Teologia do Livro de Salmos
Teologia do Livro de Salmos
por James Limburg
O livro de Salmos testemunha a relação vibrante que existia entre o Deus de Israel e o seu antigo povo do concerto. Embora o Antigo Testamento retrate o povo de Israel sob luz negativa, os Salmos demonstram que havia muitos na comunidade do concerto que confiavam no Senhor e, obedientes, o serviam. O saltério contém as orações e hinos dessas pessoas que buscavam a Deus como refugio no meio da tempestade e experimentavam, repetidas vezes, a intervenção pessoal de Deus na vida. Os Salmos diferem do restante do Antigo Testamento. Temos a lei de Deus proclamada por Moisés, as narrativas inspiradas dos procedimentos históricos de Deus com o povo, os conselhos divinos sobre a vida prática revelados por sábios e as mensagens de julgamento e salvação entregues por profetas divinamente comissionados.
Em vez de ser a palavra direta de Deus para o povo, os Salmos contêm as expressões de fé em Deus e as reações à auto-revelação de Deus em palavras e ações. Ao mesmo tempo, devemos entender que estas orações e hinos oferecidos a Deus também são a palavra de Deus para os homens e mulheres, embora em sentido indireto. O próprio Deus moveu os salmistas a orar e cantar. Por essas palavras aprendemos muito sobre o caráter divino e como Ele se relaciona com o mundo e o seu povo. Como as outras porções da Bíblia supramencionadas, o livro dos Salmos é plenamente inspirado (ou “soprado por Deus”) e por isso é proveitoso “para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça” (2 Tm 3.16). Há vários tipos de salmos no saltério. Os mais comuns são os lamentos ou Salmos de petição e os cânticos de louvor. Nos cânticos de louvor há cânticos de ação de graças, oferecidos com relação a um ato específico e normalmente recente da intervenção divina, e hinos, que elogiam a Deus em condições mais gerais pela sua bondade ao longo da história. Muitos salmos tratam de temas particulares, como os salmos régios (que enfatizam o rei e a sua relação com Deus), os salmos de entronização (que descrevem o Senhor reinando sobre o mundo), os cânticos de Sião (que celebram a grandeza de Jerusalém, a cidade escolhida por Deus como residência terrena) e os salmos sapienciais (os quais, como Provérbios, contrastam os estilos de vida e destinos de justos e injustos).
Como era de se esperar, esta grande variedade formal e temática torna o saltério uma fonte rica para a teologia bíblica. Como muitas outras porções do Antigo Testamento, os Salmos estão escritos em forma poética. São caracterizados por correspondência de pensamento entre as linhas (conhecido por paralelismo) e uma abundância de figuras literárias. O uso da imagem poética dá aos Salmos uma concretude e vivacidade que aliciam a imaginação, movem as emoções e permitem o leitor simpatizar mais facilmente e até identificar-se com os salmistas. Por causa das qualidades emocionais e pessoais destes antigos hinos e orações, podemos aplicá-los prontamente às nossas próprias experiências e apreciar mais profunda e pessoalmente a relevância das verdades teológicas que afirmam. Da sua experiência com a monarquia e de seus contatos com nações estrangeiras, o antigo Israel estava plenamente ciente da realeza e seus conceitos acompanhantes (cf. 1 Sm 8). O tema central do livro dos Salmos, que as suas orações presumem e os seus cânticos de louvor afirmam, é a realeza de Deus. Por exemplo, Salmos 103.19 declara: “O Senhor tem estabelecido o seu trono nos céus, e o seu reino domina sobre tudo”. Muitos Salmos se referem especificamente ao Senhor como rei (5.2; 10.16; 24.7-10; 29.10; 44.4; 47.2; 48.2; 68.24; 74.12; 84.3; 95.3; 98.6; 145.1; 149.2) ou falam do seu domínio (SI 22.28; 59.13; 66.7; 89.9; 93.1; 96.10; 97.1; 99.1; 103.22; 114.2; 145.11-13; 146.10). Muitos descrevem Deus como um Juiz justo, Pastor atencioso, Guerreiro poderoso e Suserano do concerto, os quais eram funções ou papéis dos reis no antigo mundo do Oriente Próximo. Podemos resumir a mensagem teológica do livro da seguinte forma: como Criador de todas as coisas, Deus exerce autoridade soberana sobre a ordem natural, as nações e Israel, o seu povo inigualável. No papel de Rei universal, Deus assegura a ordem e a justiça no mundo e entre o seu povo, exibindo o poder de guerreiro invencível. A resposta apropriada para este Rei soberano é confiança e louvor.
O CRIADOR DA ORDEM NATURAL De acordo com os primeiros versículos da Bíblia, os Salmos afirmam que Deus fez os céus e a terra (121.2; 124.8; 134.3; 146.6). O seu comando verbal os trouxe à existência (33.6,9; 148.3-5), sendo considerados obras das suas mãos (8.3; 19.1; 95.5), e formados com compreensão e habilidade infinitas (136.5). O Senhor separou o mar da terra seca (95.5) e estabeleceu a terra em suas fundações (104.5). Fez todos os seres viventes (104.24-26) e colocou homem e mulher, o pináculo do trabalho criativo, como regentes sobre a terra (8.6-8). Ainda que a humanidade seja uma parte minúscula e insignificante do vasto universo de Deus (8.4), sua posição é grandemente exaltada, estando abaixo somente do próprio Deus, e momentaneamente inferior a dos anjos — ao menos em poder — (8.5). Até mesmo o mar ondulante, um símbolo do caos e desordem no antigo pensamento pagão, é produto do trabalho criativo de Deus. Na mitologia ugarítica, Baal, deus da tempestade, em sua busca pela realeza, é forçado a lutar com Yam, o deus do mar. Depois de acirrada luta, Baal sai vitorioso. A batalha é descrita deste jeito: “E a clava dançou na mão de Baal [como] uma águia partindo dos dedos de Baal.
Atingiu a coroa do príncipe [Yam], entre os olhos do juiz Nahar. Yam desmoronou (e) caiu [de joelhos] em terra; as juntas tremeram e a forma física se enrugou. Baal empurrou Yam com força e o derrubou, dando um fim ao juiz Nahar”. Em outros textos, uma criatura chamada leviatã, ao que parece um dos servos de Yam, se opõe ao reinado de Baal (outra possibilidade é que leviatã seja um nome alternativo de Yam). Em contrapartida, alguns salmos afirmam que Deus fez o mar (yam, 95.5; 146.6). Em vez de serem vistos como forças que se opõem a Deus, o mar e as suas criaturas, inclusive o leviatã, são apresentados como exemplos primorosos da habilidade criativa de Deus (104.24-26). Em Salmos 89.9-12, o tema da batalha com o mar aparece junto com o trabalho criativo de Deus, talvez para sustentar a afirmação do Salmo sobre a incomparabilidade do Senhor (cf. 89.5-7). Contrário às reivindicações das nações pagãs, o Senhor criou as forças do caos (simbolizadas pelo mar ondulante, no versículo 9, e pelo monstro marinho Raabe, no versículo 10),5 quando deu ordem ao universo. Só o Senhor é Rei soberano sobre o mundo por causa do seu ato poderosamente criativo e só Ele merece aclamação da humanidade (cf. 89.14,15). Tendo estabelecido a terra e conquistado os mares caóticos, Ele, assentado em seu trono eterno, reina sobre o mundo (93.1-5).
O CRIADOR DE ISRAEL, O POVO DO CONCERTO
O Senhor criou a nação de Israel para ser o seu povo especial do concerto (SI 95.6; 100.3; 149.2). Como prometera a Abraão e aos patriarcas, Ele libertou milagrosamente os seus descendentes da escravidão no Egito, os formou em uma nação e os levou à Terra Prometida (cf. 105.6-11,42-45). Vários salmos detalham os acontecimentos históricos básicos que conduzem à criação de Israel, realçando os julgamentos no Egito (78.12,43-51; 105.27-36; 135.8,9; 136.10) e a libertação sobrenatural pelo mar Vermelho (77.14-20; 78.13; 81.10; 136.11-15). Como Criador de Israel, Deus tem o direito de reinar sobre a nação (114.1,2 declara que Israel se tornou o “domínio” de Deus quando os livrou do Egito, e SI 149.2, ARA, o “seu Criador” está em paralelismo poético com o “seu Rei”). No caso de Israel, o trabalho criativo de Deus foi também um ato de redenção. Os dois temas estão estreitamente relacionados em Salmos 74.12-17, em que o salmista reconhece Deus como o Rei eterno que traz salvação à terra (v. 12), registra a vitória de Deus sobre o leviatã, a criatura marinha (w. 13,14), e descreve alguns dos seus atos criativos (w.15-17). A referência à “salvação” no versículo 12 e a descrição do leviatã por “mantimento aos habitantes do deserto” (v. 14; cf. Ex 14.30) indicam que o autor está aludindo à travessia do mar Vermelho e à destruição dos exércitos de faraó nessas águas. Ao mesmo tempo, a associação da vitória de Deus com o ato da criação (w.15-17) dá a entender que a subjugação do mar primevo está em vista (cf. 89.9-12). Talvez seja desnecessário escolher entre a criação e o êxodo, como se fossem conceitos distintos. A ocorrência redentora no mar Vermelho também foi um ato de criação por meio do qual Deus trouxe ordem (uma nação) da desordem (escravidão no Egito), subjugando as forças do caos (os exércitos egípcios), da mesma maneira que fizera quando subjugou o primeiro mar e trouxe o universo ordenado à existência. Por conseguinte, o linguajar em Salmos 74.12-14, ainda que talhado para espelhar o caráter redentor do evento do Êxodo, também alude à vitória de Deus sobre o caos na criação.
A ORDEM NATURAL
Como Criador e Rei soberano do universo, o Senhor sustenta e controla a ordem natural. Por seu decreto, os corpos celestes executam suas funções designadas (19.4-6; 104.19-23; 148.3-6), as fundações da terra permanecem imóveis (93.1; 96.10; 104.5)7 e o mar fica dentro dos limites estipulados (93.3,4; 104.6-9). Os elementos naturais, inclusive o trovão, o relâmpago, o granizo, a neve, a nuvem e o vento fazem o que ele manda (29.3-9; 104.3,4; 135.7; 147.15-18; 148.8). Como aquele que controla a chuva, o Senhor é a fonte de vida para todas as criaturas (65.9- 13; 104.10-15). A vida e a morte estão nas mãos dEle (104.27-30) e até o inferno, o lugar da habitação dos mortos, está dentro da sua jurisdição (33.19; 95.4; 103.4). A soberania de Deus na ordem natural criada demonstra que Ele é infinitamente superior aos deuses-ídolos das nações (96.5; 97.9; 135-5-7). O trabalho do Senhor na criação é evidência da sua glória (8.1; 19.1; 96.5,6; 104.1), poder (65.6), sabedoria (104.24; 136.5), interesse pela ordem e justiça (96.10; 97.6), confiabilidade (119.89-91) e bondade (104.28; 145.9). Toda criação é convocada a louvá-Lo (148.1-13). Em contraste com o Criador poderoso, os deuses- ídolos pagãos são nada mais que produtos de artesãos humanos (135.15). As imagens têm bocas, olhos e ouvidos, mas não podem falar, ver, ouvir ou respirar. Só causam vergonha aos seus adoradores (97.7; 135.16-18). O controle de Deus da ordem natural é especialmente significativo no plano de fundo das antigas crenças cananeias.
Na mitologia ugarítica, Baal era o deus da tempestade que cavalga nuvens e usa os elementos da tempestade para levar fertilidade à terra.9 Ele se vangloria: “Só eu sou aquele que é o rei acima dos deuses, que nutre os deuses e os homens, que satisfaz as multidões da terra”. Baal era supostamente a fonte dos alimentos básicos da vida: o pão (Ugar, Ihm), o vinho (yn) e o óleo (smn).n Em contradição direta a isto, os salmistas afirmaram que o Senhor amolece a terra com as chuvas (65.10) e produz para o homem “da terra o alimento [em hebraico, helem] e o vinho [yayin] que alegra o seu coração; ele faz reluzir o seu rosto com o azeite [semen] e o pão [lehem], que fortalece o seu coração” (104.14,15). Os mitos também descrevem os elementos da tempestade, especialmente o trovão e o raio, como as armas de Baal. Um texto fala que o arsenal de Baal tem “sete raios” e “oito armazéns de trovões”. Outro descreve a poderosa teofania da tempestade de Baal da seguinte forma: “Então Baal abriu uma brecha nas nuvens, Baal soou a voz santa, Baal trovejou dos seus lábios [...] os lugares altos da terra tremeram. Os inimigos de Baal fugiram para os bosques, os inimigos de Hadade [nome alternativo de Baal] tomaram as montanhas. E o conquistador Baal disse: ‘Inimigos de Hadade, por que estais tremendo, barcos do Valente?’ Os olhos de Baal guiaram sua mão, enquanto ele balançava um cedro [ou seja, um raio] na mão direita.
Assim Baal foi entronizado na sua casa. Em oposição direta a este retrato mitológico de Baal, o Salmo 29 apresenta o Deus de Israel como o senhor da tempestade, que se assenta entronizado sobre as águas do caos. O salmista enfatiza o poder destrutivo da voz atroadora de Deus, que quebra as árvores mais altas e faz a terra tremer violentamente (29.3-9). “A voz do Senhor” é especificamente mencionada sete vezes, enfatizando a plenitude e magnitude do seu poder grandioso. Na mitologia ugarítica, os dois principais inimigos de Baal são Yam, o deus do mar (ver discussão anterior), e Mot, o deus da morte e do inferno. Como o deus da vida e fertilidade, Baal se engaja em luta contínua com Mot que ou reflete o ciclo sazonal ou a ameaça de seca prolongada à regularidade sazonal. Inicialmente, Baal se submete à autoridade de Mot, sendo forçado a entrar no reino da morte. Algum tempo depois, Baal volta e vence Mot depois de uma luta feroz. Em contrapartida, os Salmos nunca dizem que o Senhor é servil à morte, nem consideram que a morte apresente perigo real ao domínio do Senhor. Os salmos afirmam que a morte é uma força hostil que ameaça o povo de Deus (18.4,5; 116.3) e um lugar onde o indivíduo é separado da comunidade de adoradores pertinentes ao concerto e não experimenta mais os atos poderosos de Deus (6.5; 30.9; 88.10- 12; 115.17). Mesmo assim, esse reino de trevas está sob o controle soberano de Deus, que tem nas mãos as “profundidades da terra” (95.4). Ele possui o poder para livrar o seu povo das garras da morte (16.10; 18.15-19; 33.18 e 19; 103.4) e só determina a extensão de vida das suas criaturas (90.3-12; 104.27-30).
Na mitologia ugarítica, Baal era o deus da tempestade que cavalga nuvens e usa os elementos da tempestade para levar fertilidade à terra.9 Ele se vangloria: “Só eu sou aquele que é o rei acima dos deuses, que nutre os deuses e os homens, que satisfaz as multidões da terra”. Baal era supostamente a fonte dos alimentos básicos da vida: o pão (Ugar, Ihm), o vinho (yn) e o óleo (smn).n Em contradição direta a isto, os salmistas afirmaram que o Senhor amolece a terra com as chuvas (65.10) e produz para o homem “da terra o alimento [em hebraico, helem] e o vinho [yayin] que alegra o seu coração; ele faz reluzir o seu rosto com o azeite [semen] e o pão [lehem], que fortalece o seu coração” (104.14,15). Os mitos também descrevem os elementos da tempestade, especialmente o trovão e o raio, como as armas de Baal. Um texto fala que o arsenal de Baal tem “sete raios” e “oito armazéns de trovões”. Outro descreve a poderosa teofania da tempestade de Baal da seguinte forma: “Então Baal abriu uma brecha nas nuvens, Baal soou a voz santa, Baal trovejou dos seus lábios [...] os lugares altos da terra tremeram. Os inimigos de Baal fugiram para os bosques, os inimigos de Hadade [nome alternativo de Baal] tomaram as montanhas. E o conquistador Baal disse: ‘Inimigos de Hadade, por que estais tremendo, barcos do Valente?’ Os olhos de Baal guiaram sua mão, enquanto ele balançava um cedro [ou seja, um raio] na mão direita.
Assim Baal foi entronizado na sua casa. Em oposição direta a este retrato mitológico de Baal, o Salmo 29 apresenta o Deus de Israel como o senhor da tempestade, que se assenta entronizado sobre as águas do caos. O salmista enfatiza o poder destrutivo da voz atroadora de Deus, que quebra as árvores mais altas e faz a terra tremer violentamente (29.3-9). “A voz do Senhor” é especificamente mencionada sete vezes, enfatizando a plenitude e magnitude do seu poder grandioso. Na mitologia ugarítica, os dois principais inimigos de Baal são Yam, o deus do mar (ver discussão anterior), e Mot, o deus da morte e do inferno. Como o deus da vida e fertilidade, Baal se engaja em luta contínua com Mot que ou reflete o ciclo sazonal ou a ameaça de seca prolongada à regularidade sazonal. Inicialmente, Baal se submete à autoridade de Mot, sendo forçado a entrar no reino da morte. Algum tempo depois, Baal volta e vence Mot depois de uma luta feroz. Em contrapartida, os Salmos nunca dizem que o Senhor é servil à morte, nem consideram que a morte apresente perigo real ao domínio do Senhor. Os salmos afirmam que a morte é uma força hostil que ameaça o povo de Deus (18.4,5; 116.3) e um lugar onde o indivíduo é separado da comunidade de adoradores pertinentes ao concerto e não experimenta mais os atos poderosos de Deus (6.5; 30.9; 88.10- 12; 115.17). Mesmo assim, esse reino de trevas está sob o controle soberano de Deus, que tem nas mãos as “profundidades da terra” (95.4). Ele possui o poder para livrar o seu povo das garras da morte (16.10; 18.15-19; 33.18 e 19; 103.4) e só determina a extensão de vida das suas criaturas (90.3-12; 104.27-30).
AS NAÇÕES
Como Criador da humanidade, o Senhor também domina sobre o mundo das nações (22.28; 47.8,9; 66.7; 113.4). Ele faz tudo o que quer na terra (135.6; cf. também 115.3), frustrando os planos das nações (33.10). Ao longo da história de Israel, Ele demonstrou a soberania sobre as nações. Para livrar os israelitas do Egito e dar-lhes a Terra Prometida, ele derrotou reis poderosos, inclusive faraó, Seom, rei dos amorreus, Ogue, rei de Basã e todos os reis de Canaã (135.9-11; 136.17-20). Depois, ele capacitou Davi a conquistar as nações circunvizinhas e fazer deles estados vassalos de Israel (18.43-45). Em um oráculo de salvação dirigido a Davi, o Senhor declarou: “Moabe é a minha bacia de lavar; sobre Edom lançarei o meu sapato; sobre a Filístia jubilarei” (60.8; 108.9). Quando o povo se rebelou contra Ele, criou nações como instrumentos de castigo (66.12; 106.40-43). Ainda que as nações sejam hostis ao Senhor e adorem falsos deuses (74.10,18,22; 135.15), o seu desejo é que elas abandonem os caminhos rebeldes, reconheçam a soberania dEle e ofereçam-lhe adoração genuína (2.10-12; 47.1; 96.7).
ISRAEL Aposição e obrigações de Israel como o reino vassalo do Senhor. Embora seja Rei sobre a ordem natural e o mundo das nações, Deus escolheu uma nação, Israel, para ser o seu exlusivo povo do concerto. Israel se tornou a “herança” (nahalah; cf. 33.12; 78.62,71; 94.5,14; 106.5,40) de Deus e o seu “tesouro peculiar” ( cf. 135.4). Essas duas palavras são usadas em Deuteronômio como termos técnicos que indicam o estado especial de Israel como reino vassalo de Deus (Dt 4.20; 7.6; 9.26,29; 14.2; 26.18). Em sentido único, o Senhor é o “Deus de Jacó” (46.7-11). Como nação do Senhor, os israelitas receberam a lei divina (147.19), a qual tinham de amar e obedecer (103.18; 105.45; 111.10). A exigência mais básica da lei era a lealdade absoluta ao Senhor. O povo de Deus tinha de colocar a fé somente nEle (37.3,5; 44.4-8; 62.8; 115.9-11) e rejeitar os deuses das nações (40.4; 81.9). Também não tinha de confiar na própria força ou em alianças estrangeiras (20.7; 33.16,17; 118.8,9; 146.3).
O autor do Salmo 119 exemplifica uma atitude para com a lei mosaica que era a ideal para todo o Israel (cf. também 19.7-11). Nesta oração longa, o salmista empregou uma variedade de expressões e metáforas para descrever a devoção aos mandamentos de Deus. Afirmou inúmeras vezes o grande amor pela lei (w. 47,48,97,113,119,127,140,163,167) e declarou a obediência fiel a ela (w. 17,44,55-57,60,67,69,88,100,101,106,112,115,129,134,145,146,16 6-168). Escolheu a lei do Senhor (w. 173), lembrou-se dela (v. 52), almejou-a (w. 20,40,174), buscou-a (w. 45,94), agarrou-a (v. 31), meditou nela (w. 11 ,15,23,27,48,78,95,97,99,148), deliciou-se e alegrou-se nela (w. 14, 16, 24, 47, 70, 77, 92, 111, 143,174), correu por ela (v. 32), falou dela (v. 46), achou consolo nela (v. 52), esperou nela (w.74,81,147) e temeu-a (v. 120). No lado negativo, não se esqueceu da lei do Senhor (w. 61, 93, 109, 141, 153,176), não a abandonou (v. 87) ou afastou-se dela (w. 102, 110,157). Como ato de louvor, ele levantava as mãos e agradecia a Deus sete vezes ao dia pela lei (119.48,164), que era uma luz para guiá-lo pelo caminho traiçoeiro da vida (v. 105). Para o salmista, a lei de Deus era mais valiosa do que as riquezas materiais (w. 72,127) e mais satisfatória que o mel (v. 103). A presença de Deus com o povo do concerto.
Como Senhor do concerto de Israel, Deus vivia entre o seu povo. Nos dias de Moisés, Ele os guiou e os protegeu com uma coluna de nuvem e uma coluna de fogo (78.14; 105.39). Mais tarde, habitava no Tabernáculo em Siló (78.60) e subsequentemente escolheu o Templo em Jerusalém como santuário permanente (78.68, 69; 87.1,2; 132.13,14). Muitos salmos, especialmente os cânticos de Sião (46; 48; 76; 84; 87; 122), exaltam Jerusalém como a residência do Senhor. Safom, situado ao norte de Israel, era a montanha sagrada dos cananeus, de onde o seu supremo deus El supostamente reinava. Porém, Sião era o verdadeiro “Safom”, pois era aqui que o Senhor Deus de Israel, o “Grande Rei” do universo, vivia e reinava (48.2). Como capital do reino universal de Deus, Sião desfrutava da proteção e bênçãos divinas. A presença de Deus na cidade a tornava imune das nações furiosas fora dos muros (46.1-11). Quando atacavam a cidade, eram rapidamente destruídas pelo poder devastador de Deus (48.3-8; 76.3-6). O monte Sião permaneceria para sempre, sem se abalar por causa dos seus inimigos (125.1). Deus provia a subsistência dos residentes da cidade, levando-os a cantar com alegria (132.15,16). As suas bênçãos abundantes eram como correntes vivificantes que fluem pela cidade (46.5; cf. 36.8). Subsequentemente até as nações pagãs seriam forçadas a reconhecer a grandeza de Sião e a posição privilegiada dos seus habitantes (87.3-7).
Sião era o foco da antiga religião e fé israelita, tanto antes quanto depois do exílio. O povo de Deus, especialmente os peregrinos religiosos que chegavam à cidade (84.5-7), encontravam consolo e encanto nas suas estruturas físicas (48.12,13; 84.1; 122.3), porque eram lembranças tangíveis da presença protetora de Deus. O Salmo 84 exalta o Templo em termos particularmente ardentes, romantizando-o como lugar de segurança para os passarinhos e seus filhotes (v.3). Na sua alegria, o autor clamou: “Vale mais um dia nos teus átrios do que, em outra parte, mil. Preferiria estar à porta da Casa do meu Deus, a habitar nas tendas da impiedade” (84.10). Todos que amavam Jerusalém tinham de orar pelo bem-estar e prosperidade contínuos da cidade (122.6-9). Até quando foram levados cativos à Babilônia e os seus captores pediram zombeteiramente que cantassem uma das canções de Sião, os exilados atemorizados continuaram prestando lealdade à cidade (137.1-6). Escrevendo depois da queda de Jerusalém, o autor do Salmo 102 orou pela restauração de Sião e previu um dia em que o ideal de Sião se cumpriria (w. 13-22). Naqueles dias, as nações e seus governantes temeriam ao Senhor (v. 15) e se reuniriam em Jerusalém para adorar o seu nome (w. 21,22). Claro que a menção do exílio e da queda de Jerusalém nos lembra que o ideal hínico de Sião como cidade de Deus estava em nítido contraste com a realidade histórica da subversão violenta e ruína total da cidade. De acordo com os Salmos examinados acima, Sião, como residência permanente de Deus (cf. SI 132.14), era imune aos ataques das nações.
Os outros Salmos descrevem em detalhes vividos a destruição da cidade pelas mãos de exércitos pagãos. O autor do Salmo 74 lamentou que os soldados babilônios entraram no Templo e o despedaçaram com machados antes de queimá-lo até aos alicerces (74.1-11, esp. w.4-8). Os que celebravam a presença protetora de Deus em Sião eram meros pensadores levados ao extremo do ridículo por expectativas irreais? Não denunciou Jeremias os cidadãos de Jerusalém por colocarem falsas esperanças nas defesas da cidade e nos pátios do Templo (Jr 7.4; 8.19; 21.13)? Para solucionar esta tensão, temos de reconhecer que os cânticos de Sião, com a sua linguagem extravagante e ponto de vista otimista, não são garantias proféticas ou promessas incondicionais, mas são expressões de um ideal que só foi parcialmente realizado no período pré-exílico. O Sião cantado nas canções é o que Jerusalém deveria e poderia ter sido caso seus líderes e cidadãos tivessem permanecidos leais ao Deus que habitava no meio deles. A libertação milagrosa de Jerusalém dos assírios em 701 a.C. proporcionou um vislumbre do que Deus podia e queria fazer pela cidade com respeito ao arrependimento genuíno e fé do povo (Is 36;37). A confiança de Ezequias no Senhor naquele momento foi uma exceção rara na história de Israel.
A absoluta falta de fé mostrada em ocasião anterior pelo seu pai Acaz (Is 7) era a norma entre o povo de Deus. A desobediência obstinada do povo forçou o Senhor a retirar a sua presença protetora da cidade pervertida, deixando-a aberta aos invasores inimigos e à destruição (cf. Ez 10; 11). Naqueles dias, o ideal de Sião sofreu um retrocesso sério. Os autores dos cânticos de Sião não deveriam ser ridicularizados como sonhadores ou ser associados com os rebeldes idólatras e injustos, que transformaram o ideal de Sião em falsa garantia de proteção divina e lançaram a crítica dos profetas sobre eles. Antes, devem ser admirados como seguidores leais do Senhor que se deliciaram na realidade da presença divina na Jerusalém pré-exílica e que, pela fé, antegozaram a realização do pleno potencial que propiciava. Embora escolhessem focalizar no ideal, em vez dos pré-requisitos morais-éticos para a sua realização, com certeza não negligenciaram ou repudiaram estes últimos (cf. 84.11b,12). Um dia, o ideal que almejaram e até em pequena medida haviam experimentado, se materializará.
Os mesmos profetas que também anunciaram a queda da antiga Jerusalém esperavam o dia em que Deus purificaria e restabeleceria Sião e a tornaria novamente o lugar da sua habitação. Naquele tempo, a cidade e seus habitantes receberão reconhecimento universal como a “cidade de Deus” (cf. 87.3-7). Por isso, o ideal de Sião continuou inspirando os israelitas, mesmo quando eles eram confrontados pelas realidades do julgamento de Deus (cf. 102.13-22).15 O presente de Deus de um mediador para o povo do concerto. Além de dar ao povo do concerto a sua presença protetora, Deus lhes deu o rei davídico para servir de mediador entre Ele e a nação. Tirou Davi do apascentamento de ovelhas e o estabeleceu para “apascentar a Jacó, seu povo” (78.70-72; cf. 89.20), responsável por guiá-los em justiça e assegurar a paz e a justiça na terra. Deus estabeleceu um concerto com o seu rei ungido, que elevou Davi e seus descendentes a uma posição especial diante dEle (2 Sm 7). O rei davídico desfrutava do status de “Filho” de Deus (2.7) e “primogênito” de Deus (89.26,27).16 Como vice-regente do Senhor sobre Israel, ele se assentou, por assim dizer, à mão direita de Deus (110.1, entretanto, ver análise deste salmo mais adiante) e até foi tratado por “Deus” (45.6).17 Os estudiosos propõem vários paralelos ao fenômeno em Salmos 45.6 (um rei ou oficial ser tratado ou chamado “Deus”).
Em Êxodo 4.16; 7.1, Moisés, como representante divino de Arão e faraó, é chamado “Deus”, mas o uso figurativo do título está claramente delineado no contexto (por conseguinte, a tradução “como Deus”, NYI). Certos estudiosos entendem que os juízes humanos são o referente de ’elohim em Êx 21.6, 22.8,9,28 e 1 Sm 2.25, mas não há razão para não entendermos que Deus seja o referente direto nestes textos. Em Salmos 82.1,6, os “deuses” tratados são reis humanos que entretêm ilusões de deidade para si mesmos e são, portanto, adequadamente (e sarcasticamente!) chamados seres divinos (ver análise ainda neste capítulo). Talvez o paralelo mais estreito em Salmos 45.6 seja Isaías 9.6, onde um dos títulos do rei guerreiro é “Deus Forte” (’el gibbor). Ver análise de Isaías 9.6 9 (no capítulo 8, em Uma teologia de Isaías). O pano de fundo para o concerto davídico e a imagem de filiação associado com ele é o concerto de concessão do antigo Oriente Próximo, por meio do qual um rei recompensava um servo fiel, elevando-o à posição de “filiação” e concedendo-lhe presentes especiais, normalmente relacionados com a terra e a dinastia.
Ao contrário do tratado condicional entre suserano e vassalo no qual foi moldado o concerto mosaico, o concerto de concessão era incondicional e o recebedor não podia ter seus direitos perdidos. Por conseguinte, as promessas de Deus a Davi relacionadas ao concerto estavam garantidas por juramento divino irrevogável (89.3,28-37; 132.11). Lógico que havia obrigações ligadas ao concerto. Cada rei era responsável por obedecer à lei de Deus (132.12). Caso falhasse neste aspecto, ele seria disciplinado severamente e perderia a participação plena nos benefícios da promessa de Deus (89.30-32). Entretanto, mesmo sob essas circunstâncias, Deus não revogaria a promessa feita à casa de Davi (w. 33,34). A linhagem davídica continuaria e os benefícios ligados ao concerto permaneceriam disponíveis aos que se mantivessem fiéis às exigências de Deus. O juramento solene de Deus a Davi era tão certo quanto à existência contínua do sol e da lua, que nunca deixa de aparecer regularmente no céu (89.35-37). Deus prometeu ao seu rei escolhido uma dinastia permanente, vitória sobre os inimigos e domínio universal.
A promessa central do concerto era de dinastia perpétua. O Senhor declarou a Davi: “A tua descendência estabelecerei para sempre e edificarei o teu trono de geração em geração” (89.4). Entretanto, os reis davídicos habitavam em um mundo hostil, onde inimigos internos buscavam usurpar-lhes a posição e os reis estrangeiros lhes ameaçavam o reino. O Senhor prometeu fortalecer o rei, capacitando-o a vencer os supostos opressores e inimigos (20.6; 21.8-12; 63.9-11; 89.21-23; 132.18). Em Salmos 18, Davi descreveu em detalhes como Deus de modo sobrenatural lhe deu poder para a batalha (18.29,32-35; cf. 144.1) e o capacitou a vencer os inimigos (18.36-42). Como protetor, o Senhor era para ele um rochedo, um lugar forte, um escudo e o chifre de boi selvagem (18.2, 30,31; cf. 144.2). Estupefatas pela grandeza de Davi e o seu Deus, as nações se submetiam de boa vontade à sua autoridade (18.43-45), de acordo com a promessa de Deus relacionada ao concerto de dar ao seu ungido o domínio sobre a terra inteira (2.8; 72.8-11; 89.25). O sucesso do rei na batalha era essencial para o bem-estar da nação. E o que vemos claramente no Salmo 144, que registra a oração do rei pela intervenção de Deus a seu favor (w. 1-11, esp. w. 5 a 8) e descreve as consequências nacionais de uma resposta positiva (w. 144.12-15). O rei pediu a Deus que descesse do céu em todo o seu esplendor e o livrasse dos exércitos inimigos que surgiram contra ele como “muitas águas”.
Quando a segurança da nação estivesse garantida por vitória, haveria sinais de prosperidade e fertilidade em todos os lugares, incluindo jovens fortes, jovens bonitas, celeiros cheios de comida e campos abundantes de rebanhos e manadas. Os Salmos régios esboçam claramente as obrigações e responsabilidades essenciais do rei davídico. Como comentado acima, a sua responsabilidade mais básica era obedecer à lei de Deus (89.30,31; 132.12). Mais especificamente, o rei tinha de promover a retidão e a justiça na terra (72.1) por meio de exemplo pessoal e ação. E o que vemos claramente no Salmo 101, que é a confissão da lealdade do rei a Deus (cf. também 18.20-24). O rei declarou: “Portar-me-ei com inteligência no caminho reto. [...] Andarei em minha casa com um coração sincero. Não porei coisa má diante dos meus olhos” (101.2,3a). Também jurou escolher para a sua corte real homens fiéis e tementes a Deus, em vez de optar pelos caluniadores enganosos (w. 3b-7), e fazer todo esforço para eliminar os homens maus da terra (v. 8). O Salmo 72 descreve o rei ideal como aquele que ativamente promove a justiça na terra defendendo a causa dos aflitos, fracos e necessitados e exterminando aqueles que os oprimem (72.2,4,12-14). Era por este tipo de rei que a nação teria paz, prosperidade e prestígio internacional (cf. w. 3,5-11,15-17). O cumprimento messiânico do ideal davídico.
Como com o ideal de Sião já analisado, os Salmos régios descrevem que o ideal de um rei davídico justo e temente a Deus nunca foi completamente atingido no antigo Israel. Salomão dominava sobre um reino vasto, mas a introdução de práticas religiosas estrangeiras contribuiu para a sua queda. Quando o tolo filho Roboão buscou intensificar o tratamento opressivo que o seu pai dava a força trabalhista do norte, o reino foi permanentemente dividido, com o rei davídico exercendo autoridade somente sobre um remanescente sulista da nação. Embora alguns reis exibissem características piedosas, o ideal de um rei justo que trouxesse paz e prosperidade duradoura para a nação ficou só nisso, um ideal nunca realizado. Quando Deus julgou a nação por suas ações rebeldes, os reis davídicos até experimentaram humilhação.
O autor do Salmo 89, depois de lembrar Deus das suas antigas promessas feitas à casa de Davi (cf. w. 1-37), lamentou a catástrofe que se abatera sobre a dinastia dos seus dias (w. 38-51). Observou que Deus na sua ira rejeitara e abandonara o seu rei ungido e que renunciara o concerto. A coroa do rei jazia no pó, o palácio estava em ruínas e o rei era objeto de desprezo. O Senhor removera o seu apoio do rei e permitira que os inimigos o derrotassem e escarnecessem dele. Em agonia, o salmista perguntou: “Até quando, Senhor? Esconder-te-ás para sempre? Arderá a tua ira como fogo? Senhor, onde estão as tuas antigas benignidades, que juraste a Davi pela tua verdade?” (w.46,49). Esse quadro de vergonha e ruína está em nítido contraste com o retrato bonito e real pintado no Salmo 72.
Embora o exílio desse a impressão de escapar do golpe fatal ao ideal davídico, as palavras dos profetas continuaram ecoando pelas ruínas de Jerusalém. Antes do exílio, Isaías, Miqueias, Jeremias e outros anunciaram a queda do trono davídico. Esperavam também o dia depois do julgamento, quando Deus levantaria um rei ideal e cumpriria as promessas feitas a Davi de domínio eterno e universal. No período pós-exílico, Ageu e Zacarias reavivaram esta esperança ligando as promessas davídicas à pessoa de Zorobabel, o governador de Judá sob o Império Persa e um descendente de Davi. Subsequentemente Deus levantou o “Ungido ou Messias. Jesus Cristo, o incomparável filho de Davi, veio como Messias de Israel, mas foi rejeitado e crucificado. Um dia, porém, Ele voltará à terra para estabelecer o reino previsto pelos profetas. Naqueles dias, o ideal davídico dos salmos régios se tornará realidade quando Jesus reinar “de mar a mar” e trouxer bênçãos para todas as nações (72.8,17). Porque o ideal davídico retratado nos Salmos régios foi completa e cabalmente cumprido em Jesus, estes salmos são classificados como Salmos messiânicos. O título é apropriado, mas necessita de qualificação.
Os Salmos régios, por sua natureza literária, não são inerentemente proféticos e não deveríamos entender que são predições diretas do reinado messiânico de Jesus. Como já observado, expressam um ideal que, embora ligado com renovada esperança a muitos reis davídicos históricos na ocasião da sua ascensão ao trono, foi totalmente realizado em Jesus e por Ele. Por si só, devemos entender estes Salmos como messiânicos em sentido indireto, em contraste com as predições messiânicas da literatura profética que, embora também fundamentadas no concerto davídico ideal, podem ser classificadas como diretamente messiânicas com base no gênero literário no qual aparecem. Um exame mais minucioso em muitos dos Salmos régios apóia esta conclusão em que os detalhes dos salmos espelham mais logicamente o fundo histórico do antigo Israel, e não o futuro reinado de Cristo. Ao mesmo tempo, o ideal expresso como um todo no Salmo se realiza em Jesus, e não em um mero rei humano. Por exemplo, o Salmo 2 espelha o período do império davídico-salomônico em que muitas nações vassalas circunvizinhas devem ter buscado libertar-se do rei israelita. O Salmo começa com a descrição do desejo de as nações se rebelarem contra o Senhor e o seu ungido (2.1-3). Os versículos 4 a 6 dão a resposta do Senhor. Ele ri zombeteiramente e lembra aos reis que Ele instalou o seu rei em Sião.
O rei fala nos versículos 7 a 9, recordando o decreto do Senhor por meio do qual ele foi elevado à posição de filiação e recebeu domínio universal. Por fim, os reis são advertidos a exercer sabedoria, submetendo-se ao Senhor e ao seu rei antes de serem eliminados pelo julgamento divino (w. 10-12). Talvez o Salmo fosse usado quando os representantes das nações súditas fossem levados a Jerusalém para prestar lealdade e pagar tributo. A repetição do decreto de Deus teria tornado adequado o Salmo também para cerimônias de coroação. Com a o decorrer do tempo e o enfraquecimento da glória do império davídico, houve pouca correspondência entre o ideal do Salmo de domínio universal e as realidades políticas do mundo de Israel. Israel teve de esperar um rei futuro por meio de quem o ideal seria cumprido.
No progresso da história e revelação, Jesus emergiu como esse rei (Ap 9.15 cita SI 2.9 descrevendo a descida de Jesus dos céus para destruir os inimigos). Reconhecendo Jesus como o Messias, o apóstolo Pedro viu a sua rejeição pelos reis dos seus dias como uma manifestação da rebeldia descrita no Salmo 2 (cf. At 4.25-28 que cita o SI 2.1,2). Outros entenderam que as palavras do versículo 7 são especialmente aplicáveis ao Cristo ressuscitado e ascendido que está assentado à mão direita do Pai (At 13.33; Hb 1.5; 5.5). O Salmo 45 é outro exemplo de Salmo régio que espelha a situação histórica do antigo Israel, mas que se aplica a Cristo, pois é por meio dEle que se cumprem plenamente os aspectos primários do seu retrato idealista do rei davídico. Ele foi escrito para o rei (cf. v. 1) na ocasião de um casamento da realeza. Os versículos 2 a 7 elogiam o rei como “o mais formoso dos filhos dos homens” (ARA), que vence os exércitos inimigos pela força militar e estabelece justiça na terra. Os versículos 8 a 15 enfatizam o rei e a sua noiva, ao passo que a conclusão (w. 16,17) prometem ao rei uma dinastia duradoura e fama permanente. Neste Salmo, vemos o rei davídico no seu melhor momento. É um guerreiro bonito e robusto imbuído de justiça e certo de ter uma dinastia permanente na ocasião do casamento com uma linda princesa.
O eventual fim da dinastia davídica ameaçava reduzir o Salmo ao estado de uma relíquia irrelevante, embora romântica, do passado distante. Mas por meio de Cristo se cumprirá o seu retrato do rei ideal. O autor de Hebreus aplicou as palavras dos versículos 6 e 7 a Jesus (Hb 1.8,9). Desta forma, ele utilizou a passagem que mais facilmente pertence a Cristo, isto é, a porção do Salmo que lida com o status especial e caráter justo do rei. Ao mesmo tempo, o Novo Testamento evita traçar qualquer conexão alegórica entre o antigo casamento da realeza e a relação de Cristo com a igreja. O Salmo 72 é outro Salmo régio indiretamente messiânico. Ele começa e termina com orações (w. 1,15-17) oferecidas em prol do rei (talvez Salomão ou o seu filho, cf. o título). Os versículos intervenientes descrevem as condições que prevalecerão no reino, caso o Senhor responda positivamente a estas petições de bênçãos.21 O retrato idealista do rei como aquele que estabelece justiça, paz e prosperidade no seu reino e alcança fama duradoura tem notáveis paralelos nas inscrições semíticas ocidentais relacionadas a reis datado de princípios do primeiro milênio a.C.
Certas características da descrição, como a extensão geográfica do reino (v.8) e as referências a visitas e tributos vindo de terras distantes, inclusive de Sabá (w. 10,11,15), espelham a era salomônica (cf. 1 Rs 4.21; 10.1-15,23-25). O ideal expresso no Salmo nunca foi totalmente realizado na história de Israel, nem mesmo durante o reinado de Salomão. Podemos rotular o Salmo de messiânico, porque somente durante o reinado milenar de Cristo é que Israel e as nações desfrutarão de paz e prosperidade para as quais o autor do Salmo almejou. Certos estudiosos rotulam o Salmo 110 de régio indiretamente messiânico, mas neste caso a classificação é mais incerta por causa do modo em que é utilizado no Novo Testamento. Para avaliarmos a complexidade do problema precisamos examinar o conteúdo do Salmo e seu uso no Novo Testamento. O Salmo 110 começa com um decreto formal, falado pelo Senhor (que é tradução de yhwh, “Jeová”) ao “Senhor” (’adorí) do salmista, que é claramente uma personagem real (cf. “cetro da tua fortaleza desde Sião” e “domina”, v.2). Nem o autor nem o “Senhor” é identificado precisamente. Se entendermos que a frase ledawid no título indica autoria (“Salmo de Davi”), então o “Senhor” de Davi seria alguma outra personagem real a quem ele está subordinado.
Se considerarmos o título no sentido de “para Davi” ou “relacionado com Davi”, então o próprio Davi seria o “Senhor” citado e o salmista seria um dos súditos de Davi, talvez um membro da corte. Seja como for, o salmista observou que o Senhor Jeová concedeu ao seu “Senhor”, o rei, uma posição privilegiada à mão direita divina e prometeu subjugar os inimigos do rei (v.l). Nos versículos 2 e 3, o salmista fala com o seu “Senhor”. Ele reiterou o conteúdo do oráculo precedente e previu o rei ser sustentado pelos súditos ou tropas (não está claro o significado preciso do v.3). O versículo 4 informa outro decreto divino (cf. v.l) por meio do qual Jeová eleva o “Senhor” do salmista ao status de rei-sacerdote configurado de acordo com Melquisedeque. O versículo 5 a pode estar endereçado a Deus (cf. “à tua direita” com “à minha mão direita” no v.l), em cujo caso os versículos 5b a 7 descrevem as vitórias do rei sobre os seus inimigos e o sustento na batalha. Outra possibilidade é que o rei é endereçado no versículo 5a e que “o Senhor” (adonay) é Jeová (yhwb). Neste caso, os versículos 5b e 6 descrevem as ações de Deus e não as do rei.
A menos que o versículo 7 seja antropomorfo, descreve os efeitos revivificantes que a intervenção de Deus produz para o rei. Jesus, Pedro e o autor de Hebreus utilizaram o Salmo 110. Em um debate com os fariseus, Jesus, presumindo que Davi falou as palavras do versículo 1 sobre o seu Deus, o Messias, perguntou para os oponentes como o Messias poderia tanto ser filho quanto Senhor de Davi (Mt 22.41-45; Mc 12.35-38; Lc 20.41-44). Entendendo o linguajar do versículo 1 em sentido literal, Pedro concluiu que Davi não poderia ser o endereçado, visto que ele não ascendeu aos céus e assentou-se à mão direita de Deus. Pedro presumiu, como Jesus, que Davi falou estas palavras sobre o Messias e concluiu que Jesus é “Senhor e Cristo” (At 2.34-36). O autor de Hebreus entendeu que Jesus era o recebedor de ambos os decretos registrados no Salmo 110 (Hb 1.13; 5.6-10; 6.20; 7.11- 22) e desenvolveu uma teologia elaborada do sacerdócio de Cristo com base no segundo oráculo. Em suma, o Novo Testamento dá como certo que o Messias Jesus é pelo menos o referente último de “meu Senhor” em Salmos 110.1 e o recebedor dos oráculos registrados em Salmos 110.1,4. Jesus e Pedro entenderam que Davi era pelo menos o orador das palavras em Salmos 110.1, se não o autor original.
Levando em conta a evidência do Novo Testamento, concluiríamos facilmente e talvez corretamente que o Salmo 110 é um Salmo exclusivamente régio e profético que contém uma predição direta do reinado e ministério do Messias proferida pelo próprio Davi. Para sermos justos, temos de reconhecer que esta não é a única explanação que satisfaz os dados bíblicos. Outra possibilidade é que o Salmo é indiretamente messiânico como os outros acima examinados. Davi pode ter escrito o Salmo para a coroação de Salomão (ou aplicado a Salomão um Salmo originalmente escrito para ele23) para autorizar a sucessão (que melhor modo de fazer isto do que chamar o herdeiro escolhido de seu “Senhor”?) e ligar as promessas do concerto ao filho (cf. 1 Cr 28;29 para inteirar-se da narrativa histórica da sucessão de Salomão). Claro que, apesar da grandeza de Salomão, o ideal retratado no SI não se materializou completa ou permanentemente na história de Israel. Porque Jesus é aquele em quem se cumpriu (e aquele que o rei histórico idealizado pressagiava), ele poderia declarar que Davi falou dele, e Pedro e o autor de Hebreus poderiam entender que os oráculos do Salmo 110 se dirigiam a Jesus.
Se interpretarmos que o Salmo 110 é indiretamente messiânico, então fica claro que Pedro e o autor de Hebreus, aplicando os dois oráculos do Salmo a Jesus, deram à linguagem um sentido elevado ou literal (o autor de Hebreus faz o mesmo em SI 45.6; ver nota 19). Visto no plano de fundo das promessas e ideal davídicos, o mandamento no primeiro oráculo (“Assenta-te à minha mão direita”, 110.1) é uma expressão figurativa que enfatiza a eleição e posição especial do rei em relação a Deus. Pedro e o autor de Hebreus entenderam um cumprimento mais literal no caso de Jesus que ascendeu aos céus e tomou lugar à mão direita do Pai (At 2.34,35; Hb 1.3; 8.1; 10.12,13; 12.2). No contexto da antiga realeza davídica, o segundo oráculo (110.4) se refere ao status dual do reino davídico de líder civil e religioso, comparando-o ao de Melquisedeque, o antigo rei-sacerdote de Salém (Gn 14.18). Embora certos deveres sacerdotais estivessem estritamente limitados aos levitas (2 Cr 26.16-18), o reino davídico desatendeu muitos aspectos das instituições religiosas e sistema de adoração de Israel e, como mediador entre Deus e o povo, poderia ser chamado “sacerdote”.
No antigo contexto israelita, as palavras “Tu és um sacerdote eterno” (110.4, grifo meu) eram compreendidas como hipérbole ou como promessa de detenção de status sacerdotal para a dinastia do rei e não como promessa de vida eterna literal para o rei como indivíduo.2’ O autor de Hebreus elevou o linguajar a outro nível. Como o sacerdote final e ideal régio (ou “melquesidequiano”), Jesus não exerce autoridade apenas sobre os levitas, mas, antes, os substitui e torna obsoleta a velha ordem (Hb 7; 10). Estabelecendo o caso, o autor de Hebreus enfatizou que Jesus é literalmente um sacerdote eterno (Hb 7.3,16,17,24,25), em contraste com os levitas, que chegavam ao ofício por sucessão ancestral (Hb 7.16,23).
AS FUNÇÕES RÉGIAS DE DEUS Preservar a ordem e a justiça era responsabilidade principal dos reis no antigo mundo do Oriente Próximo. Os nomes régios egípcios da décima segunda dinastia contêm os elementos ma’at, “justiça”, ou ma‘a, “justo”. Os reis mesopotâmios se referiam à justiça nas suas fórmulas de ano régio. Por exemplo, o segundo ano de Hamurábi era conhecido por “o ano em que ele estabeleceu a justiça na terra”. Em benefício da justiça, proclamava-se uma liberação de dívidas. Os reis também eram responsáveis em ajudar os elementos fracos e destituídos da sociedade, entre eles as viúvas, os órfãos e os pobres. Richard Patterson escreve: “Existem nas estipulações legais e na literatura sapiencial babilônicas a ordem para cuidar das viúvas, órfãos e pobres, visto que se esperava que o rei ideal, como representante vivo do deus da justiça, o deus sol Samas, cuidasse dos elementos oprimidos e necessitados da sociedade”.
Em um texto de Ugarite, Yassib denunciou o rei Keret da seguinte maneira: “Tu não julgas a causa das viúvas, não processas o caso dos inoportunos. Tu não banes os extorsivos dos pobres, não alimentas os órfãos diante de ti (nem) as viúvas atrás de ti”30 No papel de guardião da justiça, o rei era considerado pastor do povo.31 Por exemplo, o assírio Tukulti-ninurta I declarou: “Quando Assur, meu senhor, fielmente me escolheu para ser seu adorador, deu-me o cetro para o ofício de pastor, (presentou)-me com o cajado para o ofício de pastor... (Naquele tempo), pus meu pé no pescoço das terras (e) pastoreei o povo de extensas pústulas como animais. Ele (Ashur) me ensinou a tomar decisões sábias”. Deus como Juiz universal. De modo típico do antigo Oriente Próximo, muitos hinos no saltério descrevem o Senhor como um Juiz régio que preserva a ordem e executa a justiça ao longo do reino universal. Ama a retidão e a justiça (33.5; 99.4), que formam “a base do seu trono” (97.2). O Senhor executa justiça em favor dos necessitados e/ou oprimidos, entre eles os pobres (113.7), as mulheres estéreis (v. 9), os cativos famintos presos em calabouços escuros (146.7,8), os que moram como estrangeiros em terras estranhas, os órfãos e as viúvas (v. 146.9). Infelizmente, a realidade conflita com essas afirmações hínicas da justiça de Deus. Encontramos evidências da preocupação de Deus com os necessitados ao longo de toda a história da humanidade, mas os exemplos de injustiça fragrante e opressão cruel são mais abundantes.
Como harmonizar a realidade com as afirmações dos salmistas? Será que os escritores dos hinos antigos eram culpados de generalizar Deus de forma exagerada, enquanto fechavam os olhos e os ouvidos à miséria do mundo ao redor? Não há solução fácil ou completamente satisfatória para este problema. Entretanto, temos de considerar pelo menos três fatores nesta análise. Primeiro, apesar do tom universal dos hinos (cf. 113.4,5; 146.6), eles derivam de um contexto israelita em que o envolvimento de Deus na vida do povo do concerto era exclusivamente pessoal e revelador, colocando esta comunidade à parte do mundo em geral. Sob este aspecto, é digno de nota afirmar que dois dos hinos são endereçados aos “servos do Senhor” (113.1) e a Sião (146.10), que repetidamente experimentara a ajuda divina (v. 5). O tema da mulher estéril fornece boa ilustração de como a experiência e, portanto, a perspectiva de Israel podiam diferir das da humanidade em geral.
Muitas mulheres estéreis jamais tiveram a alegria do parto, mas na história do povo do concerto de Deus as mulheres estéreis eram os instrumentos do Senhor no cumprimento das suas promessas e libertação do povo. Deus miraculosamente capacitou que a estéril Sara (Gn 11.30) tivesse um filho, mesmo depois, segundo ela própria disse, “de haver envelhecido” (Gn 18.12). Outras mulheres estéreis deram à luz importantes personagens na história de Israel: Rebeca (Gn 25.21), Raquel (Gn 29.31), a mãe de Sansão (Jz 13.2,3) e Ana (1 Sm 1;2). Com esta tradição em vista, não admira que o autor do Salmo 113 lembrasse os servos do Senhor que Deus “faz com que a mulher estéril habite em família e seja alegre mãe de filhos” (v. 9). Vários outros elementos hínicos também espelham a experiência dos israelitas. Deus os libertou da prisão no Egito (cf. 146.7,8) e lhes deu comida no deserto (v. 7). Pela lei mosaica, ele expressou a preocupação pelos pobres, estrangeiros, viúvas e órfãos (113.7; 146.9; cf. Êx 22.21-23; 23.6,11; Lv 19.33,34; Dt 15.7-11; 24.14). Segundo, temos de reconhecer o caráter literário destes hinos. Não são narrativas históricas, mas canções compostas para celebrar a realeza de Deus em termos grandemente típicos do antigo Oriente Próximo.
Neste gênero, caracterizado como está pela linguagem estereotípica e hiperbólica, não podemos esperar uma correspondência exata com a realidade em todos os detalhes. Os salmistas estavam convencidos de que o seu Deus é o rei justo do mundo, porque lhes dera adequadas evidências factuais e históricas desse fato. As afirmações não precisam insinuar que eles criam que a justiça se realizava em cada caso em escala mundial. Terceiro, os Salmos — e a Bíblia como um todo — mostram que Deus delegou a tarefa de manter a justiça aos regentes humanos que, em sua maioria, não implementaram os desejos divinos e, por conseguinte, estão destinados a julgamento. O Salmo 82 trata diretamente deste tema. Este Salmo denuncia um grupo de regentes injustos por mostrar favoritismo pelos iníquos (v. 2) e não fazer caso dos direitos dos pobres e necessitados (w. 3,4). Por não promoverem a justiça, “todos os fundamentos da terra vacilam” (v. 5) e estes regentes, apesar da posição elevada, morrerão (w. 6,7). O Salmo conclui com uma oração pedindo que Deus pessoalmente assegurasse a justiça no seu reino mundial (v. 8). A identidade precisa dos governantes tratados no Salmo 82 é tema de debate.
Certas características do Salmo dão a entender que são deuses pagãos. São citados especificamente por ’elohim, “deuses”, e a frase “congregação dos poderosos” (v. 1, ’adat ‘el, literalmente, “assembleia de Deus/El”) lembra uma assembleia divina da mitologia cananeia presidida pelo sublime deus El. Os versículos 6 e 7 também apoiam esta interpretação, visto que chamam tais regentes de “deuses”, mas depois declaram que “como homens morrereis” (“como simples homens” e “como qualquer outro governante” [NVI; grifos do autor] são termos interpretativos), insinuando talvez que não são realmente humanos. Se seguirmos esta abordagem, então o Salmo seria uma polêmica ousada contra a religião cananeia, descrevendo Deus marchando contra a assembleia e denunciando os deuses como regentes impróprios. Talvez inclua a confissão de um ex-adorador dos deuses cananeus que viera a perceber a impotência deles em comparação ao Deus de Israel (cf. v. 6,7). Uma interpretação mais tradicional entende que os regentes são reis humanos.
ISRAEL Aposição e obrigações de Israel como o reino vassalo do Senhor. Embora seja Rei sobre a ordem natural e o mundo das nações, Deus escolheu uma nação, Israel, para ser o seu exlusivo povo do concerto. Israel se tornou a “herança” (nahalah; cf. 33.12; 78.62,71; 94.5,14; 106.5,40) de Deus e o seu “tesouro peculiar” ( cf. 135.4). Essas duas palavras são usadas em Deuteronômio como termos técnicos que indicam o estado especial de Israel como reino vassalo de Deus (Dt 4.20; 7.6; 9.26,29; 14.2; 26.18). Em sentido único, o Senhor é o “Deus de Jacó” (46.7-11). Como nação do Senhor, os israelitas receberam a lei divina (147.19), a qual tinham de amar e obedecer (103.18; 105.45; 111.10). A exigência mais básica da lei era a lealdade absoluta ao Senhor. O povo de Deus tinha de colocar a fé somente nEle (37.3,5; 44.4-8; 62.8; 115.9-11) e rejeitar os deuses das nações (40.4; 81.9). Também não tinha de confiar na própria força ou em alianças estrangeiras (20.7; 33.16,17; 118.8,9; 146.3).
O autor do Salmo 119 exemplifica uma atitude para com a lei mosaica que era a ideal para todo o Israel (cf. também 19.7-11). Nesta oração longa, o salmista empregou uma variedade de expressões e metáforas para descrever a devoção aos mandamentos de Deus. Afirmou inúmeras vezes o grande amor pela lei (w. 47,48,97,113,119,127,140,163,167) e declarou a obediência fiel a ela (w. 17,44,55-57,60,67,69,88,100,101,106,112,115,129,134,145,146,16 6-168). Escolheu a lei do Senhor (w. 173), lembrou-se dela (v. 52), almejou-a (w. 20,40,174), buscou-a (w. 45,94), agarrou-a (v. 31), meditou nela (w. 11 ,15,23,27,48,78,95,97,99,148), deliciou-se e alegrou-se nela (w. 14, 16, 24, 47, 70, 77, 92, 111, 143,174), correu por ela (v. 32), falou dela (v. 46), achou consolo nela (v. 52), esperou nela (w.74,81,147) e temeu-a (v. 120). No lado negativo, não se esqueceu da lei do Senhor (w. 61, 93, 109, 141, 153,176), não a abandonou (v. 87) ou afastou-se dela (w. 102, 110,157). Como ato de louvor, ele levantava as mãos e agradecia a Deus sete vezes ao dia pela lei (119.48,164), que era uma luz para guiá-lo pelo caminho traiçoeiro da vida (v. 105). Para o salmista, a lei de Deus era mais valiosa do que as riquezas materiais (w. 72,127) e mais satisfatória que o mel (v. 103). A presença de Deus com o povo do concerto.
Como Senhor do concerto de Israel, Deus vivia entre o seu povo. Nos dias de Moisés, Ele os guiou e os protegeu com uma coluna de nuvem e uma coluna de fogo (78.14; 105.39). Mais tarde, habitava no Tabernáculo em Siló (78.60) e subsequentemente escolheu o Templo em Jerusalém como santuário permanente (78.68, 69; 87.1,2; 132.13,14). Muitos salmos, especialmente os cânticos de Sião (46; 48; 76; 84; 87; 122), exaltam Jerusalém como a residência do Senhor. Safom, situado ao norte de Israel, era a montanha sagrada dos cananeus, de onde o seu supremo deus El supostamente reinava. Porém, Sião era o verdadeiro “Safom”, pois era aqui que o Senhor Deus de Israel, o “Grande Rei” do universo, vivia e reinava (48.2). Como capital do reino universal de Deus, Sião desfrutava da proteção e bênçãos divinas. A presença de Deus na cidade a tornava imune das nações furiosas fora dos muros (46.1-11). Quando atacavam a cidade, eram rapidamente destruídas pelo poder devastador de Deus (48.3-8; 76.3-6). O monte Sião permaneceria para sempre, sem se abalar por causa dos seus inimigos (125.1). Deus provia a subsistência dos residentes da cidade, levando-os a cantar com alegria (132.15,16). As suas bênçãos abundantes eram como correntes vivificantes que fluem pela cidade (46.5; cf. 36.8). Subsequentemente até as nações pagãs seriam forçadas a reconhecer a grandeza de Sião e a posição privilegiada dos seus habitantes (87.3-7).
Sião era o foco da antiga religião e fé israelita, tanto antes quanto depois do exílio. O povo de Deus, especialmente os peregrinos religiosos que chegavam à cidade (84.5-7), encontravam consolo e encanto nas suas estruturas físicas (48.12,13; 84.1; 122.3), porque eram lembranças tangíveis da presença protetora de Deus. O Salmo 84 exalta o Templo em termos particularmente ardentes, romantizando-o como lugar de segurança para os passarinhos e seus filhotes (v.3). Na sua alegria, o autor clamou: “Vale mais um dia nos teus átrios do que, em outra parte, mil. Preferiria estar à porta da Casa do meu Deus, a habitar nas tendas da impiedade” (84.10). Todos que amavam Jerusalém tinham de orar pelo bem-estar e prosperidade contínuos da cidade (122.6-9). Até quando foram levados cativos à Babilônia e os seus captores pediram zombeteiramente que cantassem uma das canções de Sião, os exilados atemorizados continuaram prestando lealdade à cidade (137.1-6). Escrevendo depois da queda de Jerusalém, o autor do Salmo 102 orou pela restauração de Sião e previu um dia em que o ideal de Sião se cumpriria (w. 13-22). Naqueles dias, as nações e seus governantes temeriam ao Senhor (v. 15) e se reuniriam em Jerusalém para adorar o seu nome (w. 21,22). Claro que a menção do exílio e da queda de Jerusalém nos lembra que o ideal hínico de Sião como cidade de Deus estava em nítido contraste com a realidade histórica da subversão violenta e ruína total da cidade. De acordo com os Salmos examinados acima, Sião, como residência permanente de Deus (cf. SI 132.14), era imune aos ataques das nações.
Os outros Salmos descrevem em detalhes vividos a destruição da cidade pelas mãos de exércitos pagãos. O autor do Salmo 74 lamentou que os soldados babilônios entraram no Templo e o despedaçaram com machados antes de queimá-lo até aos alicerces (74.1-11, esp. w.4-8). Os que celebravam a presença protetora de Deus em Sião eram meros pensadores levados ao extremo do ridículo por expectativas irreais? Não denunciou Jeremias os cidadãos de Jerusalém por colocarem falsas esperanças nas defesas da cidade e nos pátios do Templo (Jr 7.4; 8.19; 21.13)? Para solucionar esta tensão, temos de reconhecer que os cânticos de Sião, com a sua linguagem extravagante e ponto de vista otimista, não são garantias proféticas ou promessas incondicionais, mas são expressões de um ideal que só foi parcialmente realizado no período pré-exílico. O Sião cantado nas canções é o que Jerusalém deveria e poderia ter sido caso seus líderes e cidadãos tivessem permanecidos leais ao Deus que habitava no meio deles. A libertação milagrosa de Jerusalém dos assírios em 701 a.C. proporcionou um vislumbre do que Deus podia e queria fazer pela cidade com respeito ao arrependimento genuíno e fé do povo (Is 36;37). A confiança de Ezequias no Senhor naquele momento foi uma exceção rara na história de Israel.
A absoluta falta de fé mostrada em ocasião anterior pelo seu pai Acaz (Is 7) era a norma entre o povo de Deus. A desobediência obstinada do povo forçou o Senhor a retirar a sua presença protetora da cidade pervertida, deixando-a aberta aos invasores inimigos e à destruição (cf. Ez 10; 11). Naqueles dias, o ideal de Sião sofreu um retrocesso sério. Os autores dos cânticos de Sião não deveriam ser ridicularizados como sonhadores ou ser associados com os rebeldes idólatras e injustos, que transformaram o ideal de Sião em falsa garantia de proteção divina e lançaram a crítica dos profetas sobre eles. Antes, devem ser admirados como seguidores leais do Senhor que se deliciaram na realidade da presença divina na Jerusalém pré-exílica e que, pela fé, antegozaram a realização do pleno potencial que propiciava. Embora escolhessem focalizar no ideal, em vez dos pré-requisitos morais-éticos para a sua realização, com certeza não negligenciaram ou repudiaram estes últimos (cf. 84.11b,12). Um dia, o ideal que almejaram e até em pequena medida haviam experimentado, se materializará.
Os mesmos profetas que também anunciaram a queda da antiga Jerusalém esperavam o dia em que Deus purificaria e restabeleceria Sião e a tornaria novamente o lugar da sua habitação. Naquele tempo, a cidade e seus habitantes receberão reconhecimento universal como a “cidade de Deus” (cf. 87.3-7). Por isso, o ideal de Sião continuou inspirando os israelitas, mesmo quando eles eram confrontados pelas realidades do julgamento de Deus (cf. 102.13-22).15 O presente de Deus de um mediador para o povo do concerto. Além de dar ao povo do concerto a sua presença protetora, Deus lhes deu o rei davídico para servir de mediador entre Ele e a nação. Tirou Davi do apascentamento de ovelhas e o estabeleceu para “apascentar a Jacó, seu povo” (78.70-72; cf. 89.20), responsável por guiá-los em justiça e assegurar a paz e a justiça na terra. Deus estabeleceu um concerto com o seu rei ungido, que elevou Davi e seus descendentes a uma posição especial diante dEle (2 Sm 7). O rei davídico desfrutava do status de “Filho” de Deus (2.7) e “primogênito” de Deus (89.26,27).16 Como vice-regente do Senhor sobre Israel, ele se assentou, por assim dizer, à mão direita de Deus (110.1, entretanto, ver análise deste salmo mais adiante) e até foi tratado por “Deus” (45.6).17 Os estudiosos propõem vários paralelos ao fenômeno em Salmos 45.6 (um rei ou oficial ser tratado ou chamado “Deus”).
Em Êxodo 4.16; 7.1, Moisés, como representante divino de Arão e faraó, é chamado “Deus”, mas o uso figurativo do título está claramente delineado no contexto (por conseguinte, a tradução “como Deus”, NYI). Certos estudiosos entendem que os juízes humanos são o referente de ’elohim em Êx 21.6, 22.8,9,28 e 1 Sm 2.25, mas não há razão para não entendermos que Deus seja o referente direto nestes textos. Em Salmos 82.1,6, os “deuses” tratados são reis humanos que entretêm ilusões de deidade para si mesmos e são, portanto, adequadamente (e sarcasticamente!) chamados seres divinos (ver análise ainda neste capítulo). Talvez o paralelo mais estreito em Salmos 45.6 seja Isaías 9.6, onde um dos títulos do rei guerreiro é “Deus Forte” (’el gibbor). Ver análise de Isaías 9.6 9 (no capítulo 8, em Uma teologia de Isaías). O pano de fundo para o concerto davídico e a imagem de filiação associado com ele é o concerto de concessão do antigo Oriente Próximo, por meio do qual um rei recompensava um servo fiel, elevando-o à posição de “filiação” e concedendo-lhe presentes especiais, normalmente relacionados com a terra e a dinastia.
Ao contrário do tratado condicional entre suserano e vassalo no qual foi moldado o concerto mosaico, o concerto de concessão era incondicional e o recebedor não podia ter seus direitos perdidos. Por conseguinte, as promessas de Deus a Davi relacionadas ao concerto estavam garantidas por juramento divino irrevogável (89.3,28-37; 132.11). Lógico que havia obrigações ligadas ao concerto. Cada rei era responsável por obedecer à lei de Deus (132.12). Caso falhasse neste aspecto, ele seria disciplinado severamente e perderia a participação plena nos benefícios da promessa de Deus (89.30-32). Entretanto, mesmo sob essas circunstâncias, Deus não revogaria a promessa feita à casa de Davi (w. 33,34). A linhagem davídica continuaria e os benefícios ligados ao concerto permaneceriam disponíveis aos que se mantivessem fiéis às exigências de Deus. O juramento solene de Deus a Davi era tão certo quanto à existência contínua do sol e da lua, que nunca deixa de aparecer regularmente no céu (89.35-37). Deus prometeu ao seu rei escolhido uma dinastia permanente, vitória sobre os inimigos e domínio universal.
A promessa central do concerto era de dinastia perpétua. O Senhor declarou a Davi: “A tua descendência estabelecerei para sempre e edificarei o teu trono de geração em geração” (89.4). Entretanto, os reis davídicos habitavam em um mundo hostil, onde inimigos internos buscavam usurpar-lhes a posição e os reis estrangeiros lhes ameaçavam o reino. O Senhor prometeu fortalecer o rei, capacitando-o a vencer os supostos opressores e inimigos (20.6; 21.8-12; 63.9-11; 89.21-23; 132.18). Em Salmos 18, Davi descreveu em detalhes como Deus de modo sobrenatural lhe deu poder para a batalha (18.29,32-35; cf. 144.1) e o capacitou a vencer os inimigos (18.36-42). Como protetor, o Senhor era para ele um rochedo, um lugar forte, um escudo e o chifre de boi selvagem (18.2, 30,31; cf. 144.2). Estupefatas pela grandeza de Davi e o seu Deus, as nações se submetiam de boa vontade à sua autoridade (18.43-45), de acordo com a promessa de Deus relacionada ao concerto de dar ao seu ungido o domínio sobre a terra inteira (2.8; 72.8-11; 89.25). O sucesso do rei na batalha era essencial para o bem-estar da nação. E o que vemos claramente no Salmo 144, que registra a oração do rei pela intervenção de Deus a seu favor (w. 1-11, esp. w. 5 a 8) e descreve as consequências nacionais de uma resposta positiva (w. 144.12-15). O rei pediu a Deus que descesse do céu em todo o seu esplendor e o livrasse dos exércitos inimigos que surgiram contra ele como “muitas águas”.
Quando a segurança da nação estivesse garantida por vitória, haveria sinais de prosperidade e fertilidade em todos os lugares, incluindo jovens fortes, jovens bonitas, celeiros cheios de comida e campos abundantes de rebanhos e manadas. Os Salmos régios esboçam claramente as obrigações e responsabilidades essenciais do rei davídico. Como comentado acima, a sua responsabilidade mais básica era obedecer à lei de Deus (89.30,31; 132.12). Mais especificamente, o rei tinha de promover a retidão e a justiça na terra (72.1) por meio de exemplo pessoal e ação. E o que vemos claramente no Salmo 101, que é a confissão da lealdade do rei a Deus (cf. também 18.20-24). O rei declarou: “Portar-me-ei com inteligência no caminho reto. [...] Andarei em minha casa com um coração sincero. Não porei coisa má diante dos meus olhos” (101.2,3a). Também jurou escolher para a sua corte real homens fiéis e tementes a Deus, em vez de optar pelos caluniadores enganosos (w. 3b-7), e fazer todo esforço para eliminar os homens maus da terra (v. 8). O Salmo 72 descreve o rei ideal como aquele que ativamente promove a justiça na terra defendendo a causa dos aflitos, fracos e necessitados e exterminando aqueles que os oprimem (72.2,4,12-14). Era por este tipo de rei que a nação teria paz, prosperidade e prestígio internacional (cf. w. 3,5-11,15-17). O cumprimento messiânico do ideal davídico.
Como com o ideal de Sião já analisado, os Salmos régios descrevem que o ideal de um rei davídico justo e temente a Deus nunca foi completamente atingido no antigo Israel. Salomão dominava sobre um reino vasto, mas a introdução de práticas religiosas estrangeiras contribuiu para a sua queda. Quando o tolo filho Roboão buscou intensificar o tratamento opressivo que o seu pai dava a força trabalhista do norte, o reino foi permanentemente dividido, com o rei davídico exercendo autoridade somente sobre um remanescente sulista da nação. Embora alguns reis exibissem características piedosas, o ideal de um rei justo que trouxesse paz e prosperidade duradoura para a nação ficou só nisso, um ideal nunca realizado. Quando Deus julgou a nação por suas ações rebeldes, os reis davídicos até experimentaram humilhação.
O autor do Salmo 89, depois de lembrar Deus das suas antigas promessas feitas à casa de Davi (cf. w. 1-37), lamentou a catástrofe que se abatera sobre a dinastia dos seus dias (w. 38-51). Observou que Deus na sua ira rejeitara e abandonara o seu rei ungido e que renunciara o concerto. A coroa do rei jazia no pó, o palácio estava em ruínas e o rei era objeto de desprezo. O Senhor removera o seu apoio do rei e permitira que os inimigos o derrotassem e escarnecessem dele. Em agonia, o salmista perguntou: “Até quando, Senhor? Esconder-te-ás para sempre? Arderá a tua ira como fogo? Senhor, onde estão as tuas antigas benignidades, que juraste a Davi pela tua verdade?” (w.46,49). Esse quadro de vergonha e ruína está em nítido contraste com o retrato bonito e real pintado no Salmo 72.
Embora o exílio desse a impressão de escapar do golpe fatal ao ideal davídico, as palavras dos profetas continuaram ecoando pelas ruínas de Jerusalém. Antes do exílio, Isaías, Miqueias, Jeremias e outros anunciaram a queda do trono davídico. Esperavam também o dia depois do julgamento, quando Deus levantaria um rei ideal e cumpriria as promessas feitas a Davi de domínio eterno e universal. No período pós-exílico, Ageu e Zacarias reavivaram esta esperança ligando as promessas davídicas à pessoa de Zorobabel, o governador de Judá sob o Império Persa e um descendente de Davi. Subsequentemente Deus levantou o “Ungido ou Messias. Jesus Cristo, o incomparável filho de Davi, veio como Messias de Israel, mas foi rejeitado e crucificado. Um dia, porém, Ele voltará à terra para estabelecer o reino previsto pelos profetas. Naqueles dias, o ideal davídico dos salmos régios se tornará realidade quando Jesus reinar “de mar a mar” e trouxer bênçãos para todas as nações (72.8,17). Porque o ideal davídico retratado nos Salmos régios foi completa e cabalmente cumprido em Jesus, estes salmos são classificados como Salmos messiânicos. O título é apropriado, mas necessita de qualificação.
Os Salmos régios, por sua natureza literária, não são inerentemente proféticos e não deveríamos entender que são predições diretas do reinado messiânico de Jesus. Como já observado, expressam um ideal que, embora ligado com renovada esperança a muitos reis davídicos históricos na ocasião da sua ascensão ao trono, foi totalmente realizado em Jesus e por Ele. Por si só, devemos entender estes Salmos como messiânicos em sentido indireto, em contraste com as predições messiânicas da literatura profética que, embora também fundamentadas no concerto davídico ideal, podem ser classificadas como diretamente messiânicas com base no gênero literário no qual aparecem. Um exame mais minucioso em muitos dos Salmos régios apóia esta conclusão em que os detalhes dos salmos espelham mais logicamente o fundo histórico do antigo Israel, e não o futuro reinado de Cristo. Ao mesmo tempo, o ideal expresso como um todo no Salmo se realiza em Jesus, e não em um mero rei humano. Por exemplo, o Salmo 2 espelha o período do império davídico-salomônico em que muitas nações vassalas circunvizinhas devem ter buscado libertar-se do rei israelita. O Salmo começa com a descrição do desejo de as nações se rebelarem contra o Senhor e o seu ungido (2.1-3). Os versículos 4 a 6 dão a resposta do Senhor. Ele ri zombeteiramente e lembra aos reis que Ele instalou o seu rei em Sião.
O rei fala nos versículos 7 a 9, recordando o decreto do Senhor por meio do qual ele foi elevado à posição de filiação e recebeu domínio universal. Por fim, os reis são advertidos a exercer sabedoria, submetendo-se ao Senhor e ao seu rei antes de serem eliminados pelo julgamento divino (w. 10-12). Talvez o Salmo fosse usado quando os representantes das nações súditas fossem levados a Jerusalém para prestar lealdade e pagar tributo. A repetição do decreto de Deus teria tornado adequado o Salmo também para cerimônias de coroação. Com a o decorrer do tempo e o enfraquecimento da glória do império davídico, houve pouca correspondência entre o ideal do Salmo de domínio universal e as realidades políticas do mundo de Israel. Israel teve de esperar um rei futuro por meio de quem o ideal seria cumprido.
No progresso da história e revelação, Jesus emergiu como esse rei (Ap 9.15 cita SI 2.9 descrevendo a descida de Jesus dos céus para destruir os inimigos). Reconhecendo Jesus como o Messias, o apóstolo Pedro viu a sua rejeição pelos reis dos seus dias como uma manifestação da rebeldia descrita no Salmo 2 (cf. At 4.25-28 que cita o SI 2.1,2). Outros entenderam que as palavras do versículo 7 são especialmente aplicáveis ao Cristo ressuscitado e ascendido que está assentado à mão direita do Pai (At 13.33; Hb 1.5; 5.5). O Salmo 45 é outro exemplo de Salmo régio que espelha a situação histórica do antigo Israel, mas que se aplica a Cristo, pois é por meio dEle que se cumprem plenamente os aspectos primários do seu retrato idealista do rei davídico. Ele foi escrito para o rei (cf. v. 1) na ocasião de um casamento da realeza. Os versículos 2 a 7 elogiam o rei como “o mais formoso dos filhos dos homens” (ARA), que vence os exércitos inimigos pela força militar e estabelece justiça na terra. Os versículos 8 a 15 enfatizam o rei e a sua noiva, ao passo que a conclusão (w. 16,17) prometem ao rei uma dinastia duradoura e fama permanente. Neste Salmo, vemos o rei davídico no seu melhor momento. É um guerreiro bonito e robusto imbuído de justiça e certo de ter uma dinastia permanente na ocasião do casamento com uma linda princesa.
O eventual fim da dinastia davídica ameaçava reduzir o Salmo ao estado de uma relíquia irrelevante, embora romântica, do passado distante. Mas por meio de Cristo se cumprirá o seu retrato do rei ideal. O autor de Hebreus aplicou as palavras dos versículos 6 e 7 a Jesus (Hb 1.8,9). Desta forma, ele utilizou a passagem que mais facilmente pertence a Cristo, isto é, a porção do Salmo que lida com o status especial e caráter justo do rei. Ao mesmo tempo, o Novo Testamento evita traçar qualquer conexão alegórica entre o antigo casamento da realeza e a relação de Cristo com a igreja. O Salmo 72 é outro Salmo régio indiretamente messiânico. Ele começa e termina com orações (w. 1,15-17) oferecidas em prol do rei (talvez Salomão ou o seu filho, cf. o título). Os versículos intervenientes descrevem as condições que prevalecerão no reino, caso o Senhor responda positivamente a estas petições de bênçãos.21 O retrato idealista do rei como aquele que estabelece justiça, paz e prosperidade no seu reino e alcança fama duradoura tem notáveis paralelos nas inscrições semíticas ocidentais relacionadas a reis datado de princípios do primeiro milênio a.C.
Certas características da descrição, como a extensão geográfica do reino (v.8) e as referências a visitas e tributos vindo de terras distantes, inclusive de Sabá (w. 10,11,15), espelham a era salomônica (cf. 1 Rs 4.21; 10.1-15,23-25). O ideal expresso no Salmo nunca foi totalmente realizado na história de Israel, nem mesmo durante o reinado de Salomão. Podemos rotular o Salmo de messiânico, porque somente durante o reinado milenar de Cristo é que Israel e as nações desfrutarão de paz e prosperidade para as quais o autor do Salmo almejou. Certos estudiosos rotulam o Salmo 110 de régio indiretamente messiânico, mas neste caso a classificação é mais incerta por causa do modo em que é utilizado no Novo Testamento. Para avaliarmos a complexidade do problema precisamos examinar o conteúdo do Salmo e seu uso no Novo Testamento. O Salmo 110 começa com um decreto formal, falado pelo Senhor (que é tradução de yhwh, “Jeová”) ao “Senhor” (’adorí) do salmista, que é claramente uma personagem real (cf. “cetro da tua fortaleza desde Sião” e “domina”, v.2). Nem o autor nem o “Senhor” é identificado precisamente. Se entendermos que a frase ledawid no título indica autoria (“Salmo de Davi”), então o “Senhor” de Davi seria alguma outra personagem real a quem ele está subordinado.
Se considerarmos o título no sentido de “para Davi” ou “relacionado com Davi”, então o próprio Davi seria o “Senhor” citado e o salmista seria um dos súditos de Davi, talvez um membro da corte. Seja como for, o salmista observou que o Senhor Jeová concedeu ao seu “Senhor”, o rei, uma posição privilegiada à mão direita divina e prometeu subjugar os inimigos do rei (v.l). Nos versículos 2 e 3, o salmista fala com o seu “Senhor”. Ele reiterou o conteúdo do oráculo precedente e previu o rei ser sustentado pelos súditos ou tropas (não está claro o significado preciso do v.3). O versículo 4 informa outro decreto divino (cf. v.l) por meio do qual Jeová eleva o “Senhor” do salmista ao status de rei-sacerdote configurado de acordo com Melquisedeque. O versículo 5 a pode estar endereçado a Deus (cf. “à tua direita” com “à minha mão direita” no v.l), em cujo caso os versículos 5b a 7 descrevem as vitórias do rei sobre os seus inimigos e o sustento na batalha. Outra possibilidade é que o rei é endereçado no versículo 5a e que “o Senhor” (adonay) é Jeová (yhwb). Neste caso, os versículos 5b e 6 descrevem as ações de Deus e não as do rei.
A menos que o versículo 7 seja antropomorfo, descreve os efeitos revivificantes que a intervenção de Deus produz para o rei. Jesus, Pedro e o autor de Hebreus utilizaram o Salmo 110. Em um debate com os fariseus, Jesus, presumindo que Davi falou as palavras do versículo 1 sobre o seu Deus, o Messias, perguntou para os oponentes como o Messias poderia tanto ser filho quanto Senhor de Davi (Mt 22.41-45; Mc 12.35-38; Lc 20.41-44). Entendendo o linguajar do versículo 1 em sentido literal, Pedro concluiu que Davi não poderia ser o endereçado, visto que ele não ascendeu aos céus e assentou-se à mão direita de Deus. Pedro presumiu, como Jesus, que Davi falou estas palavras sobre o Messias e concluiu que Jesus é “Senhor e Cristo” (At 2.34-36). O autor de Hebreus entendeu que Jesus era o recebedor de ambos os decretos registrados no Salmo 110 (Hb 1.13; 5.6-10; 6.20; 7.11- 22) e desenvolveu uma teologia elaborada do sacerdócio de Cristo com base no segundo oráculo. Em suma, o Novo Testamento dá como certo que o Messias Jesus é pelo menos o referente último de “meu Senhor” em Salmos 110.1 e o recebedor dos oráculos registrados em Salmos 110.1,4. Jesus e Pedro entenderam que Davi era pelo menos o orador das palavras em Salmos 110.1, se não o autor original.
Levando em conta a evidência do Novo Testamento, concluiríamos facilmente e talvez corretamente que o Salmo 110 é um Salmo exclusivamente régio e profético que contém uma predição direta do reinado e ministério do Messias proferida pelo próprio Davi. Para sermos justos, temos de reconhecer que esta não é a única explanação que satisfaz os dados bíblicos. Outra possibilidade é que o Salmo é indiretamente messiânico como os outros acima examinados. Davi pode ter escrito o Salmo para a coroação de Salomão (ou aplicado a Salomão um Salmo originalmente escrito para ele23) para autorizar a sucessão (que melhor modo de fazer isto do que chamar o herdeiro escolhido de seu “Senhor”?) e ligar as promessas do concerto ao filho (cf. 1 Cr 28;29 para inteirar-se da narrativa histórica da sucessão de Salomão). Claro que, apesar da grandeza de Salomão, o ideal retratado no SI não se materializou completa ou permanentemente na história de Israel. Porque Jesus é aquele em quem se cumpriu (e aquele que o rei histórico idealizado pressagiava), ele poderia declarar que Davi falou dele, e Pedro e o autor de Hebreus poderiam entender que os oráculos do Salmo 110 se dirigiam a Jesus.
Se interpretarmos que o Salmo 110 é indiretamente messiânico, então fica claro que Pedro e o autor de Hebreus, aplicando os dois oráculos do Salmo a Jesus, deram à linguagem um sentido elevado ou literal (o autor de Hebreus faz o mesmo em SI 45.6; ver nota 19). Visto no plano de fundo das promessas e ideal davídicos, o mandamento no primeiro oráculo (“Assenta-te à minha mão direita”, 110.1) é uma expressão figurativa que enfatiza a eleição e posição especial do rei em relação a Deus. Pedro e o autor de Hebreus entenderam um cumprimento mais literal no caso de Jesus que ascendeu aos céus e tomou lugar à mão direita do Pai (At 2.34,35; Hb 1.3; 8.1; 10.12,13; 12.2). No contexto da antiga realeza davídica, o segundo oráculo (110.4) se refere ao status dual do reino davídico de líder civil e religioso, comparando-o ao de Melquisedeque, o antigo rei-sacerdote de Salém (Gn 14.18). Embora certos deveres sacerdotais estivessem estritamente limitados aos levitas (2 Cr 26.16-18), o reino davídico desatendeu muitos aspectos das instituições religiosas e sistema de adoração de Israel e, como mediador entre Deus e o povo, poderia ser chamado “sacerdote”.
No antigo contexto israelita, as palavras “Tu és um sacerdote eterno” (110.4, grifo meu) eram compreendidas como hipérbole ou como promessa de detenção de status sacerdotal para a dinastia do rei e não como promessa de vida eterna literal para o rei como indivíduo.2’ O autor de Hebreus elevou o linguajar a outro nível. Como o sacerdote final e ideal régio (ou “melquesidequiano”), Jesus não exerce autoridade apenas sobre os levitas, mas, antes, os substitui e torna obsoleta a velha ordem (Hb 7; 10). Estabelecendo o caso, o autor de Hebreus enfatizou que Jesus é literalmente um sacerdote eterno (Hb 7.3,16,17,24,25), em contraste com os levitas, que chegavam ao ofício por sucessão ancestral (Hb 7.16,23).
AS FUNÇÕES RÉGIAS DE DEUS Preservar a ordem e a justiça era responsabilidade principal dos reis no antigo mundo do Oriente Próximo. Os nomes régios egípcios da décima segunda dinastia contêm os elementos ma’at, “justiça”, ou ma‘a, “justo”. Os reis mesopotâmios se referiam à justiça nas suas fórmulas de ano régio. Por exemplo, o segundo ano de Hamurábi era conhecido por “o ano em que ele estabeleceu a justiça na terra”. Em benefício da justiça, proclamava-se uma liberação de dívidas. Os reis também eram responsáveis em ajudar os elementos fracos e destituídos da sociedade, entre eles as viúvas, os órfãos e os pobres. Richard Patterson escreve: “Existem nas estipulações legais e na literatura sapiencial babilônicas a ordem para cuidar das viúvas, órfãos e pobres, visto que se esperava que o rei ideal, como representante vivo do deus da justiça, o deus sol Samas, cuidasse dos elementos oprimidos e necessitados da sociedade”.
Em um texto de Ugarite, Yassib denunciou o rei Keret da seguinte maneira: “Tu não julgas a causa das viúvas, não processas o caso dos inoportunos. Tu não banes os extorsivos dos pobres, não alimentas os órfãos diante de ti (nem) as viúvas atrás de ti”30 No papel de guardião da justiça, o rei era considerado pastor do povo.31 Por exemplo, o assírio Tukulti-ninurta I declarou: “Quando Assur, meu senhor, fielmente me escolheu para ser seu adorador, deu-me o cetro para o ofício de pastor, (presentou)-me com o cajado para o ofício de pastor... (Naquele tempo), pus meu pé no pescoço das terras (e) pastoreei o povo de extensas pústulas como animais. Ele (Ashur) me ensinou a tomar decisões sábias”. Deus como Juiz universal. De modo típico do antigo Oriente Próximo, muitos hinos no saltério descrevem o Senhor como um Juiz régio que preserva a ordem e executa a justiça ao longo do reino universal. Ama a retidão e a justiça (33.5; 99.4), que formam “a base do seu trono” (97.2). O Senhor executa justiça em favor dos necessitados e/ou oprimidos, entre eles os pobres (113.7), as mulheres estéreis (v. 9), os cativos famintos presos em calabouços escuros (146.7,8), os que moram como estrangeiros em terras estranhas, os órfãos e as viúvas (v. 146.9). Infelizmente, a realidade conflita com essas afirmações hínicas da justiça de Deus. Encontramos evidências da preocupação de Deus com os necessitados ao longo de toda a história da humanidade, mas os exemplos de injustiça fragrante e opressão cruel são mais abundantes.
Como harmonizar a realidade com as afirmações dos salmistas? Será que os escritores dos hinos antigos eram culpados de generalizar Deus de forma exagerada, enquanto fechavam os olhos e os ouvidos à miséria do mundo ao redor? Não há solução fácil ou completamente satisfatória para este problema. Entretanto, temos de considerar pelo menos três fatores nesta análise. Primeiro, apesar do tom universal dos hinos (cf. 113.4,5; 146.6), eles derivam de um contexto israelita em que o envolvimento de Deus na vida do povo do concerto era exclusivamente pessoal e revelador, colocando esta comunidade à parte do mundo em geral. Sob este aspecto, é digno de nota afirmar que dois dos hinos são endereçados aos “servos do Senhor” (113.1) e a Sião (146.10), que repetidamente experimentara a ajuda divina (v. 5). O tema da mulher estéril fornece boa ilustração de como a experiência e, portanto, a perspectiva de Israel podiam diferir das da humanidade em geral.
Muitas mulheres estéreis jamais tiveram a alegria do parto, mas na história do povo do concerto de Deus as mulheres estéreis eram os instrumentos do Senhor no cumprimento das suas promessas e libertação do povo. Deus miraculosamente capacitou que a estéril Sara (Gn 11.30) tivesse um filho, mesmo depois, segundo ela própria disse, “de haver envelhecido” (Gn 18.12). Outras mulheres estéreis deram à luz importantes personagens na história de Israel: Rebeca (Gn 25.21), Raquel (Gn 29.31), a mãe de Sansão (Jz 13.2,3) e Ana (1 Sm 1;2). Com esta tradição em vista, não admira que o autor do Salmo 113 lembrasse os servos do Senhor que Deus “faz com que a mulher estéril habite em família e seja alegre mãe de filhos” (v. 9). Vários outros elementos hínicos também espelham a experiência dos israelitas. Deus os libertou da prisão no Egito (cf. 146.7,8) e lhes deu comida no deserto (v. 7). Pela lei mosaica, ele expressou a preocupação pelos pobres, estrangeiros, viúvas e órfãos (113.7; 146.9; cf. Êx 22.21-23; 23.6,11; Lv 19.33,34; Dt 15.7-11; 24.14). Segundo, temos de reconhecer o caráter literário destes hinos. Não são narrativas históricas, mas canções compostas para celebrar a realeza de Deus em termos grandemente típicos do antigo Oriente Próximo.
Neste gênero, caracterizado como está pela linguagem estereotípica e hiperbólica, não podemos esperar uma correspondência exata com a realidade em todos os detalhes. Os salmistas estavam convencidos de que o seu Deus é o rei justo do mundo, porque lhes dera adequadas evidências factuais e históricas desse fato. As afirmações não precisam insinuar que eles criam que a justiça se realizava em cada caso em escala mundial. Terceiro, os Salmos — e a Bíblia como um todo — mostram que Deus delegou a tarefa de manter a justiça aos regentes humanos que, em sua maioria, não implementaram os desejos divinos e, por conseguinte, estão destinados a julgamento. O Salmo 82 trata diretamente deste tema. Este Salmo denuncia um grupo de regentes injustos por mostrar favoritismo pelos iníquos (v. 2) e não fazer caso dos direitos dos pobres e necessitados (w. 3,4). Por não promoverem a justiça, “todos os fundamentos da terra vacilam” (v. 5) e estes regentes, apesar da posição elevada, morrerão (w. 6,7). O Salmo conclui com uma oração pedindo que Deus pessoalmente assegurasse a justiça no seu reino mundial (v. 8). A identidade precisa dos governantes tratados no Salmo 82 é tema de debate.
Certas características do Salmo dão a entender que são deuses pagãos. São citados especificamente por ’elohim, “deuses”, e a frase “congregação dos poderosos” (v. 1, ’adat ‘el, literalmente, “assembleia de Deus/El”) lembra uma assembleia divina da mitologia cananeia presidida pelo sublime deus El. Os versículos 6 e 7 também apoiam esta interpretação, visto que chamam tais regentes de “deuses”, mas depois declaram que “como homens morrereis” (“como simples homens” e “como qualquer outro governante” [NVI; grifos do autor] são termos interpretativos), insinuando talvez que não são realmente humanos. Se seguirmos esta abordagem, então o Salmo seria uma polêmica ousada contra a religião cananeia, descrevendo Deus marchando contra a assembleia e denunciando os deuses como regentes impróprios. Talvez inclua a confissão de um ex-adorador dos deuses cananeus que viera a perceber a impotência deles em comparação ao Deus de Israel (cf. v. 6,7). Uma interpretação mais tradicional entende que os regentes são reis humanos.
Os versículos 2 a 4 apoiam esta visão, pois no contexto do Antigo Testamento a responsabilidade de manter a justiça é mais naturalmente associada a reis humanos do que a deidades pagãs. Também a preposição comparativa hebraica nem sempre indica uma verdadeira comparação de objetos distintos, mas tem a força de “sob todos os aspectos”. Por conseguinte, a tradução de “como simples homens” e “como qualquer outro governante” (v. 7, NVI), embora interpretativa, é gramaticamente possível, no caso de os regentes serem entendidos como humanos. Por fim, os proponentes desta visão tentam mostrar que os juízes humanos aparecem como os referentes de elohim em várias outras passagens (cf. nota 17). A solução mais provável para o problema combina as forças destas duas visões. Os regentes são reis humanos (cf. 82.2-4) que, para efeito retórico e de acordo com a autopercepção arrogante, são tratados como se fossem membros 3 da assembleia divina conhecidos da mitologia cananeia (SI 82.1,6,7). Paralelos a este fenômeno ocorrem em Isaías 14, em que o rei da Babilônia é comparado a um deus insignificante que tentou subir a montanha de El para usurpar-lhe a autoridade, e em Ezequiel 28, onde o orgulhoso rei de Tiro é descrito em termos de querubim que tem acesso à montanha santa de Deus, mas é lançado abaixo por ser insolente.
O Salmo 82 comprova o fracasso geral dos governantes humanos em cumprir adequadamente o desejo de Deus por justiça. O salmista almeja o dia em que Deus tomará a questão nas próprias mãos (ver também o 58). A verdade é que os ditos salmos de entronização preveem, quase que em estilo profético, um tempo em que Deus virá e estabelecerá justiça na terra. Salmos 96.13 declaram que o Senhor “vem, vem a julgar a terra” (cf. 96.10; 98.9). Este advento é saudado por uma explosão de cânticos e louvores na natureza (w. 11-13; 98.7,8) e pelo reconhecimento mundial da soberania divina (w. 1-8; 98.4-6). Resumindo esta seção, os Salmos, de acordo com o ideal típico do antigo Oriente Próximo, mostram que Deus é aquEle que preserva a ordem e a justiça no mundo e defende a causa dos necessitados e oprimidos. Embora este retrato conflite com a dura realidade de um mundo povoado de homens maus e infestado com governantes injustos, é consistente com a preocupação de Deus por justiça e espelha os seus decretos e ações justos, especialmente conforme foram revelados e experimentados pelo povo do concerto.
Está chegando o dia em que Deus estabelecerá a justiça pessoalmente na terra e as descrições generalizadas, hínicas e um tanto quanto hiperbólicas do seu governo justo terão cumprimento total em escala universal. Deus como Juiz de Israel. Ter Deus como rei justo foi uma espada de dois gumes para Israel. Deus executava justiça através do povo do concerto, protegendo-o de pretensos opressores hostis. Quando Israel se rebelava contra a autoridade de Deus, ele era forçado a julgar disciplinarmente o povo. Mesmo quando o povo de Deus experimentava as justas consequências da rebelião, continuavam confiando que o Senhor os protegeria das nações zombeteiras. Ao longo da história de Israel, Deus protegeu o povo de nações hostis. O autor do Salmo 95 exortou os ouvintes: “O, vinde, adoremos e prostremo-nos! Ajoelhemos diante do Senhor que nos criou.
Porque ele é o nosso Deus, e nós, povo do seu pasto e ovelhas da sua mão” (w. 6,7; cf. 100.3). Como “pastor de Israel” (80.1), o Senhor tirou o povo da escravidão no Egito, guiou-os seguramente pelo deserto e os instalou na Terra Prometida (136.10-22). Plantou os como uma vinha na terra e capacitou-os para que se espalhassem, como os ramos de uma vinha, e enchessem a terra (80.8-11). Como bom agricultor, ergueu um muro de proteção em volta da “vinha” para que o produto estivesse protegido de passantes e animais selvagens (cf. v. 12). O Senhor cuidou incessantemente de Israel (121.4) e destruiu as nações hostis pelos próprios esquemas delas (9.5,6,15). Tendo observado o castigo justo de Deus vir sobre tais nações, o autor do Salmo 9 concluiu: “O Senhor é conhecido pelo juízo que fez; enlaçado ficou o ímpio nos seus próprios feitos” (v. 16). Muitas nações procuraram oprimir e humilhar o povo de Deus, mas em retrospecto Israel pôde declarar: “O Senhor é justo; cortou as cordas dos ímpios” (129.4). Os Salmos contêm orações nacionais pela proteção de Deus em face de ataques injustos feitos por nações inimigas.
Por exemplo, Salmos 59.5-8 fala que as nações hostis são como cães selvagens cruéis que procuraram a destruição de Israel. O salmista clamou a Deus, que é rei justo, e rogou-lhe que castigasse as nações opressivas.34 O autor do Salmo 83, depois de descrever os enredos das nações circunvizinhas (dez das quais especificamente citadas) para destruir o povo de Deus (w. 1-8), pediu ao Senhor que interviesse mais uma vez a favor de Israel de modo poderoso, exatamente como ele fizera nos dias de Gideão e Débora (w. 9-18). Enquanto muitos salmos louvam ou olham para Deus como rei e protetor justo de Israel, outros indicam que esta proteção divina era ocasionalmente suspensa por causa das ações rebeldes do povo. Quando os israelitas eram culpados de pecado, o Senhor, como regente justo, era forçado a pagá-los pelo mal que cometiam. O Salmo 78 recita os atos poderosos de Deus em favor de Israel, mas também lamenta que a nação tivesse sido “contumaz e rebelde” (v.8). Embora o povo tivesse experimentado uma libertação poderosa pelo mar Vermelho, eles reclamaram no deserto, provocando a ira de Deus contra eles (w. 9-31). As gerações subsequentes seguiram os passos pecadores dos pais, despertando a ira de Deus e fazendo-o permitir que as nações circunvizinhas conquistassem o povo (cf. esp. versículos 56 a 67).
O Salmo 106 descreve igualmente como Israel se rebelou no deserto e na Terra Prometida (w. 13-39), forçando Deus a castigá-los com vigor e logo depois entregá-los a governantes estrangeiros opressivos (w. 41,42). No Salmo 81, o próprio Senhor lamenta que Israel perdera a proteção por desobedecer-lhe a vontade: “Mas o meu povo não quis ouvir a minha voz, e Israel não me quis. Pelo que eu os entreguei aos desejos do seu coração, e andaram segundo os seus próprios conselhos. Ah! Se o meu povo me tivesse ouvido! Se Israel andasse nos meus caminhos! Em breve eu abateria os seus inimigos e voltaria a minha mão contra os seus adversários” (w. 11-14). Muitos salmistas, tendo testemunhado os efeitos do julgamento disciplinar de Deus sobre Israel, continuavam esperando que Ele defendesse e restabelecesse a nação. Quando reconheciam que Deus estivera irado com o povo do concerto, rogaram pela cessação da ira (74.1; 79.5; 80.4; 85.5) e aguardavam esperançosamente pelo perdão misericordioso (79.8; 85.2-7; 130.1-8). Lembravam Deus do antigo compromisso com Israel ligado ao concerto (74.2,12,19,20) e enfatizavam as atrocidades executadas pelas nações (74.21; 79.2,3,7,10; 137.7-9). Os inimigos profanavam o Templo (w. 3-9; 79.1), ridicularizavam o povo (79.4; 80.6) e até escarneciam do próprio Deus (w. 10,18,22,23; 79.6,10). Tais ações exigiam uma resposta do justo rei do universo.
O autor do Salmo 79 apelou pela justiça divina em termos incisivos: “Por que diriam os gentios: Onde está o seu Deus? Torne-se manifesta entre as nações, à nossa vista, a vingança do sangue derramado dos teus servos. Chegue à tua presença o gemido dos presos; segundo a grandeza do teu braço, preserva aqueles que estão sentenciados à morte. E aos nossos vizinhos, deita-lhes no regaço, setuplicadamente, a sua injúria com que te injuriaram, Senhor” (79.10-12). O autor do Salmo 137 foi tão longe quanto pronunciar uma bênção ao instrumento de vingança que o Senhor usou contra os cruéis babilônios (w. 8,9). Deus como protetor dos seus servos justos. No papel de Juíz, Deus também protegia os indivíduos justos na comunidade do concerto dos homens maus que se opunham e procuravam destruir os servos do Senhor. Este conflito entre o bem e o mal é desempenhado dramaticamente nas páginas do saltério. Muitos Salmos (conhecidos por lamentos) contêm as orações dos justos, nas quais descrevem as ameaças dos ímpios, protestam a inocência e clamam a Deus por justiça. Cânticos de ação de graças recordam a intervenção de Deus em tais situações difíceis e o louvam pela libertação. Os salmos sapienciais contrastam os estilos de vida e os destinos de justos e injustos. Na visão mundial dos salmistas, havia somente duas categorias de homens — os justos e os injustos.
Os justos exibem temor genuíno do Senhor obedecendo-lhe os mandamentos (112.1; 128.1; cf. SI 1.2; 18.20-24; 37.31). Suas palavras e ações são caracterizadas por justiça e integridade (15.2-5; 24.4; 34.12-14; 37.30; 112.5) e dão generosamente aos que estão em necessidade (37.21,26; 112.5,9). Evitam a companhia e práticas dos homens maus e irreligiosos (1.1,2; 17.3-5; 26.4,5; 31.6; 139.19- 22). Em contrapartida, os injustos são arrogantes e vivem como se Deus e a sua lei fossem inexistentes (10.2-11,13; 12.3,4; 14.1; 31.18; 36.1,2; 73.6,9,11; 75.4,5; 94.4,7; 119.155). Muitos Salmos contêm citações dos ímpios que ilustram o ateísmo prático. O ímpio pensa de si mesmo: “Deus esqueceu-se; cobriu o seu rosto e nunca verá isto. [...] Tunão inquirirás” (10.11,13). Ele pergunta: “Como o sabe Deus? Ou: Há conhecimento no Altíssimo?” (73.11) e declara com confiança: “O Senhor não o verá; nem para isso atentará o Deus de Jacó” (94.7). Confiantes de que Deus não está ativamente envolvido no mundo e que não serão considerados responsáveis pelas ações que praticam, os ímpios promovem os interesses próprios sem atenção pelo bem-estar dos outros. Não pagam as dívidas (37.21) e acumulam riquezas às custas dos outros (52.6). Usam difamação e engano para destruir e explorar os outros (5.6,9; 10.2; 12.2; 28.3; 31.18; 36.3,4; 37.7,12; 52.2-4; 73.7; 109.2) e não pensam duas vezes para recorrer à violência e matança (5.6; 10.8-10; 73.6; 94.5,6; 140.4). No mundo dos salmistas, os justos e injustos não coexistem pacificamente em prol do pluralismo. Os injustos elaboram toda a astúcia e poder no empenho de aniquilar os justos (31.13; 56.5,6; 71.10; 143-3). Imagens vividas são empregadas para descrever os seus ataques.
Os injustos são como arqueiros que esperam as vítimas desatentas de emboscada (11.2; 64.3,4) e como caçadores que armam armadilhas e laços para a presa (35.7; 38.12; 57.6; 64.5; 140.4,5; 141.9; 142.3). São comparados a touros perigosos (22.12), cães selvagens (22.16,20) e leões ferozes (10.9; 17.12; 22.13,16 [cf. Texto Massorético], 21; 57.4). Suas palavras enganosas são tão mortais quanto o veneno de uma cobra peçonhenta (58.3,4; 140.3). Porque representam ameaça mortal aos justos, os ataques dos injustos são vistos como um ataque da própria morte. No Salmo 18, Davi compara os ataques dos inimigos (w. 3,17,18) a laços e armadilhas de morte (w. 4,5; cf. 116.3). Para salvá-lo, o Senhor teve de abrir à força o inferno com um brado poderoso para tirá-lo das águas furiosas e caóticas (w. 15,16). O autor do Salmo 69 (Davi, de acordo com At 1.16,20 e Rm 11.9) comparou os inimigos (cf. v.4) às águas súbitas que tinham lhe alcançado o pescoço e ameaçavam submergi-lo (w. 1,2). Desesperado, clamou a Deus: “Tira-me do lamaçal e não me deixes atolar; seja eu livre dos que me aborrecem e das profundezas das águas. Não me leve a corrente das águas e não sorva o abismo, nem o poço [um nome para a morte e o inferno que consta nos Salmos; cf. 30.3; 88.3,4] cerre a sua boca sobre mim” (69.14,15).
Confrontado por tais inimigos hostis e aparentemente invencíveis, os justos apresentaram a sua causa a Deus. Para enfatizar a seriedade da situação e a urgência do pedido, descreveram os efeitos físicos e emocionais do ataque do inimigo em termos visuais e às vezes exagerados (6.2,3,6,7; 22.14,15; 31.9-13; 42.10; 55.4,5; 109.24; 143.4). Para deixar claro que eram merecedores da justiça de Deus, referiram-se a si mesmos como fracos, desamparados e oprimidos (10.2,9,17; 12.6; 25.16; 69.33), e compararam-se aos elementos socioeconomicamente empobrecidos, como os órfãos (10.14,18) e os pobres (35.10; 37.14; 40.17; 86.1; 109.16,22; 140.12). Apesar de serem falsamente acusados pelos inimigos (27.12; 35.11,20) e até rejeitados pelos amigos (31.11,12), os justos protestam a inocência e apelam a Deus por defesa e proteção. Por exemplo, o autor do Salmo 17, quando cercado por inimigos orgulhosos e cruéis (w. 10-12), orou: “Saia a minha sentença de diante do teu rosto; atendam os teus olhos à razão. Provaste o meu coração; visitaste-me de noite; examinaste-me e nada achaste; o que pensei, a minha boca não transgredirá. [...] pela palavra dos teus lábios me guardei das veredas do destruidor. Dirige os meus passos nos teus caminhos, para que as minhas pegadas não vacilem” (w.2-5). De maneira semelhante, o autor do Salmo 26 pediu: “Julga-me, Senhor, pois tenho andado em minha sinceridade; tenho confiado também no Senhor; não vacilarei” (v. 1). Como prova da sua afirmação, ele mostrou que rejeitara as más companhias e oferecido ao Senhor adoração genuína (w. 4-7). Para que Deus defendesse e livrasse os justos, os inimigos tinham de ser mortos. Por isso, os justos rogavam que Deus lhes vingasse os atormentadores.
O autor do Salmo 5 pediu: “Declara-os culpados, ó Deus; caiam por seus próprios conselhos; lança-os fora por causa da multidão de suas transgressões, pois se revoltaram contra ti” (5.10; cf. SI 3.7; 7.6-9; 28.4; 31.17,18; 35.26; 54.5; 58.6-8; 140.7-11). O SI 109 contém uma imprecação (ou maldição) prolongada, na qual o autor (Davi, de acordo com Atos 1.16) roga que Deus julgue os inimigos (109.6-10). Em estilo tipicamente semítico, ele orou que os inimigos fossem liquidados já no início da vida e que suas famílias fossem reduzidas à pobreza e subsequentemente extintas. Os salmistas colocavam o destino nas mãos de Deus, porque estavam convencidos de que Ele não era “um Deus que tenha prazer na iniquidade” (5.4), contudo, mais exatamente, era um “justo Deus” que prova “o coração e a mente” (7.9,11) e defende “ao órfão e ao oprimido, a fim de que o homem, que é da terra, não prossiga mais em usar da violência” (10.18; cf. 140.12). O autor do Salmo 11 fala que Deus é como o regente soberano, entronizado nos céus, que cuidadosamente prova os filhos dos homens e retribui os ímpios por suas ações violentas (11.4-6; cf. 28.5; 94.23). No Salmo 18, Davi declarou que o Senhor trata os justos e injustos de maneira apropriada (18.25,26; cf. 62.12). Os que são fiéis descobrem que o Senhor é fiel, mas os que são enganosos descobrem que Ele não se deixa enganar.
Digressão aos protestos de inocência e orações de maldição dos salmistas. Certos elementos destas orações estão, ao que parece, em conflito com outras porções da Bíblia. Os protestos de inocência dos salmistas (ver, por exemplo, 17.3; 18.20-24; 26.1) soam afirmações farisaicas de perfeição inocente e estão aparentemente em conflito com a doutrina bíblica de que todos os homens são pecadores e culpados diante de Deus [cf. Rm 3.23]. As maldições contêm várias declarações problemáticas [ver, por exemplo, 109.9-12], sobretudo quando colocadas ao lado de injunções bíblicas de abençoar os inimigos (cf. Mt 5.44; Lc 6.28; Rm 12.14; 1 Co 4.12). Será que dá de harmonizar estes aspectos das orações dos salmistas com outros ensinos bíblicos, ou temos de descartá-los como características excessivas de homens desesperados que viviam em uma era menos esclarecida? Protestando a inocência, os salmistas não estavam fazendo proposições teológicas universais (como as colocadas pelo apóstolo Paulo na carta aos Romanos).
Estavam afirmando que possuíam um grau prático e relativo de justiça, especialmente em comparação aos opressores injustos. De acordo com o Salmo 15, a justiça, como viam os escritores dos salmos, exigia falar com honestidade e não com calúnia, tratar o semelhante com justiça, menosprezar os irreligiosos, mas dar aos religiosos o respeito próprio, cumprindo a palavra e rejeitando todas as formas de ganho desonesto (15.2-5). Para o autor do Salmo 17, a justiça significava ter motivos puros, vigiar a língua e evitar as práticas do mau (w. 3-5). De acordo com o Salmo 26, levar uma vida sincera significa evitar as más companhias, oferecer ao Senhor o devido louvor e desejar estar na sua presença (w.4-8). Estes salmos deixam claro que esses que protestavam inocência não estavam tratando do tema paulino da situação espiritual da humanidade diante de Deus. Estavam afirmando que o seu estilo de vida e valores eram evidência de devoção essencial a Deus e aos seus padrões. Como tais, eram inocentes das acusações difamadoras dos inimigos e eram dignos da proteção de Deus. Para prova adicional de que os salmistas não estavam dizendo que eram impecáveis em sentido absoluto, precisamos apenas considerar os Salmos em que os justos reconheceram que foram corrompidos pelo pecado que, em alguns casos, ocasionara a situação difícil que enfrentavam.
Por exemplo, o autor do Salmo 25, quando atacado pelos inimigos ferozes (v. 19), declarou a confiança em Deus (w. 1,21), pediu que o Senhor não guardasse os pecados da juventude contra ele (v.7) e implorou perdão (w.11,18). O autor do Salmo 38, embora tenha afirmado que procurou o que é bom (v.20), confessou o seu pecado (w.3,18) junto com o pedido de ser liberto dos inimigos (w. 16,19-22). Semelhantemente, o autor do Salmo 40, ao mesmo tempo em que afirmava a devoção irresoluta ao Senhor em termos vigorosos (w. 6-10) e pedia que fosse liberto dos opressores (w. 15-17), admitiu que os seus pecados o tinham “prendido” (v. 12). O autor do Salmo 41 referiu-se tanto ao seu pecado (v.4) quanto à sua integridade (v. 12). As maldições dos salmistas contra os inimigos apresentam um desafio maior para o teólogo bíblico. Jesus ordenou que os seus seguidores abençoassem e orassem pelos que os amaldiçoassem. Pelo menos superficialmente, tal resposta é exatamente o oposto do que se encontra no saltério, onde oração após oração há o pedido para que Deus ocasione a morte dos inimigos. Talvez Jesus estivesse exigindo um novo modo de reagir aos maus-tratos, mas antes de nos precipitarmos em rejeitar ou condenar as orações imprecatórias dos salmistas, certas observações se fazem necessárias.
Primeiro, não devemos entender que os salmistas estavam expressando índole vingativa. Mais exatamente, as expressões comprovam a confiança dos salmistas no justo caráter de Deus. Os salmistas, ao encontrarem inimigos que lhes ameaçavam a reputação e a vida, recusaram tomar a questão nas próprias mãos, mas se voltaram com fé a Deus como justo Juiz e defensor. Desta forma, a resposta estava de acordo com o ensino de Moisés e de Provérbios (cf. Lv 19.18; Pv 20.22; 24.29), que por sua vez influenciou o ensino de Paulo sobre o assunto (cf. Rm 12.17,19). Os salmistas estavam tão preocupados com a reputação de Deus quanto pelo próprio bem-estar. Se Deus era realmente o justo rei do universo, então ele tinha de interceder pelos inocentes e oprimidos. Caso falhasse a este respeito, haveria razão para questionar a sua soberania e os ímpios ficariam mais complacentes e arrogantes (140.8). Isso explica por que o autor do Salmo 58, depois de pedir que Deus quebrasse os dentes dos ímpios (v.6), declarou: “O justo se alegrará quando vir a vingança; lavará os seus pés no sangue do ímpio. Então, dirá o homem: Deveras há uma recompensa para o justo; deveras há um Deus que julga na terra” (w. 10,11). De modo semelhante, o autor do Salmo 35 previu que a sua libertação e a morte dos inimigos levariam os observadores a declarar: “O Senhor, que ama a prosperidade do seu servo, seja engrandecido” (w.26,27). Segundo, os julgamentos específicos invocados a sobrevirem aos ímpios, ainda que soem indevidamente severos e indiquem um espírito vingativo, comprovam o sentimento forte de justiça dos salmistas e a sua preocupação pelo caráter de Deus.
A morte dos ímpios teve de ser terminante e adequada, de forma que os observadores ficassem impressionados com a certeza e exatidão da justiça divina. É por isso que o autor do Salmo 109 amaldiçoou os inimigos e pediu que os filhos fossem reduzidos à pobreza (w.9-12). A forma da oração e a punição desejada são apropriadas, pois o ímpio “amou a maldição” e “perseguiu o varão aflito e o necessitado, como também o quebrantado de coração” (w.16,17). Terceiro, tais apelos à justiça divina não estão limitados ao saltério ou até mesmo ao Antigo Testamento. Apocalipse 6.10 diz que as almas dos mártires estão clamando a Deus para vingar-lhes o sangue derramado. Neste mesmo livro, Deus é louvado por vingar as injustiças cometidas contra os santos (Ap 16.5,6; 19.2) e o povo é exortado a alegrar-se com o fato (Ap 18.20). Na segunda carta aos Tessalonicenses, Paulo encorajou os crentes perseguidos dizendo-lhes que Deus é justo e pagaria tribulação aos inimigos no dia do julgamento (2 Ts 1.6-9). Na segunda carta a Timóteo, o apóstolo declarou que o Senhor pagaria a Alexandre, o latoeiro, pelos males que ele lhe causara (2 Tm 4.14). O saltério dá ampla evidência de que a confiança dos salmistas na justiça de Deus não era inapropriada ou sem recompensa. Eles testemunharam que Deus lhes ouviu as orações e os livrou dos inimigos (22.24; 34.4-7,17-20; 92.10,11; 116.1-6), muitas vezes de modo dramático (18.3-19; 30.1-3; 40.1,2). Proclamaram que Ele é o salvador e protetor (18.1,2; 25.5; 27.9; 31.4; 38.22; 40.17; 54.4; 59.16; 62.6; 91.9), comparando-o a um pássaro que abriga os filhotes sob as asas (17.8; 36.7; 57.1; 91.4), a um escudo (5.12; 7.10; 18.2; 28.7) e a um rochedo ou fortaleza (18.2; 27.1; 28.1; 31.2,3; 59.16,17; 61.3; 62.7; 71.3). Protegidos das ameaças dos inimigos, os justos têm acesso à presença de Deus (SI 11.7; 15.1,5; 16.11; 23.6; 26.12; 27.6; 73.23-26; 140.13) e desfrutam das bênçãos de paz, prosperidade e vida longa (1.3; 37.11,18,19,29; 52.8; 112.2,3). Em contraste com os justos, os injustos são exterminados pelo julgamento de Deus como a palha ao sabor do vento forte (1.4; 35.5). Embora os injustos prosperem durante certo tempo (10.5,6; 52.7; 73.3-5), Deus envia destruição súbita sobre eles (64.7; 73.18-20) como fogo vindo do céu (11.6; 140.10) e secam como relva murcha (37.1,2,20). No vigor dos seus anos, eles desaparecem no inferno (31.17; 37.10,35,36; 52.5; 55.15,23; 141.7) e a sua descendência é cortada da terra (34.16; 37.28,38; 69.25; 109.13). Muitos salmos enfatizam a natureza apropriada da morte dos malfeitores. Em muitos casos, os salmistas os descrevem sendo destruídos por suas próprias maquinações e instrumentos.
Por exemplo, o autor do Salmo 7 (Davi, de acordo com o título) observou: “Cavou um poço, e o fez fundo, e caiu na cova que fez. A sua obra cairá sobre a sua cabeça; e a sua violência descerá sobre a sua mioleira” (w.15,16; cf. SI 35.7,8; 57.6; 141.9,10). De acordo com Salmos 37.15, “a sua espada lhes entrará no coração, e os seus arcos se quebrarão”. O Salmo 64 combina ironia e trocadilho para enfatizar a natureza adequada do castigo de Deus dado aos ímpios. Os ímpios destemidamente ficam à espreita do salmista inocente para atacá-lo de repente com flechas (w. 3,4). São confiantes que ninguém os descobrirá (w. 5,6). Mal sabem eles que o arqueiro divino os matará de repente com as suas flechas (v. 7). Ironicamente os que se vangloriam que ninguém os vê sofrerão humilhação pública quando os passantes sacudirem a cabeça com desprezo (v. 8). Embora os ímpios não temam o castigo, os que testemunharem a morte deles ficarão tomados de medo ao considerarem as ações justas do Senhor (SI 64.9). Algumas das declarações que falam da proteção oferecida aos justos foram tomadas como provas de que os salmistas previram a regozijadora vida após a morte na presença do Senhor e a consequente ressurreição. Por exemplo, o autor do Salmo 49, depois de contemplar o destino dos orgulhosos (w.13,14), afirmou: “Mas Deus remirá a minha alma do poder da sepultura, pois me receberá” (v. 15). Semelhantemente, o autor do Salmo 73, depois de descrever a morte dos ímpios (w. 18-20), corajosamente afirmou: “Todavia, estou de contínuo contigo; tu me seguraste pela mão direita. Guiar-me-ás com o teu conselho e, depois, me receberás em glória” (w. 23,24). Para nós que vivemos depois da ressurreição de Cristo é tentador e natural interpretar estas passagens de acordo com as grandes afirmações do Novo Testamento relativas à vida após a morte e ressurreição.
Há estudiosos que debatem tal interpretação destas e de outras passagens, argumentando que o entendimento dos salmistas sobre a realidade depois da morte era limitado e que declarações de confiança como as supramencionadas espelham a esperança de proteção nesta vida. Arrazoam que só mais tarde no progresso da revelação foi que o povo de Deus recebeu um quadro mais detalhado e positivo do que esperar depois da morte. Antes de examinarmos mais de perto os Salmos fundamentais, é necessário observarmos a atitude geral dos salmistas para com a morte. Com isso, logo fica evidente que eles não olhavam a morte com a mesma expectativa e confiança como o apóstolo Paulo (cf. Fp 1.21-23). Pelo contrário, os salmistas em muitos dos seus lamentos imploraram ao Senhor que os livrasse da morte às mãos dos inimigos. Apresentando o caso diante de Deus, o autor do Salmo 6 declarou: “Porque na morte não há lembrança de ti; no sepulcro quem te louvará?” (v. 5). Semelhantemente, o autor do Salmo 30, pelo dispositivo literário da pergunta retórica, indicou que os mortos estão cortados da comunidade de adoradores: “Que proveito há no meu sangue, quando desço à cova? Porventura, te louvará o pó? Anunciará ele a tua verdade?” (30.9; cf. 115.17). Com outra série de perguntas retóricas, o autor do Salmo 88 indicou que os mortos não testemunham ou louvam as ações poderosas de Deus: “Mostrarás tu maravilhas aos mortos, ou os mortos se levantarão e te louvarão? Será anunciada a tua benignidade na sepultura, ou a tua fidelidade na perdição? Saber-se-ão as tuas maravilhas nas trevas, e a tua justiça na terra do esquecimento?” (w.10-12). Será que esta atitude geralmente negativa em relação à morte representa uma visão menos esclarecida da vida após a morte que conflita com as declarações de confiança citadas acima? Ou será que é uma indicação interpretativa para entendermos que essas expressões de confiança dizem respeito a esta vida? Para responder essas perguntas temos de examinar os Salmos fundamentais mais detalhadamente.
Como indicado acima, a afirmação de confiança em Salmos 49.15 é usada como prova de que pelo menos alguns salmistas previram a ressurreição.38 Neste Salmo sapiencial (cf. w. 1-4), o autor observou que todos os homens, até os ricos e os sábios morrem como animais (w.7-13). Por conseguinte, os ricos não devem ser temidos ou invejados (w.5,6,16-20). Virá o tempo em que “os retos terão domínio sobre eles na manhã” (SI 49.14). Levando em conta esses fatos, o salmista expressou a certeza de que Deus o resgataria da sepultura (v. 15).39 O que faremos com as afirmações de confiança nos versículos 14 e 15? E possível que o salmista esteja olhando para as realidades escatológicas últimas, prevendo a própria ressurreição e um tempo em que os justos, não os ricos, reinarão na terra. É mais provável que o predomínio dos justos se refira à proteção deles nesta vida, um tema bem comprovado no saltério, especialmente nos Salmos sapienciais (ver, por exemplo, SI 1; 34; 37; 112, como também a discussão acima). Neste caso, Salmos 49.15 se refere a Deus preservar o salmista nos “dias maus” (cf. v. 5), guardando-o da morte prematura e violenta às mãos dos ricos opressivos e da calamidade lhes que sobrevêm.
A “manhã” (v. 14), que traz à mente o amanhecer de um novo dia depois de uma noite de escuridão, habilmente simboliza a o fim desses “dias maus”. E comum entendermos Salmos 73.24 como alusão à vida após a morte na presença de Deus. O autor deste Salmo recordou como ele invejava os ímpios porque eram prósperos (w. 2-12). Questionou se realmente valia a pena seguir os caminhos da justiça, até que entrou no santuário do Senhor (w.13-17). Quer por um oráculo divino ou por reflexão sobre as verdades proferidas lá pelos adoradores, o salmista percebeu que a prosperidade dos ímpios era efêmera, pois o julgamento de Deus sobreviria sobre eles de repente (w. 18-20). O salmista entregou-se novamente a Deus e declarou a confiança na mão protetora dEle (w. 23-28). Existem duas opções interpretativas para a declaração de confiança registrada pelo salmista em Salmos 73.24b. É possível entendermos a declaração como referência ao salmista ser levado à presença de Deus no céu logo após à sua vida na terra.
Pelo contexto dos Salmos é mais provável que ele esteja se referindo ao poder de Deus preservá-lo durante o tempo da calamidade que destruiria os ímpios. Embora “glória” se refira figurativamente ao céu ou à vida após a morte no linguajar poético e hínico cristão, a palavra hebraica assim traduzida no versículo 24 (kabod) não é usada deste modo. No contexto do Salmo 73.24, a palavra traz o significado comumente atestado de “honra” (cf. NTLH; NVI). Em contraste com os orgulhosos, que são aniquilados em julgamento, o salmista estava confiante de que a mão protetora de Deus o conduziria a um lugar de honra.42 Os versículos 25 a 28 se conformam bem com esta interpretação. No versículo 25, o salmista afirmou que nada mais no universo (observe a merisma “céu” e “terra”) poderia substituir Deus como objeto de desejo. Mesmo que o seu corpo ficasse fraco e ele estivesse à beira da morte,44 Deus o sustentaria e o protegeria (w.26,28), ao passo que os ímpios pereceriam (v. 27). Outras supostas referências à crença da vida após a morte na presença de Deus também são mais bem interpretadas ao longo das linhas de ação sugeridas acima para os Salmos 49.15 e 73.24. Por exemplo, o autor do Salmo 17 concluiu a oração afirmando com confiança: “Quanto a mim, contemplarei a tua face na justiça; eu me satisfarei da tua semelhança quando acordar” (v. 15). E improvável que a linguagem idiomática se refira ao despertar do sono da morte para ver a face do Senhor.
O salmista exigiu que o Senhor examinasse os seus motivos durante as horas escuras da noite (v. 3), pleiteou inocência e pediu a retribuição divina contra os inimigos. Assegurado de que o exame de Deus do 4 seu coração só revelaria retidão, ele estava confiante de que o amanhecer de um novo dia traria novas experiências da presença e bênçãos de Deus (cf. v.14)45 Também é improvável que o Salmo 23 se refira à vida após a morte na presença de Deus, embora os versículos 4 e 6 sejam entendidos dessa forma em particular. O versículo 4 refere-se ao pastor divino guiando a ovelha (o salmista) por um vale escuro e perigoso (símbolo do perigo esposado pelos inimigos, cf. v. 5). No versículo 6, o salmista expressa a confiança de que, ao longo da vida, ele teria acesso à presença de Deus (a “casa do S e n h o r ” se refere ao Tabernáculo ou Templo terreno; cf. Juízes 19.18; 1 Sm 1.7,24; 2 Sm 12.20; 1 Reis 7.12,40,45,51). “Para todo o sempre” (ARA) é tradução de uma frase hebraica (’orek yamim, lit., “longura de dias”) que, quando usada em outros textos bíblicos acerca de homens, diz respeito a um período prolongado de tempo (como a duração da vida de um ser humano), e não à eternidade (cf. Dt 30.20; Jó 12.12; SI 91.16; Pv 3.2,16; Lm 5.20).47 Por causa do uso no Novo Testamento, é comum entendermos Salmos 16.10 em alusão à ressurreição.
Entretanto, o Novo Testamento atribui as palavras a Cristo e não ao salmista (Davi, de acordo com o Antigo Testamento). Se o Salmo é considerado exclusivamente messiânico, então de forma única comprova a confiança do salmista na ressurreição do Messias, e não é uma expectativa do Antigo Testamento em geral acerca da ressurreição (sob este aspecto, note que Pedro e Paulo contrastaram as experiências de Davi com Jesus: At 2.29-31; 13.35-37). Se entendermos que o Salmo é indiretamente messiânico (ou seja, é aplicável em menor sentido ao salmista e em maior sentido ao Messias), então Davi, como tantos outros salmistas, estava expressando a confiança de que Deus o guardaria de morte violenta e prematura e lhe daria acesso ininterrupto à sua presença (cf. 16.11). Concluindo, os salmistas tinham uma visão limitada e um pouco negativa da vida após a morte. Para eles, a morte era uma intrusa indesejável, porque separava o indivíduo das ações reveladora de Deus e da comunidade de adoradores. Em vez de ser exceções a este conceito de morte que exibe uma visão mais positiva da vida após a morte, as declarações de confiança examinadas acima pertencem mais provavelmente à defesa dos justos nesta vida, tema amplamente atestado no saltério e na literatura sapiencial em geral. Este tema, como os outros que examinamos nesta pesquisa da teologia dos Salmos, conflita com a realidade em muitos aspectos.
Apesar das afirmações dos salmistas, os ímpios normalmente prevalecem sobre os justos neste mundo pecador, onde a sobrevivência do mais adequado, não o mais espiritual, é o princípio operacional. A experiência de muitos é exatamente o oposto do autor aparentemente ingênuo do Salmo 37, que declarou: “Fui moço e agora sou velho; mas nunca vi desamparado o justo, nem a sua descendência a mendigar o pão” (v. 25). No progresso da revelação a tensão entre a realidade e o ideal expressos nos Salmos é atenuada. Nova revelação, especialmente passagens que lidam com eventos escatológicos, deixam claro que a fé dos salmistas não era inapropriada. Sabemos que haverá um julgamento final por meio do qual Deus examinará e recompensará as ações dos ímpios. Eles realmente serão aniquilados pela ira de Deus e os justos serão defendidos. Os justos não precisam ter medo da morte, pois ela não pode separar o indivíduo de Deus e até mesmo o poder que ela exerce sobre o corpo físico é temporário. Em suma, as declarações de confiança expressas pelos salmistas são blocos construtivos importantes no desdobramento gradual do princípio bíblico de que os justos serão defendidos pelo Justo regente do universo. E natural o cristão ver mais nas declarações de confiança do saltério do que os salmistas pretendiam dizer. Embora o autor do Salmo 23 tivesse confessado ter confiança no poder de Deus para protegê-lo dos inimigos que encontrou nesta vida, o crente que entende que a proteção de Deus se estende além desta vida, acha as palavras consoladoras e pertinentes em todas as circunstâncias, sobretudo quando a realidade inevitável da morte física lhe invadiu a família ou está prestes a ser experimentada pessoalmente.
Ainda que o salmista não esteja falando especificamente da vida após a morte na presença de Deus, no progresso da revelação suas palavras expressam tamanha esperança para o povo de Deus, que agora entende as plenas ramificações da afirmação do Salmo de que Deus protege os que lhe pertencem. Da mesma maneira, as declarações nos Salmos 17.15; 49.15 e 73.24 se tornam, nos lábios do cristão, um testemunho de fé na defesa final de Deus pelos justos, até mesmo além da sepultura.49 O cumprimento messiânico do tema do sofredor justo. No retrato de Jesus como Servo sofredor de Deus, o Novo Testamento utiliza muitas declarações dos Salmos que descrevem a agonia, a lealdade e a defesa dos seguidores justos de Deus. Os Salmos usados deste modo são apropriadamente rotulados de messiânicos, mas, como ocorre com os salmos régios analisados acima, esta classificação precisa ser qualificada e explicada. Pela própria natureza como lamentos e cânticos de louvor, não devemos entender que estes salmos sejam predições diretas do ministério de Jesus. Um exame minucioso do conteúdo mostra que eles se referem diretamente às experiências dos antigos autores e não às dos seguidores de Jesus. Eles apresentam o ideal do sofredor inocente que é perseguido por causa da justiça mas, no final, é defendido por Deus — um ideal que o profeta Isaías ligou a uma figura escatológica e que se cumpriu em Cristo.
Quando os escritores do Novo Testamento refletiram sobre os ensinos e experiências de Jesus, eles o identificaram corretamente como o Servo sofredor de Isaías e perceberam que Ele trouxe à culminação a longa linhagem de justos sofredores, muitos dos quais constam nas páginas do saltério. Aplicando declarações dos Salmos a Jesus, eles seguiram a direção do próprio Senhor e empregaram um princípio hermenêutico reconhecido em seus dias, que envolvia raciocínio do menor para o maior. Certas descrições do sofrimento, esperança e defesa dos salmistas eram até mais aplicáveis a Jesus, o Servo sofredor de Deus acima de toda comparação. Quando aplicadas a Jesus, tais declarações assumem um sentido mais literal ou elevado, como que a dirimir qualquer dúvida de que Ele é aquele que eles apontam. Levando em conta a análise precedente, denominemos os salmos mencionados pelo Novo Testamento de indiretamente messiânicos. Façamos uma análise desses salmos.
O Salmo 22 começa com um lamento prolongado no qual o autor lastimou o fato de que Deus aparentemente o abandonara (w. 1-10). Embora o salmista, como as outras gerações de israelitas fiéis, tivesse outrora experimentado o favor de Deus, agora se sentia abandonado quando os atormentadores lhe escarneciam a fé em Deus. Depois de um breve grito de ajuda (v. 11), ele descreveu a situação desesperadora em detalhes vividos (w. 12-18). Os inimigos o cercaram como touros poderosos, leões rugidores e cães selvagens ferozes. A força física estava se esvaindo e os observadores tinham tanta certeza de que ele morreria de um momento para o outro que estavam ansiosos para dividir as posses dele entre si. Por fim, respondendo ao seu pedido (w. 19-21 a), Deus o livrou dos inimigos (v. 21b; cf. NVI; ARA). Agradecido pelo poderoso ato de salvação de Deus, o salmista promete louvar ao Senhor na assembleia de Israel (w. 22-26). Na sua alegria, até previu um tempo em que todas as nações reconheceriam a grandeza de Deus (w. 27-31). Quando estava pendurado na cruz, Jesus usou as palavras do Salmo 22.1 para expressar a agonia e o abandono que Ele sentia (Mt 27.46; Mc 15.34). Porque o próprio Jesus associou a sua experiência com à do antigo salmista, não é de admirar que os escritores do Evangelho vissem que certos aspectos da crucificação de Jesus fossem cumprimento da linguagem e imagem do Salmo 22.
Os passantes lançavam insultos a Jesus, balançavam a cabeça de um lado para o outro e lhe escarneciam a fé em Deus Pai (Mt 27.39,43; Mc 15.29; cf. 22.7,8), enquanto os soldados repartiam entre si as roupas de Jesus e lançavam sortes para determinar quem ficaria com a roupa de baixo sem costura de Jesus (Mt 27.35; Mc 15.24; Lc 23.34; Jo 19.23,24; cf. SI 22.18).50 O Salmo 69 é outro indiretamente messiânico que é amplamente usado no Novo Testamento. O autor pediu ao Senhor que o livrasse dos inimigos que ameaçavam subjugá-lo como águas furiosas (w.1-4,13-18). Reconhecendo a insensatez e culpa (v. 5), também ratificou o zelo por Deus e pelo templo (v. 9). Lamentou a rejeição que sofreu pelos parentes (v. 8) e a humilhação lançada sobre ele por aqueles que testemunhavam o seu suplício (w. 10-12). Quando procurou alívio, só recebeu desprezo, como alguém que passa fome e sede e lhe é dado fel e vinagre (w. 19-21). Invocou a ira de Deus sobre os inimigos, pedindo que as suas tendas ficassem desertas (w. 22-28, esp. o v. 25). Concluiu com outro pedido de ajuda e outra promessa de louvar a Deus quando a libertação sucedesse (w. 29-33). O Novo Testamento traça muitas comparações entre as experiências do salmista e Jesus. Quando Jesus expulsou os cambistas do Templo, os discípulos lembraram as palavras do Salmo 69.9 (Jo 2.17). A noite anterior à crucificação, o Senhor explicou aos discípulos que o ódio injustificado que o mundo tinha por ele cumpriu as palavras do Salmo 69.4 (Jo 15.25). Enquanto estava na cruz, ofereceram a Jesus fel e vinagre de acordo com as palavras do Salmo 69.21 (Mt 27.34,48; Mc 15.23,36; Lc 23.36; João 19.28-30). Paulo viu a devoção auto-sacrifical de Jesus a Deus como ilustração das palavras do SI 69.9b. (Examinaremos mais adiante a aplicação de Pedro do versículo 25 a Judas [At 1.16,20].) Duas observações são pertinente. Primeiro, certas declarações do Salmo 69 cf. a admissão de imperfeição no versículo 5 e a maldição formal nos w.22-28) deixam claro que o antigo salmista (Davi; cf. At 1.16,20; Rm 11.9) estava descrevendo a situação difícil dele e não a de Jesus. Mesmo assim, visto que Jesus é o exemplo e cumprimento perfeito do sofredor típico apresentado no Salmo, algumas declarações do salmista podem ser aplicadas à experiência de Jesus.
Segundo, a aplicação dos Salmos 69.21 à experiência de Jesus na cruz ilustra como a imagem poética pode se concretizar quando o ideal do Antigo Testamento se cumpre em Jesus. O salmista estava comparando o desprezo dos inimigos à comida e bebida amargas (cf. 69.19,20). Estes itens foram oferecidos literalmente a Jesus, como demonstrando que a rejeição do salmista pressagiava a de Jesus. Os Salmos 22 e 69 são os mais extensivamente usados na descrição neotestamentária do sofrimento de Cristo. Contudo, declarações de outros Salmos também são utilizadas. O apóstolo João aplicou Salmos 34.20 à crucificação de Jesus. Depois de descrever como as pernas de Jesus, ao contrário dos criminosos crucificados com Ele, não foram quebradas, João declarou: “Isso aconteceu para que se cumprisse a Escritura, que diz: Nenhum dos seus ossos será quebrado” (Jo 19.31-37, esp. o v. 36). O Salmo 34, atribuído a Davi (cf. o título), é um cântico de ação de graças pela libertação concedida por Deus. O salmista recordou o seu tempo de necessidade e louvou ao Senhor por salvá-lo (SI 34.4,6). Exortou os ouvintes a confiar no Senhor, prometendo-lhes que a fé não se perderia (w.8-10). Advertiu-os que evitassem o mal (w.12,13), pois os malfeitores são cortados da terra (w.16,21). Em contrapartida, os justos têm a proteção de Deus (w. 15,17-20,22). O versículo 20 descreve em termos figurativos como o Senhor protege os justos das dificuldades que lhes sobrevêm. Superficialmente, a aplicação de João no versículo 20 à experiência de Jesus na cruz, soa esquisita.
João deu à passagem um sentido literal que é estranho ao contexto literário aplicando a promessa de proteção divina a um homem que há pouco fora brutal e injustamente crucificado pelos inimigos. Levando em conta a terrível situação de Jesus, a observação de que as pernas não lhe foram quebradas soa irrelevante. Contudo, reflexões adicionais mostram que a observação de João é bastante pertinente. A interpretação literal da linguagem figurativa do Salmo, como vimos em outros casos, tem o efeito de chamar para atenção a Jesus como aquele em quem se cumpre o ideal apresentado no Salmo. Neste caso, João viu Jesus como o Justo que está acima de toda comparação. Quando o valor simbólico é devidamente avaliado, os ossos não quebrados de Jesus testemunham este fato e tornam-se a garantia da sua defesa última, um evento que João passou a descrever no contexto que vem imediatamente a seguir. O autor de Hebreus usou Salmos 40.6-8 na descrição da obra sacerdotal de Cristo (Hb 10.5-7). Embora reconhecesse prontamente o seu pecado (40.12), o autor deste Salmo também afirmou a devoção sincera a Deus (w. 6-10). Louvou a Deus pelos atos salvíficos no passado (w. 1-3) e pediu que fosse livre daqueles que queriam tirar-lhe a vida (w. 11-17). Nos versículos 6 a 8, que são parte da confissão de lealdade, ele enfatizou que Deus deseja devoção genuína e não ritual vazio (cf. 51.15-17). Na aplicação neotestamentária destas palavras a Jesus, vemos os mesmos princípios comentados acima com respeito ao Salmo 69.
Primeiro, certas declarações no SI deixam claro que o orador é o antigo salmista e não Jesus (cf. v.12). Não obstante, porque Jesus cumpre o ideal do Justo sofredor retratado no Salmo, as palavras do salmista também eram as palavras de Jesus, como se dá em Hebreus 10.57. Segundo, quando faladas por Jesus, as palavras dos versículos 6 a 8 assumem um sentido elevado. No contexto do Antigo Testamento, a declaração do salmista não indica uma rejeição do sistema sacrifical, mas comprova a prioridade de lealdade genuína. Nos lábios de Jesus, as palavras assumem nova significação e indicam que o sacrifício totalmente suficiente de Jesus pelos pecados tornou o sistema sacrifical do Antigo Testamento obsoleto (cf. Hb 10.8-14). Considerando que Jesus é o cumprimento do justo sofredor ideal, então os inimigos de Jesus são a culminação da longa linhagem de malfeitores que se opunham aos servos fiéis do Senhor. Tendo em vista que Judas possuía muitas das características destes homens maus (especialmente a ganância, o engano e a infidelidade), ele cabia muito bem como seu representante. Nesta função, certas descrições que os salmistas fizeram dos seus inimigos se ajustavam perfeitamente nele. Foi o que Jesus fez na noite anterior à crucificação. Indicou que um dos doze o trairia (Jo 13.10,11,18a) e depois citou as palavras dos Salmos 41.9: “O que come o pão comigo levantou contra mim o seu calcanhar” (Jo 13.18b). No contexto original, essas palavras não se referiam a Jesus e a Judas. Mais exatamente, o salmista falava como alguém infestado por uma doença física séria (41.3,8), que aparentemente fora ocasionada pelo seu próprio pecado (v.4). Lamentou o fato de que os inimigos, incluindo um que outrora fora seu amigo chegado, o caluniaram e avidamente esperavam que o ele morresse (w.5-9). Implorou por livramento e afirmou a sua integridade e lealdade essencial a Deus (w. 1 a, 10-12). Como incomparável servo perseguido de Deus (diferente do salmista, Jesus não tinha pecado), que também foi traído por um amigo, Jesus destinou a si as palavras do versículo 9.
Fazendo isso logo antes da refeição na qual ele compartilhou pão com Judas (cf. Jo 13.26,27), Jesus deixou claro que a linguagem do Salmo se referia ao fato de Ele ser traído por Judas. Pedro também aplicou a linguagem dos Salmos a Judas. Observou que a Escritura falara da queda de Judas com muita antecedência. Para apoio de sua observação, citou os Salmos 69.25 e 109.8 (cf. At 1.15-20). Nos contextos literários, ambas as declarações são maldições formais pronunciadas por Davi contra os inimigos. Argumentando do menor para o maior, Pedro aplicou as maldições a Judas, o inimigo no mais alto grau que sintetizava a horda de malfeitores que se opusera aos justos ao longo da história. Para facilitar a aplicação dos Salmos 69.25 ajudas, Pedro alterou a forma gramatical do texto, mudando para o singular as formas plurais da passagem. Ainda que haja quem acuse Pedro de ser irresponsável e insincero com o texto, o tratamento da passagem está em harmonia perfeita com o princípio hermenêutico de que a morte de Jesus às mãos dos inimigos era a culminação da luta entre os justos e injustos desempenhada nas páginas do saltério. Como tal podemos aplicar (e até mesmo adaptar) o linguajar que descreve as primeiras fases nessa luta até ao seu episódio final.
O Novo Testamento também utiliza a linguagem do saltério para proclamar que Deus defendeu Jesus pela ressurreição. Falando aos irmãos israelitas no dia de Pentecostes, Pedro anunciou que Jesus ressurgira dos mortos de acordo com as palavras de Davi registradas em Salmos 16.8-11. Presumindo que as palavras dos salmistas se referem à ressurreição, ele explicou que elas não podiam se aplicar à experiência de Davi, porque há muito que ele morrera e o túmulo era conhecido por todos. Davi, sendo profeta, falara da ressurreição de Cristo (cf. At 2.22-31). De modo semelhante, o apóstolo Paulo proclamou que a ressurreição de Jesus cumpriu as palavras dos Salmos 16.10. Como que a demonstrar que as palavras do Salmo, entendidas neste sentido, não se referiam a Davi, ele também contrastou Davi, cujo corpo sofrerá decomposição, com Cristo que escapara da morte pela ressurreição (At 13.35-37). Levando em conta as declarações de Pedro e Paulo, é tentador e talvez correto entender o Salmo 16 como um Salmo diretamente profético, no qual Davi, falando em nome do seu Descendente, previu a ressurreição do Messias. Afinal de contas, Pedro intitulou Davi especificamente de “profeta” e declarou que Davi “sabendo [...] nesta previsão, disse da ressurreição de Cristo” (At 2.30,31, grifos meus). Alguns intérpretes preferem entender que o Salmo 16, como tantos outros Salmos usados pelo Novo Testamento, é indiretamente messiânico. Levando em conta as declarações devidamente claras de Pedro, tal interpretação é possível? Para responder essa pergunta, temos de examinar mais cuidadosamente o Salmo e as passagens pertinentes no Novo Testamento, tendo em mente princípios observados em nossa análise dos salmos indiretamente messiânicos discutidos acima.
Podemos classificar o Salmo 16 como cântico de confiança. Na primeira seção do Salmo o orador pede proteção divina (v. 1), afirma lealdade a Deus em contraste com outros que se afastam dele (w. 2-4), fala em termos figurativos das ricas bênçãos de Deus (w.5,6) e promete louvar ao Senhor (v. 7). Nos versículos 8 a 11 (a porção citada por Pedro), ele declara confiança na presença protetora de Deus. Ele não se abalará, porque o Senhor está à sua mão direita, permitindo-lhe ter alegria e segurança (w. 8,9). Deus não o deixará no “inferno” ou que “veja corrupção” (v. 10; respectivamente, “sepulcro” e “sofra decomposição”, NVI). Antes, ele desfrutará de vida na presença de Deus (v.l 1). O versículo 10 é o versículo-chave, necessitando de atenção especial. Várias observações são pertinentes à sua interpretação. Primeiro, o paralelismo poético do versículo é sinônimo, com cada um dos elementos na primeira linha correspondendo a um elemento na segunda. A declaração “não deixarás” corresponde a “nem permitirás”, enquanto que “a minha alma” (lit., “a minha vida”) e “o teu Santo” são paralelos, como são “inferno” e “corrupção”, por causa da estrutura paralela do versículo, é praticamente certo que “o teu Santo” é o próprio orador e não um indivíduo distinto. Segundo, o termo hebraico traduzido por “Santo” não é um termo técnico para referir-se ao rei, mas é usado nos Salmos acerca dos servos fiéis de Deus em geral.
Portanto, não podemos entender como inerentemente messiânico. Terceiro, traduzir a palavra hebraica sahat por “decomposição” é problemática. Essa tradução presume a existência de um substantivo sahat “corrupção” (derivado do verbo sahat, “ser corrompido”, “ser destruído”), que se compreende que é homônimo do bem atestado sahat, “cova”.52 Considerando que sahat (“cova”) se refere figurativamente à morte ou sepulcro, faria sentido excelente em Salmos 16.10 paralelo ao “sepulcro”.53 Se lermos “cova” em vez de “decomposição”, fica mais difícil ver uma referência à morte e sepultamento literal no texto. Quarto, os verbos usados (“deixarás” e “permitirás”) diriam respeito teoricamente ou a ser liberto da morte física (sobretudo se lermos “cova” em vez de “decomposição”) ou a ser liberto do sepulcro depois da morte física. No contexto do saltério, a primeira opção é mais provável (ver a discussão acima sobre a visão que os salmistas tinham da vida após a morte). Em suma, um exame dos Salmos 16.10 no contexto literário não exige que entendamos como referência à ressurreição. Exceto pelo uso neotestamentário da passagem, o versículo 10 é mais facilmente compreendido (no contexto do saltério como um todo) como a declaração confiante do salmista de que ele seria protegido de uma morte prematura, violenta e injusta às mãos daqueles que são hostis a Deus e seus servos.
Claro que, possuindo o cânon completo da Bíblia, não podemos separar o Salmo do seu uso no Novo Testamento. Ao considerarmos o Novo Testamento, temos de ter cuidado para não fazermos suposições gratuitas sobre a natureza do uso do Salmo e assim negligenciarmos injustamente outras opções interpretativas. O que exatamente o Novo Testamento assume como certo sobre a natureza do Salmo 16? Até que ponto podemos pressionar legitimamente as suas declarações? O tratamento que o Novo Testamento dá ao Salmo exige que este seja entendido exclusiva e diretamente como messiânico? Como já comentado, o Novo Testamento presume que a ressurreição está em vista em Salmos 16.10 e que Jesus Cristo é o orador, como também o referente do “Santo”. Entretanto, isso por si só não significa necessariamente que o Salmo seja exclusivamente messiânico ou diretamente profético. Podemos explicar a aplicação cristológica que o Novo Testamento faz ao Salmo pelos princípios hermenêuticos já comentados em relação aos salmos indiretamente messiânicos. Considerando que os sofredores justos do saltério foram defendidos ao serem libertos da morte às mãos dos inimigos, esperamos que Jesus, o Justo sofredor por excelência, também fosse defendido. Quando ameaçados pelos inimigos, os salmistas não passaram pela morte física, embora ficassem face a face com os seus horrores antes de serem salvos das suas garras. Como o epítome do sofredor ideal, Jesus deu um passo a mais descendo realmente ao sepulcro e depois ressuscitando.
Quando recebe o sentido elevado dado pelo Novo Testamento, Salmos 16.10 descrevem a experiência de Jesus. Em seu sentido elevado, a linguagem aplica-se exclusivamente a ele, mas não significa necessariamente que o Salmo, compreendido em sentido menor e mais tipicamente do Antigo Testamento, não possa se referir a Davi, ou seja, também aplicável aos leitores. Os apóstolos estavam preocupados com a significação cristológica do Salmo. Por isso, não esperaríamos que mencionassem um sentido mais imediato (e relativamente mundano!) que as palavras do salmista poderiam ter possuído. O fato de não terem feito assim não significa que tal sentido não exista. Apesar do que acabamos de comentar, temos de admitir que certos elementos na declaração de Pedro se diferenciam de outros contextos do Novo Testamento que utilizam os Salmos em sentido indiretamente messiânico. Nos outros casos, não temos declarações claras e explícitas de que o salmista entendia que as palavras possuíam um sentido sublime e profético. Entretanto, de acordo com Pedro, Davi estava ciente de que as palavras dos versículos 8 a 11 eram aplicáveis (quer exclusivamente ou em última análise) a um dos seus descendentes. Davi entendeu as ramificações da promessa de Deus que dos seus descendentes cumpriria o ideal messiânico e ocuparia o trono (At 2.30). Como profeta (At 2.30), Davi deve ter visto que isso exigia a vitória divina sobre o poder da sepultura que transcendia ao mero livramento de uma morte prematura e injusta às mãos dos inimigos (o sentido das palavras caso aplicável ao próprio Davi).
Embora não saibamos exatamente a clareza com que ele viu estes desenvolvimentos futuros, uma coisa é certa em retrospecto — ao falar que este futuro descendente ideal triunfaria sobre a morte, Davi estava falando da ressurreição do Messias (At 2.31). Para resumir, levando em conta as declarações de Pedro, é possível vermos o Salmo 16 exclusivamente como e diretamente messiânico. Nada no Salmo ou no Novo Testamento exige essa interpretação. Não é impossível que em Salmos 16.10 seja a declaração de confiança de Davi em Deus que o livraria de uma morte violenta às mãos dos inimigos e, ao mesmo tempo, a confissão profética de que o Messias escaparia da morte de modo até mais dramático. Neste caso, podemos intitular o Salmo 16 de indiretamente messiânico, embora as declarações de Pedro sobre Davi estar ciente do seu sentido elevado o diferencie dos outros assim acima categorizados. Neste caso, a significação da experiência do salmista que previa a experiência do Messias não esperava descerramento no progresso da revelação, mas foi compreendida pelo próprio autor.
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