Introdução do Livro de Êxodo
O livro de Êxodo descreve como Deus formou a nação de Israel por meio de dois atos criativos. O primeiro ato foi a libertação de uma multidão escravizada das garras dos seus opressores egípcios; o segundo, a união desses ex-escravos em lealdade de aliança com ele mesmo. Não há evento na história posterior de Israel que se iguale à libertação do Egito por meio do êxodo ou ao estabelecimento da aliança do Sinai. Nenhum outro livro do AT é tão importante para a compreensão da vocação e do destino do povo de Israel quanto Êxodo. No entanto, ao relatar eventos que são determinantes para o futuro, Êxodo não os divorcia da história que já passou. A firme intervenção de Deus a favor dos israelitas é retratada como o cumprimento das obrigações da aliança assumidas nos dias dos patriarcas. A aproximação dos eventos culminantes que são descritos no livro é anunciada nas palavras: “Ouviu Deus o lamento deles e lembrou-se da aliança que fizera com Abraão, Isaque e Jacó” (2.24).
Para os hebreus, as circunstâncias haviam mudado de forma significativa desde os dias em que o seu ilustre antepassado José tinha sido aclamado salvador do Egito. Parece muito provável que José assumiu uma posição de destaque durante o período da história egípcia em que os hicsos dominavam o país. Assim como José, esses hicsos eram semitas que foram para o Egito, provenientes da Palestina. Eles certamente se sentiram mais incentivados ainda a elevar um escravo como José a essa alta posição ao saberem que ele era um irmão semita. Por aproximadamente um século e meio (c. 1720—1560 a.C.) a maior parte do Egito esteve subordinada às dinastias dos hicsos (XV-XVI) até que a casa de Tebas liderou uma rebelião contra os detestados asiáticos. Depois disso, os egípcios decidiram que nunca mais se submeteriam ao domínio estrangeiro; a criação do Novo Império (dinastias XVIII-XX), que nos dias áureos estendia-se até o rio Eufrates, geralmente é considerado um sinal dessa determinação de manter distantes os asiáticos. Esse é o pano de fundo da situação descrita em Êx 1 e 2. Os israelitas, que eram da mesma linhagem racial dos hicsos, estavam se multiplicando em proporções alarmantes e constituíam uma ameaça séria à segurança nacional. A tentativa tresloucada de genocídio atribuída a um rei anônimo do Egito foi maquinada porque parecia que a história estava se repetindo.
Moisés foi o homem escolhido para conduzir Israel para fora da fornalha da aflição. Independentemente dos seus sentimentos de incapacidade pessoal, ele era o homem ideal para a tarefa. Criado em círculos palacianos, nem seu espírito nem sua iniciativa haviam sido quebrados pelos açoites dos capatazes egípcios. Além disso, os anos gastos em Midiã lhe proporcionaram a oportunidade de se familiarizar com o tipo de terreno que os israelitas encontrariam quando estivessem atravessando a fronteira norte do Egito. A medida que a história avança, podemos acompanhar o seu desenvolvimento desde um porta-voz relutante a um reconhecido profeta de Deus, até mesmo na avaliação de muitos egípcios (cf. 11.3). Foi Moisés quem anunciou que Deus estava prestes a cumprir sua promessa aos pais, que confrontou o faraó com exigências repetidas de libertar os israelitas, que depois os conduziu à liberdade e que se colocou entre eles e Deus no Sinai, quando os mandamentos de Deus foram apresentados a seus parceiros de aliança.
A última parte de Êxodo (caps. 25—40) traz como tema principal a construção do tabernáculo e a consagração dos sacerdotes que iriam servir nesse santuário transportável. Um interlúdio dissonante é inserido nos caps. 32—34 com o episódio do bezerro de ouro e a quebra das tábuas da aliança. Por graça divina, e apesar de toda a tolice humana, a aliança foi rapidamente renovada, e as instruções detalhadas registradas nos caps. 25—31 foram colocadas em vigor (caps. 35— 40). No Sinai, Deus se revelou a Moisés e aos filhos de Israel de maneira singular. Esse foi o lugar em que todo o povo assumiu um relacionamento de aliança com Deus. No entanto, os israelitas não fixaram residência ali. Do outro lado do deserto inóspito, estava a terra de Canaã, e esse era o destino deles. Êx 25—40 nos conta como Israel experimentou a presença divina não somente no monte santo, mas ao longo de toda a peregrinação. O significado do tabernáculo é anunciado já no início dessa seção — “E farão um santuário para mim, e eu habitarei no meio deles” (25.8) —, e os capítulos seguintes mostram como foi estabelecida essa aliança — apesar de estar em perigo de sucumbir na concepção — e assegurada a presença permanente de Deus. “De dia a nuvem do Senhor ficava sobre o tabernáculo, e de noite havia fogo na nuvem, à vista de toda a nação de Israel, em todas as suas viagens” (40.38). Assim, Êxodo chega ao seu final e se atinge o propósito original de Deus.
Tradicionalmente, o livro de Êxodo, como o restante do Pentateuco, é atribuído à mão de Moisés. Há de fato várias menções no Pentateuco às atividades de escrita de Moisés (cf. 17.14; 24.4; 34.27; Nm 33.2; Dt 31.9, 22,24), e não há razão para questionarmos a precisão dessas declarações. Em geral, pode parecer que a relação de Moisés com o Pentateuco é como a relação entre Davi e o Saltério (cf. Hb 4.7, em que “por meio de Davi” provavelmente signifique “no Saltério”). Mas não importam as fontes que tenham sido usadas na compilação do Pentateuco — e a crítica literária moderna desenvolveu os seus próprios métodos de explicar algumas delas —, o papel decisivo de Moisés na formulação dos primeiros credos e leis israelitas é, na opinião deste autor, indisputável.
O êxodo
A lembrança do êxodo permeia praticamente todo o AT. E não somente isso. Quando no século VI a.C. os israelitas estavam novamente exilados, desta vez na Babilônia, o povo sentiu-se encorajado a pensar em um segundo êxodo que pela simples magnitude ofuscaria a lembrança da libertação anterior do Egito. Mas a expectativa foi frustrada nesse evento, e a glória salomônica não foi recuperada quando os exilados trilharam o seu caminho de volta após o edito de Ciro. Foi necessária a iluminação da revelação cristã para mostrar que a esperança do segundo êxodo seria realizada no nível espiritual quando, por consequência da morte e da ressurreição do nosso Senhor, a libertação da nossa escravidão do pecado seria proclamada a todos os povos debaixo do céu.
O livro de Êxodo não apresenta uma fartura de dados cronológicos dos quais poderíamos deduzir a data do êxodo histórico. Se tomássemos lRs 6.1 ao pé da letra, deveríamos concluir que o êxodo ocorreu 480 anos antes da fundação do templo de Salomão, i.e., em torno de 1440 a.C. Mas temos razão para suspeitar de que o número 480 é simbólico. A computação independente dos diversos números apresentados para o mesmo período resulta num total com excesso de 550 anos (cf. H. H. Rowley, From Joseph to Joshua, p. 87-8). A explicação provável é que nem sempre se mantinha uma distinção clara entre dados simultâneos e dados consecutivos. A maioria dos eruditos hoje concorda em que a avaliação de todos os dados e evidências bíblicas apóia uma data no século XIII para o êxodo. Sabemos que as cidades-celeiro de Pitom e Ramessés, mencionadas em Êx 1.11, foram construídas nos reinados do faraó Seti I (c. 1303-1290 a.G.) e Ramsés II (c. 1290— 1224 a.C.). A Esteia de Merneptá (c. 1220 a.C.) inclui Israel entre os povos da Palestina e, portanto, fornece um terminus ante quem para a entrada em Canaã. Quando se dá uma tolerância para a peregrinação dos israelitas no deserto, podemos concluir que o êxodo ocorreu, o mais tardar, no ano de 1260 a.C.
Essa datação do êxodo no início do século XIII a.C. concorda facilmente com a afirmação de Ex 12.40,41, segundo a qual os israelitas estiveram no Egito por um período de 430 anos. (O número redondo de 400 anos é dado em Gn 15.13.) Pressupondo que esse número não seja simbólico — e a existência de uma variante menos importante em Gn 15.13 parece apoiar essa pressuposição —, isso significaria que José foi vendido ao Egito no início da era dos hicsos, um período que, como já sugerimos, é o contexto mais provável da história de José.
Levando em conta a importância do êxodo para a religião e a historiosofia israelitas, a falta de corroboração do relato bíblico por parte do lado egípcio é, sem dúvida, surpreendente, ainda mais se os números associados à história foram tão grandes quanto o AT parece sugerir (v. a seguir). O retrato geral de asiáticos vindo para o Egito e saindo dele é ilustrado nos registros egípcios de diversos períodos, de forma que nesse aspecto a história do êxodo não é nada improvável. Mas se a fuga de escravos individuais é ocasionalmente registrada em documentos egípcios (cf. papiro Anastasi V; v. ANET, 3. ed., p. 259), poderíamos esperar alguma referência à saída de centenas de milhares de israelitas. Uma explicação ao menos parcial pode ser baseada nos seguintes pontos.
Seria uma declaração suavizada afirmar que um êxodo em massa de escravos israelitas representaria um revés muito grave para o Egito e seu rei. Essa situação poderia ser tratada em uma de duas formas. Os monarcas antigos tinham a habilidade de relatar derrotas como sendo as vitórias mais retumbantes. A batalha inconclusiva que Ramsés II travou em Qadesh (c. 1285 a.C.) é um bom exemplo disso. Ramsés não economiza superlativos na descrição de como dominou o inimigo. Mas em posse dos relatos da batalha feitos pelos dois lados, e com alguma avaliação da estratégia e da logística associadas à guerra, o estudioso moderno pode ter uma visão diferente desse famoso confronto.
Outra forma de tratar com fatos indigestos era simplesmente deixar de registrá-los. Esse tipo de reação não é peculiar a nenhum país ou período da história, como mostram os dois exemplos a seguir. Primeiro temos o caso de Tukulti-Ninurta I da Assíria (12441208 a.C.), contemporâneo de Ramsés. Um manto de silêncio cobre os últimos 25 anos do reinado de Tukulti-Ninurta, e a “ausência de registros reais deve ser interpretada como um sinal não de falta de atividade, mas de derrotas militares” (Cambridge Ancient History, 3. ed., II: 2, 1975, p. 293). Aliás, o fracasso militar do rei parece ter sido um fator importante no assassinato dele. O nosso segundo exemplo vem da história mais recente. Quando, por motivos ideológicos pouco inteligíveis para os ocidentais, o governo da República Popular da China impôs um embargo às notícias logo após o terremoto de Tangshan em julho de 1976, estava se fazendo uma tentativa de esconder o fato trágico de que meio milhão de pessoas tinham perdido a vida naquele desastre. Informações prejudiciais aos interesses nacionais talvez tenham sido tratadas da mesma maneira no Egito de três milênios atrás.
De acordo com Ex 12.37, “cerca de seiscentos mil homens a pé, além de mulheres e crianças” participaram do êxodo. Fora a “grande multidão de estrangeiros” também mencionada, isso significaria algo entre 2 e 3 milhões de pessoas. Alguns estudiosos, no esforço de apresentar estatísticas mais críveis, insistem em que a palavra traduzida por “mil” na verdade significa “clã” ou “líder, oficial”. E é verdade que ’elef pode às vezes significar “clã” (e.g., Mq 5.2) ou, se revocalizado, “líder”. O reconhecimento dessas possibilidades tem contribuído para uma compreensão melhor de alguns textos do AT. Os números do êxodo, por outro lado, não se prestam tão facilmente a esse tipo de tratamento. Por exemplo, o total de prata mencionado em Ex 38.25,26 por ocasião do censo (cf. 30.1116) é evidentemente calculado com base na compreensão de que o dinheiro de resgate foi pago por 603.550 homens (38.26). Provavelmente a maioria dos estudiosos do AT concorda em que houve um êxodo, mas muitos argumentam que somente algumas tribos, talvez Levi e as “tribos de José”, na verdade saíram do Egito sob a liderança de Moisés. Alguns tendem a pensar que migrações de hebreus do Egito para a Palestina ao longo de vários séculos foram resumidas em um único evento de significado sem paralelos. No entanto, é difícil obter apoio externo para qualquer sugestão em virtude da natureza desses fatos, de forma que não é fácil avaliar o grau de idealização do relato bíblico.
Falar de todo o complexo de eventos que dependem do êxodo e de sua relevância em qualquer discussão desse tópico está além do escopo deste estudo. No momento, vamos nos contentar com uma referência ao “cântico de Moisés” em Ex 15 e ao seu testemunho antigo — alguns diriam contemporâneo — de um evento de importância fundamental para toda a história subsequen-te de Israel. Como no caso da ressurreição de nosso Senhor, aqui também a atestação em fontes seculares não é o fator crucial; o conjunto de eventos e desenvolvimentos baseados no Evento original é o melhor argumento a favor de sua historicidade.
O nome divino
De acordo com Ex 6.2,3, Deus disse a Moisés: “Eu sou o Senhor. Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como o Deus todo-podero-so, mas pelo meu nome, o Senhor, não me revelei a eles”. Isso imediatamente cria um problema, visto que o nome Javé (melhor do que Jeová; cf. comentário em Ex 3.15) ocorre regularmente em Gênesis. Alguns estudiosos ainda acrescentariam à complicação o aspecto de que o elemento Yau (ou semelhante) em alguns nomes amorreus do segundo milênio está relacionado ao Nome Divino. (Afirmações semelhantes são feitas em relação a nomes pessoais que ocorrem nos textos de Ebla do terceiro milênio, embora a evidência ainda precise ser julgada pelo mundo acadêmico em geral.) Como então deveríamos interpretar Ex 6.2,3? Diversas linhas de tratamento da questão são sugeridas. Uma teoria defende que “nome” no v. 3 na verdade significa “caráter”. Embora o nome Javé fosse conhecido dos patriarcas, a compreensão que tinham do caráter de Deus, como expresso no seu nome, era limitada. De acordo com outro ponto de vista, a segunda metade do v. 3 deveria ser lida como uma pergunta: “E por meu nome, o Senhor, eu não me dei a conhecer a eles?” Nenhuma dessas sugestões foi recebida com muito entusiasmo além dos círculos conservadores, e de fato são fracas em virtude do peso artificial que impõem ao hebraico. Que o termo “nome” em hebraico inclui a ideia de “caráter” não necessita de comprovação aqui, mas será que a palavra deveria ser divorciada de seu sentido inicial para significar somente “caráter”? A segunda proposta parece um tanto forçada; uma pergunta retórica desse tipo não é a forma mais natural de complementar a primeira metade do versículo com a sua afirmação acerca da revelação de Deus de si mesmo aos patriarcas como El Shaddai.
Uma explicação bem diferente, elaborada dentro da estrutura da hipótese documentária do Pentateuco, teve grande aceitação entres estudiosos do AT. Ela diz que Ex 6.2-30 é um relato paralelo de 3.1—4.31 e foi extraído da fonte sacerdotal (P). Considera-se que a fonte sacerdotal apóia a fonte eloísta (E) na representação do Nome Divino como desconhecido antes do tempo de Moisés. Em contraste com elas, está a fonte javista (J), que abertamente associa o Nome Divino com os patriarcas e até mesmo com a era prépatriarcal. Visto que há uma medida razoável de concordância acerca da extensão da fonte sacerdotal em Gênesis, deveríamos ser capazes de testar essa teoria. Mas imediatamente encontramos uma dificuldade. Sempre que ocorre o Nome Divino em Gênesis, ele é atribuído à fonte javista, pois é o principal critério pelo qual essa fonte é reconhecida. A probabilidade, portanto, de encontrar material que seja geralmente atribuído à fonte sacerdotal e que ao mesmo tempo contenha o Nome Divino é quase nula por definição. Mas podemos avançar um pouco mais o nosso argumento.
Muito do material em Gênesis que é atribuído à fonte sacerdotal consiste ou em genealogias e detalhes cronológicos, ou em fragmentos breves de narrativa. Não obstante, há diversos trechos longos de narrativa, e nos será instrutivo observar três deles. Para maior conveniência, vamos fazer uso da apresentação tabular das fontes documentárias fornecida por S. H. Hooke, em Peake's Commentary (2. ed., 1962, p. 176); cf. também J. Skinner, Genesis (ICC; 2. ed., 1930, p. lviii). 1) Gn 5.132. Os v. 1-28 e 30-32 são atribuídos à fonte sacerdotal, mas o v. 29, que contém o Nome Divino, é atribuído à fonte javista. 2) Gn 7.1321. Com exceção dos v. 16b e 17b, a seção é colocada na coluna sacerdotal. O v. 16b contém o Nome Divino. 3) Gn 8.14—9.17. Fora 8.20-22, o bloco é atribuído à fonte sacerdotal. Os v. 20-22 do cap. 8 são creditados à javista; eles contêm três ocorrências do Nome Divino. Não precisamos nos surpreender, portanto, ao descobrir que o material sacerdotal em Gênesis reflete o ponto de vista de que o Nome Divino tornou-se conhecido somente com a revelação de Moisés. Mas, em vez de apoiar a explanação de Ex 6.2,3 dentro da teoria documentária, a evidência dos nossos três blocos “sacerdotais” pode ser usada contra ela. (Observe também as possíveis implicações do nome Joquebede em Ex 6.20 em uma longa seção “sacerdotal”; v. o comentário ad loc.).
Portanto, embora rejeitemos a explicação documentária desse problema específico, aceitamos o sentido evidente de Ex 6.2,3, ou seja, de que o Nome Divino não foi usado antes do tempo de Moisés entre os ancestrais dos israelitas. A ocorrência do Nome em Gênesis, independentemente das fontes, pode ser facilmente compreendida como “retro-inserções” dos escribas ocasionadas pela circulação posterior desse Nome em Israel. Foi o mesmo Deus que agiu em toda a história, e o caráter expresso no Nome permaneceu imutável de uma época a outra. Até mesmo referências como Gn 4.26 e Gn 22.14, que à primeira vista talvez não sejam explicáveis de acordo com esses padrões, podem, assim sugerimos, ser acomodadas dentro dessa estrutura.
O tabernáculo
Um dos efeitos da crítica bíblica moderna tem sido questionar a historicidade do tabernáculo como ele é retratado em Ex 25— 40. Muitos estudiosos da atualidade, aliás, argumentam que esses capítulos parecem mais um ensaio teológico do que um registro histórico. Eles acreditam que os israelitas provavelmente tinham uma simples tenda como santuário na primeira fase de sua história e que autores posteriores lhe atribuíram parte da pompa e do esplendor do templo de Salomão. Encontram evidências para esse santuário menos ornamentado principalmente em Ex 33.7-11, embora no seu presente contexto essa tenda específica deva ser claramente distinguida do tabernáculo. J. P. Hyatt chega a ponto de chamar o tabernáculo de “estrutura irrealista e artificial que nunca existiu, a não ser no papel”. Mas os argumentos que usa para defender sua tese estão longe de conclusivos. Surpreende um pouco o fato de serem citadas omissões e obscuridades como indicação do caráter fictício do texto. Se usássemos esses padrões, deveríamos concluir que o templo de Salomão nunca existiu! E, se estamos lidando com “importação de ideias posteriores para dentro do relato”, temos de ser cuidadosos. É verdade que, com exceção da altura, “as dimensões do tabernáculo são a metade das do templo de Salomão”, mas os mesmos fatos poderiam ser expressos na forma “as dimensões do templo de Salomão são o dobro das do tabernáculo”, e chegaríamos à conclusão oposta de Hyatt. Mais substancial é a objeção de Hyatt e de outros de que, a essa altura da sua história, os israelitas não teriam tido a habilidade e os recursos necessários para construir um santuário tão bem trabalhado como o tabernáculo. Considerações como as citadas em 12.35,36 e 17.8-16 talvez ajudem a diminuir essa dificuldade.
Deveríamos observar também que há alguns paralelos do tabernáculo no Antigo Oriente Médio. Estruturas semelhantes a tendas são conhecidas no Egito e Canaã do terceiro e segundo milênios a.C. Estruturas de tendas pré-fabricadas são comprovadas no Egito a partir da metade do terceiro milênio; eram feitas para uso real e religioso, especialmente em rituais funerários. A tenda portátil de Hetepheres (c. 2600 a.C.), com seus utensílios, é bem conhecida. Além disso, os termos traduzidos por “tabernáculo” e “tenda” em Êxodo também ocorrem no relato (ugarítico) de construção do santuário de Baal do século XIV a.C. Foram feitas também comparações com o pré-islâmico qubbah (árabe), uma tenda em miniatura de couro vermelho com cobertura em abóbada, na qual ídolos eram carregados. Nesse caso, no entanto, a evidência não vai muito além da metade do primeiro milênio a.C. Mas todos esses são paralelos incompletos, e a observação de Noth acerca de não existir “nenhuma analogia dessa construção extraordinária em lugar algum da história cúltica” mantém certa validade.
O significado do tabernáculo
O relato detalhado do tabernáculo apresentado em Êx 25—40 não deve ser simplesmente atribuído ao interesse de um autor antigo por arquitetura religiosa. O seu significado é muito mais profundo e, principalmente, espiritual. Embora o AT não apresente uma exposição sistemática desse significado espiritual do tabernáculo e de seus utensílios, podemos em certa medida apreciar o que ele representava para o israelita mediano que o via ou que, em épocas posteriores, foi informado dele com base nos relatos antigos. O tabernáculo era uma lição prática que ensinava algumas verdades básicas acerca do caráter de Deus e de seu relacionamento com o seu povo. Por exemplo, a mera existência de um santuário interno que abrigava a arca e as tábuas da Lei e a inacessibilidade dessa câmara secreta a todos, com exceção do sumo sacerdote quando lá entrava levando o sangue sacrificial no Dia da Expiação, proclamavam com letras grandes a santidade de Deus. Mesmo a aproximação física a essa tenda sagrada testemunhava das mesmas exigências elevadas de santidade. Oficiantes tinham de se aproximar dela via altar das ofertas queimadas e da pia, lembretes da necessidade da libertação do castigo e da profanação do pecado (cf. Hb 10.19,22), antes que pudessem cumprir suas obrigações sacerdotais.
O tabernáculo ensinava ainda outras lições que dificilmente passavam despercebidas ao israelita atento. Uma das mais elementares era que Deus era a fonte e o provedor da vida. Na tenda externa, o Lugar Santo, havia uma mesa e uma lâmpada para destacar essa verdade. A mesa em que era colocado o Pão da Presença tinha o seu correlato nos templos babilónicos, mas com um significado inteiramente diferente. Não expressava a necessidade diária de Deus por alimento, mas a sua constante provisão para Israel. O candelabro não servia somente para iluminação do templo. Era uma árvore estilizada e combinava as ideias de luz e vida, sugerindo que Deus era a fonte de ambas (cf. Gn 1.3; Jo 1.4). Em resumo, o valor simbólico do tabernáculo para o israelita antigo tinha sua importância. A luz dos diversos rituais realizados dentro e em volta dele, esse significado tornava-se cada vez mais completo e profundo.
No NT, essa importância simbólica do tabernáculo é mais evidente ainda. Em primeiro lugar, ele era “cópia e sombra daquele que está nos céus” (Hb 8.5), enquanto a sua formação em duas câmaras dava testemunho da alienação de Deus por parte do ser humano por causa do seu pecado (Hb 9.8ss).
Mas assim como o santuário portátil representava a presença de Deus para Israel, assim o ato definitivo da identificação com a humanidade na encarnação é descrito no quarto Evangelho como um “tabernacular”: “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós” (Jo 1.14). Visto que João depois disso fala da glória associada a essa revelação, é inconcebível que ele não estivesse conscientemente fazendo menção ao tabernáculo. “Assim como a glória de Deus habitava no tabernáculo (Ex 40.34), a Palavra habitava entre nós” (C. K. Barrett). O fato é, no entanto, que o NT reserva o simbolismo do tabernáculo para a ocasião em que foi partido o corpo do Filho de Deus e para sua vida e ministério pós-ressurreição. O cerimonial do tabernáculo, especialmente no Dia da Expiação, prefigurava a obra sumo sacerdotal de Cristo, que entrou uma vez por todas no “Santo dos Santos” (Hb 9.11-14). Ele agora representa o seu povo nesse local santíssimo (Hb 6.19,20; 9.24) e o capacita também a entrar no santuário por meio do sangue dele (Hb 10.19-25). No Calvário, Cristo se tornou a propiciação (Rm 3.25; hilastêrion. Em Hb 9.5, na nota de rodapé da NVI, “propiciatório”), e, quando o corpo dele foi partido, a cortina que separava os seres humanos da presença divina foi rasgada em duas (Hb 10.19,20). O que o tabernáculo físico simbolizava mas era incapaz de produzir realiza-se agora dentro da estrutura do santuário celestial.
O autor de Hebreus indica que o significado tipológico do tabernáculo vai além do uso que ele mesmo fez dele. Após listar os utensílios do tabernáculo, ele mesmo acrescenta: “A respeito dessas coisas não cabe agora falar detalhadamente” (Hb 9.5), e “a implicação [...] é que o autor poderia ter dado esse tipo de interpretação para todos os utensílios do tabernáculo” (D. W. Gooding). Aqui há, então, um encorajamento, na verdade um fundamento para descobrirmos tudo que pudermos acerca da importância tipológica do tabernáculo. Mas é aqui também que sobressai o elemento subjetivo, e há diversos aspectos que precisam ser levados em consideração. Em primeiro lugar, nunca podemos esquecer que as interpretações tipológicas apresentadas no NT têm autoridade própria; nenhuma interpretação subsequente pode ter a mesma autoridade. Em segundo lugar, o NT associa significado a vasos e utensílios, e não a barras e parafusos. Em terceiro lugar, o autor de Hebreus estava tentando contestar doutrinas erradas e fortalecer a fé dos seus leitores; uma tipologia sem controles não atingiria muito com relação a esses dois nobres alvos, e está aí uma lição para nós hoje.
Por que então, poderíamos perguntar, há dados relativos à estrutura do tabernáculo que parecem redundantes, se há sentido nos pontos que acabamos de destacar? Será que esses detalhes acerca de estacas e cordas e elementos semelhantes não estão registrados porque têm o seu próprio significado tipológico? Uma analogia útil — e não é nada mais do que isso — é sugerida em Hb 9.9, em que o tabernáculo é descrito como “uma ilustração para os nossos dias”. O termo usado no original é o mesmo traduzido por “parábola”. Ora, normalmente não esperamos descobrir significado espiritual em todos os detalhes das parábolas do nosso Senhor. Alguns elementos têm uma função auxiliar; em si mesmos, não têm significado algum, mas sem eles as parábolas seriam mais pobres. Os itens auxiliares no relato do tabernáculo também têm funções a cumprir. Há, por exemplo, uma gradação nos metais usados na construção. Quanto mais próximo o material estivesse do Santo dos Santos, mais precioso tinha de ser (o princípio é “preciosidade proporcional à proximidade”). A decoração dos pilares na entrada do pátio, do Lugar Santo e do Lugar Santíssimo segue o mesmo princípio. Dessa forma, os aspectos aparentemente insignificantes contribuem para um efeito geral que é de grande importância.
Independentemente da profundidade do nosso compromisso com a tipologia, não podemos esperar chegar a interpretações satisfatórias se elas se baseiam em traduções e compreensões errôneas dos aspectos estruturais do tabernáculo. E aqui que muitos estudos antigos acetca desse tópico desmoronam. Por esse motivo, o comentário desses capítulos dedica atenção especial a questões de contexto cultural, estrutura e projeto. Interpretações que não estão fundamentadas em uma observação apurada desses detalhes muito provavelmente são interpretações errôneas.
1) Um novo rei no Egito (1.1-22)
2) O nascimento de Moisés (2.1-10)
3) A fuga de Moisés para Midiã (2.11-25)
4) A sarça em chamas (3.1-12)
5) O Nome Divino (3.13-22)
6) Um servo relutante (4.1-17)
7) Moisés retorna ao Egito (4.18-31)
1) O primeiro encontro com o faraó (5.1-9)
2) A opressão se intensifica (5.10-23)
3) Uma segunda revelação a Moisés (6.1-13)
4) A genealogia de Arão e Moisés (6.14-27)
5) O milagre da vara (6.28—7.13)
6) O Nilo se transforma em sangue (7.14-24)
7) A praga das rãs (7.25—8.15)
8) As pragas dos piolhos e das moscas (8.16-32)
9) As pragas sobre o rebanho e o povo (9.1-12)
10) A praga do granizo (9.13-35)
11) As pragas dos gafanhotos e das trevas (10.1-29)
12) “Ainda mais uma praga” (11.1-10)
1) A instituição da Páscoa (12.1-28)
2) O êxodo (12.29-51)
3) Instituições comemorativas (13.1-16)
4) Em direção ao mar Vermelho (13.17—14.4)
5) Cruzando o mar (14.5-31)
6) O cântico de Moisés (15.1-21)
7) A provisão miraculosa de alimentos (15.22—16.36)
8) Problemas em Refidim (17.1-16)
9) Jetro se encontra com os israelitas (18.1-27)
1) A teofania no Sinai (19.1-25)
2) Os Dez Mandamentos (20.1-20)
3) O Livro da Aliança (20.21—23.33)
4) A aliança é confirmada (24.1-18)
V. INSTRUÇÕES ACERCA DO TABERNÁCULO E DE QUESTÕES AFINS (25.1—31.18)
1) 0 tabernáculo e os utensílios (25.1—27.21)
2) O preparo dos sacerdotes (28.1—29.46)
a) Vestes e insígnia (28.1-43)
b) Orientações acerca da consagração dos sacerdotes (29.1-46)
3) Instruções diversas (30.1—31.18)
VI. REBELIÃO E RECONCILIAÇÃO (32.1—34.35)
VII. INSTRUÇÕES IMPLEMENTADAS (35.1—40.38)
1) Os homens e os materiais (35.1—36.7)
2) A construção do tabernáculo e dos utensílios (36.8—38.31)
3) As vestes sacerdotais (39.1-31)
4) A conclusão da obra (39.42—40.38)