Abraão na Carta aos Gálatas

Abraão na Carta aos Gálatas

Abraão na Carta aos Gálatas

A própria carta deixa claro que cristãos de origem pagã faziam parte da comunidade da Galácia (G1 4,8), e no meio deles havia algumas pessoas que contestavam o Evangelho de Paulo e perturbavam esses recém-convertidos (G11,7-9; 5,8-10). Essas pessoas persuadiam os pagãos convertidos a obedecer aos preceitos da lei mosaica (G13,1-2; 4,8­ 10), em especial a circuncisão (G15,2-3; 6,12­ 13). Em vista dos indícios contidos na carta, parece mais provável que os adversários de Paulo fossem judeu-cristãos (G1 4,30; Paulo alude a “outro evangelho” em G11,6-9; ver Judaizantes). Muitos biblistas observam que Abraão deve ter desempenhado um papel fundamental nos argumentos dos adversários de Paulo. Por exemplo, J. C. Beker afirma que os adversários de Paulo eram os que achavam que não bastava os gentios se voltarem para Cristo. A fim de ter certeza de que estavam sob a bênção de Deus e eram verdadeiros filhos de Abraão, tinham de participar plenamente da Torá (Beker, 42-44). 

2.2. O texto de Gálatas. 2.2.1. Gl 3,1-3,14. 

O tom zangado de Paulo é evidente desde o início da Carta aos Gálatas, pois omite a passagem de ação de graças que geralmente encontramos em suas cartas. Ele os chama de “estúpidos” (Gl 3,1.3), por se deixarem seduzir (Gl 3,1) para obedecer aos requisitos da lei (Gl 3,2.3.5). As perguntas mordazes de Gl 3,1 -5 servem para destacar os temas da argumentação que vem em seguida. Nessas perguntas sarcásticas, Paulo estabelece uma antítese entre a “prática da lei” (ergõn nomou) e escutar a “mensagem da fé” (akoès pisteõs). Deus operou milagres entre eles em virtude da “prática da lei” ou porque eles escutaram “a mensagem de fé?” (Gl 3,5). Aqui, a principal preocupação de Paulo é alertar os leitores para o contraste entre “ouvir a mensagem de fé” e a “prática da lei”, e para que eles considerem o erro grave em que incorreram. O argumento que Paulo tira da Escritura, a resposta que ele mesmo dá a suas perguntas retóricas anteriores (Betz, 130), gira em tomo de Abraão: “Visto que Abraão teve fé em Deus e isto lhe foi tido em conta de justiça” (Gl 3,6). B. Byme afirma que o uso de kathõs (“visto que”) subentende que o que se segue corresponde ao que acabou de ser descrito (Byrne, 148). Abraão é o que acreditava em Deus e, pela ação de Deus, foi tido como justo. Isso corresponde ao Espírito enviado por Deus por causa da fé dos crentes gálatas. 

A recepção do Espírito pelos crentes gálatas é paralela à recepção de justiça por Abraão (Barclay, 80; ver Espírito Santo). Ao se basear em Abraão para analisar o contraste entre a fé e as obras, Paulo vê Abraão de um jeito novo. Antes, o judaísmo visualizava juntas a fé de Abraão e suas obras. Por exemplo, em Jubileus, Abraão não só é o primeiro a se separar da família e adorar o Deus Criador único (Jub 11,16-17; 12,16-21), mas também observa os preceitos da lei mosaica como a Festa das Tendas (Jub 16,20; cf. 22,1-2). Em suas obras, Fílon descreve Abraão como seguidor da lei natural (Fílon, Abr. 275-276). Para Fílon, a lei da natureza e a lei de Moisés são idênticas. Somente a lei que foi revelada por Deus, o criador da natureza, está realmente de acordo com a lei natural. Ao seguir a lei natural, Abraão se toma exemplo de obediência à lei por seus descendentes (Fílon, Abr. 6). Fílon é o único que realmente nos diz que Gn 15,6 era interpretado com o significado de que Abraão acreditava no Deus Criador único, não em outros deuses ou filosofias. Gn 15,6 declara: “Abraão teve fé no Senhor, e por isso o Senhor o considerou justo”. Fílon descreve Abraão dizendo que “ele é considerado a primeira pessoa a crer em Deus, pois foi o primeiro a ter uma concepção firme e inabalável da verdade da existência de uma única Causa acima de todas as coisas, que sustenta o mundo e tudo que há nele” (Fílon, Virt. 216). Tanto a LXX como a Bíblia hebraica falam que Abraão foi o primeiro a crer em Deus. Com muita frequência, os que se referiam à fé de Abraão falavam dela como fé no Deus único (Josefo, Ant. 1,7,1 §§155-156; ApAbr 7,10; Pseudo-Fílon, AntBíb 6,4; 23,5), em contraste com a idolatria. A lei, quer mosaica, quer natural (ver acima), era corolário necessário de sua crença em Deus. Como se acreditava que Abraão personificava essas características, ele atuava como representante ideal do povo judeu. Em G13,7, Paulo ordena aos crentes gálatas para reconhecerem, pela prova dada por ele em G13,6 (cf. Gn 15,6; Betz, 141), que “são os que crêem que são filhos de Abraão”. 

Os que entre eles estivessem familiarizados com as tradições que consideravam Abraão o primeiro monoteísta e antiidólatra perceberiam que o povo judeu sempre tinha interpretado Abraão como homem de fé . Essa declaração de Paulo parecia ser verdadeira. Para eles, os descendentes de Abraão — os judeus — eram o povo de fé em Deus. Mais uma vez, Paulo apóia-se na Escritura para afirmar que os filhos de Abraão são os que têm fé em Deus. Em G1 3,8-9, ele declara: “Aliás, a Escritura, prevendo que Deus justificaria os pagãos pela fé, anunciou de antemão a Abraão esta boa nova: Todas as nações serão abençoadas em ti”. Paulo personifica a Escritura, ao dizer que ela previu que Deus justificaria os pagãos pela fé e anunciou de antemão a Abraão a boa nova de que todos os pagãos seriam abençoados nele (G1 3,8; Gn 12,3). Paulo entende a promessa a Abraão de que ele seria uma bênção para as nações (os pagãos) como pregação antecipada do evangelho para Abraão. Já que a mensagem do evangelho era que a justificação tem origem na fé e assim os pagãos estavam incluídos na justificação, o anúncio de que Deus abençoaria os pagãos por meio de Abraão antecipava o evangelho. Nesse meio tempo, Paulo toma o outro fio de sua argumentação, a prática da lei (G13,10). Recorrendo a Dt 27,26, Hab 2,4 e Lv 18,5, Paulo argumenta que a obediência à lei não traz justiça. Ele recorre a Dt 21,23 para mostrar que o tempo de fé chegou com Cristo se tomando maldição e nos libertando da maldição da lei (G1 3,13; Byme, 156). 

É provável que aqui Paulo trate das mesmas passagens às quais seus adversários recorreram na mensagem em apoio à lei (Longenecker, 116-121, 124). Em G1 3,14, Paulo inclui duas cláusulas de propósito. Cristo se tomou maldição e apresentou a redenção da maldição da lei a fim de que em Jesus Cristo a bênção de Abraão descesse sobre os pagãos (cf. G1 3,8). A segunda cláusula de propósito é paralela à primeira: “e, assim, nós recebêssemos pela fé o Espírito, objeto da promessa” (3,14b). O Espírito se toma a bênção de Abraão que desce sobre os pagãos (Betz, 143). Essa bênção é pela fé (G13,1-5) em Cristo (G13,14). Outrora, a promessa a Abraão referia-se a terra e descendentes. Mas agora a promessa refere-se ao Espírito que é antecipa- ção da herança do mundo que há de vir (Byme, 156-157). E se têm o Espírito, que é a bênção prometida a Abraão em Cristo, os pagãos da Galácia têm o sinal de que são membros da descendência de Abraão. E digno de nota até este ponto da carta o fato de Paulo aludir a dois aspectos do judaísmo também relacionados às principais tradições de Abraão encontradas nos textos judaicos mencionados acima: fé e lei. Paulo argumenta com veemência contra a lei. Os pagãos recebem a bênção de Abraão, o Espírito, somente segundo a fé que têm. Se os adversários recorrem a Abraão em seus argumentos para convencer os pagãos de que precisam ser obedientes à lei mosaica, em especial quanto à circuncisão, parece que estão a par da tradição da obediência de Abraão à lei e fazem uso dessa tradição (ver também Hansen, 172). 

2.2.2. Gl 3,15-18. 

Paulo começa esta passagem referindo-se a um exemplo do cotidiano, a saber, o testamento humano que, estando em regra, não é nem anulado nem modificado. Paulo recorre a esse exemplo para analisar Abraão, mostrando que as promessas feitas originalmente a Abraão e sua descendência (Gl 3,16) não foram feitas a muitas descendências, mas apenas a uma, que, na verdade, é Cristo (Gn 12,7; 22,17-18). Paulo faz um jogo com a palavra descendência, que em hebraico e também em grego (hebr. zera‘; gr. spermá) é singular coletivo (Ellis, 73). O descendente único, Cristo, representa não só o cumprimento das promessas a Abraão (G1 3,8.14), mas também a cabeça da raça espiritual e, subsequentemente, a solidariedade dos fiéis. Os pagãos, que antes não eram considerados descendentes de Abraão, estão agora incluídos na esfera de seus descendentes, em virtude de sua fé em Cristo. Em seguida, Paulo argumenta a partir de uma perspectiva cronológica. Na verdade, a lei veio 430 anos depois da aliança que Deus firmou com Abraão (G1 3,17); de fato, a lei foi “acrescentada” (G1 3,19). A promessa de Deus a Abraão é fundamental e imutável (G1 3,16.18). Os que são filhos de Abraão “em Cristo” se beneficiam da promessa e da herança que ele recebeu antes da vinda da lei. Se os adversários de Paulo na Galácia recorrem à tradição popular de que Abraão obedecia à lei (ver acima), esses adversários precisam também argumentar que Abraão era obediente à lei antes que ela fosse dada por Moisés. 

Se era o exemplo de Abraão que os adversários davam aos fiéis na Galácia, Paulo precisa argumentar com veemência que, na verdade, a lei mosaica veio depois que a promessa foi feita a Abraão. Se a lei mosaica chegou séculos depois da promessa a Abraão, então Abraão não poderia ter sido obediente a essa lei. Essa nova cronologia (que derruba o “princípio” exegético rabínico de que na Torá não existe antes nem depois) estabelece a prioridade do evangelho paulino de justificação pela fé sobre a insistência dos adversários na obediência à lei.

2.2.3. Gl 3,19-22. 

Nesta passagem, Paulo trata da razão pela qual a lei era necessária (Gl 3,19). Ela foi acrescentada por causa das transgressões até que viesse a descendência (Cristo) à qual a promessa foi feita (Gl 3,19; cf. Gl 3,16). Segundo Paulo, Deus deu a Abraão essa herança diretamente por meio da promessa: “Pois se é pela lei que se obtém a herança, não é mais pela promessa. Ora, foi por meio de uma promessa que Deus concedeu a sua graça a Abraão” (Gl 3,18). Paulo declara que, entretanto, a lei “foi promulgada pelos anjos, pela mão de um mediador” (Gl 3,19). A lei ser promulgada por anjos era tradição judaica comum (LXX Dt 33,2; LXX SI 67,18; Jub 2,2; lHen 60,1; também NT, At 7,38.53; Hb 2,2). Paulo se afasta da tradição ao argumentar que o anúncio da lei por anjos é considerado ponto contra a lei. No contraste entre a comunicação direta das promessas a Abraão e a mediação indireta da lei, Paulo chama a atenção para a inferioridade da lei. A promessa de Deus a Abraão é não só anterior à lei (Gl 3,16-17), mas também superior, pois foi comunicada diretamente a Abraão, sem mediador. Em Gl 3,20, Paulo faz uma declaração que há muito confunde os intérpretes de Gálatas: “Ora, este mediador não é único. E Deus é único”. 

A pluralidade associada ao “mediador” tem sido entendida de várias maneiras (Longenecker, 141-142). Os intérpretes procuram o referente exato de Paulo na alusão à pluralidade dos anjos que serviram de mediadores envolvidos no anúncio da lei (cf. em Wright a opinião de que o mediador é Moisés). Mas isso omite o ponto abrangente de Paulo. O ponto mais importante a se extrair da declaração de Paulo é que, de algum modo, a lei vinda pelos anjos por meio da ação de um mediador subentende mais que um só intermediário, em contraste com Deus, que fez a promessa a Abraão e é único. Em referência ao monoteísmo da época, esse tipo de declaração, que contrasta a singularidade de Deus que fez a promessa a Abraão com a pluralidade dos intermediários por meio dos quais a lei foi promulgada, mais uma vez demonstra claramente que a promessa feita a Abraão é superior à lei. Foi mencionado acima que as tradições populares de Abraão encontradas na literatura judaica incluíam a ideia de que Abraão foi o primeiro monoteísta e obedeceu à lei antes que ela fosse promulgada. Se os adversários de Paulo também guardavam essas tradições, é provável que o apelo ao exemplo de Abraão tivesse alguma coisa a ver com o fato de serem monoteístas e obedecerem à lei. Em Gl 3,20, ao recorrer às alegações dos adversários e às tradições populares que ligavam Abraão ao monoteísmo e à lei, Paulo demonstra que a lei é, na realidade, inferior quando comparada às promessas de Deus a Abraão. 

Consequentemente, se as promessas são superiores à lei e se é pelas promessas a Abraão que a herança vem aos unidos em Cristo (“uma só” descendência, G1 3,16), a lei é supérflua. Não só ser descendente de Abraão já não significa ter de seguir a lei judaica, mas a obediência à lei que se baseia na pluralidade é agora uma contradição da singularidade de Deus.

2.2.4. Gl 3,23-29. 

Nesta passagem, Paulo recorre ao exemplo do paidagõgos (‘Vigilante”) para explicar a função da lei. No tempo de Paulo era costume recorrer a um paidagõgos, o que significava colocar o filho ou os filhos sob os cuidados ou a supervisão de um escravo de confiança até que o filho chegasse ao fim da adolescência. Tem sido muito debatido o que exatamente Paulo tinha em mente ao relacionar o paidagõgos com a lei. Em vez de ver o paidagõgos em termos de severidade, como antes era o caso (Betz, 177-178), mais recentemente os estudiosos concentram-se em aspectos positivos dopaidagõgos. Por exemplo, a guarda do paidagõgos impedia o protegido de sofrer influências imorais externas (Young, Gordon). Paulo associa a lei ao paidagõgos que atuou “à espera do Cristo, a fim de que fôssemos justificados pela fé” (Gl 3,24). Após a chegada da fé, o paidagõgos já não era mais necessário (Gl 3,25). A literatura judaica atesta que uma das principais funções da lei era servir para separar e proteger Israel dos vizinhos pagãos (Jub 20,6­ 10; 21,21-24; 22,16-19; Joseío, Ant. 1,10,5 192). Outro aspecto da lei, da circuncisão em especial, era identificar o povo judeu (Quaest. in Gen. 3,49; cf. Jub 15,26). No contexto da carta de Paulo aos gálatas, ele fala primordialmente dos aspectos da lei que se sabia servirem para identificar o povo judeu (circuncisão, leis dietéticas e a observância do sábado e dos dias de festa; ver Dias santos). Uma maneira em que a lei funcionava como paidagõgos era guardar o povo judeu de influências externas de idolatria e imoralidade. Paulo diz que agora que a fé chegou a lei já não é mais necessária. 

Em uma comunidade como a da Galácia, onde cristãos de origem pagã e judaica convivem lado a lado, a lei como instrumento de proteção é obsoleta porque eles todos têm fé e pertencem à mesma comunidade “em Jesus Cristo” (Gl 3,26). A separação por meio da lei é agora desnecessária. Também a circuncisão, símbolo identificador, já não é mais necessária. Todos os fiéis da Galácia eram agora um só em Jesus Cristo (Gl 3,28) Como os fiéis da Galácia são um em virtude de sua fé em Cristo, são descendentes de Abraão e herdeiros da promessa feita a ele (Gl 3,29; cf. Gl 3,8).

2.2.5. Gl 4,1-11. 

Em Gl 4,1-2, Paulo recorre à metáfora de um herdeiro que, sendo criança, está sujeito a “tutores e curadores até a data fixada por seu pai”. É provável que Paulo se refira a práticas da lei romana, pelas quais o pai nomeava tutores para um menor, em um testamento ou em um tribunal de justiça (Belleville, 63). O pai também podia estipular a idade na qual o filho já não estaria sob tais tutores. Paulo afirma a natureza temporária da lei, e é evidente que o herdeiro não está no controle de seus negócios. Nesse sentido, o herdeiro não difere de um escravo . Os menores, provavelmente os judeus (cf Gl 3,23; 4,1-2; Longenecker, 165), eram escravizados aos “elementos do mundo” (stoicheia tou kosmou). Entretanto, agora que “a plenitude dos tempos” chegou (Gl 4,4; cf. Gl 4,2), pagãos e judeus são herdeiros, sendo o Espírito prova de que não são mais escravos (Gl 4,6-7). Em Gl 4,8, Paulo dirige-se apenas aos pagãos. 

Na época anterior, eles não conheciam Deus, nem eram reconhecidos por Deus. Estavam escravizados a coisas que, por natureza, não eram deuses. A frase “não eram deuses” é conhecida na literatura da Septuaginta, onde se refere a ídolos (2Cr 13,9-10; Is 37,18-19; Jr 2.11-28). Paulo os acusa de voltarem a sua idolatria anterior (Gl 4,9). No contexto da situação na Galácia, esses crentes pagãos estão sendo persuadidos a obedecer a aspectos diferentes da lei judaica (Gl 5,2-3; 6.12-13; 4,10; ver também acima). Paulo compara essa obediência deles à lei com a antiga idolatria (Gl 4,8-9) e com a escravidão aos “elementos do mundo” (stoicheia tou kosmou). A obediência à lei e à idolatria são formas de escravidão a esses “elementos do mundo”. A obediência à lei tomou-se equivalente à idolatria. Mencionamos acima que, na descrição que dele faz a tradição judaica, Abraão acreditava no Deus Criador único, não em outros deuses ou filosofias . Com muita frequência, os judeus que falavam da fé de Abraão pensavam nela como a fé no Deus único, em contraste com a idolatria (Jub 11,16-17; 12,2-8.16-24; Pseudo-Fí- lon, AntBíb 6,4; 23,5; Fílon, Abr. 68-71; ApAbr. 1-8). Para Paulo, os crentes, tanto judeus como pagãos, são agora verdadeiros filhos de Abraão (G1 3,29; 4,6-7). Como tais, já não devem se escravizar aos elementos do mundo, que antes atuavam como paganismo e lei judaica. Ao igualar a observância da lei à idolatria, Paulo faz da lei o tabu supremo para um verdadeiro filho de Abraão. Como Abraão, o antiidólatra, estes filhos de Abraão devem evitar a idolatria. Entretanto, em G1 4,1-10, agora que esses filhos de Abraão têm uma nova identidade “em Cristo”, a idolatria a ser evitada é a obediência à lei.

2.2.6. Gl 4,12-20. 

Em G1 4,12-20, Paulo fala da resposta dos gálatas a sua primeira pregação do evangelho e do desejo de vê-los novamente. Em Gl 4,14, Paulo declara que, quando os visitou, eles o acolheram “como um anjo de Deus, como o Cristo Jesus”. E a única passagem de suas cartas onde Paulo se compara a um anjo. Seu louvor dos gálatas por acolherem-no como um ser sobre-humano (Longenecker, 192) é enigmático; talvez remonte à alusão em Gl 1,8, ou mesmo à narrativa em At 14,8-18. Outra tradição importante a respeito de Abraão é que ele era conhecido por sua hospitalidade (TAbr 1,2A; 1,10B; Josefo, Ant. 1,11,2 §196; Fílon, Abr. 107), qualidade demonstrada especialmente em Gn 18,1-8, onde Abraão acolhe os três visitantes angelicais. Talvez em Gl 4,14 a intenção de Paulo seja deixar subentendido que os fiéis da Galácia são verdadeiros descendentes de Abraão pela maneira de também demonstrarem hospitalidade aos outros como se estes fossem anjos. 2.2.7. Gl 4,21-5,1. O discurso final de Paulo a respeito dos descendentes de Abraão encontra-se na alegoria de Sara e Hagar (Gl 4,21-5,1). A exegese aparentemente irracional de Paulo nesta alegoria talvez indique que este texto não era escolha sua (Gn 16,15; 21,2-12), mas era usado pelos adversários para vantagem própria (Lincoln, 12; Barclay, 91). Paulo constrói a alegoria em tomo dos filhos reais de Abraão, Isaac e Ismael. Hagar é interpretada como representante da aliança da servidão, a lei (Gl 4,24-25). Sara é interpretada como representante da aliança da liberdade (Gl 4,24.26).

Qualquer um (mesmo quem está em Jerusalém , Gl 4,25) que esteja sujeito à lei (Gl 4,24) está, na verdade, escravizado e não vai herdar com os verdadeiros filhos. Os filhos da promessa, que nasceram de Isaac (Gl 4,28), são membros da Jerusalém do alto (Gl 4,26) e são mais numerosos que os em servidão (Gl 4,27). Em Gl 4,28-5,1, Paulo conclui a alegoria. Ele identifica os gálatas como semelhantes a Isaac, filhos da promessa (Gl 4,28). Nos tempos atuais, a perseguição que sofrem é como a que Isaac sofreu nas mãos de Ismael (Gn 21,9; Gl 4,29; ver também Betz, 249-250). Paulo recorre a Gn 21,10 como instrução para o presente: os gálatas que são perseguidos por não obedecerem à lei devem “expulsar” os que os perseguem (Gl 4,30; Lincoln, 22-29). São filhos da mulher livre; Cristo os libertou da lei. É-lhes ordenado que não se sujeitem de novo à lei, “ao jugo da escravidão” (Gl 5,1; ver também Gl 4,3.9).