Adão e Jesus Cristo

Adão e Jesus Cristo

Adão e Jesus Cristo


Embora as referências à figura veterotestamentária de Adão no corpus paulino não sejam de modo algum extensas, seu emprego é altamente significativo, visto que Adão serve de veículo para a comunicação de verdades teológicas extraordinárias a respeito do casamento, do pecado, da morte (ver Vida e morte), da natureza humana e da esperança escatológica. E, o que é mais importante, Adão representa um oposto teológico no ensinamento cristológico paulino, sendo Adão e Cristo as duas metades de uma analogia explicitamente formulada em Romanos 5 e 1 Coríntios 15. Essa analogia apresenta Adão e Cristo como cabeças corporativas de duas ordens contrastantes da existência e pode ser considerada uma das maneiras mais reveladoras em que se expressa o pensamento teológico do apóstolo: Adão personifica a humanidade caída e Cristo personifica a humanidade redimida. Assim, nesses dois capítulos, vemos a interseção de diversas preocupações teológicas, a saber, antropologia, cristologia, soteriologia e eclesiologia. E por causa do fato de tantos temas paulinos fundamentais se reunirem em ligação com a analogia de Adão e Cristo que se pode considerá-la próxima do núcleo do pensamento paulino (ver Centro). E precisamente por causa de sua importância fundamental que, com o passar dos anos, a analogia de Adão e Cristo continua a ser um importante centro de convergência da interpretação neotestamentária.

1. Adão: o sentido genérico do termo
2. Adão: a figura histórica
3. Adão: a figura tipológica
4. Adão e a imagem de Deus
5. Adão e o corpo de Cristo

1. Adão: o sentido genérico do termo 

O nome Adão ocorre no corpus paulino apenas sete vezes (Rm 5,14 [duas vezes]; ICor 15,22.45 [duas vezes]; lTm 2,13.14), embora haja quem acredite que algumas das discussões mais generalizadas sobre o “homem” (anthrõpos) também tenham um fundo adâmico no pensamento paulino. Isso acontece porque o termo hebraico ’ãdãm refere-se não só ao indivíduo “Adão”, mas também à “humanidade” em geral. E de todo apropriado considerar o emprego que Paulo faz de Adão estreitamente ligado a algumas outras imagens e expressões antropológicas que ele usa para comunicar a experiência cristã, a vida nova encontrada em Jesus Cristo. Estão entre elas: o homem velho e o homem novo (Rm 6,6; Cl 3,9-10; Ef 2,15; 4,22-24; ver Natureza nova e natureza velha); o homem exterior e o homem interior (2Cor 4,16; Rm 7,22; Ef 3,15); o homem carnal e o homem espiritual (ICor 2,14­ 16; ver Psicologia). As passagens em que Paulo usa o pronome “eu” de uma forma que sugere ter ele em mente a humanidade adâmica ou a humanidade fora da experiência nova que, para os fiéis, se encontra em Cristo (ver Em Cristo) relacionam-se com esse sentido antropológico maior de Adão. 

Um bom exemplo encontra-se em Romanos 7,7-25, onde o apóstolo parece usar o “eu” em um sentido corporativo que demonstra certo envolvimento com o sentido genérico do tema mais explícito de Adão. É praticamente certo que a narrativa de Gênesis 2-3 seja a base do uso de Adão nas cartas paulinas e forme o cenário para ele. Vemos o mesmo deslumbramento pela figura de Adão em alguns documentos judaicos e cristãos do século I, inclusive 4 Esdras, 2 Baruc e o Apocalipse de Moisés, como Levison sabiamente observou. A reflexão a respeito de Adão também está bem documentada no material de Qumran e nos escritos de Fílon de Alexandria, contemporâneo de Paulo. À luz do fato de Adão ser mencionado com frequência em obras gnósticas, tais como os textos de Nag Hammadi, alguns estudiosos procuraram descobrir um elo entre o tema adâmico e as ideias gnósticas de “um segundo homem”. De modo geral, isso não foi bem recebido, pois é provável que os indícios representem precisamente a corrente inversa de influência (é mais provável que o tema bíblico tenha sido adotado pelos autores gnósticos mais tardios). 

Todos esses documentos básicos relevantes nos ajudam a entender o interesse que a tradição de Adão, o primeiro ser humano criado, gerou entre os autores antigos e como eles vieram a confiar nela e expressá-la em seus escritos. Quando admitimos isso, percebemos que a discussão paulina do tema está em total harmonia com outros documentos de sua época, embora o emprego especificamente cristológico ao qual ele se liga diferencie o tratamento paulino. Paulo parece ser o primeiro a descrever Jesus Cristo como o “último (ou o segundo) Adão” (ICor 15,45.47), descrição que, sem ambiguidade, indica o caráter escatológico do pensamento do apóstolo.

2. Adão: a figura histórica

No século I, muita gente entendia claramente que a figura de Adão era a primeira pessoa histórica; isso explica por que Judas 14 (citando IHen 1,9) descreve Henoc como “o sétimo depois de Adão”. Lucas apresenta uma avaliação semelhante, quando inclui Adão na genealogia de Jesus (Lc 3,38). Parece que o apóstolo Paulo considerou ponto pacífico a historicidade de Adão como a primeira pessoa criada, embora essa historicidade não seja o ponto de enfoque primordial dos dois textos paulinos que analisam o tema de Adão e Cristo.

2.1. Adão (e Eva) como exemplo(s) ético(s).

Entretanto, nas cartas paulinas, a historicidade de Adão (e Eva) parece realmente fundamentar o ensinamento a respeito da relação entre o homem e a mulher e, por extensão, a relação entre Cristo e sua Igreja. De modo semelhante, as figuras de Adão e Eva aparecem esparsamente nas cartas paulinas para explicar a autoridade na ordem divina da criação. Desses dois jeitos, o papel de Adão (e Eva) como exemplo ético é proeminente, embora a historicidade do primeiro homem (e da primeira mulher) pareça ser presumida como parte do argumento ético. O emprego de Adão (e Eva) como modelo(s) ético(s) prevê o emprego mais tipológico de Adão na analogia de Adão e Cristo em Romanos 5 e 1 Coríntios 15. 

2.1.1. Adão (e Eva): casamento e papéis sexuais.

Em 1 Coríntios 6,16, Paulo alude à narrativa de Adão e Eva por meio de sua citação de Gênesis 2,24. Embora não sejam empregados aqui, está claro que os nomes do primeiro casal representam modelos fundamentais para a maneira como as relações sexuais respeitáveis (ver Sexualidade) entre o homem e a mulher devem operar na vida da Igreja. Aqui Paulo enfatiza a importância e a santidade da união sexual do homem e da mulher como meio de exortar os fiéis coríntios a um estilo de vida mais digno e convencê-los de que pertencem ao corpo de Cristo (ver Corpo de Cristo). A narrativa de Adão e Eva também fundamenta os conselhos dados a respeito da relação na união do casamento em Efésios 5,22-33. Aqui, mais uma vez, Efésios apega-se às imagens veterotestamentárias de Adão e Eva e a um entendimento de sua união com aquele “mistério” que existe entre Cristo e a Igreja (visto principalmente em Ef 5,32).

2.1.2. Adão (e Eva): o pecado e a ordem da criação.

1 Timóteo 2,13-14 também demonstra claramente a dependência da narrativa de Adão e Eva de Gênesis 2-3. Em uma passagem dedicada ao ensinamento ético (lTm 2,9-15; ver Ética), o raciocínio busca na narrativa de Adão e Eva no Gênesis apoio bíblico para uma compreensão da estrutura de autoridade, a ordem da criação que existe entre homens e mulheres (ver Homem e mulher). A ênfase fica na prioridade da criação de Adão (lTm 2,13) e na prioridade da transgressão de Eva (lTm 2,14) no Jardim do Éden. Adão e Eva servem de exemplos normativos de como homens e mulheres devem se relacionar e do que acontece quando outros povos aderem à estrutura de autoridade respeitável. Em suma, o essencial é que 1 Timóteo apresenta Adão e Eva de um jeito específico, como forma de regularizar a conduta na vida da Igreja, em especial em suas práticas de culto. Eles são apresentados como exemplos éticos do passado a ser seguidos (como é o caso da submissão respeitosa de Eva a Adão, baseada em sua criação dependente da dele) e como modelos de comportamento contra o qual se precaver (como no caso da transgressão de Eva e suas consequências). Mais uma vez, a historicidade do relato do Gênesis parece ser considerada verdadeira nessa explicação da narrativa.

3. Adão: a figura tipológica

Quando nos concentramos em examinar as passagens relevantes de Romanos 5 e 1 Coríntios 15, encontramos um emprego muito mais complicado e ampliado de Adão por Paulo. Aqui, o centro muda de Adão como simples figura histó­ rica para Adão como personagem tipológica ou representativa contraposta a Jesus Cristo (em Rm 5,14, o termo real typos, “tipo” [TEB e BMD: “figura”] é usado com referência a Adão). Ao comentar a importância de Adão no pensamento do apóstolo, C. K. Barrett observa: “Paulo vê a história acumulando-se em pontos nodais e se cristalizando em figuras extraordinárias — homens notáveis por si sós como indivíduos, mas ainda mais notáveis como figuras representativas” (Barrett, 5). Assim, vemos que em Romanos 5 e também em 1 Coríntios 15, Paulo justapõe Adão e Cristo e usa diversos aspectos importantes de fundo veterotestamentário para transmitir verdades cristológicas a respeito de Jesus Cristo, que em si mesmo personifica a humanidade. Podemos até resumir o entendimento paulino da redenção cristã como a transição de estar “em Adão” para estar “em Cristo”, como o movimento salvífico de uma esfera da vida, um campo da existência para outra. Considerando que a teologia paulina se origina de uma inclinação escatológica (ver Escatologia), com ênfase no fato de a nova criação ter suplantado a velha (ver Criação), é inteiramente apropriado achar que o tema de Adão e Cristo expressa seu ensinamento concernente àquilo que Scroggs descreveu como “humanidade escatológica”.

3.1. Adão e a humanidade escatológica.

1 Coríntios 15 é uma discussão completa da ressurreição dos mortos, com o propósito primordial não tanto de asseverar a verdade da ressurreição de Jesus (já que isso é tido como certo), mas de explicar sua importância para a vida dos fiéis. Nessa discussão, a analogia de Adão e Cristo é explicitamente empregada em dois pontos: em 1 Coríntios 15,20-22 e 15,44-49. Sua ressurreição é o acontecimento que inicia e constitui o fato de Cristo ser as “primícias” dos que morreram (ICor 15,20.23); é em ligação com essa ideia que a analogia de Adão e Cristo é introduzida inicialmente. Thrall afirmou que o debate cristológico que se desenvolve em Corinto origina-se da introdução anterior do tema adâmico (e do entendimento errôneo que a Igreja coríntia tem dele). Essa ideia está longe de ser incontestável e presume uma indecisão no pensamento paulino muito mais deliberada do que esse debate sugere.

3.1.1. Cristo como o último Adão: as primícias. 

Uma afirmação (ICor 15,20), baseada da declaração da ressurreição de Cristo expressa em 1 Coríntios 15,3-5, introduz o primeiro emprego da analogia de Adão e Cristo. Na segunda metade de 1 Coríntios 15,20, o sentido da ressurreição de Cristo é amplificado — Cristo é também as “primícias dos que morreram”. Dessa maneira um novo pormenor é introduzido na análise da ressurreição de Cristo, a saber, a unidade do Senhor ressuscitado com os que crêem nele. Os corpos (ver Corpo) dos ressuscitados (é importante mencionar que o enfoque da análise está neste ponto “somático”) devem corresponder ao de Cristo e dele fluir, da mesma maneira que a colheita corresponde às primícias e delas flui. Paulo emprega a analogia de Adão e Cristo para amplificar mais e explicar a relação entre Cristo e os que nele crêem; a tipologia de Adão e Cristo é um argumento a favor da certeza da ressurreição da comunidade de fiéis e (nas palavras de Lambrecht) estabelece para nós uma relação “temporal e também causal” entre o Senhor e os que crêem nele. 

Em 1 Coríntios 15,21-22, Paulo anuncia um duplo paralelismo que demonstra essa relação: fundo conceito da antítese entre os dois Adãos, em vez de na teoria macabra da participação da humanidade ingênita no pecado capital do primeiro Adão” (Bonner, 247). É importante notar que, embora se volte para Adão como o meio pelo qual o pecado entra no mundo, Paulo não nos revela o meio pelo qual esse pecado é transmitido de uma geração para outra. Além da simples declaração de que “toda a humanidade pecou” (tradução mais correta de Romanos 5,12), a mecânica não é explicada. Paulo confirma a responsabilidade de Adão pela origem da introdução do pecado no mundo ao longo de uma afirmação da responsabilidade do indivíduo pela presença do pecado em sua vida. Para Paulo, os dois elementos (a culpa e a responsabilidade pessoais e também a culpa e o pecado universais em Adão) estão ativos. Esse paradoxo fica claro pela maneira na qual o pensamento paulino flui com bastante liberdade, desde a declaração intensamente pessoal de Romanos 5,12 (“todos [os homens] pecaram”) até a declaração mais determinista de Romanos 5,19 (“pela desobediência de um só homem, a multidão se tomou pecadora”). O ensinamento paulino ressoa em 2ApBr 54,15.19: “Se Adão foi o primeiro a pecar, trazendo a todos a morte por antecipação, assim cada um dos filhos também atraiu sobre si o sofrimento vindouro.... Se Adão carrega única e exclusivamente a sua culpa, nós todos, por nossa vez, e cada um por si, tomamo-nos um Adão” [Apócrifos, os proscritos da Bíblia, 4 v. São Paulo, Mercúrio, v. III, p. 330],

4. Adão e a imagem de Deus

A teologia adâmica também tem um papel importante a desempenhar em diversas outras passagens fundamentais das cartas paulinas, particularmente as que, como os elementos hínicos (ver Hinos) em Filipenses 2,6-11 e Colossenses 1,15-20 e a declaração em 2 Coríntios 4,4, falam de Jesus Cristo em termos da “imagem de Deus” (ver Imagem). Aqui, a descrição veterotestamentária de Adão como alguém que foi criado “à imagem de Deus” (morphê é usado em F12,6 e eikõn em Cl 1,15 e 2Cor 4,4). A descrição da “glória de Deus (ou do homem)” também está presente na análise desta questão (ver Glória). Recentemente, essa confluência de imagens e descrições levou alguns biblistas a verem a preponderância da linguagem da “imagem de Deus” encontrada em toda parte das cartas paulinas como outra expressão da teologia adâmica. Por exemplo, Dunn (1980) argumenta com veemência em favor desse entendimento adâmíco do hino filipense; Hooker vê um tema adâmico servindo de base para Romanos 1,18-32, onde o apóstolo descreve a situação difícil da humanidade em termos da queda de Adão (Wedderbum dá alguns esclarecimentos quanto à sugestão de Hooker). Além disso, há certa razão para considerar a queda de Adão o fundamento da declaração de Paulo em Romanos 3,23. 

4.1. Imagem de Deus: natureza e existência em Romanos 5. 

Estreitamente relacionado a esse assunto, o exame de como ser feito “à imagem de Deus” representa uma descrição da natureza e da existência humanas que há tempos atrai a atenção de comentaristas cristãos, muitos dos quais, entre eles Calvino (como observa R. Prins), se concentram nas cartas paulinas ao abordar a questão. É interessante notar que Romanos 5 inteiro, em especial a analogia de Adão e Cristo nos versículos 12-21, toma-se decisivo a esse respeito. As interpretações de Romanos 5 apresentadas por Barth e Bultmann são comparações proveitosas a respeito deste ponto e representam interpretações que se concentram respectivamente nas metades cristológica e antropológica da analogia. Assim, Barth concentra-se no elemento cristológico da analogia e acredita que a passagem expressa essencialmente a natureza da humanidade. Bultmann, por outro lado, concentra-se no elemento antropológico da analogia e acha que a passagem expressa essencialmente a existência da humanidade. Em suma, o problema crucial diz respeito a como entendemos que a humanidade (Adão) é feita “à imagem de Deus”. 

É em Adão ou em Cristo que vemos verdadeiramente “a imagem de Deus”? Começamos com Cristo e passamos a interpretar a humanidade como a imagem de Cristo (posição de Barth)? Ou começamos com a humanidade e passamos a interpretar Cristo como a verdadeira expressão do que a imagem de Deus significa (posição de Bultmann)? Essas duas abordagens interpretativas dependem, em parte, da maneira como se entende que as duas metades de Romanos 5 (versículos 1-11 e 12-21) se adaptam uma à outra. Assim, Barth coloca efetivamente Romanos 5,12-21 (com sua descrição da humanidade adâmica) dentro dos limites de Romanos 5,1-11 (que declara a verdadeira condição da humanidade em Cristo). Bultmann, por outro lado, baseia Romanos 5,12-21 no estilo de vida motivado pelo exemplo de fé de Cristo e ressalta que Romanos 5,1-11 diz respeito à existência paradoxal dos fiéis na esperança. Em outras palavras, ele acredita que Romanos 5,12-21 expressa essa vida do fiel mais plenamente e só nesse ponto o componente cristológico é, por assim dizer, introduzido no esquema.

4.2. Imagem de Deus: etapas da história da salvação.

Outra maneira de expressar essa diferença essencial na interpretação do sentido da humanidade (seja ela a humanidade adâmica ou a nova humanidade em Cristo) feita “à imagem de Deus” é por meio de uma ilustração de sucessivas etapas que são vencidas na história da salvação. A estrutura escatológica que fundamenta todo o pensamento paulino considera que, à luz do evento de Cristo, o mundo antigo deu lugar a um mundo novo (como demonstram textos como 2Cor 5,17). Ziesler demonstra isso em termos de um possível esquema de três etapas em que “estado original-queda-estado renovado” serve de descrição desse desenvolvimento. Esse esquema de três etapas inclina-se para o tipo de interpretação que Bultmann apresentou. Entretanto, Ziesler argumenta que a concepção paulina do homem volta-se de maneira tão assoberbante para a visão escatológica do último Adão que esse esquema de três etapas toma-se irrelevante para qualquer análise de Paulo. Ele observa que em parte alguma Paulo fala de Adão em termos de sua criação “à imagem de Deus” e, com base nisso, sugere que um esquema de duas etapas aproxima-se mais do ensinamento essencial de Paulo. 

Isso traça os passos da história da salvação como um movimento mais simples (queda-estado renovado) e inclina-se para o tipo de interpretação que Barth apresentou. Essa ruptura entre Adão e Cristo como a imagem de Deus tem razão de ser? As ideias de Ziesler precisam ser um pouco modificadas por uma consideração mais rigorosa de 1 Coríntios 11,3-9, onde Paulo emprega a história da criação do Gênesis como base para o comportamento ético apropriado entre homens e mulheres quanto a cobrir a cabeça durante o culto. O versículo crucial é 1 Coríntios 11,7: “Quanto ao homem, não deve pôr véu na cabeça: ele é a imagem e a glória de Deus; mas a mulher é a glória do homem”. Aqui, a questão é que Paulo demonstra certa flexibilidade em seu emprego de “imagem de Deus” e está disposto a aplicar o conceito de maneira ampla para servir a seus propósitos, mesmo sendo verdade que a passagem, como Ziesler observa, ocorre em um contexto nãosoteriológico. 

Ainda assim, não devemos negligenciar a insinuação adâmica deste versículo — Paulo quer dizer que o homem, ou seja, todo ser humano, traz, de alguma forma, a imagem e a glória [ou “reflexo”, como na BMD e na CNBB] de Deus, exatamente como o primeiro Adão trazia. Isso não é negar que, segundo Paulo, haja um forte sentido no qual a glória da humanidade como imagem de Deus encontra sua satisfação em Cristo. Em Filipenses 3,20-21 encontramos isso expresso claramente, em termos da transformação do fiel de um “corpo humilhado” para um “semelhante ao seu corpo (de Cristo) glorioso”; e, em Romanos 8,29, os fiéis são “conformes à imagem de seu (de Deus) Filho”.

4.3. Imagem de Deus: cristofania.

E possível determinar a origem do entendimento que Paulo tem de Jesus Cristo em termos do último Adão e sua ligação com um tema de “Imagem de Deus”? Parece haver uma estreita ligação entre imagem-cristofania e as descrições do Senhor Jesus Cristo ressuscitado que se baseiam na tradição veterotestamentária de teofania e são apropriadamente descritas como cristofania, o que significa considerar as passagens em que Paulo descreve ou alude a sua experiência de conversão e sua visão de Cristo suplemento de uma cristologia adâmica. Isso traz para a discussão passagens como 1 Coríntios 9,1; 15,8-10; 2 Coríntios 3,4-4,6; Gálatas 1,13-17 e Filipenses 3,4-11 e vê nelas um tema adâmico fundamental. Kim argumenta que isso reúne duas bases diferentes de pensamento cristológico em Paulo, uma cristologia de sabedoria e uma cristologia de imagem, e ambas convergem na pessoa de Jesus Cristo, o segundo Adão no pensamento de Paulo.

5. Adão e o corpo de Cristo

Ao visualizar a humanidade personificada em Adão e também em Cristo, respectivamente não remida e remida, Paulo demonstrou (ou contribuiu para) uma superposição conceptual entre uma teologia adâmica e a ideia do corpo de Cristo (ver Corpo de Cristo). Em outras palavras, esse corpo de Cristo é formado de fiéis que estão todos juntos de modo a constituir uma humanidade unida, a do último Adão. Embora nos textos principais analisados aqui não haja referências explícitas a Adão, a humanidade adâmica caída é, com certeza, espiritualmente reconstituída (Ef 1,10) em Cristo de tal maneira que a linguagem adâmica e as imagens do corpo de Cristo se fundem. Vemos essa ênfase especial em várias passagens das cartas paulinas, inclusive Colossenses 3,12-17 e Efésios 2,13-18. Na época moderna, W. D. Davies foi o pioneiro na investigação deste tema ao indicar a formação rabínica judaica desse entendimento de Adão e sua relevância para o estudo do ensinamento paulino a respeito de um Cristo corporativo. 

Essencial na questão é o reconhecimento de que a discussão a respeito de Adão nesses termos não trata primordialmente da humanidade per se tanto quanto da nação de Israel vista de uma perspectiva escatológica, como argumenta N. T. Wright. Não devemos subestimar a contribuição para a análise das cartas paulinas trazida pelo sentimento do corporativo, quer considerado em termos de uma humanidade adâmica, quer em termos do corpo de Cristo. Tal reinterpretação das promessas veterotestamentárias à nação de Israel no que diz respeito à nova criação em Cristo parece sugerida em Gálatas 6,15-16 e é, com certeza, nada ambígua em alguns dos escritos de líderes cristãos mais tardios, como Justino de Roma, que declarou ser a Igreja cristã “o povo de Israel verdadeiro e espiritual” (Justino, Dial. Trif. 11,5). Entretanto, em todas as cartas paulinas, é difícil decidir quem constitui “o povo de Israel” e não é fácil concordar com a troca de um por um entre a nação e a Igreja, em especial à luz de versículos como Romanos 11,26.

Bibliografia: C. K. Barrett. From First Adam to Last. London, A. & C. Black, 1962; K. Barth. Christ and Adam: Man and Humanity in Romans 5. G. Bonner. “Augustine on Romans 5,12”. In: Studia Evangelica V E L. Cross (org.). Berlin, Akademie Verlag, 1968,242-247; R. Bultmann. “Adam and Christ According to Romans 5”. In: Current Issues in New Testament Interpretation: Essays in Honor o f O. A. Piper. W. Klassen & G. E Snyder (orgs.). London, SCM, 1962,143­ 165; C. E. B. Cranfield. The Epistle to the Romans. Edinburgh, T & T Clark, 1975, 2 vols.; F. W. Danker. “Romans 5:12: Sin Under Law”. NTS 14, 1967-1968, 424-439; W. D. Davies. Paul and Rabbinic Judaism. 4. ed. Philadelphia, Fortress, 1980; J. D. G. Dunn. “1 Corinthians 15.45 — Last Adam, Life-giving Spirit”. In: Christ and Spirit in the New Testament: Studies in Honour o f C. F. D. Moule. B. Lindars & S. Smalley (orgs.). Cambridge, University Press, 1973, 127-141; Idem. Christology in the Making. Philadelphia, Westminster, 1980, xviii-xix, 98-128; M. D. Hooker. From Adam to Christ: Essays on Paul. Cambridge, University Press, 1990; S. Kim. The Origin of Paul’s Gospel. Grand Rapids, Eerdmans, 1982; L. J. Kreitzer. “Christ as Second Adam in Paul”. CV 32,1989, 55-101; J. Lambrecht. “Paul’s Christological Use of Scripture in 1 Corinthians 15.20-28”. NTS 28, 1982, 502-527; J. R. Levison. Portraits of Adam in Early Judaism. JSPSup 1, Sheffield, Academic Press, 1988; B. Pearson. The Pneumatikos-Psychikos Terminology in 1 Corinthians. Missoula, MT, Scholars, 1973; R. Prins. “The Image of God in Adam and the Restoration of Man in Jesus Christ”. SJT 25, 1972, 32-44; R. Scroggs. The Last Adam. Oxford, Basil Blackwell, 1966; M. Thrall. “Christ Crucified or Second Adam? A Christological Debate Between Paul and the Corinthians”. In: Christ and Spirit in the New Testament: Studies in Honour of C. F. D. Moule, B. Lindars & S. Smalley (orgs.). Cambridge, University Press, 1973,143-156; A. J. M. Wedderbum. “Adam in Paul’s Letter to the Romans”. In: Studia Biblica 1978, HI. Papers on Paul and Other New Testament Authors