Significado de Atos 6
Atos 6
Atos 6 é um capítulo do livro de Atos do Novo Testamento que descreve a seleção e nomeação dos primeiros diáconos na comunidade cristã primitiva. O capítulo começa com o problema da distribuição de alimentos às viúvas da comunidade, que se tornou uma fonte de tensão entre os membros de língua grega e os de língua hebraica.
Em resposta a essa questão, os apóstolos pedem a nomeação de sete homens cheios do Espírito Santo e de sabedoria para supervisionar a distribuição de alimentos. Os sete homens são selecionados e ordenados pelos apóstolos, e a questão é resolvida.
Atos 6 é um capítulo que destaca a importância da liderança servil dentro da comunidade cristã. O capítulo enfatiza a necessidade de líderes cheios do Espírito Santo e de sabedoria, e que se dediquem a servir aos outros. O capítulo também ilustra a unidade e a harmonia que podem ser alcançadas dentro da comunidade cristã por meio de uma liderança eficaz e da orientação do Espírito Santo.
I. Intertextualidade com o Antigo e Novo Testamento
Atos 6 se abre com a tensão entre helenistas e hebreus por causa da “distribuição diária” às viúvas, e Lucas intencionalmente convoca o imaginário da Torá para mostrar que o Evangelho não relativiza, mas cumpre a antiga preocupação do Senhor com os vulneráveis: a Lei insistia que a dízima trienal e a colheita deixada nos limites do campo sustentassem levitas, estrangeiros, órfãos e viúvas (Deuteronômio 14:28–29; Deuteronômio 24:19–21; Deuteronômio 26:12–13), e os Salmos e Profetas denunciavam quando a comunidade negligenciava a viúva (Salmos 146:9; Isaías 1:17; Malaquias 3:5). Ao emergir uma falha nesse cuidado, a Igreja responde não diluindo a prioridade do anúncio, mas ajustando sua estrutura para que “a palavra de Deus” não seja abandonada e a justiça da aliança seja preservada (Atos 6:1–2). Essa resposta já dialoga com o Novo Testamento posterior, no qual a “religião pura e sem mácula” é visitar órfãos e viúvas (Tiago 1:27) e no qual a comunidade recebe instruções detalhadas sobre o amparo às viúvas (1 Timóteo 5:3–16).
A solução proposta pelos Doze — escolher “sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria” para o serviço — insere a Igreja no padrão veterotestamentário de delegação para que o povo não desfaleça e a liderança não se consuma. Moisés, extenuado, ouviu o conselho de Jetro para constituir auxiliares capazes, tementes a Deus, verazes e avessos ao ganho desonesto (Êxodo 18:17–26), linguagem que Lucas retoma quando pede “boa reputação” e “sabedoria”, e que Paulo, adiante, transformará em critérios explícitos para diakonoi: dignidade, não cobiça, consciência limpa (1 Timóteo 3:8–13; Filipenses 1:1). Do mesmo modo, quando o fardo do povo pesou, o Senhor tomou do Espírito que estava sobre Moisés e o repartiu sobre setenta anciãos para que com ele “carregassem o peso” (Números 11:16–17, 25), movimento que Atos 6 relê na clave pascal: agora os apóstolos, após oração, “impõem as mãos” sobre os sete (Atos 6:6), gesto de transmissão e confirmação já conhecido na ordenação de Josué (Números 27:18–23; Deuteronômio 34:9) e que no Novo Testamento acompanha com regularidade a outorga de missão e dom (Atos 13:3; 1 Timóteo 4:14; 2 Timóteo 1:6). O requisito “cheios do Espírito e de sabedoria” encadeia Isaías 11:2 (o Espírito de sabedoria repousa sobre o Ungido) com a capacitação de Bezalel “cheio do Espírito de Deus, em sabedoria” (Êxodo 31:3), sinalizando que, no corpo de Cristo, tanto o ministério da palavra quanto o serviço às mesas pertencem à mesma economia carismática.
A lista de nomes — em sua maioria gregos, com a presença de “Nicolau, prosélito de Antioquia” — antecipa, como prenúncio literário, a abertura missionária para além de Jerusalém, inclusive ao gentio convertido (Atos 6:5). Essa inclusão conversa com as promessas de Isaías de que o estrangeiro que se une ao Senhor terá lugar na casa de oração (Isaías 56:3–7) e com a visão escatológica de que povos “agarrarão a orla do manto de um judeu” para ir com ele ao Deus verdadeiro (Zacarias 8:23). Antioquia, mencionada discretamente aqui, tornar-se-á o polo de irradiação da missão aos gentios (Atos 11:19–26; Atos 13:1–3). O resultado imediato da reorganização é teológico: “crescia a palavra de Deus, e o número dos discípulos se multiplicava muito em Jerusalém, e grande número de sacerdotes obedecia à fé” (Atos 6:7). Essa fórmula lucana (“a palavra crescia”) ecoa a eficácia soberana da Palavra que não volta vazia (Isaías 55:10–11) e a imagem do “correr” da palavra (Salmos 147:15; 2 Tessalonicenses 3:1). A nota de sacerdotes tornando-se obedientes dialoga com a esperança profética de que o Senhor tomaria “sacerdotes e levitas” de entre as nações (Isaías 66:21) e com a expressão paulina “obediência da fé” como objetivo do Evangelho (Romanos 1:5; Romanos 16:26).
A figura de Estêvão, “cheio de graça e de poder”, realizando “grandes prodígios e sinais entre o povo” (Atos 6:8), prolonga visivelmente o ministério de Jesus e dos apóstolos (Lucas 4:40; Atos 5:12–16) e o insere na linhagem dos sábios inspirados do Antigo Testamento, como José, em quem Faraó reconhece “o Espírito de Deus” e sabedoria sem par (Gênesis 41:38–39), e como Daniel, de “excelente espírito” e “entendimento” (Daniel 5:12). Quando membros da “sinagoga dos libertos” disputam com ele e “não podiam resistir à sabedoria e ao Espírito com que falava” (Atos 6:9–10), cumpre-se a promessa do Senhor de dar “boca e sabedoria” que os adversários “não poderão resistir nem contradizer” (Lucas 21:15), a mesma dinâmica que sustentou Pedro “cheio do Espírito Santo” diante do Sinédrio (Atos 4:8–14). A reação, então, repete o padrão do julgamento de Jesus: suscitam “falsas testemunhas” (Atos 6:11–13), ecoando os Salmos que lamentam testemunhas violentas e mentirosas (Salmos 27:12; 35:11) e as cenas da paixão em que buscaram testemunho falso contra o Justo (Mateus 26:59–61; Marcos 14:55–59).
O conteúdo das acusações revela o nervo da controvérsia bíblica sobre templo e lei: Estêvão “não cessa de falar contra este lugar santo e contra a lei” e “este Jesus… destruirá este lugar e mudará os costumes que Moisés nos deu” (Atos 6:13–14). A primeira parte remete imediatamente à palavra profética de Jesus acerca do destino do templo — “não ficará aqui pedra sobre pedra” (Lucas 21:6) — e ao dito joanino sobre o “templo” de seu corpo (João 2:19–21), enquanto evoca a tradição profética de crítica ao culto quando divorciado da justiça (Jeremias 7:1–14; Miquéias 3:9–12). A segunda parte toca o coração da nova aliança: “mudar os costumes” não é abolir a revelação mosaica, mas cumpri-la e transfigurá-la na chave do Messias (Mateus 5:17–20), como adiante argumentará Hebreus ao falar de “mudança de sacerdócio” implicando “mudança de lei” (Hebreus 7:12) e de um “tabernáculo não feito por mãos” (Hebreus 9:11). O próprio anúncio cristão dirá que os gentios são circuncidados “com circuncisão não feita por mãos” (Colossenses 2:11), enquanto Cristo inaugura um templo vivo no qual judeus e gentios, edificados sobre o fundamento apostólico-profético, têm como pedra angular aquele que os acusadores rejeitam (Efésios 2:19–22; Salmos 118:22; Atos 4:11–12).
Por fim, a nota de que “todos os que estavam assentados no Sinédrio, fitando os olhos em Estêvão, viram o seu rosto como rosto de anjo” (Atos 6:15) insere a cena no intertexto mosaico. O brilho do rosto remete à irradiação de Moisés ao descer do Sinai com as tábuas da aliança (Êxodo 34:29–35), e Paulo, mais tarde, fará desse episódio uma chave para comparar a glória transitória do ministério gravado em pedra com a glória excedente do ministério do Espírito (2 Coríntios 3:7–18). A linguagem também dialoga com a promessa do Salmo: “Olharam para ele e foram radiantes” (Salmos 34:5), oferecendo um contrassinal silencioso às acusações: o homem que supostamente ataca Moisés aparece marcado pela mesma luminância que identificou o mediador da antiga aliança. Assim, Atos 6 prepara o grande discurso de Estêvão em Atos 7 mostrando que a questão não é a negação de Moisés, mas a leitura cristológica da história de Israel, na qual o Deus que nunca se conteve num “feito por mãos humanas” (Isaías 66:1–2) agora habita pelo Espírito em seu povo e o organiza para que a Palavra corra sem impedimento, as viúvas sejam cuidadas e até sacerdotes se tornem obedientes à fé. Desse modo, a Igreja nascente demonstra, na prática e na pregação, que o Messias prometido cumpre a Lei e os Profetas, reconfigura o templo e inaugura a economia do Espírito para judeus e gentios, conforme já anunciara a Escritura.
II. Comentário de Atos 6
Atos 6:1 Os helenistas eram homens e mulheres de descendência judaica que nasceram fora de Israel. Eles falavam a língua grega, eram versados na cultura helenística e utilizavam a tradução grega do Antigo Testamento, Septuaginta (At 2.5). Os hebreus eram judeus palestinos que falavam o aramaico e utilizavam o texto hebraico. É possível que tenha havido certa animosidade entre os grupos, até mesmo entre os novos convertidos que se haviam vinculado mais recentemente ao movimento; algo que tenha dado lugar à desconfiança quanto ao tratamento dispensado às viúvas negligenciadas. Na Lei judaica, uma mulher não recebia herança. Ela era dependente de seu marido ou de algum outro parente.
Atos 6:2 Não é razoável que nós deixemos a palavra de Deus e sirvamos às mesas. O ponto aqui não era culpar, mas descobrir o que poderia ser feito para remediar a aparente injustiça. Os apóstolos sabiam que a resolução do problema carecia de apoio e atenção. Embora os apóstolos fossem sensíveis o bastante para reconhecer a natureza da questão, eles também foram cuidadosos para reconhecer as prioridades estabelecidas pela vontade de Deus sobre os líderes da Igreja. Eles não podiam deixar de fazer aquilo que Deus os vocacionara para fazer, pregar e ensinar a Palavra de Deus, e conduzir a Igreja em oração, a fim de servir as mesas. Era preciso fazer algo para suprir as necessidades dos cristãos carentes. O trabalho de administrar e distribuir assistência aos necessitados teria de ser contínuo, portanto, um ministério de serviço, diferenciado do ministério da Palavra. A palavra serviço aqui e ministério (v. 4) é a mesma palavra traduzida em português, em outros contextos, por diácono.
Atos 6:3 Escolhei, pois, irmãos, dentre vós, sete varões. Os líderes da Igreja incluíram toda a congregação no processo de escolha. O conselho local das comunidades judaicas normalmente consistia de sete homens conhecidos como os sete da cidade. Os tais eram conhecidos pelo seu comportamento exemplar na comunidade. No caso dos diáconos escolhidos para servir à Igreja, eles deviam ser escolhidos entre as pessoas de boa reputação, e entre os cheios do Espírito Santo e de sabedoria. A vida desses homens deveria ser condizente com a fé que professavam. Eles sabiam qual era a vontade de Deus e estavam comprometidos em levar seu testemunho até o fim de suas vidas (Ef 5.15-18). Assim, eles eram confiáveis para assumir tal responsabilidade e autoridade.
Atos 6:4 Oração e [...] palavra. Note a ordem aqui. A oração era uma atividade fundamental para os apóstolos (At 2.42).
Atos 6:5 E elegeram Estêvão [...] e Nicolau. Todos os nomes registrados nesse versículo são gregos. A escolha dos helenistas sem dúvida alguma foi um gesto sábio e cordial em favor daqueles que inicialmente tinham feito a reclamação relativa às viúvas (v. 1).
Atos 6:6 Os apóstolos não impuseram as mãos para os homens receberem o Espírito Santo, porque os sete eleitos já estavam cheios do Espírito Santo (v. 3, 5). Em vez disso, os apóstolos conferiram a eles a responsabilidade de levar a cabo aquele ministério. A imposição de mãos era uma tradição muito importante que remontava aos dias de Moisés (Nm 27.15-23) e identificava as pessoas e os ministérios que elas deveriam exercer.
Atos 6:7 Crescia a palavra de Deus. O que o Jesus Cristo tinha feito na vida das pessoas estava espalhando-se em toda a região. Homens e mulheres tornaram-se discípulos submissos ao senhorio de Cristo. Eles não estavam envergonhados da fé que professavam; ao contrário, com grande coragem suportavam o testemunho da verdade do evangelho que mudara suas vidas. Aquilo que Jesus havia prometido estava se cumprindo. Por causa dos salvos que partilhavam com os outros as boas-novas, a Igreja experimentou grande e extraordinário crescimento. Os que vieram a conhecer a Cristo não guardaram tal conhecimento para si, mas saíram e partilharam com os outros. Grande parte dos sacerdotes. Calcula-se que havia em Jerusalém ao menos oito mil sacerdotes. Lucas não está fazendo menção aqui aos que atacaram a fé (At 4.1, 2; 5.17, 18). A maioria desses sacerdotes não era das mais altas famílias sacerdotais. Eles tinham vocações comuns que lhes permitiam servir no templo periodicamente, caso semelhante ao de Zacarias, o pai de João Batista. Tratavam-se de homens humildes, sacerdotes dedicados a Deus que se tornaram obedientes à fé, que reconheciam ser Jesus o Cristo. O significado do serviço deles no templo foi elevado porque eles entenderam a verdade por trás dos rituais que executavam.
Atos 6:8 Estêvão estava cheio de sabedoria (v. 3), cheio do Espírito Santo (v. 5) e cheio de fé e de poder. Ele tinha os dons, a coragem e o brilho necessários para ser uma testemunha poderosa; ainda que seu testemunho fosse rejeitado pelos líderes religiosos. Os corações só se abrem pela ação de Deus, não por nossos dons, nossa coragem ou nosso brilho.
Atos 6:9-11 Alguns que eram da sinagoga chamada dos Libertos. A sinagoga era lugar de adoração, um centro comunitário para adoração e estudo das Escrituras. Em contraste, o templo era um centro de adoração para todo o judaísmo, o lugar exclusivo de certos rituais judeus como o sacrifício. Havia muitas sinagogas, tanto na Judéia como em toda a extensão do mundo romano. Esse versículo faz referência aos judeus do mundo helênico pertencentes aos muitos centros judaicos fora de Jerusalém.
Atos 6:12, 13 A resistência ao evangelho iniciara-se com o convite à discussão. Da discussão, partiram para o debate. Do debate, para a calúnia. Da calúnia, para a difamação e violência. Os antagonistas excitaram o povo e o convenceu de que a essência da fé judaica, aquilo que os judeus entendiam ser mais sagrado: o templo, a Lei, Moisés e o plano de Deus, estava sob ataque por meio da pregação de Estêvão. O assunto não era a obra de Cristo na cruz, mas o núcleo da religião judaica tradicional.
Atos 6:14 Este lugar. A importância do templo seria destruída pelo poder do evangelho que Estêvão pregara (At 7.48). Aquele evangelho cumpriria a revelação de Deus a Moisés, mas também seria responsável por mudar os costumes mosaicos, especialmente a compreensão desses costumes por parte dos líderes judeus. O restante do livro de Atos descreve tais conflitos (At 15.22-29; 21.27-29; 24.5-21).
Atos 6:15 Estêvão estava tão cheio do Espírito Santo que a sua face estava resplandecente (2 Co 3.18).
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