Resumo e Esboço do Evangelho de Mateus
Resumo do Evangelho de Mateus
de Carson, D. A., & Moo, D. J. (2005)
Todos os estudiosos reconhecem que Mateus foi um grande escritor. As discordâncias quanto à estrutura deste evangelho surgem em virtude do grande número de indicadores estruturais que se sobrepõem e competem entre si, de sorte que parece impossível estabelecer um consenso sobre a importância relativa de cada um.
Se examinarmos a estrutura do livro como um todo, deixando de lado algumas propostas muito excêntricas,[1] existem três teorias predominantes.
1. Alguns identificaram uma estrutura geográfica relacionada com o evangelho de Marcos (v, o cap., 1, sobre o problema sinótico).[2] Mateus 1,1—2,23 é o prólogo e está ligado a 3.1—4,11 (a preparação de Jesus para o ministério) a fim de constituir uma introdução paralela à de Marcos 1.1-13. Mateus 4.12—13.58 apresenta Jesus ministrando na Galileia (cf. Mc 1,14—6 13). Esse ministério estende-se a outros pontos do Norte (Mt 14.1—16.12; Mc 6.14—8.26) antes de Jesus começar a se dirigir para Jerusalém (Mt 16.13—20.34; Mc 8.27—10.52). A confrontação em Jerusalém (Mt 21.1—25,46; Mc 11.1—13.37) culmina com sua paixão e ressurreição (Mt 26.1—28.20; Mc 14,1—16.8).
Este tipo de análise reflete acertadamente o desenvolvimento cronológico geral do ministério de Jesus e preserva algumas distinções geográficas, Mas baseia-se inteiramente numa seleção de considerações temáticas e não leva em conta os marcadores literários que Mateus nos deixou. Justamente porque, com modificações de pequena monta, esse tipo de análise pode ser aplicado a qualquer dos evangelhos sinóticos, ele não informa quase nada acerca dos objetivos peculiares a Mateus.
2. Seguindo sugestões feitas por Stonehouse, Lohmeyer e Krentz,[3] Kingsbury defendeu a existência de três grandes seções firmemente amarradas ao desenvolvimento cristológico.[4] Dá à primeira o título de “A Pessoa de Jesus, o Messias” (1,1—4,16) à segunda: “A Proclamação de Jesus, o Messias” (4.17—-16,20); e à terceira, “Sofrimento, Morte e Ressurreição de Jesus Messias” (16.21—28.20), Logo após o fim das duas primeiras secções aparecem as palavras decisivas ἀπὸ τότε (apo tote, “desde esse tempo”), assinalando um avanço no enredo da história. As duas últimas secções contêm cada uma três trechos sumariantes (4.23-25; 9,35; 11.1; e 16.21; 17.22, 23; 20.17-19).
Embora tenha conquistado adeptos (e.g., Kümmel), esse esboço padece de diversas fraquezas, Não está inteiramente claro que ἀπὸ τότε (apo tote) seja, do ponto de vista redacional, tão importante para Mateus que toda a estrutura do livro tenha de girar em torno da expressão; afinal de contas, Mateus a emprega em 26.16 sem qualquer quebra no ritmo da narrativa. Poderíamos argumentar que existem quatro resumos da paixão na terceira seção e não três (acrescente-se 26.2). Nas duas transições estruturais que faz, Mateus pode ter sido influenciado mais pelo fato de seguir Marcos do que por quaisquer outras considerações. De qualquer maneira, o esboço proposto desfaz de modo inaceitável a importante passagem relativa a Pedro em Mateus 16, Ao contrário do que sustenta Kingsbury, mesmo o desenvolvimento cristológico não é tão claro: a pessoa de Jesus (seção primeira) é ainda o centro da atenção nas seções segunda e terceira (e.g., 16.13-16; 22.41-46); dificilmente pode-se limitar a proclamação de Jesus à segunda seção, pois dois dos três discursos (caps. 18 e 24—25) e vários dos entreveros importantes (caps, 21—23) estão reservados à terceira seção.
3. As estruturas propostas com maior frequência giram em torno da observação de que Mateus apresenta cinco discursos, sendo que cada um dos quais começa num contexto específico e termina com uma fórmula que não se encontra em nenhuma outra parte (lit., “E aconteceu, quando Jesus tinha terminado de dizer estas coisas, que...” [Mt 7.28-29; 11.1; 13,53; 19.1; 26.1]), Vincular narrativas e discursos em cinco pares é uma proposta atraente. Bacon propôs um esquema exatamente assim, chamando as cinco seções de "livros",[5] O livro 1 trata de discipulado (narrativa, caps. 3—4; discurso, caps. 5—7); o livro 2, de apostolado (narrativa, 8—9; discurso, 10); o livro 3, do ocultar da revelação (narrativa, 11—12; discurso, 13); o livro 4, da administração da igreja (narrativa, 14—17; discurso, 18) e o livro 5, do juízo (narrativa, 19—22; discurso, 23—25). Isso deixa Mateus 1 e 2 como preâmbulo e 26—28 como epílogo, O próprio Bacon achava que essa fosse, por parte de Mateus, uma resposta consciente aos cinco livros de Moisés e o cumprimento deles.
Hoje em dia, poucas pessoas acreditam que Mateus tenha tido a intenção de estabelecer qualquer vínculo entre essas cinco secções e os cinco livros de Moisés: os vínculos propostos são extremamente tênues. Os elos entre cada par de narrativa e discurso nem sempre são muito fortes, além do que se deve questionar seriamente qualquer esboço que relegue toda a narrativa da paixão e da ressurreição à condição de epílogo. Contudo, pode-se salvar algo do esquema. O fato de que Mateus relata longos trechos didáticos de Jesus fora dos cinco discursos não é de forma alguma uma crítica ao esboço: a sequência quíntupla de narrativa e discurso não pressupõe que nos trechos narrativos Jesus não seja apresentado como alguém que fala. Ele pode fazê-lo, mesmo longamente (e.g., caps. 11, 21), Na verdade, a questão é que os cinco discursos encontram-se, de um ponto de vista literário, tão claramente assinalados, que é praticamente impossível crer que Mateus não os tenha planejado. Os capítulos 1 e 2 constituem de fato um preâmbulo ou prólogo: todos os quatro evangelhos canônicos preservam algum tipo de introdução independente, antes de passar para a primeira etapa apresentada em comum, a saber, o ministério de João Batista (em Mateus, começando em 3.1). Certamente não se deve considerar Mateus 26—28 um mero epílogo, É bem possível que Mateus pensasse nesses capítulos como o clímax, o trecho narrativo da sexta seção, com o correspondente trecho de “ensino” ou: deixado por conta dos discípulos (28.18-20), estando, portanto, em aberto. Sobrepondo a esses marcadores literários o desenvolvimento transparente do enredo, chegamos a um esboço de sete partes.
Prólogo (1.1—2.23). Essa parte é divisível em seis secções, que tratam da genealogia de Jesus (1.1-17), seu nascimento (1.18-25), a visita dos magos (2.1- 12), a fuga para o Egito (2.13-15), o massacre de Belém (2.16-18) e a volta a Nazaré (2.19-23). Uma citação do Antigo Testamento, introduzida por uma fórmula correspondente de cumprimento, domina as cinco últimas dessas seções.
O evangelho do reino (3.1—7,29). A narrativa (3.1—4.25) compreende os passos iniciais que servirão de base ao ministério de Jesus (3.1—4,11), quais sejam: o ministério de João Batista (3,1-12), o batismo de Jesus (3.13-17) e a tentação de Jesus (4.1-11) — e o início do ministério de Jesus, na Galileia (4.12-25). O primeiro discurso (5,1—7.29) é o Sermão da Montanha. Depois de definido o contexto (5.1-2), o reino dos céus é apresentado, com suas normas (5.3-12) e seu testemunho (5.13-16), O grande bloco do sermão vai de 5.17 a 7.12, principiando e concluindo com a maneira como o reino está relacionado com as Escrituras do Antigo Testamento, “a Lei e os profetas”. Esse é o tema especialmente de 5,17-48, com sua explicação inicial (5.17-20) e as antíteses dependentes (“ouvistes..., eu, porém, vos digo” [5.21-48]), A exigência de perfeição (5,48) introduz advertências correspondentes contra a hipocrisia na avaliação da importância das pessoas (6.1-18), com especial atenção para a maneira correta de exercitar as três manifestações tradicionais da religiosidade judaica: esmolas (6.2-4), oração (6.5-15) e jejum (6.16-18), Para manter tal postura, é necessário buscar as perspectivas do reino (6.19-34), o que inclui a lealdade absoluta aos valores do reino (6.19-24) e uma confiança inabalável em Deus (6.25-34), À exigência de equilíbrio e perfeição, que cumpre as expectativas do Antigo Testamento (7.1-12), segue-se uma conclusão que apresenta dois caminhos (7.13-14), duas árvores (7.15-20), duas afirmações (7.21-23) e dois construtores (7.24-27): o leitor tem de fazer sua escolha. Os versículos finais (7.28-29) não só apresentam pela primeira vez a fórmula que conclui os cinco discursos, mas também reafirmam a autoridade de Jesus, dessa forma preparando o leitor para a série de milagres marcantes que dominarão os próximos dois capítulos.
O reino expandido sob a autoridade de Jesus (8.1—11.1). A narrativa (8.1—10.4) inclui não somente vários milagres, cada um repleto de símbolos que tratam de algum aspecto do reino e de seu rei, mas também o chamado de Mateus (9.9) e a insistência de Jesus em comer com pecadores publicamente reconhecidos como tais (9.10-13), enquanto anuncia que o reino que surge, manifesto em sua própria presença, era um tempo de alegria (9.14-17). Os milagres, bem como a audácia de Jesus, estão fazendo as fronteiras das trevas retroceder, mas a narrativa termina com a necessidade de oração para que haja mais trabalhadores (9,35-38) e o comissionamento dos Doze (10.1-4). Isso conduz naturalmente ao segundo discurso, sobre missão e martírio (10.5—11-1), que, parte do projeto imediato (10.5b-16), passa por advertências de sofrimento futuro (10.17-25) e por uma ordem de não ter medo, tendo em vista a providência do Pai (10.26-31), e vai até uma descrição mais genérica do discipulado autêntico (10,32-39). Reagir, bem ou mal, aos discípulos, equivale a reagir ao próprio Jesus (10.40-42). A conclusão transicional (11.1) aponta para o ministério crescente de Jesus.
O ensino e a pregação do evangelho do reino: a oposição crescente (11.2—13.53). A narrativa (11.2—12.50) não apenas apresenta os papéis relativos de João Batista e de Jesus no andamento da história da redenção (11.2-19), como também reverte a expectativa do povo ao relatar a incisiva condenação que Jesus faz das cidades “boas”, judaicas, religiosas, da Galileia (que na mente de Jesus estão lado a lado com cidades pagãs como Tiro e Sidom ou com um centro proverbialmente ímpio como Sodoma) e ao anunciar alívio e descanso aos exaustos e destroçados — contanto que o encontrem no contexto do “jugo” do Filho (11.20-30). A tensão aumenta quando explode o conflito sobre o sábado (12.1-14), quando Jesus mostra que é bem mais um servo manso e sofredor do que um rei visivelmente conquistador (12.15-21) e quando surge o confronto não apenas entre Jesus e os fariseus (12,22-45), mas entre Jesus e sua própria família (12.46-50). À reversão das expectativas é um tema importante do discurso que se segue, o qual é uma série de parábolas (13,1-53; veja esboço abaixo).
A glória e a penumbra: polarização progressiva (13.54—19.2). A narrativa (13.54—17.27) consiste em uma série de vinhetas que refletem a polarização crescente (e.g., a rejeição em Nazaré, 13,54-58; Herodes e Jesus, 14.1-12; exigências de um sinal, 16.1-4) ou que, quando demonstram o poder do ministério de Jesus, ainda assim revelam a profunda incompreensão da natureza e da ênfase desse ministério (e.g., a multiplicação dos pães, 14.13-21, e a caminhada sobre as águas, 14.22-33; Jesus e a tradição dos anciãos, 15.1-20; a transfiguração, 17.1-13; a cura do menino epiléptico, 17.14-20[21]). O ponto alto da narrativa é a confissão que Pedro faz sobre Jesus (16.13-20), mas o que acontece em seguida — a primeira predição da paixão (16.121-23; cf. a segunda em 17.22-23) — mostra quão pouco o próprio Pedro havia compreendido. O quarto discurso (18.1—19,2) descreve a vida sob a autoridade do reino, A grandeza está inegavelmente ligada à humildade (18.3-4); poucos pecados são mais repulsivos do que fazer os crentes, os “pequeninos” de Jesus, pecarem (18.5-9); salvar ovelhas perdidas é mais importante do que providenciar alimento a ovelhas que estão em segurança (18.10-14); a exposição sobre a prioridade do perdão e a importância da disciplina na comunidade messiânica são apresentadas (18.15-35), A conclusão (19.1-2) serve de transição e introdução ao ministério na Judeia.
Oposição e escatologia: o triunfo da graça (19.3—26.5). A narrativa 19.3-23.39 apresenta várias discussões e parábolas que ressaltam a conduta surpreendente que se espera daqueles que querem seguir Jesus (19.3—20.34), e conduz aos acontecimentos da semana da paixão (21.1—23,39). A entrada triunfal de Jesus (21.1-11), a purificação do templo (21.12-17) e a maldição da figueira (21,18-22) são prelúdios de uma série de controvérsias no pátio do templo (21.23—22.46), cada vez mais concentradas nas reivindicações messiânicas feitas por Jesus. Exasperado, Jesus pronuncia seus ais contra os mestres da lei e os fariseus (23.1-36) e profere seu lamento por Jerusalém (23.37-39), O discurso do Monte das Oliveiras que segue (o sermão escatológico, 24.1—25.46), de notória dificuldade de interpretação, começa com o local que dava vista para o templo (24,1-3), descreve as dores de parto do período entre as duas vindas (24.4-28) e a vinda do Filho do Homem (24.29-31), antes de refletir sobre o significado das dores de parto (24.32-35) e de mostrar com instância a necessidade de estar preparado, visto que o dia e a hora da vinda do Filho são desconhecidos (24.36-41). Uma série de parábolas apresenta variações sobre o tema da vigilância (24.42—25.46). A conclusão transicional (26.1-5) inclui a quarta predição importante da paixão neste evangelho e alguns detalhes sobre a trama contra Jesus, em preparação para a seção final do livro.
A paixão e a ressurreição de Jesus (26.6—28.20). O ritmo agora é rápido, Na narrativa da paixão, a unção em Betânia (26.6-13) e o acerto que Judas faz para trair Jesus (26.14-16) são seguidos rapidamente pela última ceia (26.17-30, que inclui as palavras de instituição da ceia nos vv. 26-30), a predição de Jesus ser abandonado e negado (26.31-35), o Getsêmani (26.36-46), a prisão (26.47-56), Jesus perante o Sinédrio (26.57-68), a negação de Jesus por Pedro (26.69-75), a decisão formal do Sinédrio (27.1-2) e a morte de Judas Iscariotes (27.3-10), Jesus perante Pilatos (27.11-26), o tratamento dispensado a Jesus pelos soldados (27.27-31), a crucificação e a zombaria (27.32-44), a morte de Jesus (27.45-50) e o seu impacto imediato (27.51-56), o sepultamento de Jesus (27.57-61) e a guarda junto ao túmulo (27.62-66). O clímax das narrativas da ressurreição (28.1-17) é a grande comissão, que põe a tarefa de espalhar o evangelho e o conteúdo do ensino de Jesus diretamente sobre os ombros do pequeno reduto de testemunhas, que recebem a garantia da presença de Jesus com elas até o final dos tempos (28.18-20).
Nenhum esboço consegue fazer justiça às numerosas mini-estruturas apresentadas pelo texto (cf. Kümmel, p. 106-7). Para dar apenas um exemplo, o terceiro discurso, as parábolas do reino, está disposto num grande quiasmo:
Às multidões (13.3b-33)
1. a parábola dos solos (13.3b-9)
2. interlúdio (13.10-23)
(a) sobre a compreensão de parábolas (13.10-17)
(b) interpretação da parábola dos solos (13.18-23)
3. a parábola do joio (13.24-30)
4. a parábola do grão de mostarda (13.31-32)
5. a parábola do fermento (13.33)
Pausa (13.34-43)
— parábolas como cumprimento de profecia (13.34-35)
— interpretação da parábola do joio (13.36-43)
Aos discípulos (13.44-52)
5. a parábola do tesouro escondido (13.44)
4. a parábola da pérola de grande preço (13.45-46)
3. a parábola da rede (13.47-48)
2. interlúdio (13.49-51)
(b1) interpretação da parábola da rede (13.49-50)
(a1) sobre a compreensão de parábolas (13.51)
1. a parábola do mestre da lei (13.52)[6]
Outros estudos que podem lhe interessar:
Cf. Jesus Cumpriu as Escrituras de Israel
Cf. Comentário do Evangelho de João
Cf. Teologia da Carta aos Efésios
Cf. Ressurreição dos Cristãos
FONTE: An Introduction to the New Testament (Second Edition) (p. 134). Grand Rapids, MI: Zondervan.
[1]E.g., C. H. LOHR propõe um quiasmo gigantesco (Oral techniques in the Gospel of Matthew, CBQ 23: 403-35), mas existe um número grande demais de pares tênues que não deixam muitos estudiosos se convencerem de que Mateus teve em mente esse recurso literário, M. D. GOULDER tenta vincular a estrutura deste evangelho a um ciclo de lecionário (Midrash and lection in Matthew). Entretanto, sabe-se tão pouco sobre os ciclos de lecionário no século 1 que a proposta gasta muito tempo em especulação (cf. The gospels and the Jewish lectionaries, de L. MORRIS, [GPy vol 1, p. 129-56]), estando bem distante da extraordinária diversidade de comprimentos de leituras propostos por Goulder.
[3]Ned B. STONEHOUSE, The witness of Matthew and Mark to Christ, p. 129-31; Ernst LOHMEYER, Das Evangelium des Matthäus, ed. W. SCHMAUCK; E. KKENTZ, The Extent of Matthews Prologue, JBL 83: 409-14, 1964.
[4]M. D, KINGSBURY, Matthew: structure, Christology, kingdom.
[5]B, W. BACON, The “Five Books” of Moses Against the Jews, ExpT, 15: 56-66, 1918, A ideia é detalhada por Bacon em Studies in Matthew.