Estudo sobre Apocalipse 1:1-3

Apocalipse 1:1-3

Revelação de Jesus Cristo. Revelação[nota: 86] pressupõe um mistério. O mistério pode ser a visão essencialmente divina das coisas. Neste caso, é inacessível aos humanos. Para eles, não é evidente nem flagrante, tampouco pode ser inferido de forma lógica a partir de tudo o que sabem em geral. Os humanos podem apenas permitir que lhes seja anunciado. De resto, o mistério na Bíblia possui a característica da maior simplicidade, de modo que uma criança a entenda. Um plano secreto guardado numa gaveta e cercado de adivinhações, uma vez publicado, pode revelar-se como a coisa mais límpida do mundo. A dificuldade dos mistérios divinos, portanto, reside em outro ponto: o ser humano não deixa que se lhe diga nada. Ele não crê no que se publica.

A quinta-essência dos “mistérios” de Deus é o evangelho do Senhor crucificado e ressuscitado, “em quem (em Jesus) todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” (Cl 2.2,3).

Um dia os mistérios de Deus serão manifestos. A visão que Deus tem dos fatos conquistará aceitação pública. Então as coisas brilharão diante dos olhos de todos, assim como Deus os vê desde sempre. A luz de Cristo surge, e todos os sóis e estrelas empalidecem. Mas antes que Deus traga a irrupção desta revelação derradeira,87 ele concede revelação profética: antevisão para alguns, acerca da visão final para todos. Por que Deus faz isso? Por amizade: “Porque o Pai ama ao Filho, e lhe mostra tudo o que faz” (Jo 5.20). Então o Filho dirige-se a seus discípulos: “Um servo não sabe o que faz o seu senhor. Contudo a vós tenho dito que sois amigos… Tenho vos dado a conhecer isso, para que permaneceis (no que virá)” (Jo 15,15.16 [tradução do autor]; cf. Gn 18.17; Sl 103.7; 25.14; Am 3.7). É neste sentido que o livro do Apocalipse constitui uma antecipação para a igreja acerca do derradeiro. A igreja não deve tropeçar nas coisas penúltimas, seu candeeiro deve brilhar até o fim.

Chama a atenção que João não utiliza o conceito da “revelação” para qualquer uma das visões subseqüentes. Ele evita a formação plural “revelações” que, em geral, era usual no primeiro cristianismo (p. ex., 2Co 12.7). “Revelação” aparece pela primeira vez em João como designação de um livro (qi 24). Ele também se distingue dos profetas do at por causa desta peculiaridade. Apesar de toda a consonância, na realidade não há um som idêntico. Seu livro não é um livro de revelações entre outros tantos, mas sim a revelação, a saber, a síntese de todas as profecias bíblicas.

Agora, as grandes autoridades expõem-se atrás desta reivindicação: o livro é revelação de Jesus Cristo,88 que Deus lhe deu. O próprio Senhor está por trás deste livro e por trás de sua mensagem. Naturalmente a fonte da mensagem está situada mais nas origens. Cristo a recebeu de Deus. É assim que também conhecemos Jesus no evangelho de João: “Porque eu não tenho falado por mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, este me tem prescrito o que dizer e o que anunciar… As coisas, pois, que eu falo, como o Pai mo tem dito, assim falo” (Jo 12.49,50).89 Nos bastidores do livro, portanto, encontra-se Deus. Além da introdução em Ap 1.8, ele faz uso da palavra bem no final (Ap 21.5-8). Em contraposição, Jesus ocupa o primeiro plano do primeiro ao último versículo. Ele é o plenipotenciário, a quem Deus incumbiu de tudo.

Faz parte da tarefa de Jesus Cristo mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acontecer. Os destinatários do livro recebem aqui e em Ap 2.20; 22.3 o designativo de “servos de Jesus”.90 Esta é uma expressão abreviada de “seus servos, os profetas” (Ap 10.7; 11.18; 22.6 em semelhança com o uso idiomático no at, p. ex., em 2Rs 17.23). Os destinatários, em decorrência, são uma multidão de profetas. Contudo, em que se está pensando? Acaso a expressão visa um grupo com dons proféticos dentro da igreja? Esta suposição desencaminha, como Ap 1.4 evidenciará. Para João, toda a igreja é igreja de profetas. Todos os que verdadeiramente possuem o “testemunho de Jesus” têm o espírito da profecia. “O testemunho de Jesus é o espírito da profecia” (Ap 19.10).91

A esta igreja Jesus deve mostrar92 as coisas que em breve devem acontecer (cf. v. 19 e Ap 4.1). Com isso, fica delineado o conteúdo do livro. O Apocalipse vem a ser o único escrito do nt que tem como tema os acontecimentos em toda a sua extensão, ou seja, a história. É por isso que ele merece atenção justamente no nosso século, i. é, numa época em que se destaca com nitidez cada vez mais forte a unidade dos acontecimentos mundiais, assim como também se torna universal a consciência de que estamos envolvidos numa história conjunta, de abrangência mundial. Cada vez menos pessoas conseguem ignorar totalmente a política.

Também a igreja do Senhor Jesus Cristo percebe que está inserida neste horizonte e questiona seu envio e a possibilidade de continuar sendo igreja no fluxo das grandes evoluções, face aos enigmas da história. Em tais épocas não se deve falar à comunidade apenas sobre a igreja. Pelo contrário, cumpre dirigir o olhar, pela graça profética, também ao que a envolve e ao que se acerca dela: à história.

A primeira e última declaração sobre a história é que ela se encontra sob um devem,93 motivo pelo qual é um acontecimento dirigido. Contudo, quem está segurando as rédeas neste caso, e que tipo de “devem” é este? Os gregos também gostavam de falar de uma obrigatoriedade que perpassa todas as coisas, de uma força de destino impessoal, inescapável e inalterável do mundo, à qual se dobram até os deuses. De acordo com esta idéia, no fundo a história é a natureza. Transcorre sob leis naturais. Ao que o compreende resta tão somente o fatalismo: aceitar mudo e com o mínimo possível de emoção interior aquilo que acontece.

Pessoas ou deuses podem dobrar-se – Deus, porém, não se curva. Ele permanece fiel a si próprio e à sua palavra. Na verdade, parece que a história saiu dos bons trilhos de Deus, porém a palavra profética ilumina suas associações: dirigida pela glória de Deus e rendida a seus pés. Fazer a humanidade e a criação retornarem e trazê-las ao lar celestial constitui o conteúdo do Apocalipse.

Evidentemente a vida do Senhor Jesus Cristo foi um ponto especial de irrupção deste “devem” escatológico, desta soberania de Deus que coloca nos eixos. A ocorrência da palavrinha “devem” nos evangelhos é digna de nota, bem como sua acumulação nos contextos da Semana Santa. Aquele que pende da cruz é a parte da humanidade em que Deus voltou totalmente à soberania. Com esta vida, morte e ressurreição começa o tempo da consumação (qi 48). Ele, o Obediente, não repousa enquanto toda a criação não for, mais cedo ou mais tarde, voluntária ou involuntariamente, arrastada para dentro do movimento de obediência, e não tiver sido trazida de joelhos diante do trono de Deus e do Cordeiro. O Cordeiro sacrificado é executor do “deve” divino (cf. cap. 5).

Uma característica do poder divino é a natureza súbita da ação pela qual Deus intervém. Isso se dará em breve (“com rapidez”),94 intempestivamente, em marcha acelerada. Constantemente aparecem pessoas praticamente levadas de roldão por revelações de Deus: “de repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso” (At 2.2). Ao lado dos pastores “subitamente, apareceu com o anjo uma multidão da milícia celestial” (Lc 2.13), e Paulo “foi subitamente rodeado por uma luz do céu” (At 9.3 [tradução do autor]). Desta maneira se revela a dimensão senhoril e gloriosa de Deus. Ele toma a liberdade e simplesmente lança mão das suas oportunidades, sem depender de desenvolvimentos e evoluções intramundanos. Diz o poeta: “Envergonhando o teu pesar, imprevistamente há de chegar.”95
E ele (Jesus)… notificou (“tornou pública”) a revelação. A obra foi comunicada a João por “demonstração” (cf. nota 92) e da proclamação ou indicação. Enquanto a primeira expressão (deíknymi) é usada mais em relação à comunicação falada, a segunda, mais rara (semaíno), refere-se nitidamente a sinais.96 Esta menção reticente da transmissão por sinais deixa claro que a revelação não constitui uma exceção de 1Co 13.12. Por mais que se vislumbre algo na revelação, ainda não se está vendo “face a face”, porém apenas se conhece “em parte”. “Através de um espelho numa palavra obscura”, de modo que ainda restam mistérios (Ap 10.4). Também João em Patmos sem dúvida podia crer integralmente no Senhor, porém não reconhecê-lo totalmente. O reconhecer fica para trás quando comparado com o crer. A “unidade da fé e do conhecimento” ainda pertence ao futuro (Ef 4.13). A fé de hoje não se decepcionará com o fato de que o conhecer “face a face” (cf. Ap 22.4) somente é viável no futuro. A presente observação poderá servir de orientação para o leitor do Apocalipse que está curioso por obter conhecimento, assim como também aquele que está tentado a resignar: aqui, o ‘querer conhecer’ é humilhado e ao mesmo tempo o ‘poder crer’ é encorajado.

Jesus torna manifesta a revelação, enviando por intermédio do seu anjo. Assim como um rei possui sua corte, assim o Senhor exaltado têm à disposição anjos. Os anjos aparecem na manhã da Páscoa e nos instantes de sua vida na terra em que aparece o brilho de sua majestade (nascimento, vitória sobre o tentador no deserto, Getsêmani). Onde os anjos estão presentes, o Senhor aparece em glória e age como rei. Nossa imitação um pouco trôpega do texto original visa fazer sentir o quanto o próprio Cristo permanece sendo aquele que age, e quão pouco o anjo representa alguém que fica passivamente nos bastidores. O Senhor está diretamente presente, e apesar disso anjos estão ao seu dispor, deste modo destacando a sua majestade.97

O primeiro versículo do livro percorreu a trajetória pela qual a mensagem do livro se aproxima: Deus – Jesus Cristo – anjo. Finalmente é citada uma quarta estação e, desta forma, uma quarta autoridade: Jesus entregou a revelação ao seu servo João. Há pouco, “servo” era para todos os membros da igreja. Pois todos eles são profetas, assim como também são chamados de sacerdotes, testemunhas, santos ou irmãos. Agora, porém, torna-se claro que entre os “servos” há também um servo singular (cf. nota 85). A extraordinária relação de confiança entre João e seu Senhor expressa-se aqui no pronome possessivo: seu servo (que também pode ser encontrado em Gn 15.3). Esta relação foi fundada por revelação especial. Na verdade vigora a condição de irmãos, que se destaca de forma tão convincente em Ap 1.9, mas ela vigora mediante a preservação de encaminhamentos singulares. Há os servos e o servo, assim como existem os discípulos e o discípulo “a quem o Senhor amava” (Jo 13.23).

A menção de João sem aposto (também nos v. 4,9 e em Ap 22.8) depõe em favor da autoria pelo apóstolo, que foi um dos Doze.98 Naquele tempo o nome próprio João era freqüente. Contudo, qual era o João que podia apresentar-se ao cristianismo com este nome, abrindo mão de qualquer definição mais específica? Quem só precisava dizer: “Eu, João” (Ap 1.9), e todos sabiam de quem se tratava? O caso do discípulo do Senhor era único. Era simplesmente o João. Com esta auto-apresentação singela e não obstante enfática também nos deparamos nas cartas do João: “o presbítero” (2Jo e 3Jo) e simplesmente “eu” (1Jo)

Portanto, este João atestou a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo. De acordo com o costume literário de sua época, ele fala do escrito que está redigindo naquele instante na forma do pretérito.99 Aquilo que ele “atestou” é chamado de “a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo”.100 Esta é outra característica do livro. Freqüentemente os profetas do at denominaram sua mensagem de “palavra de Deus”, contudo João combina com esta expressão venerável uma outra: “testemunho101 de Jesus Cristo”. Neste ponto já se anuncia o dítono que é significativo para toda a mensagem do Apocalipse: Deus e o Cordeiro (cf. o comentário a Ap 5.13).

João entrega seu testemunho de maneira integral: tudo o que viu. O verbo “ver” ocorre mais de cinqüenta vezes no Apocalipse. Segundo o antigo linguajar profético, ele inclui “ouvir”.102 Constitui um termo técnico para o recebimento de uma revelação profética propriamente dita, razão pela qual no tempo antigo os profetas eram chamados de “videntes”. O vidente tinha de ser um bom ouvinte, pois Deus costuma mostrar seus sinais acompanhados de palavras interpretativas. Por meio delas ele dirige o olhar e o entendimento do profeta, assim como também a transmissão da mensagem.

No final da abertura do livro ressoa a primeira das sete bem-aventuranças do Apocalipse.103 A igreja dos ouvintes é um comunhão de salvação a ser bem-aventurada. Sua atenção ao que é dito a preservará (cf. o comentário a Ap 3.10). Bem-aventuranças bíblicas não nasceram a partir da introspeção, mas incendeiam-se no contraste.104 Na província da Ásia apregoavam-se felicidades estrangeiras, às quais a igreja corria o risco de se submeter, como as mensagens às igrejas deixam transparecer. Deste modo a bem-aventurança do apóstolo se choca com as palavras de ordem contrárias, as promessas mentirosas e ilusões de felicidade.

Bem-aventurados aqueles que lêem (em público) e aqueles que ouvem as palavras da profecia.105 Neste momento lançamos uma olhada sobre a igreja reunida. O “leitor” (conforme traduz Lutero) é o preletor público. Naquele tempo, para muitos membros da igreja esta modalidade constituía a única possibilidade de conhecer a Sagrada Escritura. A leitura pública é pressuposta em muitas ocasiões (Ap 2.7,11,17,29; 3.6,13,22; 13.9; 22.17,18). O Apocalipse pode ser lido em voz alta em aproximadamente uma hora e quinze minutos, ao contrário de muitos apocalipses judaicos extremamente longos.

João espera que, quando comunicada às pessoas, sua mensagem seja confirmada por Deus, o Revelador, e por Cristo, o Mediador: “Bem-aventurados” (“Felizes” [blh]) são o leitor e os ouvintes! Por trás de João estão a boca de Jesus e a boca de Deus. Ele não escreve para a leitura em particular ou para círculos especiais, mas para comunidades e sua audiência pública.

Eles devem guardar as coisas nela escritas. Este cumprimento é um cuidado muito especial que, numa concentração dedicada, está dirigido à própria causa.106 Bem-aventurado é quem abre os olhos para a palavra profética, quem aguça o ouvido, afia a reflexão, dispõe as emoções, enrijece a vontade e reúne paciência para ela. Guardar – neste ponto haveria muito a perder: tudo!

A bem-aventurança é fundamentada por uma exclamação a respeito da proximidade da salvação: pois o tempo está próximo. Também esta exclamação acerca da salvação faz parte da moldura e do teor do livro (Ap 22.10). Cada frase tem a intenção de servir à mensagem do fim próximo107 dos tempos. “Tempo” define aqui uma determinada hora.108 Deus faz cortes no curso do tempo, define prazos e cria oportunidades. Estas horas de Deus são os pontos de guinada e recomeço da história. Quando é usado, como no presente texto, sem maiores definições, “o tempo” representa o prazo para a implantação final do domínio de Deus (cf. Ap 11.18).109

A expectativa escatológica imediata não era para os primeiros cristãos uma condição passageira de superaquecimento religioso. Sua existência é encarada seriamente ainda no primeiro século, agora em vias de terminar, como também em todos os séculos subsequentes. Em todos os casos, somente os de fora falam de “decepção” (2Pe 3.3ss).110


Índice: Apocalipse 1:1-3 Apocalipse 1:4-9 Apocalipse 1:10-11 Apocalipse 1:12-16 Apocalipse 1:17-18 Apocalipse 1:19-20

Notas:
86 Revelação, no grego apokálypsis, donde se formou o estrangeirismo Apocalipse, designa o que foi desvendado em contraposição ao que está abscôndito. Refere-se aos mistérios do fim dos tempos, em grego éschaton (donde se formou a “escatologia”, para designar o estudo acerca do fim). Cf. o uso católico do termo como revelação de mistérios. Pelo que se pode comprovar, Revelação = Apocalipse é usado pela primeira vez por João para designar um livro (sobre o assunto: Biblisch-Theologisches Handwörterbuch, 2ª ed., art. “Apokalypse, Apokalytik” e “Offenbarung”; W. Bauer, Wörterbuch 2. NT, 5ª ed. apokalypsis; Michaelis, Einleitung in das NT, 1ª ed. § 30 Johannesapokalypse, item 2). Apocalipse significava originalmente: retirar algo de uma cova ou caverna. Mais tarde desfez-se a lembrança da terra como local em que se guarda algo. Passou-se a pensar mais fortemente em algo que é tirado debaixo de um véu: re-velação, des-cobrimento. O termo alemão “Offenbarung” contém a conotação de “portar abertamente”, de forma que se possa ver (cf. Friso Melzer, Der christliche Wortschatz…, Lahr, 1951).

87 “Revelação” no sentido da revelação final de Jesus Cristo: 1Co 1.7; Rm 2.5; 8.19; 2Ts 1.7; 1Pe 1.7,13.

88 No presente caso, Jesus Cristo é quem revela, e não o que é pessoalmente revelado. Em termos linguísticos, a segunda possibilidade seria viável (como, p. ex., em 1Co 1.7; 2Ts 1.7; 1Pe 1.7,13), porém cairia em contradição com o paralelo pormenorizado no encerramento do livro, em Ap 22.16, bem como com o presente contexto: a Cristo é dado, para que passe adiante. – Ademais, no livro em apreço, a designação do Senhor é simplesmente “Jesus”: Ap 1.9; 12.17; 17.6; 19.20; 20.4; 22.16. Quatro vezes aparece “Cristo” (embora não como nome, e sim como título): Ap 11.15; 12.10; 20.4,6. Somente nas peças da moldura do livro é que ocorre a designação dupla de “Jesus Cristo”: Ap 1.1,2,5 ou “Senhor Jesus”: Ap 22.20,21.

89 Justamente o evangelho de João fala com bastante freqüência do “dar” de Deus a Cristo: Jo 3.35; 5.22,27,36; 6.39,65; 13.3; 17.4,6,8,22; 18.11. Essa constitui uma das muitas pontes lingüísticas entre as duas obras.

90 Em Ap 7.3; 10.7; 19.2,5; 22.6 lemos acerca de servos de Deus, não de Jesus. No entanto, tudo quanto Deus é pertence também ao Filho. – Aliás, uma escola exegética tira da circunstância de que no at “servos” designa israelitas a conclusão de que também no presente caso deve estar havendo referência aos judeus e que, por decorrência, o livro se dirige a judaico-cristãos. Contudo, conforme Ap 1.4, João está escrevendo a igrejas que indubitavelmente eram compostas de judeus e gentios. Além disso, são recorrentes no nt as designações acerca de Israel relacionadas a gentílico-cristãos, p. ex., ekklesía, “templo”, “casa de Deus”, “povo de Deus”, “sacerdócio”, “luz”, “rebanho”, “circuncisão”, “vinha”. Nisso se espelha o processo básico da história da salvação, de que gentios se tornam, pelo sangue de Jesus, co-herdeiros, companheiros, partícipes do corpo de Israel. Deste modo, eles são de pleno direito co-portadores dos nomes de Israel. Quem estuda a carta aos Efésios não estranhará este fato. Veja ainda Ap 1.5,6 e nota 320.

91 Essa visão ocupará o centro das considerações em Ap 11.1-13. Compartilhou-a também a igreja do Pentecostes (At 2.4,17), e, de acordo com 1Co 12.3, cada cristão que testemunha é um profeta. Em Mt 5.12 Jesus considera os discípulos como sucessores dos profetas do AT.

92 A palavra grega deíknymi, aqui traduzida por “mostrar”, ocorre 82 vezes na lxx para a revelação profética (segundo G. Bertram, citado por Schlier, Ki-ThW, vol. ii 29.33). “O que Deus há de fazer, mostrou-o a Faraó” (Gn 41.28 [rc]); “o Senhor me mostrou que ele (Ben-Hadade, rei da Síria) morrerá” (2Rs 8.10), também Jr 24.1; Am 7.1,7; 8.1; Zc 3.1; Nm 23.3; Ez 11.25; 40.4. Conforme os últimos exemplos, a palavra nem sempre se refere apenas a sonhos e visões que são mostrados, mas igualmente a palavras que são ditas. Em Mc 8.31 a palavra traz praticamente o significado de “instruir”; em Mt 16.21 ela expressa comunicação oral. Também este vocábulo pertence especialmente ao linguajar joanino, cf. ainda a nota 249.

93 “Devem” ocorre com freqüência também em Daniel, p. ex., em Dn 8.2,26,27, sendo que chama atenção que se trata de um acréscimo da lxx. No texto hebraico falta essa expressão grega típica, que naturalmente está recebendo um novo conteúdo, cf. o comentário.

94 O vocábulo grego táchos está presente, p. ex., em tacômetro (medidor de velocidade) e traz em si a idéia básica de “apressar-se”, de maneira que representa o movimento, não o espaço de tempo. Um tacômetro não é relógio. O vocábulo aparece dez vezes no nt em contextos escatológicos ou similares: Lc 18.8; Rm 16.20; Ap 1.1; 22.6; de forma abreviada em Ap 2.16; 3.11; 11.14; 22.7,12,20. “Com rapidez” soa como uma fórmula antiga, usado constantemente na lxx para designar o modo do juízo divino, p. ex., Sl 2.12; Dt 9.3; 11.17; 28.20; Js 8.18,19. Cf. também a nota a seguir.

95 A afirmação temporal em “com rapidez” é somente um segundo aspecto, no sentido da expectativa imediata. Contudo, visto que ao se usar “em breve” este significado é destacado com mais força, por isso cf. o exposto sobre Ap 1.3.

96 No nt aparece apenas outras cinco vezes: At 11.28; 25.27 e especialmente de novo em João: Jo 12.33; 18.32 e 21.19. Também o substantivo “sinal” que transparece nele constitui uma palavra preferencial joanina; cf. o comentário a Ap 12.1.

97 No Apocalipse a palavra “anjo” aparece com freqüência maior do que em qualquer outro escrito do nt, ao todo 67 vezes de um total de 175 ocorrências no nt. Mesmo quando se leva em conta a volume de palavras (ou seja, a extensão) dos escritos, o Apocalipse mantém uma grande dianteira. Mateus, Lucas e Atos dos Apóstolos apresentam aproximadamente o dobro de palavras que o Apocalipse (cerca de 18.000 cada, contra cerca de 9.000 de Ap, conforme o texto grego de Nestle, 21ª ed.), porém Mateus utiliza “anjo” apenas 20 vezes, Lucas somente 25 vezes e Atos dos Apóstolos apenas 21 vezes. Juntos, os escritos de Paulo abarcam cerca de 32.000 palavras, mas empregam o termo “anjo” apenas 14 vezes. Em contraposição, a carta aos Hebreus, que contém apenas um número aproximado de 5.000 palavras, traz o termo 13 vezes. Os escritos não mencionados não exercem nenhum peso (quanto à estatística das palavras, cf. R. Morgenthaler, Statistik des ntst Wortschatzes, pág. 19-20, tabelas § 1 e 3). Que significado tem este fato? Em primeiro lugar, essa circunstância lembra a ocorrência mais intensa de “anjo” nos escritos pós-exílicos do at, p. ex., em Ez 40–48 e Zc 1–6, e sobretudo no apocalipsismo, onde a doutrina dos anjos é um tanto exuberante. Entre o mundo de Deus e o dos humanos introduz-se um abrangente reino de anjos com uma multidão de funções. Todo acontecimento entre Deus e as pessoas processa-se agora através dos anjos. Acabou a audição direta da voz de Deus, como os profetas testemunharam. Deus sem dúvida governa, porém somente de longe (Jr 23.23). Essa realidade e o juízo nele implícito são indicados pela intercalação dos anjos. Hb 2.2 alude ao fato de que uma palavra transmitida por anjos tem valor inferior. Considerando que também o conteúdo de nosso livro é comunicado através de um anjo, vários exegetas deixaram-se levar a lhe negar o nível pleno da revelação do nt. Contudo, é preciso olhar com maior precisão. Sem dúvida Deus está entronizado numa distância solene, que é eliminada somente na consumação (Ap 22.3,4), contudo não encontramos no Apocalipse locuções como “Deus e os anjos”, mas a fórmula “Deus e o Cordeiro”. Dificilmente podemos superestimar o peso desta pequena frase. Deus se revela através de Cristo e não pela mediação de anjos. Cristo estende a mão direita sobre a cabeça de João (Ap 1.17), fala às igrejas (cap. 2 e 3), anda bem no meio delas (Ap 2.1), bate à porta e celebra a Ceia com elas (Ap 3.20). No Apocalipse, os anjos não atrapalham a salutar relação não mediada. Eles são restos de uma maciça doutrina apocalíptica acerca dos anjos, oriunda do judaísmo. A doutrina nos anjos está inteiramente subordinada à doutrina de Cristo. Quando conceitos tradicionais parecem úteis, são utilizados, porém sem o destaque que o apocalipsismo costumava conceder-lhes.

98 Por que ele não se chama de apóstolo, quando o é? Ele está consciente da importância básica do apostolado (Ap 21.14; 18.20). Contudo, em seus escritos os apóstolos muitas vezes são chamados de mártys = testemunha. Talvez ele evitou a palavra porque entrementes havia conhecido muitos “apóstolo das mentiras” com seu falso senso de envio (Ap 2.2). Além disso, ele acaba de referir o verbo grego apostéllo = “enviar”, do qual se deriva “apóstolo”, ao anjo. Em Ap 1.11 será dito que ele tinha consciência de sua tarefa apostólica.

99 A meu ver, nesta passagem a palavra “testemunho” não está remetendo ao evangelho de João (assim já defendia André de Cesaréia em seu comentário sobre o Apocalipse, redigido o mais tardar no ano 613). Desde já, a sua provável época de redação depõe contra essa idéia. Além disso, temos de referir à mesma época as quatro formas no pretérito aqui constantes, “deu”, “noticiou”, “atestou”, “viu”.

100 Logo uma mensagem está sendo designada duas vezes, a fim de abarcar a sua plenitude. A expressão dupla aparece, com leves variações, também em Ap 1.9; 6.9; 12.17; 20.4.

101 Possui grande peso para João o grupo semântico “testemunhar”, “testemunho”, “testemunha” (martyréo – martyría – mártys). O conceito ocorre regularmente no início e no final de seus escritos: Jo 1.7 e 19.35 ou 21.24; 1Jo 1.2; 5.9; Ap 1.2; 22.20. Na lxx e no restante do nt “testemunho” é um termo raro. Em João, porém, aparece 30 vezes. Cf. ainda o exposto sobre Ap 1.5.

102 Também em Am 1.1; Na 1.1; Hc 1.1; Is 1.1; Ob 1.1 e Ez 1.1 “ver” inclui as palavras da revelação. Em Mq 1.1 até se afirma: “A palavra que eu vi” (tradução do autor). No final do Apocalipse é pronunciado claramente: “Eu, João, sou quem ouviu e viu estas coisas” (Ap 22.8).

103 Ap 1.3; 14.13; 16.15; 19.9; 20.6; 22.7,14. Contrapostas a elas aparecem catorze exclamações de ai (Ap 8.13; 9.12; 11.14; 12.12; 18.10,16,19).

104 P. ex., Sl 1.1; 118.9; 146.3-5; Jr 17.5-7; Lc 11.27,28; Jo 20.29; 1Pe 3.14; 4.14.

105 Depois de “revelação” (Ap 1.1) e “Palavra de Deus e testemunho de Cristo” (Ap 1.2), a terceira caracterização do livro é “palavra (ou livro) da profecia” (Ap 1.3). Cf. também Ap 22.7,10,18,19.

blh Bíblia na Linguagem de Hoje, 1998.

106 “Guardar” novamente é parte da linguagem joanina. Os demais autores do nt preferem “observar”, “preservar”, uma expressão que não enfatiza tanto a concentração na palavra e muito antes a rejeição de influências falsificadoras estranhas, p. ex., Lc 11.28; At 7.53; 16.4; 21.24; 1Tm 6.20 e 2Tm 1.14 (bv).

107 João na verdade prefere o vocábulo táchos = em breve, cf., p. ex., o v. 1 (cf. nota 94). Somente nas peças da moldura ele adota o termo eggýs = “próximo”, que no mais é usual. Sobre outros aspectos, cf. nota 110.

108 O texto original não traz chrónos (tempo decorrido, espaço de tempo, p. ex., e, Ap 2.21; 10.6; 20.3), mas kairós (momento, tempo definido, tempo final), um termo que, segundo alguns estudiosos, tem a ver com “marcar”, “cortar”, ou com “crise”, segundo outros.

109 Ao que parece, João podia pressupor que a expressão seria entendida sem esclarecimentos. Este fato, e provas como 2Co 6.2; Rm 13.12; Fp 4.5; Jo 4.23; 5.25, levam a presumir que essa fórmula era familiar no culto do cristianismo primitivo.

110 Alguns lingüistas derivam o termo grego eggýs = próximo de “existente à mão”. Em todo caso, deve-se partir da idéia de ausência de distância espacial. Contudo, já a LXX o entende como categoria temporal em muitas passagens. O grupo semântico “próximo”, “aproximar-se”, “mais próximo” é usado para afirmações escatológicas em: Mt 3.2; 4.17; 10.7; 24.32,33 e nos respectivos paralelos; cf. Mt 21.34; 26.18; Lc 21.20,28; Rm 12.11,12; Fp 4.5; Tg 5.8; Hb 10.25 e Ap 1.3; 22.10. Sobre o assunto, cf. qi 34-52.