Interpretação do Evangelho de João
João 4
Samaria, um território que os judeus evitavam se
possível, tornou se o cenário de um triunfo espiritual: um poço, uma
mulher, um testemunho, a colheita dos samaritanos que creram. Tanto
o samaritanismo quanto o judaísmo precisavam do corretivo de
Cristo; precisavam ser substituídos pela vida do novo nascimento.
1-4. A crescente popularidade de
Jesus, que excedia a de João, começou a alcançar os ouvidos dos fariseus.
Para evitar problemas com eles nessa ocasião, Jesus determinou deixar a
área e ir para a Galiléia. Ali fez a maior parte de seu trabalho, de
acordo com o registro dos Sinóticos. Era-lhe necessário atravessar a
província de Samaria. Em João, essa palavra costuma apontar uma necessidade
divina, e pode ser o caso aqui, indicando a necessidade de lidar com os
samaritanos, abrindo-lhes as portas da vida. Além disso, há a necessidade mais
evidente de alcançar a Galiléia através de uma rota mais reta.
5, 6. Sicar (muito provavelmente Siquém)
ficava algumas poucas milhas a sudeste da cidade de Samaria e bastante perto do
Monte Gerizim, como também do terreno que Jacó deu a José (Gn. 48:22). Jacó lhe
deixou também um poço por herança (Jo. 4:6). Diz-se que tinha cerca de 26 m de
profundidade. Aqui, Jesus, cansado da viagem e por causa do calor do meio-dia (hora
sexta), parou para descansar.
7-10. Uma mulher samaritana. Nenhuma referência à cidade de Samaria,
que ficava muito distante, mas ao território dos samaritanos. Ela vinha
equipada para tirar água. Considerando que a aldeia de Sicar tinha
água, é possível que a caminhada solitária da mulher ao poço de Jacó indique
uma espécie de ostracismo imposto pelas outras mulheres da comunidade (cons.
4:18). Jesus interrompeu o silêncio pedindo água para beber. Era um pedido
natural à vista do seu cansaço. É um lembrete pungente da humanidade de nosso
Senhor. Atendido ou não (a última alternativa parece a mais provável), o pedido
introduziu a conversa. A partida dos discípulos foi providencial, pois a mulher
não teria conversado com Jesus na presença deles. Duas coisas deixaram a mulher
admirada: que Jesus fizesse tal pedido a uma mulher, pois os rabis evitavam
qualquer contato com mulheres em público; e particularmente que ele falasse assim
com alguém que era samaritano. Para explicar sua admiração, o escritor
acrescenta a observação de que os judeus não se associavam aos samaritanos.
Isto não pode ser aceito em sentido absoluto, pois foi refutado pelo versículo
8. Mostra a indisposição que havia entre os dois grupos de pessoas. Os judeus
desprezavam os samaritanos porque eram um povo de sangue e religião misturados,
apesar de possuírem o Pentateuco e professarem adorar o Deus de Israel. Um
significado mais restrito foi proposto para as palavras da mulher “os judeus
não usam os mesmos vasos que os samaritanos”. Isto se aplica bem à situação (D.
Daube, The New Testament and Rabbinic Judaism, pág.
375-382). Respondendo, Jesus afastou-se de sua própria necessidade, sugerindo
que a mulher tinha uma necessidade mais profunda, que alguém podia atender por
meio do dom de Deus. Alguns o explicam em termos pessoais,
referindo-se ao próprio Cristo (3:16), mas provavelmente seria melhor que o
tornássemos equivalente à água viva. João 7:37-39 é o
melhor comentário (cons. Ap. 21:6).
11, 12. Pensando no poço que estava
diante dele, a mulher ficou perplexa. Jesus não tinha nenhum utensílio para
tirar água e o poço era fundo. No fundo estava a água viva (corrente)
alimentada por uma fonte. Este rabi estaria pretendendo evocar o que Jacó só
conseguira com árduo trabalho? Ele realmente seria maior se o conseguisse.
13-15. A água do poço tinha de ser
consumida ininterruptamente, mas a água que Cristo fornece satisfaz de modo que
a pessoa nunca mais terá sede. É assim que a vida
eterna refrigera. Pode-se estabelecer um paralelo com os repetidos
sacrifícios da antiga aliança e o sacrifício do Cordeiro de Deus oferecido uma
vez para sempre. Ainda não compreendendo, mas já receptiva, a mulher pediu essa
água, para que a sua vida ficasse mais fácil (4:15).
16-18. Antes da mulher poder receber o
dom da água viva, tinha de compreender o quão desesperadamente precisava dela.
O dom era para a vida interior, a qual, no caso dela, estava realmente vazia. Teu
marido... não tenho marido... cinco maridos... não é teu marido. A
melancólica história de sua vida conjugal foi descoberta pelo poder de
penetração de Jesus e por sua própria confissão. É provável que o divórcio
entrou em pelo menos algum desses cinco relacionamentos que precederam o “status”
final ilegítimo. Moralmente, a mulher estivera descendo há algum tempo.
19, 20. Para a mulher, Jesus era em
primeiro lugar um judeu, depois alguém merecedor do título Senhor,
e agora um profeta. Ele penetrara em sua alma. A referência à
adoração no Monte Gerizim, instituída para competir com a dos judeus em
Jerusalém, pode ter sido uma tática diversiva, mas é mais provável que fosse
uma indicação da fome de um coração em conhecer o caminho para Deus.
21-24. A hora vem. Na nova ordem que Cristo veio
inaugurar, o lugar da adoração subordina-se à Pessoa. O que importa é que os
homens adorem o Pai, a quem o Filho veio declarar. Usando o pronome vós,
Jesus talvez antecipasse a conversão dos samaritanos. A adoração dos samaritanos
era coisa confusa (cons. II Reis 17:33). A salvação vem dos judeus, no
sentido em que uma revelação especial lhes fora dada quanto à maneira certa de
se aproximarem de Deus; e o próprio Jesus, como o Salvador, veio desse povo
(Rm. 9:5). A hora, e já chegou. Mesmo antes da nova
dispensação ser inaugurada em seu caráter universal, os verdadeiros adoradores
têm o privilégio de adorarem Deus Pai em espírito e verdade. Espírito
parece uma alusão a Jerusalém e sua adoração em termos da letra (Lei), enquanto
que verdade faz contraste à adoração inadequada e falsa dos
samaritanos. O novo tipo de adoração é imperativo porque Deus é Espírito (não um
Espírito).
25, 26. A alusão que a mulher fez ao
Messias foi provavelmente com base em Dt. 18:15-18, que era aceito como
Escritura pelos samaritanos. Sendo o profeta por excelência, o Messias seria
capaz de anunciar tudo. Essa melancólica projeção para o futuro foi desnecessária.
Eu o sou, eu que falo contigo. Seria perigoso para Jesus
anunciar-se desse modo entre judeus,
onde as idéias sobre o messiado eram politicamente coloridas. Aqui, ao que
parece, ele se julgava seguro. A semente estava plantada, e na hora exata, pois
a conversa terminou com a chegada dos discípulos.
27-30. Os discípulos ficaram admirados
ao ver que Jesus contrariava a convenção social falando com uma mulher (veja v.
9). Mas o respeito por seu mestre evitou que o interrogassem abertamente. Desimpedida
do seu cântaro, a mulher retirou-se a toda pressa para a cidade,
como prova do seu propósito de retornar, pois estava determinada a obter a água
viva daquele momento em diante. Ela fez mais do que Jesus pediu, e não foi ter
com um só homem, mas aos homens da cidade com a notícia de sua maravilhosa
experiência. Ela não tinha a presunção de ensiná-los, mas colocou um pensamento
em suas mentes, por meio de uma pergunta tentadora: Será que esse não é o Cristo?
Os homens ficaram suficientemente impressionados para irem com ela ao poço.
31-38. Enquanto isso os discípulos
insistiam com Jesus para que comesse, mas ele declinou dizendo que tinha um
alimento que eles desconheciam. Este, ele explicou, era fazer a vontade de
Deus (v. 34). Ele a fizera na ausência deles, e a fizera à luz da cruz, onde
concluiria a obra que lhe fora confiada por Deus (cons. 17:4; 19:30). Seu
ministério era tanto semear como colher. Quatro meses até à ceifa talvez
fosse a espera normal no reino natural, mas levantando seus olhos os discípulos
veriam terras que já branquejam (os samaritanos que se aproximavam), resultado
de sua sementeira (4:35). No trabalho espiritual, o semeador e
o ceifeiro costumam ser pessoas diferentes, que juntas se regozijam
pelo que seus esforços combinados realizaram (vs. 36, 37). Aqui em Samaria e em
muitas outras situações, os discípulos, embora não fossem os semeadores, seriam
os colhedores. Outros talvez inclua Jesus e a mulher de
Samaria. Num certo sentido até Moisés pode aqui ser incluído, sendo humanamente
responsável por implantar a semente da expectação messiânica no coração da
mulher.
39-42. Aqui somos informados do fruto
que Cristo e a mulher puderam colher, como semeador e colhedor. Muitos creram
no Senhor por causa do testemunho da mulher. Isso provocou um convite para que ficasse
no meio deles, no que Cristo consentiu por dois dias. Durante esses
dias, outros que teriam ouvido o testemunho da mulher e se inclinariam a crer
em Jesus, tomaram-se crente em pleno desenvolvimento por causa do que receberam
através da sua palavra, isto é, dos lábios de Jesus (v. 42). Salvador
do mundo – uma grata confissão, uma vez que significava que tanto
samaritanos como judeus poderiam ser salvos.
F. A Cura do Filho do Nobre. 4:43-54
Este incidente é o único parágrafo do ministério
narrado por João que relaciona com esta visita de Jesus à Galiléia. O rapaz,
doente em Cafarnaum, foi curado pela palavra de Jesus, quando este se
encontrava em Caná, a milhas de distância.
43-45. O significado de sua
própria terra tem sido discutido. Possivelmente a solução mais fácil é
que o escritor esteja se referindo à Galiléia como um todo. Uma falta de
respeito era de se esperar ali, em contraste com a crescente popularidade que
lhe foi concedida na Judéia (3:26; 4:1). O fato de que os galileus que
estiveram em Jerusalém e viram os seus milagres ali estivessem prontos a
aceitá-lo, não os colocava na classe de crentes permanentes e verdadeiros
(cons. 2:23-25; 4:48). Finalmente, os galileus o desertariam (6:66). Enquanto
estava em Caná, Jesus recebeu a visita de um oficial do rei (basilikos,
indicando uma figura real, ou de alguém a serviço do rei). A esperança que o
pai tinha de conseguir que Jesus curasse o seu filho parece que se baseava no
contato com os galileus que viram os milagres de nosso Senhor em Jerusalém
(4:47; cons. v. 45). Tendo viajado de Cafarnaum a Caná, o pai fez um pedido
urgente e repetido (êrôta) para que Jesus descesse e curasse o rapaz. Jesus expressou o
temor de q pai como muitos outros, estivesse tão preocupado com as notícias dos
milagres realizados que não seria capaz de crer. Mais importante do que a saúde
do rapaz era a fé do pai. A resposta do pai exala o desespero da necessidade
(cons. Mc. 9:22-24). Jesus provou-se digno da fé e também simpático aos
sentimentos do suplicante – Vai ... teu filho vive. Sua fé desenvolveu-se
rapidamente, o homem creu na palavra de Cristo sem qualquer
sinal visível, e seguiu o seu caminho satisfeito.
51-54. Os servos do nobre,
vigiavam ansiosamente o filho do seu senhor na ausência deste, quando notaram a
mudança drástica em suas condições e saíram ao encontro do pai com as boas
novas. O próprio nobre, já tranqüilo em sua fé, estava agora interessado em
saber quando ocorrera a mudança. Quando comparou o tempo da ausência da febre com
o momento de sua entrevista com Jesus, ficou sabendo que a cura não fora
acidental. Creu ele. Sua fé foi confirmada pela experiência. Sua
fé contaminou toda a sua casa (v. 53). No primeiro milagre em Caná, os discípulos
creram. O segundo milagre realizado no mesmo local resultou em
um círculo de fé mais largo.
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