ciclo recomeça, como um moinho que gira sem parar, mas sem levar ninguém a um destino final.
Essa conclusão é visivelmente dolorosa, mas verdadeira. Na política, na economia, na arte, na ciência — gerações se sucedem, prometendo mudanças, apresentando projetos, fazendo votos solenes. Mas, cedo ou tarde, abandonam o cargo, falham nas promessas, e deixam tudo incompleto. E a pergunta volta: valeu a pena? houve vantagem?
Jesus responde a essa angústia de Qohelet com palavras que ecoam diretamente essa mesma pergunta: “Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Mateus 16:26). Essa é a versão divina da pergunta de Eclesiastes. O que adianta construir impérios, acumular bens, fazer fama, se no fim a alma não tem descanso? É por isso que Jesus também diz: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mateus 11:28). Ele não despreza o trabalho, mas oferece um descanso que o trabalho não pode dar.
O apóstolo Paulo complementa esse pensamento quando afirma: “A piedade com contentamento é grande fonte de lucro, pois nada trouxemos para este mundo e nada podemos levar dele” (1 Timóteo 6:6-7). A única vantagem real, o único “lucro líquido” que realmente importa, é aquele que permanece além da morte — e isso só é encontrado quando vivemos para Deus.
A história de Jip Wijngaarden ilustra com clareza essa busca e esse vazio. Depois de alcançar fama, destaque em Hollywood e uma carreira promissora, ela se viu vazia, como alguém que havia ganhado o mundo e perdido a si mesma. Em suas próprias palavras: “Meu coração era um grande buraco por onde tudo soprava”. Quando conheceu a Cristo, abandonou tudo aquilo que o mundo valoriza e descobriu que a verdadeira vida não é medida pelo que se possui ou realiza, mas pelo descanso que se encontra em Deus.
Assim, a pergunta de Eclesiastes 1:3 continua atual. Ela nos força a pensar sobre onde temos investido nosso esforço. Se vivemos apenas “debaixo do sol”, tudo parecerá repetitivo, cansativo e sem propósito. Mas se olhamos para o alto — para aquele que está acima do sol, para o Deus eterno — então descobrimos que nosso trabalho, por mais simples que seja, não é em vão no Senhor (1 Coríntios 15:58). O que não tem valor eterno se desfaz com o tempo. Mas o que é feito com fé, humildade e temor de Deus permanece.
Depois de afirmar que tudo é vaidade e que não há vantagem permanente no esforço humano, Qohelet amplia sua reflexão voltando-se para o mundo ao redor. Em Eclesiastes 1:4, ele diz: “Uma geração vai, e outra geração vem, mas a terra permanece para sempre.” A palavra usada aqui para “geração” é dōr, que pode se referir tanto a uma geração humana quanto a um ciclo de tempo. A imagem é clara: pessoas nascem, vivem, trabalham, morrem — e logo são substituídas por outras que farão o mesmo. Mas, enquanto isso, a terra continua ali, aparentemente imutável, como um palco que permanece fixo enquanto os atores entram e saem.
Esse contraste entre o ser humano passageiro e a terra constante ressalta a fragilidade da vida. Em Salmos 103:15-16, lemos que “os dias do homem são como a erva... o vento passa por ela, e já não é, e o seu lugar nem mais a conhece”. É a mesma visão de Tiago 4:14, onde a vida é comparada a “um vapor que aparece por um pouco, e logo se desvanece”. Aqui, Qohelet não está apenas falando de morte, mas do fato de que mesmo as realizações humanas são esquecidas e apagadas com o tempo. Gerações vêm e vão, mas nenhuma permanece. O ciclo se repete.
Nos versículos 5 a 7, o Pregador amplia a ideia mostrando que a própria natureza participa desse padrão de repetição. O sol nasce e se põe — dia após dia, sempre no mesmo ciclo. O vento sopra para o sul, depois para o norte, e dá voltas sem cessar. Os rios correm para o mar, mas o mar nunca enche. A água volta a cair da chuva, renascem os rios, e tudo recomeça. É uma imagem belíssima, mas também inquietante. Tudo está em movimento — mas sem progresso. Tudo gira em círculos. O hebraico reforça esse ritmo com verbos repetitivos e descritivos, como halōkh (“indo”) e shōvēḇ (“voltando”), que criam a sensação de uma engrenagem que nunca para, mas também nunca chega a lugar algum.
O que Qohelet está mostrando aqui é que a natureza, embora ativa e ordenada, reflete a mesma frustração do trabalho humano: tudo está em movimento, mas nada é resolvido. O mundo funciona como uma esteira infinita, como aquela “corrida de ratos” em que nos esforçamos, mas não saímos do lugar. Essa repetição vazia ecoa até mesmo nas conquistas humanas. Grandes impérios surgem, decaem, e seus feitos são esquecidos. Cada geração se agita por significado, mas logo tudo se esvai.
Em Romanos 8:20, Paulo escreve que “a criação foi sujeita à vaidade” — a mesma palavra usada na versão grega de Eclesiastes: mataiotēs (ματαιότης). A natureza, com toda sua ordem e beleza, também sofre com o peso da queda. Os rios e o vento não erram seus caminhos, mas também não encontram descanso. Eles continuam funcionando, sem cessar — e sem realizar nada novo.
O versículo 1:8 resume essa inquietação com uma frase profunda: “Todas as coisas são tão cansativas que ninguém as pode descrever; o olho não se farta de ver, nem o ouvido de ouvir.” A ideia aqui é que o ser humano vive num estado de fadiga interior. O verbo hebraico usado para “cansar” (yaʿēph) pode significar exausto, desgastado, consumido. É um cansaço que não se resolve com descanso físico, pois não é apenas do corpo — é da alma.
O homem olha, ouve, sente — mas nunca está satisfeito. O olho quer ver mais, o ouvido quer ouvir algo novo. Vivemos em busca de novidade, e quando a encontramos, ela logo se torna velha. Isso lembra o que Atos 17:21 diz dos atenienses: “gastavam o tempo em dizer ou ouvir alguma novidade.” O coração humano é inquieto, sempre em busca de mais — mais prazer, mais conhecimento, mais experiências — mas o que encontra nunca basta. É como tentar encher um poço sem fundo.
Só Deus pode preencher essa fome profunda. Como Jesus disse: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão satisfeitos” (Mateus 5:6). Quando nossos olhos veem a Cristo, como disse em Mateus 13:16, somos verdadeiramente felizes: “Bem-aventurados os vossos olhos, porque veem; e os vossos ouvidos, porque ouvem.” Em comunhão com Ele, há alegria plena (1 João 1:4), e descanso verdadeiro (Mateus 11:28).
Sem Deus, a vida parece apenas um ciclo. Com Deus, o ciclo se transforma em caminho. Ele é o ponto de origem e o destino. A criação, que antes nos parecia cansativa e repetitiva, passa a testemunhar a glória do Criador (cf. Salmo 19:1). O sol, o vento, os rios — tudo então se torna símbolo do poder e da fidelidade de Deus, que faz nova todas as coisas.
Eclesiastes 1:4 nos diz: “Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra permanece para sempre.” A expressão “dor hôleḵ” (“geração vai”) e “dor bā’” (“geração vem”) usa dois particípios que expressam ação contínua: as gerações estão constantemente indo e vindo. A palavra dor pode se referir tanto ao conjunto das pessoas vivas em determinado período quanto ao ciclo de tempo em si. Essa estrutura marca o início de uma série de antíteses e reflexões sobre a transitoriedade da vida humana, em contraste com a aparente constância do mundo natural.
A segunda parte do verso usa a forma ʿōmedet, particípio feminino singular do verbo ʿāmad (“permanecer, ficar em pé”), para descrever a terra (hā’āreṣ) como imóvel, firme, inalterável. Ela “permanece para sempre” (lĕʿōlām), termo que pode significar eternidade ou tempo indefinido — mas aqui, usado em contraste à fragilidade das gerações humanas, aponta para sua estabilidade relativa.
A imagem proposta pelo versículo é de um palco estático — a terra — sobre o qual passam, uma a uma, gerações de atores que entram em cena, agem brevemente, e desaparecem. A vida humana aparece como uma peça de teatro em looping eterno, sem clímax nem desfecho. O mesmo padrão se repete ad infinitum, como sugerido também em Salmo 90:10, Isaías 40:6-8 e Tiago 4:14, que descrevem a existência como breve e fugaz — um vapor, uma flor que murcha, uma sombra que passa.
Essa repetição cíclica inspira a analogia moderna da “corrida dos ratos”: esforço incessante, mas sem progresso real. Ainda que cada geração trabalhe intensamente, seus frutos são efêmeros e logo esquecidos, pois tudo o que possui é herdado de outros e transmitido a outros, como aponta Jó 7:6 e 1 Pedro 1:24.
Eclesiastes 1:5 “O sol nasce, e o sol se põe; e apressa-se ao seu lugar, onde nasce de novo.” O verbo zāraḥ significa “nascer”, “irradiar”, e aparece como referência à previsibilidade cíclica do movimento solar. Já bā’ (“pôr-se”) contrapõe-se a ele como o fim do ciclo diário. A forma šō’ēp, traduzida por “apressa-se”, vem do verbo šā’ap (שָׁאַף), que também pode significar “ansiar”, “suspirar”, “correr com desejo”. A imagem é viva: o sol parece correr ansioso para retornar ao seu ponto de partida — para repetir tudo novamente, incansavelmente. Este movimento cíclico, sempre igual, reforça a percepção de que movimento não é progresso. O sol “trabalha” todos os dias, mas seu labor é fadado à repetição. A metáfora ilustra a experiência humana de monotonia e desgaste: o trabalho se acumula, mas não deixa frutos permanentes.
Embora Salmo 19:4-6 apresente o sol como servo da glória divina — “como um noivo que sai de seu aposento” — Qohelet não foca no louvor, mas na mecânica repetitiva do cosmos que reflete a futilidade da existência quando Deus é excluído da equação. A criação, observada sem a perspectiva da fé, apenas confirma o ciclo sem propósito que a vida apresenta.
Eclesiastes 1:6 nos diz: “O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo os mesmos circuitos.” Este versículo é estruturado em paralelismo com repetições enfáticas. O verbo hōlēḵ — “vai” — aparece com sōvēḇ (“gira”) em alternância, revelando a inconstância do vento (rūaḥ). Também šāv, “volta”, marca o retorno ao ponto de partida. É uma descrição poética do ciclo dos ventos, mas também um símbolo do ser humano desorientado, que se move, mas não progride.
A rūaḥ — no hebraico tanto “vento” quanto “espírito” — aqui não representa o Espírito de Deus (como em Gênesis 1:2 ou João 3:8), mas a força impessoal da natureza, constantemente ativa, mas sem direção transformadora. O contraste com o sol é interessante: o sol é previsível; o vento é errático. Ainda assim, ambos não promovem mudança substancial. O vento, mesmo que cause destruição ou traga frescor, termina sempre voltando. É o símbolo da vida humana que, mesmo em meio a reviravoltas, não se renova interiormente. Isaías 57:13 diz: “quando clamares, que te livrem os teus ajuntamentos, mas o vento os levará a todos...”.
Eclesiastes 1:7 diz: “Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde os rios vão, para lá tornam a ir.” O versículo continua a mesma estrutura de observação natural com vocabulário repetitivo e ritmo circular. Nĕḥālîm — “rios” — são como os homens: correm, despejam energia, mas não provocam mudança. O mar (hayyām), por sua vez, nunca se enche — ʾênennû male’, literalmente “ele não está cheio”.
A repetição do caminho dos rios (šām hem šābîm lālēḵ) destaca o ciclo interminável da natureza. Mesmo processos complexos e belos, como o ciclo da água, aos olhos de Qohelet servem como símbolo de futilidade: tudo se move, nada se cumpre. A metáfora ecoa Amós 9:6, onde Deus “chama as águas do mar e as derrama sobre a terra”. Mas aqui, sem Deus, o mar apenas consome, sem satisfação.
A expressão popular “carregar água para o mar” nasce desse conceito: um esforço sem retorno. Como na vida humana, em que projetos, trabalhos e heranças são transferidos, mas nada se acumula verdadeiramente, como mostra Eclesiastes 2:18-23.
Eclesiastes 1:8 “Todas as coisas são tão cansativas que ninguém as pode exprimir; o olho não se farta de ver, nem o ouvido se enche de ouvir.” A palavra yĕʿēfîm, do verbo ʿāyēph, significa “cansados”, “fatigados”, “exaustos”. Tudo no mundo visível — a natureza, o homem, a fala, o ciclo das gerações — chega a um ponto de esgotamento. O homem sequer consegue dabbēr, “expressar” isso com palavras. O acúmulo de repetições parece roubar até o poder da linguagem. O versículo termina com duas negações paralelas: lō’-tiśbaʿ ʿayin lir’ôt — “o olho não se farta de ver”; wĕlō’-timlā’ ’ōzen lishmōaʿ — “nem o ouvido se enche de ouvir”. Isso revela a insaciabilidade do ser humano. Sempre à procura de novidades, imagens, experiências, mas sem jamais alcançar plenitude.
Provérbios 27:20 declara que “os olhos do homem nunca se satisfazem”. Em Atos 17:21, os atenienses são retratados como obcecados por ouvir algo novo. É a fome por novidade, que nunca sacia. Somente quando os olhos e ouvidos se voltam para Deus — como diz Mateus 13:16: “Bem-aventurados os vossos olhos porque veem, e os vossos ouvidos porque ouvem” — há descanso e sentido.
Eclesiastes 1:13 “E apliquei o meu coração a esquadrinhar e a informar-me com sabedoria de tudo quanto sucede debaixo do céu; esta enfadonha ocupação Deus deu aos filhos dos homens para nela os exercitar.” O verbo hebraico empregado para “apliquei o meu coração” é nāṯatî ’et-libbî, que expressa não apenas intenção mental, mas uma decisão profunda da vontade. O coração (lēḇ) na tradição hebraica não é sede das emoções apenas, mas o centro da razão, discernimento e espiritualidade (cf. Pv 4:23; Jr 17:10). Aqui, o Pregador assume que investigará a realidade com intensidade interior. A expressão “debaixo do céu” (taḥaṯ haššāmayim) é uma variação da mais frequente “debaixo do sol” (taḥaṯ haššemeš) e descreve a existência terrena na sua dimensão imanente, secularizada. Importa observar que o Pregador não recorre ao nome pessoal de Deus (YHWH), mas usa exclusivamente Elohim (אֱלֹהִים), como em todo o livro, termo que remete à soberania divina sobre toda a criação. Isso ressalta que a investigação é voltada à ordem universal da vida, e não especificamente à aliança com Israel.
A ocupação referida como “enfadonha” (ʿinyan rāʿ) é uma tarefa difícil e cansativa, como será reiterado em Eclesiastes 3:10. O verbo ʿānah, traduzido por “exercitar”, ocorre apenas neste livro, e denota a ideia de ser afligido ou estar envolvido em algo exigente. Essa é a vocação que Deus entregou à humanidade: ocupar-se intensamente com a vida terrena, buscando sentido, apenas para perceber o seu esvaziamento (cf. Gn 3:17-19). A frustração descrita aqui ecoa Romanos 8:20, onde Paulo afirma que a criação foi sujeita à vaidade, não por vontade própria, mas por determinação divina — e o homem, nesse cenário, busca compreender o que está além de sua compreensão limitada.
Eclesiastes 1:14 “Vi todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e aflição de espírito.” O Pregador se apresenta como alguém que olhou cuidadosamente (rā’îtî) para todas as ações humanas realizadas debaixo do sol (תַּחַת הַשֶּׁמֶשׁ). Sua conclusão é devastadora: “tudo era vaidade” — heḇel, literalmente “névoa”, “vapor”, “sopro”. A expressão “aflição de espírito” traduz o hebraico rĕ‘ûṯ rūaḥ, que pode ser lida também como “pastorear o vento” — uma atividade inútil, sem controle, sem retorno. Essa imagem comunica o absurdo de tentar agarrar o que escapa. Mesmo a sabedoria humana não consegue controlar a vida ou extrair dela sentido duradouro. Esse conceito dialoga com passagens do Novo Testamento como Tiago 4:14 — “que é a vossa vida? Sois, apenas, como neblina que aparece por instante e logo se dissipa” — e com Romanos 1:21, onde se diz que os homens “tornaram-se fúteis em seus pensamentos”. A conclusão do Pregador não é uma negação do valor da existência, mas a constatação de que ela, isolada de Deus, é transitória, decepcionante e sem eixo.
Eclesiastes 1:15 “O que é torto não se pode endireitar; o que falta não se pode calcular.” Aqui se expressa um princípio ontológico: a torção da realidade causada pelo pecado não pode ser corrigida por esforço humano. O hebraico para “torto” é me‘ûḇāt e para “não se pode endireitar” é lō’-yûḵal liqqōn. A raiz ʿ-w-t comunica torção moral e estrutural. O Pregador reconhece que há distorções fundamentais na realidade — do homem, da justiça, da natureza — que não podem ser corrigidas por sabedoria ou ética humanas. Isso ecoa Eclesiastes 7:13 (“Quem poderá endireitar o que Ele torceu?”) e aponta para a necessidade de redenção divina.
É nesse contexto que o trecho enviado se torna indispensável: “Aquele que, como o Pregador, tem os olhos abertos, vê que o homem é tortuoso, enquanto deveria ser nobre, prestativo e bom. Mas nada pode permitir que ele seja assim. Pois ele faz parte de ‘uma geração corrupta e perversa’ (Fp 2:15). Apesar de todo o ensino para endireitar o homem, ele continua torto. Todos os cursos de educação não são capazes de mudar o caráter do homem e enobrecê-lo. O fator mais essencial que falta para descobrir o sentido da vida é a iluminação por meio do Espírito de Deus.” Essa conclusão encontra paralelo em João 3:6-7 — “o que é nascido da carne é carne... necessário vos é nascer de novo”.
Eclesiastes 1:16 “Falei eu com o meu coração, dizendo: Eis que me engrandeci e sobrepujei em sabedoria a todos os que houve antes de mim em Jerusalém; sim, o meu coração viu abundantemente a sabedoria e o conhecimento.” Aqui, o Pregador fala em primeira pessoa (’ănî dibbartî), revelando uma introspecção profunda. O verbo “falar com o coração” revela o método de sua investigação: reflexão interna. Ele afirma ter superado todos os que reinaram antes dele em Jerusalém. Isso não anula a autoria salomônica, pois reconhece reis anteriores não apenas em Israel, como também os reis jebuseus — como Melquisedeque (Gn 14:18) e Adoni-Zedeque (Js 10:1). Seu conhecimento é descrito como “abundante” (raḇāh ḥoḵmâ wĕdaʿat), mas ainda assim insuficiente. Esse saber é humano, racional, ainda não iluminado pela revelação do alto.
Eclesiastes 1:17 “E apliquei o coração a conhecer a sabedoria e a conhecer os desvarios e as loucuras; vim a saber que também isso era correr atrás do vento.” A busca pelo saber não se limitou à sabedoria convencional. Ele investigou também a “loucura” (hōlelāh) e os “desvarios” (siklût), não para praticá-los, mas para compreendê-los. Trata-se de um estudo completo da condição humana: tanto da razão quanto da insensatez. No entanto, ele conclui que tudo isso é também “pastorear o vento” (rĕ‘ûṯ rūaḥ), ou seja, não leva a nenhuma conclusão satisfatória. Isso reflete a angústia do pensador que, por mais que busque, não encontra alívio — o mesmo sentimento expresso por Paulo em Romanos 7:24: “Miserável homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?”
Eclesiastes 1:18 “Porque na muita sabedoria há muito enfado; e o que aumenta o conhecimento aumenta a dor.” A sabedoria, embora louvável, tem um limite cruel: quanto mais profunda, mais dolorosa. O hebraico diz literalmente: kî bĕrōḇ ḥoḵmāh rab-kāʿas — “muita sabedoria é muito pesar”. O verbo para “aumentar” é hōsîp̄, e o substantivo “dor” (mak’ōḇ) traz uma conotação de sofrimento físico e emocional. A sabedoria que se limita à introspecção, sem revelação de Deus, apenas amplia a consciência da ignorância humana. Essa é uma sabedoria sem luz de cima. Eclesiastes 12:12 adverte: “demasiado estudar é enfado da carne”. A verdadeira sabedoria, que conduz à vida, é aquela que vem de Deus (cf. Tg 3:17) e que encontra sua plenitude em Cristo, “em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” (Cl 2:3). O conhecimento meramente humano pode causar dor, mas o conhecimento de Cristo gera paz e salvação (cf. Ef 3:19; Lc 1:77; Is 11:9).
✝️ Comentário Reformado
O Lamento de Salomão sobre a Vida e a Busca por SentidoNo primeiro capítulo de Eclesiastes, Salomão expressa um lamento profundo sobre a injustiça e as decepções inerentes à vida. Ele chora o fim da juventude e a universalidade da morte, um evento inevitável para todos. Contudo, em meio a essa reflexão sombria, ele nos exorta a não depositar nossos corações nas coisas terrenas, mas sim em Deus, em quem reside a “eternidade” e o “para sempre” (3:11, 14; cf. Mt 6:19–21; 7:7–8).
O livro se inicia com a identificação do autor como o “Pregador”, do hebraico qoheleth, que pode ser traduzido como “professor” ou “líder da assembleia”. Ele é também identificado como “filho de Davi”, referindo-se ao Rei Salomão (1Rs 8; cf. 1Rs 11:42). Sobre essa introdução, Lutero oferece uma perspectiva interessante: “Creio que estas palavras foram proferidas por Salomão em alguma assembleia de sua comitiva, talvez após o jantar ou mesmo durante o jantar, para alguns homens grandes e proeminentes que estavam presentes. Ele falou assim depois de ter pensado longamente e profundamente sobre a condição e a vaidade dos assuntos humanos, ou melhor, das afeições humanas. Então ele as derramou para os presentes, como geralmente acontece, e depois o que ele disse foi registrado e reunido pelos líderes da comunidade ou da igreja. Por isso, eles também reconhecem no final (12:11) que receberam e reuniram essas coisas de um único Pastor. Da mesma forma, poderia acontecer que um de nós discorresse sobre assuntos humanos enquanto sentado à mesa e outros os anotassem. É, então, um sermão público que eles ouviram de Salomão” (AE 15:12).
A palavra central que permeia essa introdução é “vaidade”, do hebraico hebel, que significa “mero sopro” (cf. Tg 4:13–14). Através de sua repetição, Salomão descreve uma vida que se arrasta inexoravelmente até a morte, uma existência vazia quando desprovida da presença do Senhor. Lutero esclarece o uso dessa repetição: “Este é um hebraísmo... Eles dizem ‘Cântico dos Cânticos’, isto é, o cântico supremo e mais excelente que Salomão compôs. ‘Vaidade de vaidades’, isto é, a maior e mais alta vaidade de todas, vaidade total e absoluta” (AE 15:13). A vaidade, portanto, pode ser entendida como o ciclo aparentemente interminável da vida em busca de significado e contentamento absoluto, mas sem nunca encontrar verdadeira satisfação. A expressão “vaidade de vaidades” é traduzida na LXX como “frustração” (ou “futilidade”, Rm 8:18–22) para refletir a condição da criação, o desespero de um mundo sem Deus. Diante desse vazio e vaidade, a esperança surge em Jesus Cristo, que, em virtude de Sua cruz e ressurreição, nos redimiu dessa condição. Lutero ainda comenta sobre a linguagem de Salomão: “Salomão introduziu a linguagem cortesã; e assim como os cortesãos têm o hábito de evitar a linguagem simples de seus pais, especialmente na escrita, Salomão também o faz, para evitar a impressão de que ele fala como o povo comum. Ele se afasta da simplicidade não apenas de seu pai, mas também de Moisés” (AE 15:13). Quando o Pregador se refere a “tudo”, ele abrange todas as coisas que são buscadas para dar sentido à vida, incluindo riqueza, prazer e filantropia.
O Esforço Humano e a Perspectiva da Criação
Os versículos de 1:3 a 1:11 funcionam como um excurso que indica a aparente inutilidade ou falta de propósito do esforço humano, e demonstram o ciclo incessante da história humana e da criação. Longe do Senhor, a vida é comparada a um vapor fugaz, mas é pelo poder da Palavra de Deus que a criação continua em seu ritmo cíclico, e as almas são salvas para o Seu reino eterno. Efraim, um dos Padres da Igreja, reflete sobre isso, afirmando: “A justiça do homem é tida como nada. A obra dos homens, o que é? Seu trabalho é totalmente vaidade. De Ti, ó Senhor, de Tua graça é que em nossa natureza devamos nos tornar bons. De Ti é a justiça, que de homens nos tornemos justos. De Ti é a misericórdia e o favor, que do pó nos tornemos Tua imagem” (NPNF 2 13:331–32).
O termo “trabalhos”, presente em Eclesiastes 1:3, vem do hebraico ‘amal, e descreve um trabalho cíclico e insatisfatório. Gerações após gerações surgem e caem neste mundo quebrado. Contudo, é importante notar que não devemos esquecer os prazeres simples da vida (cf. 2:24–26; 3:12–13, 22; 5:18–20; 8:15; 9:7–10; 11:7–10) que vêm da mão graciosa de nosso Pai celestial e devem ser aceitos com gratidão (ver nota, 2:10–11). A expressão “debaixo do sol” aponta para a vida na terra, e o sentido fugaz deste mundo contrasta fortemente com a permanência do céu.
Ao comparar a criação com a vaidade da vida (Eclesiastes 1:4), esta parece eterna e imutável, embora todas as coisas no mundo sejam mutáveis. Somente Deus Todo-Poderoso é eterno e imutável. Além disso, em Eclesiastes 1:5, o texto lembra que a Palavra de Deus criou essas coisas do nada (Gn 1:14–19), e Sua primeira Palavra da criação ainda as sustenta.
Em Eclesiastes 1:6, o “vento” é mencionado como algo em constante mudança, sendo repetidamente comparado à vaidade. Continuando essa observação dos ciclos naturais, Eclesiastes 1:7 descreve o movimento contínuo do ciclo da água: evaporação, condensação e precipitação. Curiosamente, leitos de rios secos (wadis) em Israel se transformam em torrentes incontroláveis durante chuvas fortes.
O versículo 1:8, “o olho não se satisfaz... nem o ouvido”, ilustra como olhos e ouvidos cobiçam coisas novas e tentadoras. As coisas mencionadas nos versículos 4–7 parecem nunca ter fim. Embora devamos ser gratos pelos dons de Deus, podemos até nos cansar de Sua bondade paternal para conosco.
Os versículos 1:9–11 são particularmente impactantes, e Lutero comenta: “Esta passagem cria dificuldades muito grandes para os sofistas, porque eles leem na Sagrada Escritura que muitas coisas novas foram feitas. Por exemplo, o nascimento de Cristo é algo novo, e é uma coisa nova que Sua mãe fosse virgem. Novamente (Is. 65:17): ‘Crio novos céus e nova terra’; também (Ap. 21:5): ‘Faço novas todas as coisas’; e novamente (Nm. 16:30): ‘O Senhor cria algo novo na terra’. Essas passagens os levaram a perpetrar enormes tipos de bobagens enquanto tentavam harmonizar o que Salomão diz aqui com o que essas passagens dizem. Mas isso aconteceu por causa de uma ignorância da maneira de falar de Salomão, porque eles não prestaram atenção ao que ele quer dizer quando diz debaixo do sol. Pois se você tomar isso para se referir às coisas e obras de Deus em si mesmas, não é verdade; pois Deus está constantemente fazendo coisas novas. Mas somos nós que não fazemos nada de novo, porque o mesmo velho Adão está presente em todos nós” (AE 15:20–21).
A declaração de que “não há nada de novo debaixo do sol” (Eclesiastes 1:9) sublinha que gerações, ventos, águas e até mesmo corpos celestes simplesmente repetem seus circuitos. Continuamos procurando algo novo com significado e propósito, mas a vida só tem significado através da redenção em Jesus Cristo. João D. reforça essa ideia: “Deus, sendo perfeito, torna-se homem perfeito, e traz à perfeição a mais nova de todas as coisas novas, a única coisa nova debaixo do Sol, através da qual o poder ilimitado de Deus é manifestado. Pois o que há de maior do que Deus se tornar Homem?” (NPNF 2 9:45). O versículo 1:10, “Veja, isso é novo?”, indica que o velho cai e reaparece como algo novo para uma nova geração. Em contraste, em Cristo nos tornamos uma nova criação (2Co 5:17).
Finalmente, em Eclesiastes 1:11, a falta de lembrança das coisas antigas é destacada. Nomes famosos ou conquistas podem ser discutidos por novas gerações, e muitos encontram satisfação nisso. No entanto, o texto aponta que muitos que foram grandes em sua época não são mais lembrados. Em suma, as nossas vidas, por mais bem vividas que sejam, não conquistarão o favor de Deus no Último Dia. A vida é fugaz e não tem significado à parte do amor de Deus em Cristo Jesus. A fé operada em nós pelo poder do Evangelho, por sua vez, confere sentido à vida e a certeza do perdão, vida e salvação.
A Busca de Salomão pela Sabedoria e suas Limitações
A partir de Eclesiastes 1:12–13, o Pregador, Salomão, passa a narrar pessoalmente suas experiências e estudos, conforme Lutero interpreta: “Aprendamos, portanto, a nos submeter aos conselhos de Deus e a nos abster dos cuidados e pensamentos que Deus não ordenou. Não há nada mais seguro ou mais aceitável a Deus do que se nos abstivermos de nossos próprios conselhos e confiarmos em Sua Palavra. Lá encontraremos orientação suficiente sobre o que devemos fazer. Seus mandamentos para nós são fé, amor e carregar a cruz. Com estas coisas, digo, podemos nos ocupar alegremente. Lide com todo o resto conforme ele vier em nossas mãos, deixando para Ele a preocupação com o seu resultado” (AE 15:25).
Salomão descreve sua busca pela sabedoria como um “negócio infeliz”. A política e os assuntos humanos são complexos e se tornam um fardo para o corpo e a alma. A exploração da sabedoria pelo Pregador foi vigorosa e constante, à medida que ele obtinha insights em filosofia, matemática, comércio, mercadorias, mecânica, história, reinos, leis, entre outras áreas.
O versículo 1:14 compara a vida a um vento que pode ser usado (por exemplo, em navios à vela), mas nunca capturado. As pessoas não podem dominar o mundo, desvendar seus segredos fundamentais ou quebrar os laços do pecado e da morte (cf. Jó 38–39). A vida longe do Senhor é, portanto, perseguir algo que não pode ser capturado (cf. Jo 16:33).
Em Eclesiastes 1:15, a reflexão aponta que não conhecemos a vontade oculta de Deus, e por isso devemos confiar em Sua misericórdia e ver claramente Sua vontade revelada na Palavra. Ao mencionar “todos os que me antecederam em Jerusalém” (Eclesiastes 1:16), o texto se refere a Davi e aos reis jebuseus anteriores a ele. Jerusalém se tornou a capital israelita na época de Davi. Para mais detalhes, consulte as notas em 2Sm 5:5, 7, 9.
Os versículos 1:17–18 abordam a sabedoria e a loucura. A sabedoria é associada a pessoas prudentes, enquanto a loucura e a insensatez são ligadas a indivíduos tolos e auto-engrandecedores (ver p. 1016). A sabedoria humana, por si só, é vista como geradora de loucura e insensatez, resultando em injustiça e tristeza. Contudo, a sabedoria piedosa revela a imperfeição e a vaidade da vida “debaixo do sol”. A “sabedoria”, do hebraico chokmah, naturalmente expõe a injustiça e a corrupção da humanidade. Ver e compreender tal corrupção, que é resultado do pecado, torna-se difícil sem ver o mundo à luz da Sagrada Escritura.
No que se refere ao “conhecimento” (Eclesiastes 1:18), Lutero diferencia: “Conhecimento não se refere ao conhecimento especulativo, mas a uma visão prática e experiencial, uma discrição na execução das ações, o que chamamos de experiência e prática nos assuntos humanos, como no salmo (Sl. 119:66): ‘Ensina-me bom juízo e conhecimento.’ Sabedoria, por outro lado, é a visão pela qual sei como o estado deve ser estabelecido e administrado; isso é então modificado pelo conhecimento ou experiência, de acordo com as coisas como elas são atualmente e com as circunstâncias, na maneira e no padrão que os fatos e os tempos justificam” (AE 15:28).
Em suma, os versículos 1:12–18 nos ensinam que nossas mentes finitas não conseguem compreender a sabedoria de Deus, que está oculta em Cristo (cf. Tg 3:13–18; 1Co 1:30). Conhecemos Sua misericórdia somente através da sabedoria que nos é revelada na Sagrada Escritura.
✡️✝️ Comentários de Rabinos e Pais Apostólicos
✡️ Talmude
1. Talmud Bavli, Shabat 30a–31a
O Talmud, ao discutir a sabedoria e a vaidade das realizações humanas, cita Eclesiastes 1:2 (“Havel havalim, hakol havel” – “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”) para mostrar a frustração de Shlomô haMelekh (Salomão) ao final da vida. Os rabinos interpretam que Salomão experimentou todas as possibilidades humanas — riqueza, prazer, sabedoria — e concluiu que todas são efêmeras se desconectadas do temor de Deus. A Gemará também debate se Salomão escreveu Eclesiastes em arrependimento, como um retorno a uma consciência mais elevada após seus desvios narrados em 1 Reis 11.
“No início ele falou mil parábolas e terminou com ‘Vaidade de vaidades’ — pois tudo sem Torá é vento.” (Shabbat 30a)
2. Talmud Bavli, Sinédrio 101a
Esse trecho menciona a advertência de Salomão como um alerta contra o desprezo da sabedoria divina. Ao citar Eclesiastes 1:9 (“Não há nada de novo debaixo do sol”), os rabinos explicam que toda heresia é uma repetição disfarçada de antigas corrupções. A novidade, quando apartada do serviço divino, é apenas reciclagem do velho erro.
✡️ Mishná
1. Pirkei Aberto 2:8
Embora não cite diretamente Eclesiastes, esse trecho ecoa seu espírito ao afirmar:
“Quanto mais carne, mais vermes. Quanto mais bens, mais preocupações. […] Quanto mais sabedoria, mais vida.”
A correlação com Eclesiastes 1:18 — “Na muita sabedoria há muito enfado” — é percebida aqui como tensão: o mesmo conhecimento que dá vida também traz consciência do sofrimento. A Mishná reconhece o paradoxo salomônico da sabedoria.
2. Mishná Eduyot 2:9
Discute a validade de diferentes tradições e conclui com o princípio de que “Estas e aquelas são palavras do Deus vivo”, o que se conecta a Eclesiastes 1:15 (“O que é torto não pode ser endireitado”), sugerindo que mesmo as disputas rabínicas são parte do ciclo inevitável da limitação humana.
✡️ Zohar
1. Zohar, Terumah 161b–162a
O Zohar vê Eclesiastes 1:2 (“Vaidade de vaidades”) como uma alusão à multiplicidade de mundos e sefirot que, quando desconectados da luz divina (a Shechiná), tornam-se apenas recipientes vazios. “Vaidade de vaidades” são os mundos inferiores sem a presença da luz superior — como vasos sem essência.
“Todos os sete céus que não recebem luz da sabedoria superior são chamados ‘vaidade’ (הבל). E Salomão viu-os e disse: ‘Vaidade de vaidades, tudo é vaidade.’” (Zohar, Terumah 161b)
2. Zohar, Mishpatim 95a
Ao comentar sobre o ciclo da vida e da morte (cf. Eclesiastes 1:4 : “Geração vai, geração vem”), o Zohar interpreta que essa é a dança das almas no ciclo da reencarnação (gilgul). A geração que vem é, muitas vezes, a mesma que foi, retornando sob outra forma para corrigir ou continuar sua missão.
“Uma geração se vai — ela não vai de verdade, pois retorna. Uma geração vem — não vem de novo, vem outra vez. Assim é o segredo dos nascimentos: retornos para tikun.”
3. Zohar, Vayikra 10b
Discute Eclesiastes 1:8 (“Todas as coisas são canseiras; o olho não se farta de ver, nem o ouvido de ouvir”), e relaciona com a alma humana presa no mundo material. A busca incessante por estímulo visual e auditivo é resultado da alma que perdeu a conexão com sua raiz no Ein Sof (o Infinito). Somente a sabedoria interior, revelada na Torá, pode saciar tal desejo.
As fontes rabínicas clássicas leem Eclesiastes 1 como um diagnóstico espiritual do exílio existencial humano: desconectado da divindade, o mundo é “hevel” — um sopro sem substância. O Talmud enfatiza a futilidade das realizações sem Deus; a Mishná, o paradoxo da sabedoria e da limitação; e o Zohar, a dinâmica mística do vazio ontológico e do retorno da alma. Esses textos são herança de séculos de reflexão sobre o livro mais enigmático do Tanakh, que nunca deixou de inquietar os mestres da tradição.
✝️ Orígenes sobre Eclesiastes 1:1
Podemos investigar essas coisas antes mesmo de chegarmos ao corpo do livro, como por que Salomão, que parece ter servido à vontade do Espírito Santo naqueles três livros, é chamado em Proverbs “Salomão, o Filho de Davi, que governou em Israel”, mas no segundo livro “Salomão” não está escrito, mas lê-se, “as palavras de Eclesiastes, o filho de Davi, rei de Israel... em Jerusalém”. Certamente ele escreve que é “Filho de Davi” assim como no primeiro livro e também “rei de Israel”. Mas lá ele escreveu “Proverbs” mas aqui “palavras” e chamou-se “Eclesiastes”, quando lá havia se chamado “Salomão”. E embora lá ele tenha mencionado apenas o país sobre o qual reinou, aqui ele mencionou a nação e designou o lugar de seu reino como “Jerusalém”. Não creio que alguém possa duvidar que Salomão, em muitos aspectos, representa o tipo de Cristo, seja porque ele é chamado “Homem da Paz” ou porque “a Rainha do Sul veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão” [ver Mt 12:42]. Isso também ocorre porque ele é chamado “o filho de Davi” e reina em Israel e porque ele governa sobre aqueles reis, em cujo nome ele próprio é chamado “rei dos reis”. E novamente o verdadeiro “Eclesiastes” é aquele mesmo “que, embora estivesse na forma de Deus, humilhou-se, assumindo a forma de servo” [ver Fp 2:6-7] a fim de reunir um corpo eclesiástico, pois Eclesiastes é chamado a partir de sua congregação. (Commentary on the Song of Songs, Prologue).
✝️ Agostinho sobre Eclesiastes 1:3
Se é vão fazer boas obras por causa do louvor humano, quanto mais vã é a ação de fazê-las para obter dinheiro, ou aumentá-lo, ou retê-lo, e qualquer outra vantagem temporal que nos advém de fora? Pois nosso próprio bem-estar temporal, no final, não deveria ser o motivo de nossas boas obras, mas sim aquele bem-estar eterno que almejamos, onde poderemos desfrutar de um bem imutável que teremos de Deus, ou melhor, o que o próprio Deus é para nós. Pois se os santos de Deus fizessem boas obras por causa deste bem-estar temporal, os mártires de Cristo jamais realizariam uma boa obra. (Explanations of the Psalms 119.38).
✝️ Gregório de Nissa sobre Eclesiastes 1:11:
Se eles são engolidos no esquecimento, não se maravilhe, pois o presente sofrerá o mesmo destino. Porque a natureza tende para o mal, somos esquecidos do bem; mas quando o desfrute do bem retorna, o esquecimento envolve o mal. Não temos lembrança das primeiras e últimas coisas, o que é como se ele dissesse que os eventos que introduziram o mal após o estado abençoado original do homem apagarão a memória das últimas coisas. Nenhuma tal memória existirá no futuro; o último estado [hē eschatē katastasis] destruirá completamente a memória das más ações em Cristo Jesus nosso Senhor, a quem seja a glória para todo o sempre. Amém. (Homilies on Ecclesiastes 1).
✝️ Sobre Eclesiastes 1:7:
Salomão é quem fala aqui, o terceiro rei de Israel que o Senhor havia escolhido depois de Saul e Davi. Ele recebeu o reinado de seu pai e estendeu seu domínio, o que lhe trouxe renome entre os israelitas. Salomão não mais sujeitou povos através da batalha; conduzindo-se pacificamente e com plena autoridade, ele não dedicou sua energia a nada que não lhe pertencesse. Ele afirmou conhecer os esforços necessários para alcançar o prazer e realizou tudo o que havia enumerado, uma experiência que o ensinou que a vaidade é o fim comum das buscas humanas. Eclesiastes estabelece a ordem em sua narrativa quando, durante sua juventude, ele teve tempo para o treinamento pessoal, pois a atenção a tais trabalhos não indica frouxidão. Mas o Espírito usa o livre arbítrio, um movimento próprio de nossa natureza, para aumentar o conhecimento se uma pessoa quiser ter sucesso em seus empreendimentos. Assim, a sabedoria cresce não considerando a razão que de perto considera a paixão e a irracionalidade quando se trata daquela decepção que surge do prazer corpóreo; antes, é o conhecimento sobre a vaidade através da experiência desses empreendimentos. (Homilies on Ecclesiastes 2).
✝️ Gregório Taumaturgo sobre Eclesiastes 1:13:
Examinei cuidadosamente e aprendi sabiamente a natureza de tudo na terra. Descobri que era tudo muito complexo, porque os seres humanos são permitidos a labutar na terra, chafurdando inutilmente em vários tipos de esforço pretensioso em vários momentos. (Paraphrase of Ecclesiastes 1.13).
📚 Comentários Clássicos Teológicos
Henry interpreta a observação sobre os ciclos naturais (vv.4–7) como um contraste entre a repetição enfadonha da criação e a efemeridade do homem. Enquanto a natureza “parece eterna”, o homem “passa e é esquecido”. O versículo 8, “todas as coisas são canseiras”, é, para ele, uma forma poética de expressar o vazio que resta quando os sentidos humanos buscam satisfação e não encontram repouso em Deus.
Quanto ao versículo 9 (“o que foi, isso é o que há de ser”), Henry ressalta que o mundo não oferece nada novo em essência — apenas recicla o velho em formas diferentes. Ele destaca que toda inovação sem Deus é uma ilusão de progresso.
Ao comentar os versículos 12–18, Henry destaca o esforço de Salomão em buscar sabedoria “debaixo do sol” como algo que, isolado de Deus, leva ao desespero. O versículo 15 (“o que é torto não se pode endireitar”) revela, segundo ele, uma das verdades mais duras da condição humana após a Queda: a corrupção interior do homem. Henry cita Filipenses 2:15 para mostrar que só a graça divina pode fazer resplandecer uma luz “em meio a uma geração corrupta e perversa”. A busca por sabedoria puramente racional (v.18) termina, inevitavelmente, em tristeza, pois “muita sabedoria” sem revelação produz “muita dor”.
Fonte: Comentário de Matthew Henry sobre Eclesiastes 1
📖 John Gill (1697–1771)
John Gill começa destacando que o termo “Pregador” (הַקּוֹהֶלֶת, haq-qōhelet) deriva do verbo קָהַל (qāhal), “ajuntar” — uma figura usada por Salomão para retratar sua função de ensinar publicamente uma verdade que muitos ignoram. Para Gill, “vaidade de vaidades” (v.2) é uma forma hebraica superlativa — “vaidade absoluta” —, e mostra que todo empreendimento humano, quando separado de Deus, é destituído de valor duradouro.
Ele observa que “debaixo do sol” (תַּחַת הַשָּׁמֶשׁ, taḥat haššāmeš) é uma expressão recorrente que indica a perspectiva terrena, e insiste que a mensagem do livro só pode ser entendida corretamente quando esse ângulo limitado é reconhecido. Gill entende o “trabalho do homem” (v. 3) como símbolo das atividades inquietas da humanidade caía, sempre buscando algo que só Deus pode oferecer.
Nos versículos 4–7, ele vê uma crítica à repetição incessante da criação como símbolo do cansaço espiritual: os rios correm, o sol se levanta e se põe — mas nada se renova verdadeiramente sem a intervenção divina. Ele interpreta que a monotonia da natureza reflete a fadiga da alma caída.
O versículo 9 é, para Gill, uma refutação do orgulho humano: não há sabedoria nova, nem propósito novo fora de Deus. E no v.15 — “o que é torto não se pode endireitar” — ele observa que o termo עִוֵּת (ʿivvēt) implica corrupção moral e estrutural. Segundo Gill, é uma declaração sobre a insuficiência da razão humana para redimir o mundo. Só a sabedoria de Deus, revelada em Cristo, pode redimir a torção da natureza humana (cf. 1Co 1:30).
No v.18, ele vê um paralelo direto com o sofrimento de Jó: “o aumento da sabedoria natural, sem temor de Deus, aumenta a dor”, pois revela quão incapaz o homem é de alcançar a verdade última.
Fonte: Exposição de John Gill de toda a Bíblia sobre Eclesiastes 1
📖 Albert Barnes (1798–1870)
Albert Barnes interpreta Eclesiastes 1 como um prólogo existencial em que Salomão testa a sabedoria, o trabalho, a experiência — e conclui que tudo é efêmero se isolado de Deus. Ele ressalta que a palavra “vaidade” (הֶבֶל, hevel) aparece repetidamente como o refrão do livro, e que seu sentido literal é “vapor” ou “neblina” — indicando a transitoriedade e fragilidade da vida.
No v.3, Barnes chama atenção para a palavra “proveito” (יִתְרוֹן, yitrôn) — um termo comercial que sugere “lucro”, “ganho residual”. A pergunta retórica “que proveito tem o homem de todo o seu trabalho?” é para ele um desafio à ética secular do esforço humano.
Ao comentar os versículos 5–7, Barnes nota o ritmo cíclico da natureza como um reflexo da frustração interior do homem: tudo se move, mas nada progride. O versículo 8 é interpretado como uma constatação de que os sentidos humanos — especialmente a fala, a visão e a audição — nunca se satisfazem plenamente.
No v. 9, ele observa que o paralelismo é típico da poesia hebraica e serve para reforçar que, fora da revelação divina, não há inovação real. Já no v.13 — “Deus deu este penoso trabalho aos filhos dos homens” — ele explica que o hebraico עִנְיַן (ʿinyan) carrega a ideia de esforço ansioso, como quem tenta resolver um enigma sem chave.
O versículo 15 recebe especial atenção: Barnes sugere que se trata de uma máxima proverbial. A “coisa torta” não é apenas o mundo, mas a alma humana, corrompida e limitada. A sabedoria, por mais que reconheça o problema, não oferece solução sozinha. Por isso, o v.18 — “na muita sabedoria há muito enfado” — encerra o capítulo com uma nota de ironia amarga: conhecer o mal não é suficiente para vencê-lo.
Fonte: Notas de Albert Barnes sobre toda a Bíblia em Eclesiastes 1
📖 Keil (1807–1888) & Delitzsch (1813–1890)Keil & Delitzsch fornecem uma análise filológica detalhada de Eclesiastes 1, destacando que o hebraico do livro é de uma fase posterior da língua bíblica, com traços que apontam para o período pós-exílico, embora atribuam a Salomão a composição primária. Eles comentam que o título הֲקֹהֶלֶת (haqōhelet) é um feminino com artigo definido usado como substantivo masculino — uma forma singular que aponta para a função retórica de Salomão como orador assemblear.
No v.2, destacam que הֲבֵל הֲבָלִים (hevel havalim) é uma expressão superlativa que significa “vaidade suprema” ou “total futilidade”, comparável a expressões como “cântico dos cânticos”. Segundo eles, o termo hevel originalmente significa “sopro”, “alento efêmero” — e seu uso repetido confere ao versículo uma força intensamente negativa e existencial.
No v.3, eles analisam a expressão מַה־יֹּתֵר לָאָדָם (mah-yōtēr lāʾādām) — “que vantagem tem o homem?” — notando que yōtēr vem de יתר, “excedente” ou “restante”, e que a construção sugere uma pergunta amarga sobre o valor do esforço humano.
O versículo 5 — “o sol se levanta” — usa o verbo זָרַח (zāraḥ), que eles interpretam como uma imagem deliberada de repetição sem novidade. O fluxo dos rios no v.7, descrito pelo verbo הֹלְכִים (hōlĕḵîm), é visto como símbolo da incapacidade da natureza de saciar, pois o mar “nunca se enche”.
No v.15 — “o que é torto não se pode endireitar” — eles observam que עִוֵּת (ʿivvēt) e חֶסְרוֹן (ḥesrôn, “falta”) são termos emparelhados para exprimir a limitação intrínseca da existência humana. O verbo יָכוֹל (yākōl, “poder”) aparece com conotação negativa: o homem “não pode” mudar sua condição essencial.
A análise do v.18 também é rica: רֹב חָכְמָה רֹב כָּעַס (rōv ḥokhmāh rōv kāʿas) mostra que o acúmulo de conhecimento intelectual traz não satisfação, mas kāʿas — um termo que pode significar raiva, dor, ou frustração amarga. Assim, a busca pela verdade, sem Deus, leva ao cansaço e não à redenção.
Fonte: Comentário Keil & Delitzsch sobre Eclesiastes 1
Teologia de Eclesiastes 1
Entre o Silêncio do Céu e o Clamor da Terra
Introdução: O Livro de Eclesiastes, situado no coração do cânon sapiencial do Antigo Testamento, tem sido, por séculos, uma pedra de tropeço e um convite à contemplação para teólogos, exegetas, pastores e leitores devotos. Seu tom melancólico, suas perguntas persistentes sobre o sentido da vida e sua frequente ausência de respostas definitivas contrastam com a clareza de outras partes da Escritura. Ainda assim, é precisamente nesse contraste que se revela sua riqueza teológica. Longe de ser um livro cético ou meramente filosófico, Eclesiastes é uma das obras mais profundamente teológicas da Bíblia, pois nasce da tensão mais crua da existência humana: a experiência do mundo sem a revelação plena de Deus, mas ainda sob Sua soberania silenciosa.
A teologia, em seu sentido mais nobre, é o estudo sistemático de Deus, de Seus atributos e de Sua relação com o ser humano e a criação, conforme revelado pelas Escrituras. Ao contrário do que se pensa, esse empreendimento não se limita aos livros doutrinários do Novo Testamento ou aos discursos proféticos do Antigo. Ele se constrói também a partir da dor, da dúvida, da finitude, da injustiça aparente e da esperança fragmentada — e é nesse cenário que Eclesiastes se move. O autor, identificado tradicionalmente como Qohelet, “o Pregador”, não oferece um tratado sistemático como os de Calvino ou Bavinck, mas sua meditação sobre a vida “debaixo do sol” toca todos os grandes pilares da reflexão teológica: Deus, o ser humano, a criação, o pecado, o juízo, a sabedoria, o tempo, a morte e, em última instância, a fé.
Este livro propõe-se a seguir capítulo por capítulo o texto de Eclesiastes, buscando em cada seção não apenas um comentário literário ou exegético, mas uma contribuição explícita ao arcabouço teológico cristão. Cada capítulo do Eclesiastes será examinado à luz das grandes disciplinas da Teologia Sistemática: a Teontologia (o estudo de Deus), a Revelação (como Deus se comunica ao homem), a Antropologia Teológica (a natureza e a limitação do ser humano), a Cosmologia Teológica (a criação e o tempo), a Soteriologia (o clamor por redenção em meio à vaidade), a Cristologia (mesmo que de modo tipológico ou negativo), a Pneumatologia, a Escatologia (o juízo, a morte e a esperança), a Ética Teológica, entre outras.
É evidente que muitos desses temas ainda não estavam plenamente desenvolvidos no período em que o livro foi escrito, e por isso este estudo reconhecerá as limitações históricas e canônicas do texto. Contudo, como defensores da unidade progressiva das Escrituras e da revelação culminante em Cristo, não hesitaremos em observar como os ecos do Eterno ressoam desde o desespero do Pregador até a consumação prometida no Novo Testamento. A abordagem será, portanto, simultaneamente bíblico-teológica (respeitando o contexto de Eclesiastes dentro do Antigo Testamento) e sistemático-teológica (conectando os temas do livro à revelação plena de Deus em Cristo e ao testemunho da fé cristã).
O propósito final desta obra não é encerrar as questões abertas por Eclesiastes, mas abrir os olhos do leitor para sua profundidade teológica. O silêncio de Deus, a repetição do tempo, a frustração do conhecimento, a inevitabilidade da morte e a beleza fugaz da vida não são apenas dilemas existenciais; são convites ao pensamento teológico. Afinal, teologia não é apenas a organização de doutrinas, mas a leitura da vida à luz de Deus — e é isso que Eclesiastes ousa fazer. Neste livro, Qohelet olha para o caos e pergunta: onde está Deus? E ao final, sem jamais negar a escuridão, ele responde: “Lembra-te do teu Criador…” (Ec 12:1). Essa obra é uma tentativa de trilhar esse caminho, entre o início da dúvida e o fim da adoração.
Antropologia Teológica e Cosmologia
A Vaidade como Testemunho da Queda
“Vaidade de vaidades, diz o Pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade” (Ec 1:2). Com essas palavras, Eclesiastes se apresenta como um livro singular dentro da tradição sapiencial. Ao contrário de Provérbios, que ensina sobre a ordem moral e prática da criação, Qohelet parte da frustração da experiência humana para falar do divino. E sua primeira constatação é teologicamente contundente: o mundo, visto a partir da experiência humana isolada de Deus, está mergulhado na vaidade — hevel — um sopro fugaz, frustrante e sem substância duradoura. Essa abertura não é apenas um lamento filosófico: é uma afirmação antropológica e cosmológica profunda sobre a condição do ser humano após a Queda e sua relação com a criação desordenada.
Do ponto de vista da Antropologia Teológica, o capítulo 1 apresenta o homem como um ser em busca de sentido, mas aprisionado a um ciclo de frustração. “Que proveito tem o homem de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol?” (Ec 1:3). A pergunta não é retórica: ela denuncia a condição do ser humano que, separado da revelação plena de Deus, encontra-se fadado ao cansaço, à repetição e ao esquecimento. Qohelet, ainda que escrevendo de forma poética e existencial, ecoa o diagnóstico de Gênesis 3:17-19, onde o trabalho do homem, pós-queda, é descrito como fadiga e labuta. Assim, o “trabalho debaixo do sol” é mais do que um mero esforço físico — é o símbolo da condição decaída, da tentativa humana de construir sentido por meio de realizações que não vencem o tempo nem a morte.
O texto avança em sua reflexão com o famoso poema da criação que não se move: “Geração vai, e geração vem; mas a terra permanece para sempre” (Ec 1:4). O sol nasce e se põe, o vento gira, os rios correm ao mar, e o mar nunca se enche (vv. 5-7). A criação, longe de parecer uma obra harmoniosa, revela-se como um ciclo fechado e repetitivo, incapaz de oferecer renovação verdadeira. Essa leitura cosmológica é radicalmente distinta da visão de Gênesis 1–2, onde a criação é boa e funcional, pois está em harmonia com seu Criador. Em Eclesiastes 1, essa criação está desarticulada do ser humano e não coopera com ele — é natureza em silêncio. Assim, o capítulo introduz uma Cosmologia Teológica marcada pelo descompasso: o homem foi feito para dominar e cultivar (Gn 1:28; 2:15), mas agora é apenas espectador exausto de um mundo que gira sem direção final visível.
A frustração da sabedoria e do conhecimento, nos vv. 12–18, é outra marca da limitação humana. O Pregador testou o conhecimento — “empreguei o coração a esquadrinhar e a informar-me com sabedoria de tudo quanto sucede debaixo do céu” (Ec 1:13) — mas o resultado foi o enfado, não a iluminação. Esse é um dos momentos mais ricos da antropologia bíblica: o homem, dotado de razão, deseja compreender o todo, mas esbarra no limite de sua finitude e de sua condição corrompida. Aqui se entrecruza com a revelação paulina: “o mundo, pela sua sabedoria, não conheceu a Deus” (1 Co 1:21). Eclesiastes antecipa essa verdade ao demonstrar que todo o saber humano, mesmo o mais honesto, falha em restaurar a relação perdida com Deus ou dar sentido último à existência.
Por fim, o capítulo 1 nos apresenta um ser humano que busca, mas não encontra; que observa, mas não interpreta; que trabalha, mas não frutifica. Esse homem, preso ao tempo e à criação distorcida, é o retrato do pós-Éden — um ser dotado de eternidade no coração, mas separado da fonte da eternidade. Assim, a primeira lição teológica de Eclesiastes é a confissão de que, sem revelação divina, a vida se esgota em vaidade. A teologia começa, portanto, não apenas com a glória de Deus, mas com a angústia do homem.
📜 Contexto Histórico e Cultural
As Canções do Harpa do Túmulo de NeferhotepAs Canções da Harpa, um gênero de música egípcia antiga, eram apresentadas em banquetes funerários e descobertas em inscrições de tumbas no Egito. Geralmente, são encontradas ao lado do retrato de um homem tocando harpa ou alaúde. Na religião egípcia ortodoxa, o harpista canta sobre a bem-aventurança do falecido que reside no reino de Osíris. Contudo, várias Canções da Harpa consideradas “heréticas” questionam a ideia de uma vida após a morte bem-aventurada e exortam as pessoas a desfrutar da vida que têm agora, antes que seja tarde. Atualmente, treze Canções da Harpa heréticas são conhecidas, sendo doze delas de Tebas. Juntamente com a Epopeia de Gilgamesh, essas canções fornecem os paralelos literários mais próximos ao livro de Eclesiastes.
Datando do final do século XIV ao início do século XIII a.C., três canções de banquete funerário foram descobertas nas paredes de uma tumba perto de Tebas, no Egito. Essa tumba pertencia a Neferhotep, o falecido a quem as canções homenageiam. De maneira interessante, duas dessas canções apresentam atitudes um tanto contraditórias em relação à morte e à vida após a morte. Na Canção I, por exemplo, o harpista canta sobre as gerações que passam, onde as crianças nascem, respiram vida e começam a se mover inexoravelmente em direção ao túmulo. O deus sol nasce e se põe continuamente, mas a morte é inevitável. O cantor exorta Neferhotep a esquecer o passado maligno e a lembrar apenas das ocasiões alegres, pois a morte é a grande niveladora, reivindicando indiscriminadamente tanto aqueles com celeiros cheios quanto os que não têm nada.
Em contraste, a Canção III possui um tom mais positivo. Embora também declare que a morte é inescapável, ela afirma que as pessoas não são iguais após esse evento. A devoção de Neferhotep aos deuses egípcios será recompensada na vida após a morte; ele será lembrado tanto por seu deus quanto pelas pessoas por sua religiosidade. Graças à sua piedade, os inimigos de Neferhotep serão eternamente derrotados e sua alma será declarada justificada. De fato, ele será mais feliz na vida após a morte do que jamais foi na Terra.
Paralelos para ambas as canções podem ser encontrados em Eclesiastes. Por exemplo, Eclesiastes 1:4–5 fala de gerações que vêm e vão, bem como do ciclo contínuo do nascer e pôr do sol. É inegável que a morte é inevitável e atinge a todos (2:14, 16; 9:2–3). De fato, ela iguala a humanidade, pois ninguém pode levar suas conquistas para a vida após a morte, mas deve deixá-las para a próxima geração (cf. 2:18–19). Em sua declaração final, no entanto, o Pregador conclui que a pessoa deve honrar a Deus e obedecer aos seus mandamentos, pois cada ação será julgada por Ele (12:13–14). Diferentemente da Canção III de Neferhotep, o Pregador não sugere que a religiosidade externa e a piedade cultual serão recompensadas: Deus vê tanto as coisas ocultas quanto as óbvias, e viver uma vida de verdadeira sabedoria começa com uma compreensão e temor adequados do Senhor (cf. Pr 1:7).
O Tema da Inutilidade em Textos Antigos
O tema da futilidade, ou “inutilidade”, é amplamente encontrado em inúmeras obras literárias do segundo milênio a.C. Isso inclui, por exemplo, dois textos sumérios de Nippur, além de textos de Ugarit e Emar (W. G. Lambert, “Some New Babylonian Wisdom Literature,” in Wisdom in Ancient Israel, ed. J. Day, R. P. Gordon, and H. G. M. Williamson. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1995, pp. 30–42). Essa ideia é expressa na afirmação de Gilgamesh de que tudo o que a humanidade faz é “vento” (Epic of Gilgamesh 4.7–8; see COS, 1:132). A mesma palavra usada por Gilgamesh é empregada em outros contextos para descrever a forma como o mundo era regulado pelos deuses. O tema é desenvolvido ao discutir como todas as grandes façanhas dos heróis antigos resultaram em nada, e Eclesiastes utiliza um termo que significa “um mero sopro”.
Na literatura suméria, a temática da futilidade também aparece em uma obra intitulada Nin-nam nukal (“Nada É de Valor”), com várias versões existentes cujas raízes remontam ao início do segundo milênio. Essa obra começa com a declaração: “Nada é de valor, mas a própria vida deve ser doce ao paladar”. Ela contém versos como “mesmo o mais alto não pode alcançar o céu; mesmo o mais largo não pode descer ao submundo” e “Que a ‘corrida’ seja gasta em alegria”. E, assim como a Epopeia de Gilgamesh, esta obra afirma: “A morte é a parte do homem; das consequências de seu destino, nenhum homem pode escapar delas.” Isso demonstra que esses conceitos filosóficos surgiram precocemente na história da Mesopotâmia.
O termo hebraico traduzido como “vaidade” em Eclesiastes 1:2 significa “um mero sopro”. O tema da futilidade, como já mencionado, é recorrente em várias peças literárias do segundo milênio a.C., sendo expresso na afirmação de Gilgamesh de que tudo o que a humanidade faz é “vento”. A mesma palavra utilizada por Gilgamesh em outros textos descreve como o mundo era regulado pelos deuses, e o tema é trabalhado ao discutir como as grandes obras dos heróis do passado não resultaram em nada.
Os leitores modernos tendem a interpretar essas declarações sob a ótica do pessimismo existencial, como se significassem “a vida não vale a pena ser vivida”. No entanto, se o Pregador está prefigurando o estoicismo, seu ponto não é tanto a “falta de sentido em tudo o que existe”, mas sim que “o sentido é encontrado em outro lugar”. O objetivo estoico não é o desespero existencial, mas a desvalorização das coisas às quais a maioria das pessoas (não-filósofos) atribui valor, para que o verdadeiro valor das coisas realmente valiosas (virtude e filosofia para os estoicos, o temor do Senhor para Eclesiastes) possa ser devidamente demonstrado. Uma palavra em inglês adequada para traduzir esse conceito é elusiva, mas é o oposto da auto-realização última.
A Monotonia dos Ciclos Naturais e a Falha da Atividade Humana
Em Eclesiastes 1:6, “o vento gira”. A monotonia dos ciclos da natureza serve como metáfora para o fracasso da atividade humana em realizar qualquer coisa significativa, à medida que cada geração surge e, em seguida, caminha para a morte. Esse sentimento também aparece nas Canções da Harpa egípcias, como a observação: “A água flui rio abaixo, o vento norte sopra rio acima [já que no Egito o Nilo flui para o norte, em direção ao Mediterrâneo], e da mesma forma todos vão para a sua hora.” (S. Fischer, “Qohelet and the ‘Heretic’ Harpers’ Songs,” JSOT 98 (2001): p. 116.) De fato, Eclesiastes se inicia com a declaração geral de que toda a atividade observada no mundo é aparentemente sem efeito e que não há nada de novo debaixo do sol (1:2–11).
No verso 1:8, lemos que “todas as coisas estão cheias de trabalho; o homem não pode expressá-lo”, que, de forma mais literal, pode ser traduzido como “Todas as coisas estão cansativas; ninguém é capaz de falar”. Esse sentimento — de que não há nada de novo para relatar e nenhuma nova máxima para dar — ecoa fortemente as “Lamentações de Khakheperresonb”, um texto egípcio composto no período do Reino Médio (c. 2055–1650 a.C.). Nesse texto, o sábio lamenta:
“Quem dera eu tivesse frases desconhecidas,
Máximas estranhas,
Palavras novas e não testadas,
Vazias de repetições;
Não máximas de discursos passados,
Ditas pelos ancestrais.” (COS, 1:44.)
Ele insiste ainda que “aquele que falou não deveria falar” (ibid.), de uma maneira que lembra a afirmação de Eclesiastes de que ninguém é capaz de falar. Para Khakheperresonb, assim como para Eclesiastes 1:9–10, tudo o que as pessoas fazem debaixo do sol é uma mera “imitação do passado” (ibid.).
Essa perspectiva é reforçada em Eclesiastes 1:9, onde se afirma que “não há nada de novo debaixo do sol”. Para Khakheperresonb, como mencionado na nota anterior, todas as ações humanas sob o sol não passam de uma “imitação do passado”.
A Efemeridade da Fama e a Busca por Monumentos Eternos
A ideia de que “não há lembrança das coisas antigas” (Eclesiastes 1:11) reflete uma rejeição ao que parecia ser uma obsessão dos monarcas do Antigo Oriente Próximo: o desejo de criar monumentos eternos que preservassem seus nomes por todas as gerações. Naturalmente, qualquer israelita culto teria conhecimento das grandes inscrições em pedra dos faraós egípcios. Talvez a futilidade dessa busca já fosse evidente para eles.
Havia exemplos notáveis de monumentos egípcios sendo soterrados pelas areias (mencionado de forma mais famosa na Estela da Esfinge de Gizé, ou “Estela do Sonho” de Tutmés IV, c. 1400 a.C., que afirma ter sido instruído pelo deus sol em um sonho a remover a areia que havia se acumulado ao redor da esfinge. Ver I. Shaw, ed., The Oxford History of Ancient Egypt. New York: Oxford Univ. Press, 2000, pp. 254–55). Além disso, não poucos faraós simplesmente haviam apagado os nomes de seus predecessores, como Tutmés III fez com muitas das inscrições de Hatshepsut (ibid., p. 243). Um texto egípcio conhecido como “Papiro de Berlim 3024” (também conhecido como “Uma Disputa sobre o Suicídio”, “Uma Disputa entre um Homem e seu Ba”, ou “O Homem Cansado da Vida”) lamenta que aqueles “que constroem em granito e que escavam câmaras em pirâmides” são logo esquecidos (ANET, 405; ver também J. Assmann, “Papyrus Berlin 3024,” em Self, Soul and Body in Religious Experience, ed. A. I. Baumgarten, J. Assmann, and G. G. Strousma (Leiden: Brill, 1988), pp. 392). De forma irônica, uma das Canções da Harpa egípcias observa que mesmo aqueles que um dia foram deuses (ou seja, os faraós) jazem esquecidos em suas tumbas (Fischer, “Qohelet,” p. 115).
Índice: Eclesiastes 1 Eclesiastes 2 Eclesiastes 3 Eclesiastes 4 Eclesiastes 5 Eclesiastes 6 Eclesiastes 7 Eclesiastes 8 Eclesiastes 9 Eclesiastes 10 Eclesiastes 11 Eclesiastes 12
📚 Bibliografia
LONGMAN III, Tremper. Eclesiastes. Tradução de Gordon Chown. São Paulo: Shedd Publicações, 2013. (Comentário do Antigo Testamento Baker).
GOLDSWORTHY, Graeme. Eclesiastes. Tradução de Valter Gritsch. São Paulo: Vida Nova, 2017. (A Bíblia Fala Hoje).
SCHILDER, K. Ecclesiastes: A Commentary. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1958.
ENNS, Peter. Ecclesiastes. Grand Rapids, MI: Zondervan, 2011. (NIV Application Commentary).