Significado de João 1

João 1

João 1 é de importância significativa na teologia cristã, pois apresenta conceitos e temas-chave relativos à identidade de Jesus Cristo. O capítulo começa introduzindo o conceito de “o Verbo” (Logos em grego), que é identificado como divino e eterno. Diz-se que a Palavra está com Deus e também é o próprio Deus. Esta ideia estabelece as bases para a crença cristã na divindade de Jesus.

O capítulo continua explicando que todas as coisas foram criadas através da Palavra, enfatizando o poder criativo e a natureza divina da Palavra. Isso se alinha com o conceito de Jesus ser o agente da criação.

O autor introduz a ideia da “Luz” que brilha nas trevas. Esta Luz é uma referência a Jesus Cristo, que traz iluminação espiritual e compreensão à humanidade. O capítulo apresenta João Batista, que não é a Luz, mas dá testemunho dela. O papel de João é preparar o caminho para a vinda de Jesus e testemunhar o Seu significado.

A parte mais significativa do capítulo 1 é a declaração de que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”. Este versículo ressalta a crença na Encarnação, onde o Verbo divino assumiu forma humana na pessoa de Jesus Cristo.

João 1 também enfatiza que através de Jesus Cristo, os crentes recebem graça e verdade. Isto significa que Jesus traz perdão, salvação e a revelação da verdadeira natureza de Deus. O capítulo termina com o testemunho de João Batista sobre Jesus, destacando a preeminência e superioridade de Jesus sobre João.

Este capítulo é uma profunda introdução teológica ao Evangelho de João, enfatizando a divindade de Jesus, o Seu papel na criação, a Encarnação e o poder transformador do Seu ministério. É uma passagem chave para a compreensão da crença cristã em Jesus como Filho de Deus e Salvador da humanidade.

I. Explicação de João 1

João 1.1-18 

Esses primeiros versículos são os mais lindos e profundos descritos em toda a Palavra de Deus. Eles nos transportam para antes do início da criação e nos fazem viajar no tempo e no espaço da história humana. Eles revelam, como em nenhuma outra parte das Escrituras, que o Jesus que fez parte da história da humanidade (Jo 1.14) é o Deus Criador, descrito em Gênesis 1.1. O texto em João 1.1-18 revela a relação eterna entre Pai e Filho e mostra que podemos andar na luz e ter a vida eterna quando aceitamos aquele que é a maior revelação do Pai: Jesus Cristo!

João 1:1 

No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus. (Gr.: En archē ēn ho logos, kai ho logos ēn pros ton theon, kai theos ēn ho logos — Tradução literal: “No princípio existia a Palavra, e a Palavra estava voltada para Deus, e Deus era a Palavra.”) Em João 1:1, a frase “No princípio” já coloca tudo no lugar: antes de qualquer coisa existir, a Palavra já era; e ela não aparece como criatura elevada, mas como alguém que está em relação real com Deus e, ao mesmo tempo, participa plenamente do que Deus é quando afirma que “era Deus”. Essa abertura conversa diretamente com Gênesis 1:1, porque a criação começa com Deus no começo de tudo, e João está dizendo que, nesse começo absoluto, a Palavra já estava lá. Isso também encaixa com a forma como o Antigo Testamento descreve Deus criando e sustentando pela sua palavra, como em Salmos 33:6: não é só “discurso”, é ação criadora e eficaz. Quando o Novo Testamento afirma que tudo foi criado “por meio dele” e que ele é “antes de todas as coisas”, em Colossenses 1:15-17, e que Deus “fez o universo” por meio do Filho e ele sustenta todas as coisas, em Hebreus 1:2-3, não está acrescentando um enfeite teórico: está dizendo que o evangelho se apoia num Salvador que é Deus de verdade, e por isso pode dar vida nova de verdade. Como aplicação pastoral (não como afirmação histórica sobre cada detalhe da sua rotina), isso muda o jeito de viver a fé: confiar em Jesus não é só adotar valores; é descansar a alma em alguém que não começou ontem e não falha amanhã, e isso desloca o centro da vida do medo e do controle para a adoração e a confiança.

A. Etimologia/Estrutura/Morfologia/Sintaxe

“Princípio”: archē (“princípio”) é um substantivo abstrato em “-ē”, e os léxicos o fazem remontar ao verbo archō (“começar”, “governar”), como se a palavra carregasse na própria ossatura a ideia de “ponto inaugural” e, ao mesmo tempo, “ato de comandar”: raiz verbal + sufixo que fixa a ação em conceito, como quem prende em metal a faísca do primeiro gesto. 

Na literatura grega secular, isso aparece com nitidez: o mesmo archē (“princípio”) pode nomear o começo/origem (“beginning, origin”) e também o “lugar de poder” (“sovereignty”), e o próprio léxico marca esse desdobramento, observando que o sentido político de “soberania” não é homérico, ao passo que o sentido de “origem” é abundantemente atestado em citações de Homero, Heródoto e outros (por exemplo, expressões do tipo “archē de X”, “o começo de X”, com genitivo do que se inaugura). E, quando a língua entra no terreno da filosofia secular, o termo ganha um peso de “princípio primeiro”: o léxico registra o uso técnico de archē (“princípio”) como “primeiro princípio/elemento”, atribuído já aos primeiros filósofos, e esse emprego é justamente o que faz a palavra soar, para ouvidos gregos, não apenas como “primeiro instante”, mas como “fundamento” — aquilo de onde o real se levanta.

“Deus”: theon (“Deus”), forma acusativa de theos (“Deus”), é o termo grego de largo curso para “deidade” — um nome comum do sagrado no discurso greco-romano, capaz de servir tanto ao horizonte politeísta (“um deus”, “deuses”) quanto, por extensão contextual, ao Deus singular. Mas, quando se pede etimologia em sentido estrito (origem histórica do vocábulo e sua formação primeira), os próprios recursos lexicográficos advertem que a derivação última é debatida: há múltiplas propostas antigas e modernas, e a tradição registra a discussão como etimologicamente incerta (“oito ou mais derivações propostas...”, com remissão a bibliografia), ao mesmo tempo em que aponta que o termo é corrente desde Homero, isto é, plantado no solo mais antigo da literatura secular grega que nos resta.

O sintagma preposicional en (“em”) + archē (“princípio”) é formalmente uma construção em que en (“em”) rege o caso dativo e, por essa regência, instaura uma moldura adverbial de esfera (no caso, temporal) para a oração, vinculando-se ao verbo finito que segue. O verbo ēn (“era”) é forma finita no imperfeito do indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, funcionando aqui como cópula/verbificação de existência em oração nominal, e recebe como sujeito o sintagma nominal ho (“o”) + logos (“palavra”), em que o artigo ho (“o”) marca o núcleo nominal como nominativo masculino singular e o sinaliza, no encaixe da frase, como sujeito explícito do predicado verbal. 

A conjunção kai (“e”) coordena, por parataxe, uma segunda oração de mesma tessitura: novamente ho (“o”) + logos (“palavra”) ocupa a posição de sujeito, retomando o referente por repetição formal, e ēn (“era”) volta a exercer o papel de cópula; a novidade sintática está no complemento preposicional pros (“para”) + ton (“o”) + theon (“Deus”), em que pros (“para”) rege acusativo e, por essa marca formal (acusativo sob preposição direcional), constrói um valor semântico básico de direção/relacionamento orientado “para” um alvo, aqui identificado pelo artigo ton (“o”) e pelo nome theon (“Deus”), acusativo masculino singular, objeto interno da preposição. 

A terceira oração, novamente coordenada por kai (“e”), reorganiza a predicação: theos (“Deus”) aparece como nominativo masculino singular sem artigo (forma anártra) e antecede ēn (“era”), ocupando a posição típica de predicativo do sujeito em oração copulativa; em seguida, ho (“o”) + logos (“palavra”) reaparece com artigo, e essa assimetria formal (predicativo anártro + sujeito articular) é precisamente o sinal morfossintático que permite identificar ho logos (“o palavra”) como sujeito e theos (“Deus”) como predicativo, não como simples inversão de identidade por artigo duplicado. Com a amarração gramatical completa, a exegese formal pode ser formulada sem sair do terreno da sintaxe: as três orações justapostas por kai (“e”) compõem um período em progressão, no qual a moldura temporal de en archē (“em princípio”) governa a leitura do imperfeito ēn (“era”) como estado contínuo no passado (não evento pontual), a relação expressa por pros ton theon (“para o Deus”) funciona como predicação relacional vinculada à cópula, e a oração final, por meio do predicativo anártro theos (“Deus”) em posição preverbal, realiza uma predicação de qualidade/natureza do sujeito (em vez de simplesmente igualar, por artigo, sujeito e predicativo), exatamente o tipo de configuração debatida na literatura técnica sobre predicativos anárthros em João 1:1.

B. Versões Comparadas

João 1:1, à luz de en archē (“no princípio”) e do substantivo archē (“começo; origem; princípio; primazia”), cuja formação se liga ao verbo archomai (“começar”), já expõe por si mesma o primeiro ponto de variação nas versões: algumas apenas acompanham a forma tradicional “no princípio”, enquanto outras tornam explícita a ideia de anterioridade e continuidade que o imperfeito ēn (“era/estava”) sugere no encadeamento da frase, sem “pontuar” um começo temporal como se fosse um instante isolado. Na convergência mais literal, NASB 1995/ESV/NRSV/ASV/KJV dizem: “In the beginning was the Word, and the Word was with God, and the Word was God.” (Pt: “No princípio era a Palavra; a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus.”). YLT preserva o mesmo encaixe, mas com pontuação própria: “In the beginning was the Word, and the Word was with God, and the Word was God;” (Pt: “No princípio era a Palavra… e a Palavra era Deus;”). CEV, ao contrário, explicita o referente e intensifica a predicação, quebrando o período em linhas e adicionando ênfase interpretativa: “In the beginning was the one / who is called the Word. / The Word was with God / and was truly God.” (Pt: “No princípio existia aquele que é chamado Palavra… e era verdadeiramente Deus.”). O ponto onde todas essas escolhas se “decidem” contra o grego é a preposição pros (“para; em direção a; junto de”), que rege acusativo em pros ton theon (“para Deus / voltado para Deus”): traduzir por “with/com” comunica proximidade e relação, mas atenua o valor direcional e de orientação relacional que pros carrega com o acusativo na literatura grega em geral. Ainda no nível lexical, “Word/Palavra/Verbo” está em torno de logos (“palavra; fala; discurso; razão expressa”), e o uso de “Verbo” é uma opção tradicional (latinizante) que não é a tradução mais imediata do campo semântico de logos em grego secular, ao passo que “Palavra” aproxima-se mais do núcleo semântico comum.

Quando se passa às versões em português, ARA/ACF mantêm a cadência clássica e a equivalência formal, mas optam por “Verbo”: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” NTLH aproxima-se do impulso explicativo que certas versões populares fazem em inglês, tornando a anterioridade mais “ouvida” no português: “No começo aquele que é a Palavra já existia. Ele estava com Deus e era Deus.” NVI personaliza o sujeito logo após a perífrase identificadora: “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus.” NVT mantém “Palavra” e também explicita a anterioridade, mas com formatação em linhas: “No princípio, aquele que é a Palavra já existia. / A Palavra estava com Deus, / e a Palavra era Deus.” Aqui, para medir “fidelidade ao grego” sem sair do trilho do texto, o critério mais controlável é observar (i) se a versão deixa pros ton theon soar apenas como “com Deus”, ou se ao menos preserva a ideia de orientação relacional; e (ii) se ela mantém a força nominal de theos (“Deus; divindade”) em “theos ēn ho logos” (theos “Deus” + cópula + sujeito com artigo), ou se adiciona intensificadores (“truly”) que não estão formalmente marcados no grego, ainda que possam ser defendidos como explicitação do sentido.

C. Interpretação Teológica

As primeiras palavras de João, “No princípio,” soam como uma lembrança deliberada das primeiras palavras da própria Bíblia. O primeiro livro da Bíblia Hebraica foi conhecido pelo nome “NO-PRINCÍPIO” (tirado das palavras iniciais do texto hebraico, que soam como uma, embora esteja no estado construto: bereshit); por isso, a expressão circulava com naturalidade e seria prontamente reconhecida. João está falando de um novo começo, de uma nova criação, e escolhe termos que fazem eco à primeira criação. Não demora para ele retomar também outras palavras decisivas de Gênesis 1, como “vida” (v. 4), “luz’’ (v. 4) e “escuridão” (v. 5). Em Gênesis 1 está a descrição da primeira criação de Deus; aqui, o tema é a nova criação de Deus. E, assim como a primeira, a segunda não se realiza por meio de algum agente subordinado: ela acontece mediante a ação do Logos, a própria Palavra de Deus. Há continuidade com a criação antiga: a Palavra estava “no princípio,” o que indica que ela é anterior a tudo o mais.

É nesse ponto que a tradução de Knox, “No princípio do tempo,” entra como contraste, porque o en archē (“no princípio”) de João é, ao mesmo tempo, mais conciso, mais abrangente e mais impressionante. Um caminho para sentir melhor essa força é considerar o ap archēs (“desde o princípio”) de 1 João 1:1: ali, o foco recai no que transcorre a partir do começo, ao passo que aqui o texto aponta para o fato de que, no começo, “a palavra já estava lá” (tradução de Barclay). E há uma formulação precisa de Barth: “this Word was not, like all other words, a created human word, merely relating to God, merely speaking from God and about God. As the Word it is spoken in the place where God is, namely, έν άρχῇ, in principio of all that is” (Church Dogmatics, I/1 [Edinburgh, 1955], p. 459)). Ao inserir a transliteração, o ponto se mantém: en archē (“no princípio”), “in principio”, como a esfera onde Deus é, antes e acima do curso do tempo e do vir-a-ser do mundo.

Ainda assim, é provável que haja mais conteúdo concentrado nesse termo. A palavra traduzida por “beginning” pode também carregar o sentido de “origin”, no sentido de causa básica. (Assim, BAGD dá como primeiro sentido “princípio” e como segundo “a primeira causa.” Tertullian explora longamente a dupla acepção de archē (“princípio”) em Gn. 1:1 (LXX) no argumento contra Hermogenes (XIX; ANF, III, p. 488).) Temple parece acertar ao entender que a frase reúne duas camadas de sentido, “no princípio da história” e “na raiz do universo.” Isso combina com um traço recorrente do evangelista: o gosto por expressões que sustentam mais de uma leitura. Se fosse raro, poderia parecer coincidência e exigiria que se escolhesse, com rigor, entre alternativas; mas acontece com frequência suficiente para ser intencional. É um modo de ampliar o alcance do que está sendo dito: aqui, o quadro sugere que João quer que se percebam simultaneamente as duas possibilidades e que o evangelho se abra com uma expressão que pede dupla escuta. E as duas importam: nunca houve um tempo em que a Palavra não existisse; nunca houve coisa alguma cuja existência não dependesse dela.

Nesse cenário, o verbo “era” se entende com mais naturalidade como afirmação de existência eterna: “the Word continually was.” (“Was” is ēn (“era”), not egeneto (“veio a ser”), which is used in vv. 3, 6, and 14 (see 8:58 for a good illustration of the difference between ginomai (“vir a ser”) and eimi (“ser”).) Vale notar que ēn (“era”) reaparece na cláusula seguinte, e Knox tenta fazer sentir essa continuidade ao traduzir: “God had the Word abiding with him.” Westcott observa em sua tradução comentada do texto grego:

“The phrase carries back the thoughts of the reader to Gen. i. i, which necessarily fixes the sense of the beginning. Here, as there, “the beginning” is the initial moment of time and creation; but there is this difference, that Moses dwells on that which starts from the point, and traces the record of divine action from the beginning (comp. i John i. i, ii. 13), while St John lifts our thoughts beyond the beginning and / dwells on that which “was” when time, and with time finite being, began its course. Comp. Prov. viii. 23. Already when “God created the heaven and the earth,” “the Word was.” The “being” of the Word is thus necessarily carried beyond the limits of time, though the pre-existence of the Word is not definitely stated. The simple affirmation of existence in this connexion suggests a loftier conception than that of pre-existence; which is embarrassed by the idea of time.” (HORT, The Gospel according to St. John, 1892, p. 100)

Não convém forçar o tempo verbal além do que ele pode sustentar, mas é seguro afirmar que o verbo não sugere um estado concluído nem um processo de vir-a-ser. É um verbo adequado à existência eterna e imutável. João está afirmando que a Palavra existia antes da criação, e isso torna claro que a Palavra não é criada. Segurar esse ponto é crucial. Outros, especialmente entre judeus que ressaltavam o Deus único como fonte de todas as coisas, podiam conceber a Palavra como de altíssima dignidade, porém subordinada, como um ser criado. Em João, isso não cabe: para ele, a Palavra não pode ser colocada no conjunto das coisas criadas. “No princípio” — com toda a plenitude que essas palavras comportam — a Palavra “era”, “He is seen as greater than all things, greater than time, changeless as eternity” (Guthrie, A Guide to John's Gospel, 1986, p. 18).

João 1:2 

Ele estava no princípio com Deus. (Gr.: Houtos ēn en archē pros ton theon — Tradução literal: “Este existia no princípio voltado para Deus.”) Em João 1:2, a repetição não é redundância: ela firma que essa Palavra “estava... com Deus” desde o princípio, ou seja, não é uma presença ocasional, nem um plano improvisado; é uma comunhão constante, anterior a qualquer mundo. O Antigo Testamento já acostuma o coração a pensar em Deus como eterno, “de eternidade a eternidade”, como em Salmos 90:2, e João está dizendo que a história da salvação começa dentro dessa eternidade, não dentro do nosso caos. Quando Jesus fala de uma glória que ele teve “junto” do Pai “antes que houvesse mundo”, em João 17:4-5, ele mesmo puxa esse fio: o amor e a comunhão entre Pai e Filho não nascem da criação; a criação nasce sob esse amor. E isso chega em nós de modo bem concreto: a vida cristã não é uma espiritualidade solitária, mas um chamado para comunhão real com Deus, como 1 João 1:3 descreve; e, por consequência, quando a consciência treme e a culpa acusa, a segurança não está na sua força, mas no amor de Deus “em Cristo Jesus”, do qual nada pode separar, como em Romanos 8:38-39. Como aplicação pastoral, isso convida a praticar uma fé que volta sempre ao mesmo ponto: oração sem fingimento, perseverança sem heroísmo, e esperança sem desespero, porque o fundamento da sua vida com Deus não é você “dar certo”, mas Deus ser Deus e ter se aproximado de nós de forma definitiva.

A. Etimologia/Estrutura/Morfologia/Sintaxe

A repetição de “no princípio” reativa o mesmo archē (“princípio”) já descrito: e aqui é útil notar, por etimologia-formação e por tradição de uso, como o grego secular gosta de cristalizar archē (“princípio”) em locuções temporais com preposições — o léxico documenta, por exemplo, ex archēs (“desde o princípio”, “desde o começo”), fórmula amplamente atestada em autores gregos; assim, “en archē” (“no princípio”) se alinha naturalmente a uma família antiga de expressões em que a “origem” vira quase um lugar linguístico, uma espécie de marco fixo no mapa do tempo. E “com Deus” traz novamente theon (“Deus”): mesmo sem entrar além da etimologia, o dado lexical decisivo é que theos (“Deus”) é palavra de circulação pan-helênica e antiquíssima, já existente no tecido épico e continuamente reaproveitada; por isso ela pode, num texto tardio, ressoar ainda com ecos seculares — não por depender deles, mas por carregar, na memória do idioma, o lastro de séculos de nomeação do divino. 

O demonstrativo houtos (“este”) é pronome, nominativo masculino singular, funcionando como sujeito explícito e retomando anaforicamente o referente imediatamente estabelecido pelo sintagma sujeito anterior ho logos (“o palavra”), agora condensado em uma forma deíctica resumptiva; a predicação é novamente feita por ēn (“era”), imperfeito do indicativo, voz ativa, terceira pessoa do singular, mantendo o mesmo eixo verbal do período. O sintagma en (“em”) + archē (“princípio”), com en (“em”) regendo dativo, volta a operar como adjunto adverbial de esfera temporal, ligado ao verbo ēn (“era”) e reinstalando a mesma moldura de localização “no âmbito de” um começo, e o complemento pros (“para”) + ton (“o”) + theon (“Deus”), com pros (“para”) regendo acusativo, reaparece como predicação relacional orientada, dependente sintaticamente do verbo copulativo e formalmente marcada pela cadeia preposição + acusativo + artigo. Exegeticamente, ainda em chave estritamente formal, o versículo 2 funciona como sentença de reencadeamento: ao substituir o sujeito pleno por houtos (“este”) e ao repetir, sem variação estrutural, en archē (“em princípio”) e pros ton theon (“para o Deus”), o texto fecha a unidade sintática do versículo 1 por coesão anafórica e reforço paralelístico, amarrando as duas predicações (moldura temporal + relação orientada) ao mesmo referente, antes de avançar para novos predicados no fluxo do prólogo.

B. Versões Comparadas

João 1:2, na convergência mais simples, NASB 1995/ESV/NRSV seguem com sujeito pessoal e repetem o quadro: “He was in the beginning with God.” (Pt: “Ele estava no princípio com Deus.”). ASV/KJV mantêm um inglês mais arcaico, mas sintaticamente anafórico: “The same was in the beginning with God.” (Pt: “O mesmo estava no princípio com Deus.”). YLT, por sua vez, é o que mais “encosta” na forma do demonstrativo grego houtos (“este; este mesmo”), preferindo equivalência deíctica: “this one was in the beginning with God;” (português: “este estava no princípio com Deus;”). CEV substitui o demonstrativo por repetição nominal e expande en archē com uma locução temporal: “From the very beginning / the Word was with God.” (Pt: “Desde o princípio, a Palavra estava com Deus.”). O ganho aqui é de clareza imediata, mas o custo formal é duplo: a troca de houtos (“este”) por “the Word” e a ampliação de en archē (“no princípio”) para “From the very beginning”, que desloca o foco do sintagma preposicional para uma locução temporal interpretativa.

Em português, ARA/ACF preservam o sujeito masculino que corresponde melhor ao demonstrativo do grego (e ao encadeamento joanino que personaliza o referente): “Ele estava no princípio com Deus.” NTLH opta por repetição nominal e, com isso, evita a decisão de gênero pronominal: “Desde o princípio, a Palavra estava com Deus.” NVI, ao alinhar o pronome ao gênero gramatical de “Palavra”, produz: “Ela estava com Deus no princípio.” — uma solução natural em português, mas mais distante do valor demonstrativo masculino de houtos (“este”), que em grego não está “amarrado” ao gênero do equivalente português de logos e, no contexto, funciona como retomada de um referente pessoal já instalado no discurso. NVT mantém o sujeito pessoal e reforça a ideia de continuidade: “Ele existia no princípio com Deus.”

João 1.3

Todas as coisas foram feitas (gr. ginomai) por ele. Antes da criação, o Verbo já existia (Jo 1.1). O tempo verbal aqui aponta para a Sua existência eterna. A criação, contudo, teve um início (Jo 1-3); ela não é eterna. Deus Pai criou o mundo (Gn 1.1) por meio do Filho (Cl 1.16; Hb 1.2). Jesus não foi parte da criação. Todas as coisas foram criadas por Jesus; Ele é o Deus Criador. O ensinamento bíblico sobre a criação, confirmado por esse versículo, esclarece que ela foi completa. Aqueles que creem na teoria da evolução e em reencarnação afirmam que a criação é uma obra contínua. No entanto, a criação foi realizada de forma plena, completa, por Deus, como vemos em Génesis 1; Ele agora está apenas cuidando de tudo que criou (Jo 5.17).

João 1.4

Veja que não está escrito aqui que a vida foi criada; ela já existia em Cristo (Jo 5.26; 6.57; 10.10; 11.25; 14.6; 17.3; 20.31). O homem depende de Deus para viver. Nossa existência, física e espiritual depende do poder provedor de Deus. Mas o Filho, por outro lado, em si mesmo tem a vida por toda a eternidade. A vida, Jesus Cristo, também é a luz dos homens. Essa figura de linguagem nos traz o conceito da revelação. Por ser a luz, Jesus Cristo releva ao homem tanto Deus como o pecado (Sl 36.9). Ainda nesse evangelho, pouco mais à frente, Jesus declara que é a vida (Jo 11.25) e a luz (Jo 8.12). A morte cessa, e as trevas se dissipam quando a vida chega e a luz começa a brilhar. Os mortos se levantam, e os cegos passam a ver, tanto física como espiritualmente.

João 1.5

luz resplandece nas trevas. Jesus veio a este mundo de trevas para trazer a luz espiritual (Is 9.2). O verbo compreender pode ser traduzido por (1) tomar posse, (2) dominar, ou (3) entender. Sendo assim, as trevas não sobrepujaram a luz; embora não a entendessem, não conseguiram vencê-la. Apesar de o homem [em trevas espirituais] não entender a luz nem a receber; apesar de Satanás e seus aliados resistirem à luz, eles não podem superar o poder da luz. Em suma, Jesus é a vida e a luz, e aqueles que o aceitam tornam-se filhos da luz (Jo 12.35-36). Quando os cristãos recebem a luz, Cristo, eles passam a fazer parte de uma nova criação (2 Co 4.3-6).

João 1.6

sse versículo mostra a diferença entre João e Jesus Cristo. Jesus é Deus (Jo 1.1), João Batista foi um homem enviado por Deus. Jesus é a luz dos homens (v. 4), João veio para testificar da luz (v. 7,8). Nossa função, assim como a de João, não é atrair as pessoas para nós mesmos, mas para Jesus. A escuridão era tão intensa que Deus teve de enviar Seu Filho para nos mostrar a luz. E a decadência moral não estava apenas no mundo, mas também em Israel e nos seus líderes religiosos.

João 1.7, 8

Não era ele [João Batista] a luz, mas veio para que testificasse da luz. A locução para que testificasse significa dar testemunho ou declarar. João usou o verbo testemunhar cerca de 39 vezes e o substantivo testemunho aproximadamente 14 vezes em seu Evangelho. Isso era muito importante para ele alcançar o seu propósito, ou seja, dar testemunho correto de Jesus como o Messias àqueles que creriam nele (Jo 20.30-31). Crer implica confiar. João usa o verbo crer quase 100 vezes para enfatizar o que uma pessoa precisa fazer para receber o dom da vida eterna. Não encontramos nesse Evangelho, porém, a palavra fé ou o verbo arrepender-se.

João 1.9

Ali [em Jesus] estava a luz verdadeira, que alumia a todo homem que vem ao mundo. Para trazer maior compreensão à encarnação do Verbo, esse versículo poderia ser assim traduzido: “Essa é a verdadeira luz [Jesus] que veio ao mundo para iluminar todos os homens”. Jesus se tornou homem para revelar a verdade a todas as pessoas. Ele revela a todo homem que vem ao mundo quem é o Criador, e a criação revela a todos na terra que há um Criador no céu (Rm 1.20).

A inclusão de todas as pessoas aqui contrasta com o exclusivismo por Israel no pacto antigo. Os profetas judeus ensinaram, e muitos judeus creram, que nos últimos dias as profecias em Zacarias 14 se cumpririam, e os gentios se converteriam. Isso também contrasta com a ótica das sociedades grega e romana. Os gregos jamais imaginariam que o conhecimento pudesse ser acessível a todos. Os romanos desprezavam os bárbaros, pois consideravam-nos uma raça inferior sem lei. Cristo encarnou para trazer luz a todos, embora nem todos recebessem a Sua luz, pois nem todos creram nele. A função de João Batista [como a voz profética, o arauto enviado à frente do Messias] era dar testemunho dessa luz. E nós, hoje, temos de aproveitar toda e qualquer oportunidade para refletir essa luz e dar testemunho dela. Dependendo do contexto, o termo mundo pode significar (1) o universo, (2) a terra, (3) a humanidade, ou (4) o sistema mundano contrário ao Reino de Deus. Neste texto de João, significa a terra, o local onde vive a humanidade.

João 1.10, 11

O verbo conhecer no versículo 10 significa não apenas ter o conhecimento, mas também receber [esse conhecimento, essa pessoa] de bom grado. Mas, em vez de receber a Jesus de braços abertos, o mundo virou as costas para Ele. A aceitação e a rejeição do Messias (v. 12) são os temas que começam nesse prólogo (Jo 1.1-18) e aparecem em todo o Evangelho de João.

João 1.12

A frase aos que creem no seu nome aparece três vezes no Evangelho de João (Jo 1.12; 2.23; 3.18). O termo nome nesse versículo não se refere à maneira como Jesus é chamado, mas ao que representa o Seu nome: o Senhor é a salvação (Jo 3.14,15). Nesse contexto, significa crer que Jesus é o Verbo, a vida e a luz, ou seja, que Ele é o Cristo, o Filho de Deus (Jo 20.31). A expressão deu-lhes o poder refere-se ao direito legal de assumir a posição de filhos de Deus. Nenhum de nós era filho de Deus, na verdade. Por natureza, éramos filhos da ira e estávamos condenados à morte e ao inferno. Imagine um miserável ser adotado como filho por um rei e receber o direito às suas riquezas e o status de realeza. Por meio da fé, crendo em Jesus, os pecadores, destituídos de todo e qualquer direito, tornam-se membros da família de Deus.

João 1.13

Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus. Esse novo nascimento que experimentam aqueles que creem em Jesus é espiritual. Os nascidos do Espírito não nasceram do sangue, ou seja, não estão ligados por laços consanguíneos. Não são fruto da fecundação natural. Não foram gerados pela vontade do carne, isto é, pelas nossas próprias forças ou vontade. O novo nascimento é uma obra feita somente por Deus. È um dom que recebemos gratuitamente (Jo 4-10,14), e não uma recompensa pelo nosso esforço pessoal. O novo nascimento está baseado no relacionamento individual com Cristo, e não em nossa condição pessoal. Cristo é o único Mediador entre Deus e o homem. Cristo é a vida (Jo 1.4; 14-6). Aqueles que creem nele nasceram de Deus, pois receberam vida espiritual.

João 1.14

E o Verbo se fez carne e habitou entre nós. O Verbo (gr. logos), Aquele que sempre existiu se fez (gr. ginomai, uma ação concreta) carne (gr. sarx) e habitou entre nós. O versículo 1 fala da natureza divina e eterna de Cristo e de Suas obras, que transcendem o tempo e o espaço. Aqui, no versículo 14, o Verbo entra na dimensão do tempo e do espaço, materializa-se, faz-se carne, e muda a história da humanidade. O Filho de Deus que existia desde a eternidade (Fp 2.5-9), por um tempo, abriu mão de Seu estado eterno e imortal e de Sua condição divina, e fez-se homem. Ele se tornou um ser humano, limitado pelo tempo e espaço, sujeito à dor e à morte. Jesus Cristo se identificou completamente conosco como homem. Mas Ele não tinha pecado, pois o pecado não fazia parte da natureza humana antes da Queda. Sendo assim, João usou a palavra carne neste versículo para aludir à natureza humana, e não sua propensão para o pecado (diferente do apóstolo Paulo, em Romanos 8.1-11). Deus habitou entre nós. O verbo traduzido como habitar é de origem grega e significa tabernacular, alude a ideia de armar uma tenda. No Antigo Testamento, o tabernáculo era uma tenda móvel, armada no meio do acampamento dos israelitas e que representava a presença de Deus no meio do Seu povo. [Isto aponta para o desejo do nosso Criador de ter comunhão conosco.] Deus não é um tirano arrogante que fica ditando ordens do Seu trono no céu. Apesar de ser Rei e Senhor, Ele quer viver entre nós. Para isso, chegou a fazer-se homem, para habitar conosco. E vimos a sua glória. No Antigo Testamento, a palavra glória estava ligada à presença divina (Éx 33.18). Assim como Deus manifestou a Sua glória no tabernáculo edificado por Moisés, em Cristo Ele revelou a Sua presença divina e o Seu caráter (Jo 18.6; 20.26,27). Como a glória do Unigênito do Pai. Jesus é o unigênito de Deus (Jo 3.16,18); o único Filho. O mesmo termo é usado para Isaque (Hb 11.17), embora este não fosse o único filho de Abraão, mas era o único filho da promessa. No evangelho de João, os que não nasceram do sangue, nem da vontade da came, nem da vontade do varão, mas de Deus (v. 13), pela fé em Cristo, foram chamados filhos de Deus (Jo 1.12,13). Mas Jesus Cristo é o unigênito de Deus, o único que sendo totalmente divino fez-se totalmente humano. Cheio de graça e de verdade. Jesus é cheio de graça e de verdade. Quando Deus se revelou a Moisés, Ele revelou a si mesmo como grande em beneficência e verdade (Êx 34.6). Quando aplicado a Jesus Cristo, esse atributo divino o identifica como o Autor da revelação e redenção perfeitas.

João 1.15

O que vem depois de mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu. Jesus nasceu depois de João Batista (Lc 1.36) e começou o Seu ministério depois do dele. Entretanto, João Batista disse que Jesus era antes dele, pois já existia desde a eternidade (v. 30). João Batista é um exemplo maravilhoso da humildade necessária para alguém cumprir seu ministério diante de Deus. Ele conhecia muito bem a mensagem específica que Deus havia designado para ele pregar, e não se desviou dela.

João 1.16

A maioria das pessoas atribui as palavras do versículo 15 a João Batista. As palavras dos versículos 16-18, porém, são de João, o escritor deste Evangelho, embora também possam ter sido ditas por João Batista. A expressão graça sobre graça significa várias manifestações da graça — termo também usado no versículo 17, que se encontra em Êxodo 32—34- Moisés e o povo de Israel receberam a graça de Deus, mas tinham uma grande necessidade de receber mais graça (Êx 33.13). [A plenitude da graça é a encarnação do Verbo.]

João 1.17

Em todo o Novo Testamento, graça é o favor de Deus concedido ao homem pecador, independente de suas obras e de seus méritos. A lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. João não está desmerecendo a Lei ou Moisés nesse versículo. A Lei e a graça não eram antagônicas no Antigo Testamento. Quem estava sob a Lei no Antigo Testamento também era salvo pela graça (veja Êx 34-6,7) - Em Êxodo 34.6,7a, Yahweh se revela como o Deus piedoso e misericordioso, embora na parte b do versículo 7 seja dito que Ele não tem o culpado por inocente [ou seja, Ele é justo e age com justiça]. Jesus reúne esses mesmos atributos divinos: a graça (que assegura o perdão) e a justiça (que garante o juízo previsto na Lei para aquele que comete pecado). Além disso, Jesus experimentou em Seu próprio corpo o castigo pelos pecados cometidos pelo homem e, desse modo, perdoou os transgressores. Sendo assim, João não disse que a Lei começou com Moisés, e Jesus trouxe a graça. Ele assinalou que, em Cristo graça e justiça (ou a verdade) se manifestam como uma coisa só. Embora a graça e a verdade manifestadas por Deus por meio da Lei dada a Moisés fossem abundantes, é na pessoa de Jesus Cristo que elas alcançaram plenitude da revelação.

João 1.18

Deus nunca foi visto por alguém. Deus é Espírito (Jo 4-24), é invisível (Cl 1.15; 1 Tm 1.17) e só pode ser visto quando se revela a alguém. Nenhum ser humano pode ver a face de Deus e viver (Êx 33.20). Abraão, o amigo de Deus, não o viu. Nem mesmo Moisés, aquele pelo qual a Lei foi dada a Israel, não pôde ver a face de Deus (Ex 33.22, 23). Mas o Filho tem um relacionamento íntimo com o Pai e o vê face a face (Jo 1.1; 6.46; 1 Jo 1.2). Deus se tomou compreensível aos olhos humanos por meio de Jesus. Nós podemos ver a face, o caráter de Deus, por meio de Seu Filho. È verdade que hoje não podemos ver Jesus, porém nós o conhecemos pela Sua Palavra [que é espírito e verdade]. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, este o fez conhecer. O seio é aqui usado aqui para expressar uma íntima comunhão (Jo 13.23; Lc 16.23). Aquele que é o Filho unigênito do Pai e que o conhece intimamente veio a esta terra e o fez conhecer. O termo unigênito significa único da espécie e expressa a ideia de intimidade, profunda comunhão que Jesus tem com o Pai. O verbo conhecer também pode ser traduzido por revelar. Portanto, Jesus Cristo, tendo a mesma natureza divina do Pai (Jo 1.1), tornou-se homem (Jo 1.14) para revelar Deus a nós (Jo 1.18) e também decidiu trazer-nos misericórdia e juízo (graça e verdade). Uma das muitas bênçãos da graça (Jo 1.17) é o conhecimento de Deus (Jo 1.18). E, quanto mais conhecemos a Sua glória, como nos é revelado nas Escrituras, mais somos transformados na mesma imagem (2 Co 3.18). Imagine só! Nós, que fomos criados conforme a imagem de Deus, mas que nos tornamos vis por causa do pecado, agora somos restaurados por conhecermos a Cristo, possuidores da mesma natureza de Deus. Poderia haver algo melhor para investirmos o nosso tempo do que conhecer a Cristo? Essa é a chave da vitória (Hb 12.2,3).

João 1.19—2.11

Esta passagem descreve o que aconteceu por uma semana no início do ministério do Senhor. No primeiro dia, João Batista deu testemunhou de Jesus aos líderes judeus (Jo 1.19- 28). No dia seguinte (Jo 1.29), João testemunhou novamente (Jo 1.29-34). No dia seguinte, João testemunhou a dois dos seus discípulos que passam a seguir a Cristo (Jo 1.35-42). No dia seguinte (Jo 1.43), Jesus chamou mais dois discípulos (Jo 1.43-51). Ao terceiro dia (Jo 2.1), ou seja, o terceiro dia após o último dia mencionado, Jesus foi para Canaã com Seus novos discípulos. A viagem de Betânia a Jericó, na Judeia (Jo 1.28), levava cerca de três dias de caminhada. Desse modo, em João 1.19—2.11, são relatados em detalhes os testemunhos da primeira semana.

João 1.19, 20

Os judeus aqui são os líderes judeus que compunham o Sinédrio e opuseram-se ao Senhor Jesus. O Sinédrio era responsável por avaliar todo aquele que fosse acusado de ser falso profeta ou blasfemo, bem como outros crimes de natureza religiosa. O Sinédrio era composto sobretudo por membros de dois grupos religiosos influentes na época: os saduceus e os fariseus. A delegação que foi investigar João Batista era de fariseus (Jo 1.24). A pergunta que eles fizeram a João Batista foi: Quem és tu? João afirmou que não era o Messias. No primeiro século, muitos esperavam a vinda do Messias anunciada pelos profetas do Antigo Testamento. E a preocupação principal dos líderes judeus era manter a paz sob os olhares de Roma; por isso estavam atentos a todos os supostos Messias. João foi rápido ao afirmar: eu não sou o Cristo.

João 1.21, 22

Es tu Elias? Era uma promessa do Antigo Testamento que Elias viria antes do dia grande e terrível do Senhor (Ml 4-5). Es tu o profeta? Moisés profetizou que o Senhor enviaria um profeta como ele (Dt 18.15). João Batista negou ser tanto um como o outro; ele não tinha nenhuma intenção de se passar pelo Messias. E, assim como João, não devemos ter de nós mesmos um conceito mais elevado do que realmente somos, mas ao contrário, devemos ter um conceito equilibrado, de acordo com a medida da fé que Deus nos concedeu (Rm 12.3 — NVI).

João 1.23

A voz- Cristo é o Verbo; João Batista, a voz. Quando foi pressionado a dizer quem era, João Batista afirmou ser o cumprimento de Isaías 40.3: Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai no ermo vereda a nosso Deus. Nos dias de Isaías havia poucas estradas. Quando um rei viajava, estradas eram construídas para que a carruagem real passasse por elas e não ficasse atolada na lama. Isaías disse que antes de Deus aparecer para manifestar Sua glória, uma voz seria ouvida, convidando Israel a endireitar o caminho por onde o próprio Deus passaria. João identifica a si mesmo: Eu sou a voz do que clama no deserto: endireitai o caminho do Senhor.

João 1.24

Os fariseus constituíam uma seita muito influente com quase seis mil membros. Além de serem exímios intérpretes da Lei em Israel, eles também eram extremamente zelosos quanto aos costumes e às tradições. Nem todos os fariseus eram como os que foram descritos por João (Jo 5.20), porém, de maneira geral, esses líderes religiosos não aceitaram o Messias.

João 1.25

Realizar o ritual do batismo era o mesmo que assumir uma posição de autoridade. Os fariseus questionaram João Batista quanto à autoridade que ele possuía para realizar tal ato religioso: Por que batizas [...] se tu não és o Cristo, nem Elias, nem o profeta? As autoridades judaicas achavam que eram os únicos detentores do direito de legitimar pregadores religiosos. A autoridade de João, contudo, havia sido dada por Deus. Ele conhecia muito bem Sua missão (Jo 1.26) e a realizou no espírito e na virtude de Elias (Lc 1.17).

João 1.26, 27

Este é aquele [...] do qual eu não sou digno de desatar as correias das sandálias. Desatar as correias das sandálias era trabalho de escravos. O Talmude judaico prescrevia: “Tudo que um servo faz para o seu senhor, o discípulo deve fazer para o seu mestre, menos a tarefa humilhante de desatar as correias das sandálias” . Com aquela declaração no versículo 26, João Batista estava dizendo: “Jesus Cristo é o Deus vivo, e eu sou a voz que clama no deserto, Seu servo e escravo”.

João 1.28

A localização de Betânia é incerta. Alguns acham que Betânia aqui não é a mesma que conhecemos, próxima a Jerusalém. Do outro lado do Jordão significa no lado oriental do rio Jordão. E este, com toda certeza, era o local onde João batizava.

João 1.29

Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! No Antigo Testamento, os israelitas sacrificavam cordeiros na Festa da Páscoa (Ex 12.21) como ofertas a Deus (Lv 14-10-25). Jesus Cristo é o Cordeiro de Deus que foi oferecido como sacrifício pelos pecados não apenas de Israel, mas de toda a humanidade (Is 52.13—53.12). Com essa magnífica frase, na introdução do seu Evangelho, João revela resumidamente todo o plano da redenção do Antigo Testamento.

João 1.30

Um homem que foi antes de mim. Jesus é superior em posição e honra. Porque já era primeiro do que eu. Jesus já existia antes de João Batista.

João 1.31

Eu não o conhecia. A princípio, João Batista não tinha certeza de que Jesus era o Messias. Ao que parece, embora Maria e Isabel fossem parentes (Lc 1.36), não há prova alguma de que Jesus e João tenham tido contato durante a infância. Tudo que João sabia é que devia batizar com água e que o Messias seria manifesto a Israel ao ser batizado. Deus deu um sinal a João para que este reconhecesse o Messias: o Espírito Santo desceu do céu como uma pomba e pousou sobre o Filho de Deus. Quando Jesus foi batizado, o Espírito Santo desceu sobre Ele (v. 32), revelando a João quem Ele era (v. 33). Mateus ainda fala de uma voz que veio do céu, dizendo: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo (Mt 3.17).

João 1.32-34

Esse é o que batiza com (gr. en) o Espírito Santo. O Novo Testamento menciona sete vezes esse ministério de Jesus. Cinco vezes em citações proféticas (Mt 3:11 ;M c l.8 ;Lc 3.1 6; Jo 1.33; At 1.5), uma em citação histórica (At 2.16-18), e outra em texto doutrinário (1 Co 12.13). Embora a tradução em português varie entre com e no, o grego usa de um modo consistente a preposição en, que fala da esfera em que Cristo batizava. Todavia, o Messias não fez isso enquanto estava nessa terra. O batismo com o Espírito Santo aconteceu pela primeira vez durante o Pentecostes que se seguiu à morte e à ressurreição de Jesus (At 1.5; 11.15,16), tomando-se uma realidade na vida de todos os cristãos por ocasião do novo nascimento (1 Co 12.13).

João 1.35

Estava João outra vez ali na companhia de dois dos seus discípulos. Um dos dois discípulos de João era André (v. 40). O outro não é citado aqui, mas provavelmente era o próprio João, autor desse Evangelho.

João 1.36, 37

Os dois discípulos [...] seguiram a Jesus. João Batista estava disposto a perder seus discípulos, caso eles fossem seguir a Jesus. Depois de apresentar Jesus, João sai de cena e só aparece novamente no final do capítulo 3 (v. 22-36). Seguiram a Jesus. Os discípulos a partir desse momento não somente passaram a seguir a Jesus, mas também tiveram a bênção de João Batista para que se unissem a ele.

João 1.38

E Jesus [...] disse-lhes: Que buscais? Essa foi uma das perguntas mais importantes que os seguidores de Jesus tiveram de responder. No entanto, a pergunta de Jesus a esses discípulos foi mais profunda do que a resposta obtida — onde estás hospedado? (NVI). Em Sua pergunta Jesus intencionava deixar claro Seu propósito para os novos discípulos. Será que eles estavam procurando um revolucionário? Ou talvez um modo de vida mais fácil? Se assim fosse, Jesus não seria a melhor escolha certamente. Então, Jesus começou a ensinar-lhes que tipo de compromisso Seu discipulado exigiria.

João 1.39

E era já quase a hora décima. Há seis referências a um período do dia no Evangelho de João (Jo 1.39; 4.6, 52; 18.28; 19.14; 20.10). Então, a questão é: que sistema João usava para contar o tempo? Os judeus começavam a contar um novo dia ao pôr-do-sol do anterior. O dia dos romanos começava à meia-noite, como o nosso hoje. João, que provavelmente escreveu seu Evangelho em Éfeso, ao que parece, usava o sistema romano. E se ele não estivesse usando esse sistema, então, João 19.14 estaria em conflito com Marcos 15.25. Pelo sistema judeu de contagem do tempo, a décima hora desse versículo seria quatro horas da tarde. Segundo o sistema romano, a décima hora era dez da manhã. Sendo assim, fica claro que João estava usando o sistema romano; a décima hora era mesmo dez da manhã. Jesus convidou os dois discípulos para passar quase praticamente o dia inteiro com Ele.

João 1.40-42

Um dos primeiros exemplos de evangelismo pessoal: André levou as boas-novas ao seu irmão, Pedro, dizendo que Jesus era o Messias. André ainda aparece mais duas vezes no Evangelho de João (Jo 6.4-9; 12.2-22) e, em ambas, ele está levando alguém até Jesus. Veja como Jesus vai ao encontro da necessidade pessoal de cada um deles. A André, Jesus revelou Sua humildade. A Pedro, Jesus revelou Sua habilidade de mudar o caráter humano. A Filipe, Ele revelou Sua autoridade. A Natanael, Ele revelou Sua onisciência. Tais demonstrações levaram cada um desses discípulos a testemunhar que Jesus é o Filho de Deus. Tu serás chamado Cefas (que quer dizer Pedro). Cefas é uma palavra em aramaico que significa rocha (Mt 16.18). Jesus viu queocaráter de Pedro era como uma rocha, o que no futuro o levaria a tornar-se um líder e uma fiel testemunha.

João 1.43, 44

Jesus [...] achou a Filipe, e disse-lhe: Segue-me. Segundo esse versículo, parece que Filipe passou a seguir Jesus sem ter sido evangelizado por outro discípulo, mas há alguns fatores que indicam que André e Pedro estiveram com ele antes de ele se encontrar com Jesus. O versículo 44 diz que André e Pedro eram da mesma cidade de Filipe, o que sugere que eles tenham conversado. Além disso, quando Filipe disse a Natanael o que havia acontecido, ele disse: Havemos achado [...] Jesus de Nazaré (v. 45).

João 1.45

O nome Natanael não é mencionado nos Evangelhos Sinóticos. Mas em cada lista dos apóstolos registrada em Mateus, Marcos e Lucas o nome Bartolomeu é citado junto ao de Filipe. E bem provável que Natanael e Bartolomeu sejam a mesma pessoa. Filho de José. Até então, Filipe não sabia acerca do nascimento virginal de Jesus. Todavia, todos os discípulos logo vieram a reconhecer Jesus como Filho de Deus (v. 49).

João 1.46

Pode vir alguma coisa boa de Nazaré? Natanael sabia que os profetas do Antigo Testamento haviam profetizado que o Messias nasceria em Belém; e Nazaré era um vilarejo inexpressivo. Por isso, Natanael não podia aceitar que alguém tão importante como o Messias viesse de um lugar tão insignificante como Nazaré. Vem e vê. Percebe-se que Filipe não foi com Natanael. A verdade não é transmitida com mais eficácia por meio de uma argumentação impositiva, mas por meio de um gentil convite: Vem e vê!

João 1.47

Eis aqui um verdadeiro israelita. Por um bom tempo, Jacó, um patriarca israelita, foi um homem astuto e cheio de dolo. Natanael era um israelita, um descendente de Jacó, porém, verdadeiro e sincero. Jesus viu o caráter de Natanael como um livro aberto (Jo 2.24)

João 1.48, 49

Te vi eu estando tu debaixo da figueira. No Antigo Testamento, esse termo sugere ideia de descanso e segurança (1 Rs 4-25; Mq 4-4; Zc 3.10). Natanael talvez estivesse meditando debaixo da figueira sobre o sonho de Jacó citado nos versículos 50 e 51. Te vi eu. Jesus aqui demonstra Seu conhecimento sobrenatural. Ao que parece, foi o que convenceu Natanael; sabedor de tal detalhe de sua vida, Jesus tinha de ser o Filho de Deus, o Rei de Israel (Jo 20.31). Esses dois títulos se referem ao Messias.

João 1.50

Coisas maiores do que estas verás. Jesus garantiu a Natanael que ele veria manifestações sobrenaturais ainda maiores no futuro. Jesus poderia estar referindo-se aos milagres dos capítulos 2 ao 11; Ele poderia estar se referindo também à futura glória de Cristo na vinda do Filho do homem (Jo 1.51; Dn 7.13).

João 1.51

Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subirem e descerem. Jacó teve uma visão de anjos subindo e descendo do céu por uma escada (Gn 28.12). E o sentido aqui é esse mesmo: uma ligação entre o céu e a terra. Filho do Homem, a mesma expressão usada em Daniel 7.13 para se referir a um ser celestial, era a maneira que Jesus mais gostava de referir-se a si próprio (Mt 8.20; Mc 2.10).

II. Hebraísmos e o Texto Grego

A abertura “en archē ēn ho logos” em João 1:1 transpõe para o grego o horizonte semita de bĕrēʾšît (“no princípio”), reencenando a cadência de criação de Gênesis 1:1-3 (“bĕrēʾšît bārāʾ ʾĕlōhîm... / “Disse Deus... e houve luz”: yĕhî ʾôr... wayhî ʾôr). A escolha de logos recobre o campo hebraico de dābār (“palavra” como agente eficaz), que no Antigo Testamento cria e cumpre o desígnio divino (“Pela palavra do SENHOR fizeram-se os céus”, Salmos 33:6; “assim será a minha palavra... não voltará para mim vazia”, Isaías 55:11). Até a repetição de egeneto (“veio a ser”) no prólogo ecoa o wayhî hebraico e a fórmula “genēthētō phōs... kai egeneto phōs” da própria tradução grega de Gênesis 1:3, sinal de calque semítico reconhecido em estudos de estilo do grego do Novo Testamento (Gênesis 1:1–3; Salmos 33:6; Isaías 55:11).

O retrato de João do “testemunho” nasce do universo jurídico da Torá. Quando o evangelista introduz o Baptista “eis martyrian” (João 1:7–8), ele trabalha com a semântica de ʿēd/ʿēdût (“testemunha/testemunho”) e com o princípio probatório de “duas ou três testemunhas” (Deuteronômio 19:15), uma coloração hebraica que a Septuaginta verte com o mesmo léxico jurídico que João assume em sua narrativa e teologia da prova. Essa presença de “semitismos de estilo” — sintaxe paratática com kai, giros herdados do grego bíblico e calques do hebraico — é precisamente o que a bibliografia descreve como “um estilo bíblico grego moldado pela LXX”, isto é, um grego intencionalmente permeado pela cadência semita de Escritura.

Quando João escreve que o Logos “eskēnōsen en hēmin” (João 1:14), ele aciona deliberadamente o verbo hebraico šākan (“habitar”) e o campo de miškān (“tabernáculo”), centro do Êxodo: “Façam-me um santuário para que eu habite no meio deles” (Êxodo 25:8; cf. Êxodo 40:34-35). O efeito é duplo: lexical, porque eskēnōsen alude ao “armar tenda” de Deus no deserto; e imagético, porque a “glória” (doxa) que os discípulos “contemplaram” (João 1:14) convoca o rastro espesso do kāvôd que enchia a Tenda do Encontro. É por isso que leituras acadêmicas veem em João 1:14 um aceno programático ao Êxodo e à teologia do Tabernáculo: o Deus que habitou entre Israel sob a nuvem agora “tabernacula” em carne.

Na mesma frase, “plērēs charitos kai alētheias” (João 1:14) mapeia de modo quase formulaico a coligação hebraica ḥesed weʾemet (“amor leal e fidelidade”) proclamada na teofania do nome em Êxodo 34:6-8. João mantém a semântica de aliança, mas verte ḥesed por charis (graça), preservando alētheia para ʾemet (verdade), e assim inscreve a identidade do Filho no autorretrato de YHWH revelado a Moisés. O par reaparece em João 1:17, como contraste-organicidade entre a dádiva por meio de Moisés e a plenitude encarnada no Messias.

A sequência “ek tou plērōmatos autou elabomen charin anti charitos” (João 1:16) também se lê à luz do Êxodo: “graça em lugar de graça” (ou “graça sobre graça”) despliega a ideia veterotestamentária de favor renovado — ḥēn — no pacto, que cerca a súplica e a resposta de Êxodo 33:12-19 antes da proclamação de Êxodo 34:6–7. Nessa moldura, a escolha lexical de João integra o léxico hebraico de favor e fidelidade à economia cristológica da plenitude.

O título “ho amnos tou theou” (João 1:29) condensa percursos lexicais e tipológicos hebraicos. Ele remete ao cordeiro pascal de Êxodo 12 (śehkebeś), cujo sangue preserva as casas, e à figura do Servo levado “como cordeiro ao matadouro” (kaśśeh laṭṭeḇaḥ yūbal, Isaías 53:7). Assim, o hebraísmo do título é tanto léxico quanto intertextual: João reconhece em Jesus a convergência das matrizes de sacrifício e libertação que estruturam a memória de Israel (Êxodo 12; Isaías 53:7).

O enunciado “Ninguém jamais viu a Deus” (João 1:18) volta ao Sinai para orientar sua teologia da revelação: “homem nenhum verá a minha face e viverá” (lōʾ yirʾennî hāʾādām wāḥāyÊxodo 33:20; cf. 33:23). O hebraísta do quarto evangelho não dissolve a inacessibilidade da kābôd; antes, confessa que o “Filho unigênito” (ho monogenēs) a interpreta e a dá a conhecer, retomando em grego o itinerário da teofania mosaica agora mediada pessoalmente (Êxodo 33:18-23; João 1:18).

Mesmo detalhes narrativos do prólogo são moldados por hebraísmos. O período “egeneto anthrōpos apestalmenos para theou” (João 1:6) apresenta João como “enviado”, repercutindo o verbo hebraico šālaḥ (“enviar”) que a Septuaginta verte de modo estável por apostellein, linguagem de vocação profética que ressoa, por exemplo, na comissão de Isaías (“Quem enviarei?... envia-me”, Isaías 6:8). A sintaxe paratática com kai ao longo do capítulo — frequentemente vista como molde do waw consecutivo — e a locução kai egeneto como giro formulaico reforçam como a fraseologia grega de João guarda a marca do hebraico bíblico internalizado via Escrituras (Isaías 6:8).

Por fim, o léxico luz–trevas (to phōs / hē skotia) em João 1:4-5 retoma não só Gênesis 1:3-5 na criação da luz, mas o padrão profético de iluminação sobre o povo em sombras (Isaías 9:1-2). O evangelista redistribui esse vocabulário em modo semita: a “luz verdadeira” que “ilumina a todo ser humano” não é conceito abstrato, mas o próprio agir eficaz de Deus, como o dābār que cria, julga e salva.

Esses traços — calques como kai egeneto, parataxe “hebraizante”, escolhas lexicais motivadas por šākan/miškānkāvôdḥesed weʾemet e a matriz jurídico-profética de “testemunho” — mostram que João 1 foi pensado, frase a frase, como grego bíblico saturado de hebraico. Não é “colar de citações”, mas prosa koiné que deliberadamente respira a sintaxe, a morfologia e o léxico das Escrituras de Israel, tal como lidas na LXX, para narrar a chegada do Deus de Êxodo 33-34 em carne e entre nós.

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