Os Adversários de Paulo
A oposição é com frequência
pressuposta nas cartas paulinas, que não são tratados teóricos, mas respostas
fundamentadas a situações existentes nas Igrejas. As respostas epistolares
paulinas quase sempre refutam a oposição a sua pessoa, ou a seu ensinamento. As
vezes são refutações gerais e apenas subentendem a existência de resistência
local às doutrinas paulinas e, nesse caso, são consideradas fora do escopo deste
artigo. Outras vezes, porém, Paulo se refere a adversários de fora que se
infiltraram nas Igrejas que ele instituiu com o intuito de subverter suas
doutrinas e sua influência. No que se segue, limitaremos nossa análise aos
intrusos que penetraram nas assembleias paulinas. Os biblistas dedicam
considerável esforço para identificar esses adversários. A questão dos
adversários em 2 Coríntios é tão importante que C. K. Barrett declarou ser ela
“uma das questões cruciais para o entendimento do Novo Testamento e as origens
do cristianismo”, opinião com a qual concordamos. Texto em que a oposição a
Paulo está mais clara, 2 Coríntios foi submetido a intensa investigação e
comprovou ser o ponto mais apropriado para começar.
1. Estudo das opiniões
2. Os adversários de
Paulo em Corinto: “servidores da justiça”
3. Paulo e os apóstolos
de Jerusalém
4. Os adversários das
Igrejas gálatas
5. Os adversários de
Paulo: um perfil
6. Os judaizantes,
Tiago e Paulo
7. A oposição em
Colossas: gnosticismo judaico
8. A oposição em
Filipos: os judaizantes
9. A oposição nas
Cartas pastorais
1. Estudo das opiniões
E.
E. Ellis e J. J. Gunther resumem proveitosamente o conjunto de opiniões quanto
à identidade dos adversários de Paulo. Falando em termos gerais, a identidade
dos adversários em 2 Coríntios classifica-se de três maneiras.
1.1. Judaizantes.
Esta perspectiva foi
classicamente expressa por F. C. Baur e repetida com requinte por C. K.
Barrett, M. E. Thrall e R. P. Martin. Ela afirma que os recém-chegados a
Corinto eram judeus palestinenses determinados a persuadir os coríntios gentios
a se adaptar à estrutura do judaísmo. Há
muito que dizer a favor desta hipótese. Entretanto, com base em 1 Coríntios
1,12, Baur também afirmou que os adversários eram emissários de Pedro, que
vieram a Corinto dizendo-se “de Cristo” (2Cor 10,7). Além disso, Baur traçou
uma distinção entre os falsos apóstolos (pseudapostoloi, 2Cor 11,13-15) e os
superapóstolos (hyperlian apostoloi, 2Cor II,5; 12,11), dos quais os falsos
apóstolos se originavam, a saber, os apóstolos de Jerusalém (ver Apóstolo). Contra isso, devemos
mencionar, primeiro, que nem Pedro nem
Tiago são mencionados em 2 Coríntios,
embora em outras ocasiões Paulo não hesite em referir-se a eles pelo nome e às
vezes em termos negativos (G11,18- 19; 2,9.11-14; ICor 1,12; 9,5). Além do
mais, a diferenciação entre os hyperlian apostoloi e os pseudapostoloi parece ser
arbitrária. Bultmann afirmou que a transição depseudapostoloi (2Cor 11,1-4)
para os hyperlian apostoloi (2Cor 11,5) é repentina demais para fazer sentido.
Talvez a tese de Baur force a distinção. Baur não chega a sugerir que Paulo chamou
Pedro e Tiago de “falsos apóstolos... disfarçados em apóstolos de Cristo...
servos [de Satanás]” (2Cor 11,13.15). Hyperlian apostoloi, que parece menos
sinistro, é mais um tributo prestado aos líderes de Jerusalém. Além disso, a
única referência explícita a pseudapostoloi está imprensada entre as duas
referências a hyperlian apostoloi em uma passagem da carta (2Cor 10-12) na qual
Paulo utiliza a ideia de hyper (superior) ironicamente. Paulo usa palavras que
contêm o prefixo hyper para atacar os pseudapostoloi por seu imperialismo
missioná rio (ultrapassando o próprio limite, hyperektenein, 2Cor 10,14)
para além das terras (ta hyperekeina, 2Cor 10,16), para seu orgulho de
revelações extraordinárias (té hyperbolê tõn apokalypseõn, 2Cor 12,7) e
qualquer orgulho resultante Qtyperairesthai, 2Cor 12,7). Para expor o orgulho
deles, o próprio Paulo se vangloria ironicamente de ser “muito mais” (hyper)
ministro de Cristo em termos dos sofrimentos que ele relaciona (2Cor 11,23-33;
ver Angústias). A estreita associação de palavras iniciadas por hyper com os
pseudapostoloi toma provável que os hyperlian apostoloi e os pseudapostoloi
sejam as mesmas pessoas.
1.2. Gnósticos.
Diametralmente oposta à
tese de Baur está a opinião de que os adversários eram “pneumatistas gnósticos”
que minimizavam o Jesus terreno em favor de um Senhor celestial e levavam as
doutrinas paulinas da graça a extremos antinomistas. Essa teoria sustenta que,
como pregavam “um espírito diferente” (2Cor 11,4), os adversários deviam ser
antinomistas, pois Lei e Espírito (ver
Espírito Santo) se excluem mutuamente. Considera-se 2 Coríntios 6,14-7,1 a
reação paulina ao antinomismo deles. Eles desprezam a gnõsis inferior (2Cor 11,6)
e a fraqueza confessa (2Cor 10,10) de Paulo e se apresentam como os que
oferecem uma gnõsis superior apoiada por “sinais” milagrosos e visionários (ver
Visões). Esta hipótese considera a oposição a Paulo em 2 Coríntios uma extensão
das tendências ao gnosticismo evidentes em 1 Coríntios. Um dos primeiros defensores
desta teoria foi W Lutgert (ver Gunther), para quem os adversários se formaram
no judaísmo liberal da diáspora. Por sua vez, Lutgert influenciou as
interpretações de R. Bultmann e W. Schmithals. Essa opinião é enfraquecida pelo caráter fortemente hebraico/israelita
dos que se opunham a Paulo (2Cor 11,22) e pela mensagem deles, que parece ter
se concentrado em Moisés e, portanto, na
lei (2Cor 3,4-16). Além disso, não temos nenhuma certeza de que no tempo de Paulo
o gnosticismo (ver Gnose, gnosticismo) estivesse tão claramente definido quanto
essa hipótese supõe.
1.3. Homens divinos (theioi andres).
Mais recentemente, D.
Georgi desenvolveu a hipótese de que — com base em seus dons e sinais — os adversários
de Paulo se proclamavam “homens divinos” em sequência a Jesus e Moisés, que eram
ambos figuras carismáticas e operavam milagres. Eram missionários
judeu-helenísticos itinerantes cujos métodos e crenças se originaram em um meio
helenístico. Suas confiantes alegações e fortes exigências feitas aos coríntios
faziam parte de sua legitimidade como theioi andres que eles insistiam em opor
às fraquezas manifestas de Paulo. Uma
variação dessa teoria encontra-se na de G. Friedrich, que afirma que os modelos
apontados pelos recém-chegados não eram tirados do mundo helenístico, mas do
cristianismo primitivo. Segundo Friedrich, Estêvão e Filipe, os líderes de Atos
6 que operavam milagres, reuniram simpatizantes que então foram a Corinto com
poderes semelhantes, para apresentar Jesus como um triunfante segundo Moisés,
em oposição à figura sofredora que Paulo anunciava. A teoria de Georgi é
prejudicada porque os theioi andres não são o tipo claramente definido que ele
supõe e a referência a eles vem de textos mais tardios que o NT (veja
Blackbum). Seu argumento para a alegação deles de estarem “à altura de tal
missão”, terem “capacidade pessoal” (hikanos, hikanotès, 2Cor 2,16; cf. 2Cor
3,5) não exige que se apresentem como “homens divinos” — bastaria a simples
superioridade sobre Paulo.
Embora proveitosamente sugestiva, a hipó tese de
Friedrich não inclui os muitos pontos nos quais a teologia de Estêvão pode ter
antecipado e, na verdade, ter sido a fonte das doutrinas paulinas em vez de ser
o contrário delas. Embora, sem dúvida, o crescente conhecimento do NT estimule
outras teorias quanto a sua identidade e suas intenções, considerando que só
encontramos os adversários de Paulo quando este os contradiz de passagem, é
improvável que cheguemos a um consenso. Os indí cios das cartas paulinas não
são sistemáticos e sim polêmicos demais para permitir decisões históricas
seguras.
2. Os adversários de Paulo em Corinto:
“servidores da justiça”
2.1. Indícios de 2 Coríntios. A chave para a identidade dos adversários de
Paulo em Coríntios encontra-se em sua declaração: Esses indivíduos são falsos
apóstolos, falsários, disfarçados em apóstolos de Cristo... é pouca coisa para
os servos [de Satanás] disfarçarem-se em servidores de justiça (2Cor 11,13-15).
Em termos da apresentação que fazem de si mesmos, os adversários vieram como
“apóstolos de Cristo”, “trabalhadores” e “servos”, isto é, nos mesmos termos de
Paulo. Sua falsidade era disfarçarem-se em “servidores da justiça ” (diakonoi
dikaiosynès). Antes, Paulo comparou dois ministérios (diakoniai) — de Moisés e
de Cristo (2Cor 3,4-18). O primeiro, um “código escrito” que “mata”, o segundo
— “uma Aliança nova” —, “[escrita] no Espírito”, “vivifica” (2Cor 3,6). O
primeiro é “ministério (diakonia) de condenação”, o segundo é “ministério (diakonia)
da justiça” (dikaiosynês, 2Cor 3,9). Como esse “ministério”, do qual Paulo se diz
detentor (2Cor 4,1), serve de mediador entre a “vida” e a “justiça”? Paulo
declara que foi pela morte de Cristo que “Deus o identificou com o pecado... a
fim de que por ele nos tomemos justiça (dikaiosynê) de Deus” (2Cor 5,21). Este é
“o ministério (diakonia) da reconciliação... a palavra de reconciliação” (ver
Paz, reconciliação) que Deus confiou a Paulo (2Cor 5,18-19; cf. 2Cor 6,3). Paulo
é, portanto, um diakonos na “diakonia da justiça”, por intermédio da cruz de
Cristo (ver Cruz, Teologia da), enquanto os adversá rios são diakonoi da
diaknonia de justiça de Moisés por intermédio do “código escrito” que, todavia,
não traz “justiça”, mas “condenação” (2Cor
3,9).
A “falsidade” dos adversários está na mensagem que transmitem aos
coríntios de que Deus distribui justiça pelo “código escrito”, não pela cruz.
Ao propor aos coríntios uma alternativa à morte de Cristo como o meio da “justiça”
de Deus (ver Justiça de Deus), Paulo declara que esses homens são “servos” de Satanás
(2Cor 11,15). A frase “servidores da justiça” é, portanto, decisiva na
identificação dos adversários de Paulo em Corinto. Como o deles era “o ministério
do código escrito”, isto é, “de Moisés” (2Cor 3,6-7), acreditamos que esses
homens eram, na verdade, judaizantes e
que sua versão da “justiça de Deus” por meio do “código escrito” estava no
centro de sua mensagem e era sua principal diferença do apóstolo dos gentios. Infelizmente,
só podemos conjeturar qual era a mensagem exata deles. Entretanto, mais uma vez
a palavra justiça nos ajuda. Essa palavra não ocorre de modo algum nas cartas
aos tessalonicenses e só aparece uma vez em 1 Coríntios. A ocorrência única de justiça
a este respeito, em carta escrita para uma Igreja grega, sugere que as questões
ligadas à justiça só surgiram na Macedônia ou na Acaia por ocasião da redação
de 2 Coríntios, em 56 d.C.
2.2. Indícios de Romanos.
Todos concordam que
Romanos foi escrita em Corinto por volta
de 56 ou 57 d.C., não muito depois da redação de 2 Coríntios na Macedônia. Ali
vemos que justiça ocorre 49 vezes, com numerosas ocorrências das palavras
estreitamente relacionadas justificar (dikaioõ) e justo (dikaios; ver Justificação).
Como a família de palavras de justiça está no centro do argumento de Romanos (ver
o importante texto Rm 1,17), é provável que ali Paulo aborde as mesmas questões
e os mesmos (ou o mesmo tipo de) adversários que em 2 Coríntios. Embora em 2
Coríntios Paulo não faça menção à circuncisão , é bem possível que a
circuncisão fizesse parte da disputa em Corinto. Ela era, com certeza,
proeminente em Romanos e em Gálatas.
A Carta aos Romanos pode muito bem ser a
mais significativa resposta paulina à questão de justiça tão dolorosamente
levantada em Corinto e ardente mas irregularmente abordada em 2 Coríntios. Com
certeza, em Romanos ainda se ouvem ecos polêmicos que talvez se relacionem com
os mesmos adversários de 2 Coríntios. Há os que “caluniosamente pretendem” que Paulo
diga: “por que não faríamos o mal para que daí resulte o bem?” (Rm 3,8; cf. Rm
6,1; G12,17). Seus comentários defensivos a respeito dos judeus (Rm 3,1.9; 4,1;
9,3-5; 11,1) são consistentes com acusações que possam surgir de um apostolado
judaizante com a mensagem concentrada na justiça pela observância das obras da
lei (cf. Rm 3,21—4,3.16; 10,3-4). Possivelmente, “os que suscitam divisões e
escândalos, afastando-se do ensinamento que recebestes” (Rm 16,17), representa
a advertência paulina geral aos cristãos romanos quanto à mensagem judaizante
oriunda de problemas recentemente encontrados em Corinto.
2.3. Recém-chegados em Corinto.
2 Coríntios deixa claro que os adversários de Paulo em Corinto eram
um grupo (“tantos outros”, 2Cor 2,17) de pessoas (hoi kapèleuontes, “vendedores”
ou “traficantes”, 2Cor 2,17) que “vieram” para Corinto (2Cor 11,4-5) de fora
(suas “cartas de recomendação”, 2Cor 3,1), onde eles e sua mensagem foram
recebidos (2Cor 11,4.20). 2 Coríntios leva-nos a concluir que esses recém-chegados
legitimaram sua diakonia em Corinto “vangloriando-se” (kauchasthai, 2Cor 10-12
passim) de suas vantagens, ao “comparar” (synkrinein, 2Cor 10,12) suas forças
com as fraquezas de Paulo. Na viagem missionária a Corinto, eles percorreram
uma distância maior, Paulo uma distância menor (2Cor 10,13-14). Eles têm
“cartas de recomendação” (de Jerusalém?); Paulo não tem nenhuma (2Cor 3,1-3). Eles
são figuras triunfantes adequadas (ver Triunfo); Paulo é inadequado, uma triste
figura enquanto se move com dificuldade e frustração de um lugar para outro
(2Cor 2,14-3,5; 4,1.16). Extrapolando de observações que Paulo faz a respeito
de si mesmo, alguns biblistas afirmam que essas experiências eram reivindicadas
pelos adversários. São homens de poder divino (“fora dos sentidos”, 2Cor 5,13), “fora
do... corpo... arrebatado ao paraíso” (ver Céu), onde têm “visões” e ouvem
“palavras inexprimíveis” que não é permitido repetir (2Cor 12,1-5; ver Visões),
enquanto Paulo é mundano, ministro sem poder, temporal e fraco (2Cor 10,3-6;
12,1-10; cf. 2Cor 5,12-13).
Possivelmente, eles produziam “os sinais distintivos do apóstolo” (2Cor 12,12),
enquanto Paulo, eles alegam, não os produzia. Eles são fortes na eloquência
(2Cor 11,5 6) e em sabedoria , enquanto ele é “nulo” na eloquência e, em geral,
um “louco” (2Cor 11,1 12,13). Em tudo ele é “inferior” (cf. 2Cor 11,5), enquanto
eles são superiores, melhores (hyper, 2Cor 11,23). Aqui está a dificuldade de
identificar esses adversários como “hebreus” judaizantes, dispostos a impor
“Moisés” (a lei) aos coríntios (2Cor 11,22; 3,4-16). Corinto era uma metrópole greco-romana.
Como teriam os “hebreus” estilo suficiente para ser aceitos por esse público e,
além do mais, revelar proficiência nas artes retóricas (ver Retórica; Crítica
retórica) de “vanglória” e “comparação”? Esses “hebreus” parecem comportar-se
como gregos.
As duas principais teorias a respeito dos adversários — que eles
deviam ser judaizantes ou gnósticos — são perfeitamente compreensíveis devido à
aparente contradição implícita nos indícios a respeito deles contidos em 2
Coríntios. Entretanto, temos disponíveis novas informações que mudam toda a
nossa ideia da vida da Judeia do século I. Com base em inscrições funerárias,
M. Hengel afirma que havia 16.000 judeus de língua grega em Jerusalém, de uma população
calculada em 100.000 (Hengel, 10; ver Helenismo). Ele conclui que muitos deles deveriam
gozar de alto nível de educação clássica. E bastante concebível, portanto, que
os “hebreus” que vieram a Corinto falassem grego perfeito e possuíssem habilidades
em retórica. O próprio Saulo/Paulo não era destituído de capacidade nesses
campos, sem falar em seu colaborador Silas/Silvano (ver Colaboradores), o
profeta judeu-cristão de Jerusalém a quem se atribui a bem escrita 1 Pedro (At
15,32; 2Cor 1,19; lPd 5,12). E o que dizer do êxtase paranormal, das visões,
das revelações e dos milagres dos quais os adversários de Paulo dependiam, pelo
menos em parte, para ser aceitos em Corinto? O estudo da história da Judeia no
período de 44-66 d.C. revela um ambiente de desintegração política, ativismo
revolucionário e fervor apocalíptico que se expressavam em inspiração profética
e sinais milagrosos (ver, e.g., Josefo, GJ2,13,4 §§ 258 259). É bem possível
que, na época, a Judeia representasse o tipo de ambiente religioso do qual os
pseudapostoloi se originaram. É desnecessário, portanto, exigir uma procedência
gnóstica para esses recém-chegados.
3. Paulo e os apóstolos de Jerusalém.
Se, como 2 Coríntios
expressa, os recém-chegados eram judaizantes, seriam eles emissários dos
apóstolos de Jerusalém, como sugeriu E C. Baur? O relacionamento de Paulo com a
Igreja de Jerusalém e seus apóstolos está descrito com muita clareza em
Gálatas, principalmente nos capítulos 1 e 2. Ao contrário da tese de Baur, esses
capítulos revelam que, embora existisse tensão entre Paulo e os apóstolos de
Jerusalém, eles são inconfundíveis com seus adversários, em Jerusalém e também
em Antioquia. Paulo descreve seu relacionamento com os apóstolos de Jerusalém
referindo-se a quatro ocasiões críticas de seu ministério. Ele escreve autobiograficamente,
mas de modo a demonstrar para os gálatas a natureza delicada de seu relacionamento
com aqueles “que eram apóstolos antes” dele em Jerusalém (G1 1,17). Primeiro
ele se refere a seu “chamado” a caminho de Damasco (G1 1,15-17; ver Conversão e
vocação de Paulo). Não foram os apóstolos de Jerusalém, mas sim Deus quem “chamou” Paulo e lhe revelou “o seu
Filho”, a fim de que ele o anunciasse “entre os gentios” (G1 1,16). Nem mesmo
depois do chamado Paulo “recorreu (literalmente “procurou a corroboração”) à
carne e ao sangue”, isto é, aos apóstolos
de Jerusalém. Ele partiu para a Arábia e depois voltou a Damasco.
O
conhecimento paulino do Cristo ressuscitado foi transmitido diretamente a Paulo
por Deus. A segunda ocasião foi em Jerusalém (G1 1,18-21). Só “três anos
depois” de seu chamado Paulo subiu a Jerusalém “para conhecer Cefas”, com quem
ele ficou quinze dias (G1 1,18). A palavra paulina conhecer (gr. historèsai),
cujo sentido é muito debatido, poderia ser interpretada como “encontrar” ou
talvez “consultar”, o que sugere certa obrigação para com Cefas por informações
a respeito do Jesus histórico (ver Jesus e Paulo), em oposição ao Cristo
celestial. Paulo salienta sua autonomia apostólica, ao comentar de passagem:
“sem ver entretanto nenhum outro apóstolo, a não ser Tiago, irmão do Senhor”, o
que sugere não mais que uma visita de cortesia. Suas palavras cuidadosamente
escolhidas são realçadas por sua solene garantia: “O que vos escrevo, digo-o
diante de Deus, não é mentira” (G11,20; mas cf. At 9,26-30). Ainda sem ser
conhecido de vista pelas “Igrejas do Cristo que estão na Judeia” (i.e., em
Jerusalém e nos arredores), ele foi para as regiões da Síria e da Cilicia (G1
1,21,22; cf. At 9,30). A terceira ocasião, também em Jerusalém, ocorreu “ao
cabo de quatorze anos” (G1 2,1 10), isto é, quatorze anos depois de seu grande “chamado”
divisor de águas a caminho de Damasco. Preocupado em saber se “o Evangelho que
[ele prega] entre os gentios”, um Evangelho que não exigia a circuncisão dos
gentios, era aceitável aos olhos de Tiago, Cefas e João, Paulo levou consigo,
como precedente, o incircunciso Tito.
Embora a autoridade apostólica de Paulo fosse independente de
Jerusalém, era importante que seus convertidos gentios livres da circuncisão
fossem aceitos ao lado dos fiéis judeus, como herdeiros espirituais de Abraão .
Apesar das tentativas dos “falsos irmãos” (gr. pseudadelphoi, G1 2,4) de fazer
Tito ser circuncidado, os apóstolos que eram considerados “colunas” — Tiago ,
Cefas e João — não fizeram tais exigências ao companheiro gentio de Paulo
(G12,6). Ao contrário, os três apóstolos de Jerusalém reconheceram formalmente que
“a evangelização dos incircuncisos” havia sido “confiada” [i.e., por Deus] a
Paulo e deram a mão a Paulo e Barnabé , “em sinal de comunhão”, a fim de que
Paulo e Bamabé fossem “aos gentios” e o triunvirato de Jerusalém fosse “aos
circuncisos” (G1 2,7-9). Em outras palavras, os apóstolos de Jerusalém
reconheceram dois apostolados, um aos judeus, liderado por Pedro, o outro aos
gentios, liderado pelos delegados de Antioquia, Paulo e Barnabé.
Apesar da
decisão de aprovar dois apostolados racialmente distintos, houve amplo acordo
quanto aos fundamentos do Evangelho baseados na morte e ressurreição de Cristo (ver ICor 15,3-5.11). A quarta
ocasião foi em Antioquia na Síria, Igreja de membros heterogêneos, judeus e
gentios (G1 2,11-14; ver Ambiente social). Cefas veio (de Jerusalém) a
Antioquia, onde tomou com os gentios as refeições (até mesmo a Ceia do Senhor?;
ver Ceia do Senhor), algo que presumivelmente foi preparado para fazer depois da
conversão de Cornélio (G12,14; cf. At 10,28). Embora judeu, Pedro agora vivia “à
maneira dos gentios” (G1 2,14), isto é, comia com os gentios, o que significava
comer o que eles comiam (ver Alimento). Mas uma grave divisão racial-religiosa
desenvolveu-se na Igreja de Antioquia com a chegada dramática dos “emissários
de Tiago” (vindos de Jerusalém At 15,23-24; cf. At 15,1) que para Paulo são os
“circuncisos”. Cefas “começou a subtrair-se e se manteve afastado” (parou de
comer com os membros pagãos da Igreja). O resto dos membros judeus, até Barnabé,
agiram “com duplicidade” (literalmente “com hipocrisia”). Paulo se opôs a Cefas
“abertamente, pois [ele] assumira uma atitude errada” ao passar a tomar as
refeições exclusivamente com os judeus. Era hipocrisia de Pedro viver “à
maneira dos gentios”, mas agora por essa ação querer “obrigar os gentios a se
comportarem como judeus” (G1 2,14). Em Antioquia “a verdade do Evangelho” estava
em jogo (G1 2,14), o que foi provocado pela exigência de que os judeu-cristãos
tinham de comer separadamente dos fiéis gentios, o que teve o efeito de exigir
que os gentios adotassem práticas judaicas para comer.
Paulo empregou a frase
vigorosa “a verdade do Evangelho” no incidente anterior em Jerusalém quando ele
se opôs à necessidade da circuncisão do gentio Tito (G1 2,5). Em outras
palavras, “a verdade do Evangelho” é preservada quando a circuncisão e as leis
dietéticas judaicas são consideradas estranhas ao Evangelho e não-obrigatórias
para os gentios. Essa longa passagem autobiográfica (G1 1,15-2,14), que abrange
uma década e meia da vida de Paulo, é inestimável para identificar os graus de
diferença entre Paulo e diversas pessoas da Igreja de Jerusalém. Diferenciamos
entre os “que eram apóstolos antes” dele em Jerusalém — com os quais são
reconhecidas algumas tensões — e outros com os quais há franca oposição. Assim,
Paulo insiste que seu “chamado” para ser apóstolo para os gentios foi feito diretamente
por Deus e alguns anos depois reconhecido pelos apóstolos que eram considerados
“colunas” da Igreja de Jerusalém. Ele expressa deferência a Cefas em uma
situação, mas feroz oposição em outra. A respeito de Tiago, há uma certa
ambivalência. Na primeira visita a Jerusalém, ele apenas “viu” Tiago. Pela
ordem que dá aos nomes, ele reconhece a primazia de Tiago no segundo encontro
em Jerusalém, ao mesmo tempo em que dá a entender uma crítica a ele, pois o
problema em Antioquia foi causado pelos “emissários de Tiago”. Mesmo assim,
Cefas e Tiago não são “adversários”.
Nenhuma explicação é dada quanto aos “falsos
irmãos, intrusos que, tendo-se insinuado, espreitavam a nossa liberdade... a
fim de nos reduzir à escravidão” (G1 2,4). Eles estão associados ou mais
provavelmente identificados com os “emissários de Tiago” para Antioquia e que tiveram
uma influência tão dramática nas práticas alimentares de Cefas, de Bamabé e
dos fiéis judeus (G1 2,12-13). A mesma distinção encontra-se nos Atos dos Apóstolos.
Por um lado, há “os apóstolos e os anciãos” da Igreja de Jerusalém (At
15,2.6.22.23), entre os quais são citados Pedro (At 15,7) e Tiago (At 15,13),
enquanto do outro estão “alguns fiéis oriundos do farisaísmo” que diziam ser
“necessário circuncidar os gentios e prescrever-lhes que observassem a lei de
Moisés” (At 15,5; cf. At 15,1). Identifiquemos ou não o encontro dos delegados
de Antioquia e os apóstolos que eram considerados “colunas” (G1 2) com a
chamada Assembleia de Jerusalém (At 15), é provável que os “falsos irmãos” de
Gálatas 2,4 sejam os “fiéis oriundos do farisaísmo” de Atos 15,5. Portanto,
Atos 15,5 fornece uma pista preciosa, que não se encontra em nenhuma outra passagem
e que quase resolve o mistério da identidade dos adversários de Paulo em Jerusalém.
Esses “falsos irmãos” de Jerusalém, esses “emissários de Tiago” [de Jerusalém
para Antioquia]... os circuncisos” (G1 2,4.12) eram “fiéis oriundos do
farisaísmo”. Então, qual era a relação entre os apóstolos considerados
“colunas” da Igreja de Jerusalém — Tiago, Cefas e João — e esses indivíduos?
4. Os adversários das Igrejas gálatas
Os biblistas discordam
quanto à data da Carta aos Gálatas . Alguns a determinam no fim dos anos 40,
logo depois da disputa em Antioquia (G1 2,11-14), às vésperas da Assembleia de Jerusalém.
Outros datam a carta na mesma época que 2 Coríntios e Romanos, isto é, em
meados dos anos 50. Com certeza, o vocabulário de “justiça” é bastante
proeminente na carta, o que sugere estarem em jogo os mesmos problemas abordados
em 2 Coríntios e Romanos. Mas isso não significa necessariamente que Gálatas
tenha sido escrita em meados de 50. Pode ser que Paulo usasse o vocabulário de
“justiça” sempre que surgia o problema dos judaizantes. Ao contrário de
Antioquia e Corinto, não há menção de ninguém de fora que viesse às Igrejas
gálatas (2Cor 11,4; G1 2,12). Um grupo de judeus liderados por um indivíduo não
identificado semeava a desordem entre as Igrejas (G1 5,10.12; 3,1; 1,7.9). Esse
grupo dizia que a circuncisão era pré-requisito para participar do Israel de Deus (G1 3,6-14; 6,16). Esses “agitadores”
e seu líder pressionavam outros fiéis judeus para que impusessem a circuncisão
aos fiéis gentios (G1 6,12). Alegavam que, na verdade, Paulo devia sua
autoridade aos apóstolos de Jerusalém (G11,15-2,9) e que o próprio Paulo
pregava a circuncisão (G1 5,11). Seriam esses agitadores e seu líder naturais da
região gálata ou, de fato, foram para lá vindos de outro lugar? A carta da
Assembleia de Jerusalém aos “irmãos... que se acham em Antioquia, na Síria e na
Cilicia” reconhece que “alguns dos nossos tinham ido vos perturbar” (At 15,23).
Se esses agitadores vieram de Jerusalém para a Cilicia, não seria surpresa que viajassem
para o sul da Galácia. Como o enfoque de Gálatas é na circuncisão relacionada à
liberdade cristã (ver, e.g., G1 5,1-2), tema também proeminente na passagem
autobiográfica, em que “falsos irmãos” de Jerusalém “espreitavam a nossa
liberdade... a fim de nos reduzir à escravidão”, forçando Tito à circuncisão
(G12,3-5), é razoável afirmar que os que vieram às Igrejas gálatas eram, de
fato, os “falsos irmãos” de Jerusalém, os “fiéis oriundos do farisaísmo” (At
15,5).
5. Os adversários de Paulo: Um perfil
Do estudo de 2 Coríntios, Romanos
e Gálatas surge um padrão que nos permite definir mais rigorosamente os
adversários de Paulo em Corinto, conforme retratados em 2 Coríntios. A
substituição do “código escrito” associado a Moisés por uma “Aliança nova”
(ver Aliança e nova Aliança), “uma diakonia de justiça”, juntamente com a
rejeição paulina dos adversários em Corinto como “servidores da justiça”,
sugere que os recém-chegados vieram em missão judaizante para impor aos
coríntios gentios o código mosaico escrito. A proliferação de justiça e
palavras relacionadas em Romanos e Gálatas, preocupados como eles estão em
refutar a justiça oriunda das obras da lei judaica, confirma o perfil dos adversários
de Corinto como judaizantes. Gálatas nos ajuda a ver que, embora existissem
tensões significativas entre ele e os apóstolos de Jerusalém, é importante
diferenciar esses apóstolos dos indivíduos que Paulo chama de “falsos irmãos...
os circuncisos”, que identificamos com mais rigor como “fiéis oriundos do
farisaísmo”. Os “falsos irmãos”, que são também “falsos apóstolos”, fazem parte
do mesmo grupo que os “superapóstolos” (hyperlian apostoloi, 2Cor 11,5; 12,11).
2 Coríntios leva à conclusão de que a superioridade que eles alegam ter
baseia-se, em parte, no fato de se vangloriarem de ter viajado até onde
viajaram, talvez de ter viajado mais longe que Paulo (2Cor 10,13-18). Paulo
rejeita essa alegação nos termos do acordo missionário feito em Jerusalém no
fim dos anos 40 pelos apóstolos considerados “colunas” com Paulo e Barnabé
(G12,7-9). Ao vir a Corinto, os “superapóstolos” atravessaram a linha divisória
e entraram no campo paulino de trabalho missionário que constava do acordo (ver
Missão): ministro para os gentios. Eles ultrapassaram os limites que Deus
estabelecera e se orgulharam “de obras já prontas no terreno dos outros”.
De 2
Coríntios surge um perfil fascinante desses homens, sua missão e seus meios
para legitimar essa missão. Guiados, com toda a probabilidade, por um elevado
zelo religioso que se originou da rápida deterioração das relações entre
romanos e judeus na Judeia, sob o notório regime de Félix, aparentemente esses
“superapóstolos” fortificaram-se com uma série de capacidades paranormais
planejadas para impressionar os gentios de Corinto, de modo a suplantar Paulo
como apóstolo para esses gentios. Sua determinação de derrotar Paulo talvez
também indique que estavam a par do sucesso paulino na instituição de assembleias
messiânicas entre os gregos. Mas, no que lhes dizia respeito, essas assembleias,
embora ligadas ao Messias Jesus, eram cisões de Israel, pois não atribuíam um lugar
real para Moisés e a lei (At 15,1.5). Em sua contramissão, os adversários de
Paulo mostraram, sob todos os ângulos, um zelo comparável ao dele. Opuseram-se
a ele em Jerusalém e dali viajaram as Igrejas em Antioquia, na Síria-Cilícia,
na Galácia e então até a cidade de Corinto na Acaia. Esse é um notável fenômeno
histórico. Paulo diz que eles se proclamavam “ministros de Cristo” (2Cor
11,23), contudo, na opinião dele, estavam tão desorientados quanto ao
ministério da “justiça” que ele os chama de “servos [de Satanás]” (2Cor 11,14).
A missão e atividades deles constituem uma grande ameaça à sobrevivência das
Igrejas paulinas e levam-no a redigir cartas que estão entre as mais
convincentes que escreveu. É justo dizer que a falta de apreciação da
identidade e do programa zeloso deles pelos leitores modernos atrapalha
significativamente nossa compreensão do argumento paulino nessas cartas onde
ele responde a seus argumentos.
6. Os judaizantes, Tiago e Paulo
O argumento acima deixa
claro que não podemos rigorosamente associar o nome de Pedro aos adversários de
Paulo. O incidente em Antioquia (G1 2,11-14) mostra que Pedro era suscetível à
influência deles, mas não a fonte dessa influência. Mas e Tiago, irmão do
Senhor, “apóstolo antes de” Paulo que, no fim dos anos 40, surgiu como o
preeminente apóstolo considerado “coluna” da Igreja de Jerusalém? Seria Tiago a
fonte da oposição que fluiu de Jerusalém para as Igrejas dos pagãos? Tiago era
membro da Igreja de Jerusalém desde seu início até morrer em 62 d.C., período de cerca de trinta anos. A princípio o líder
era Pedro, apoiado por João Zebedeu. Entretanto, no fim dos anos 40, Tiago, não
Pedro, era o lí der (G1 2,9; At 15,13-22). Nessa época, havia apóstolos e
anciãos em Jerusalém (At 15,2.4.6. 22.23). Entretanto, quando Paulo foi pela
última vez a Jerusalém, por volta de 57 d.C., não havia referência a
“apóstolos”; só os anciãos de Jerusalém permaneceram, sendo Tiago evidentemente
o líder. Durante esse período de trinta anos, a Igreja de Jerusalém tomou-se
mais conservadoramente judaica, sem dúvida por reflexo da ascensão do nacionalismo
religioso judaico em face da piora das relações entre os romanos e os judeus na
Judeia (Josefo, 2,12,1-13,7 §§ 223-227passim). Primeiro, os helenistas
emigraram nos anos 30 e, no final dos anos 40, foram seguidos por Pedro (e
João?) e possivelmente pelos outros apóstolos. O último vislumbre da Igreja de
Jerusalém dado pelos Atos por ocasião da última visita de Paulo é de um encrave
completamente judaico.
Apesar da boa fachada que os Atos dão para a reunião,
está bastante claro que os anciãos de Jerusalém expressaram profunda
insatisfação com Paulo. Não é mencionado nenhum discurso de gratidão pela
coleta das Igrejas gentias, embora Lucas
soubesse da existência da coleta (At 24,17). Mais exatamente, os anciãos
comentam de modo incisivo o tamanho e a característica judaica da comunidade de
fiéis de Jerusalém que em geral estavam convictos de que Paulo traíra a causa
do judaísmo da diáspora. Eles entendiam que Paulo ensinara aos judeus a
abandonar Moisés e a não circuncidar os filhos (At 21,21) e que ele não exigia
que os gentios obedecessem às decisões da Assembleia de Jerusalém quanto ao
ritual e a questões morais (At 21,25). Essas acusações são instrutivas, pois
refletem claramente as opiniões dos anciãos de Jerusalém. Contudo, essas
opiniões seguem e se parecem muito com o compromisso com Moisés dos homens que
uma década e meia antes foram de Jerusalém para os gentios de Antioquia, insistindo
na circuncisão como pré-requisito para a salvação e que, afirmamos, eram “fiéis
oriundos do farisaísmo” (At 15,1.5). Não sugerimos que fossem necessariamente os
mesmos indivíduos, mas sim que, pelo menos a partir dos anos 40, havia um ponto
de vista defendido com veemência na comunidade messiânica de Jerusalém que,
influenciado pelo farisaísmo, promovia uma versão nacionalista e, portanto,
mosaica da fé e, por isso, tinha profunda preocupação com a missão paulina para
os gentios.
A tendência crescente ao nacionalismo religioso durante as crises
na Judeia dos anos 40 e 50, juntamente com a influência decrescente de líderes
mais liberais como Estêvão, Filipe, João e Pedro, e a ascensão de Tiago—
ninguém menos que o irmão do Senhor — como líder inconteste criaram um ambiente
no qual surgiu uma missão que se opunha à influência de Paulo na diáspora. Porém
esses indivíduos nunca são designados pelo nome, nem por Paulo, nem nos Atos.
Continuam a ser “alguns indivíduos” (tines, At 15,1.5; G1 2,12) que, por atacar
as doutrinas de Cristo, Paulo descreve como “falsos irmãos”, “falsos apóstolos”
e até “servos [de Satanás]”. Tiago devia ser figura importante em Jerusalém no
fim dos anos 50, já que presidia uma comunidade religiosa tão grande (At
21,18-20). No relato da morte de Tiago em 62 d.C., Josefo corrobora essa
impressão. O sumo sacerdote Anás II aproveitou a oportunidade propiciada pela
inesperada morte do procurador Festo para mandar lapidar Tiago. Está claro que
Tiago devia ser importante para representar ameaça ao sumo sacerdote. Mas sua
morte provocou um protesto dos hierosolimitas “que eram tidos como os mais observadores,
mais justos e rigorosos das leis” (Josefo, Ant. 20,9,1 § 201), o que significa
cidadãos de simpatia farisaica. Assim, Tiago parece ter gozado de significativo
respeito na comunidade mais ampla de Jerusalém. De seu ponto de vista, como
líder de uma comunidade messiânica em Jerusalém, a missão de Paulo para os
gentios na diáspora deve ter criado sensíveis dificuldades para as relações
entre a comunidade judaica messiânica e a comunidade judaica mais ampla, numa
época de nacionalismo religioso que aumentava rapidamente.
Da perspectiva de
Paulo talvez houvesse um grau de nervosismo quanto ao irmão do Senhor, pois
parece que seus adversários vinham da comunidade de Tiago. É verdade que Paulo
se recusa a admitir que seu apostolado deriva de Tiago (G1 1,19; cf. G1 1,17)
e, até certo ponto, contesta a autoridade dos apóstolos de Jerusalém (G12,6-9)
e, na verdade, ele expressa uma queixa zangada dos “emissários de Tiago” que
provocaram separação em Antioquia (G1 2,12). Contudo, Paulo reconhece o
apostolado de Tiago e, na verdade, sua primazia como apóstolo de Jerusalém (G1
1,19; 2,9). Não existe nenhuma boa razão para crer que as “cartas de recomendação”
trazidas pelos recém-chegados a Corinto (2Cor 2,17-3,1) trouxessem o nome de
Tiago. Dificilmente Paulo teria prosseguido com a coleta para a Igreja de
Jerusalém se Tiago fosse a fonte da oposição que fluiu de Jerusalém para as
Igrejas paulinas. Na verdade, um dos motivos paulinos para a coleta pode ter sido manter uma solidariedade evangélica entre seu apostolado para os
gentios e aquele outro apostolado que se voltava para os judeus e tinha sua
base em Jerusalém, onde Tiago era o líder inconteste. Discernimos uma impressão
comparável de Tiago no relato que Lucas faz da Assembleia de Jerusalém. Tiago
não exige a circuncisão dos gentios e nega que os que tinham ido de Jerusalém
“perturbar” os gentios em Antioquia, na Síria e na Cilicia tivessem seu mandato
para isso (At 15,19.23-24). Na última e tensa visita de Paulo a Jerusalém, as
queixas contra o apóstolo dos gentios vêm da boca dos anciãos, não da de Tiago
(At 21,18-25).
7. A oposição em Colossas:
gnosticismo judaico Cientes
das principais teorias de que os adversários de Paulo eram ou judaizantes ou
gnósticos, uma solução simples seria identificar tais adversários, em especial
os de Corinto, onde tanto se fala a respeito deles, como gnósticos judaicos. A
existência desses indivíduos torna-se provável pela refutação paulina do que é geralmente
considerado uma espécie de gnosticismo judaico na Igreja colossense (ver
Colossenses). Em Colossas havia, inquestionavelmente, uma versão de
cristianismo caracterizada pela circuncisão, pela ascese, pela observância do
calendário, pelo misticismo e pelo culto aos anjos (Cl 2,8-23). Esses elementos
estão, em grande parte, ausentes da rejeição paulina do ensinamento de seus
adversários em Corinto. A apresentação paulina da pessoa e da obra de Cristo
(ver Cristologia) aos coríntios — em termos de seu cumprimento da promessa e da
justiça da lei (2Cor 1,19-20; 3,4-9; 5,18-21) — tem uma ênfase muito diferente
do Cristo cósmico da Carta aos Colossenses (Cl 1,15-20; 2,9-10.19; 3,1-3). Em
Colossenses não há alusão à origem desse gnosticismo judaico, fosse ele nativo
ou importado. Entretanto, é bem sabido que o judaísmo floresceu até em regiões
remotas da Anatólia, como o vale do Lico. A explicação mais provável é que uma
versão local de gnosticismo judaico entrou na vida da Igreja cristã de Colossas.
Em todo caso, Paulo não tinha visitado essa região. Os judaizantes mais típicos
parecem ter sido atraídos a Igrejas instituídas diretamente pelo apóstolo.
8. A oposição em Filipos: os judaizantes
Segundo muitos biblistas, Paulo escreveu a Carta aos
Filipenses em Roma, no início dos anos 60. Mais uma vez, é evidente a oposição
a Paulo por parte de fiéis judeus. Mas a natureza da oposição a Paulo em
Filipos é controversa (ver Filipenses). A prisão de Paulo encorajou os “irmãos”
de Roma a “anunciar sem medo a Palavra” (F1 1,14). Alguns deles, porém, “o fazem
por inveja e rivalidade.... Os seus motivos não são puros; pensam tomar o meu
cativeiro ainda mais penoso” (F1 1,15.17). Com toda a probabilidade “esses são
os que mutilam a carne” (F1 3,2), os que querem circuncidar os fiéis gentios,
cujo “deus é o ventre” (F1 3,19), isto é, observam as regras dietéticas
judaicas. Como em outras cartas — Gálatas e Romanos — que tratam da imposição
da circuncisão aos gentios, notamos o uso pelo apóstolo de “justiça... uma
justiça que vem de Deus e se apoia na fé [em Cristo]” (ver F1 3,6.9 bis). Desde
a chegada de fiéis na capital do mundo havia problemas na grande comunidade
judaica (ver Roma e o cristianismo romano). Ela foi forçada a se retirar de
Roma em 49 d.C., “por causa de Chrestus” (Suetônio, Cláudio 25,4; cf. At 18,2),
possível erro ortográfico de Christus. Provavelmente a conversão de judeus a Jesus
Cristo provocou tal perturbação na comunidade judaica que Cláudio expulsou
todos os judeus. A elevação de Nero em 54 d.C. permitiu que os judeus voltassem
à cidade, sem dúvida receosos de que novos distúrbios trouxessem mais
represálias por parte das autoridades. Como Paulo era conhecido como foco de
agitação onde quer que ele fosse, é possível que os adversários
judeu-cristãos de Paulo em Roma até recorressem à pregação de Cristo — na versão
deles, claro — para promover a desordem na comunidade judaica e, assim,
prejudicar a iminente audiência do caso de Paulo. Não há nenhum indício de que
essas pessoas tivessem vindo de Jerusalém a Roma para hostilizar Paulo. Talvez
o movimento judaizante, como a missão de Paulo, tivesse, a essa altura,
desenvolvido um impulso próprio, de modo que já não tivesse ligação direta com
a cidade natal, Jerusalém. Isso apoia o argumento de que o programa judaizante
não estava diretamente ligado a Tiago, que já tinha morrido quando Paulo
escreveu aos filipenses.
9. A oposição nas cartas Pastorais
Limitamos nossa análise
a adversários de fora que se infiltravam nas Igrejas instituídas por Paulo. Em
nossa opinião, os falsos mestres e outros adversários citados nas cartas
Pastorais (ver Cartas Pastorais) eram originários das Igrejas. Nisso seguimos
E. E. Ellis: “Ao contrário das cartas mais primitivas, os adversários parecem
incluir um número considerável de antigos colaboradores que com sua apostasia
criam uma situação bastante amarga” (Ellis, 214).
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