Isaías 66: Significado, Explicação e Devocional
Isaías 66
I. Explicação de Isaías 66
Isaías 66:1
Assim diz o Senhor: Os céus são o meu trono, e a terra é o estrado dos meus pés. Que casa me edificareis? E que lugar será o meu descanso? (Hb.: koh ʾāmar YHWH, haššāmayim kisʾî wəhaʾāreṣ hadōm raglāy; ʾê-zeh bayit ʾăšer tivnû-lî wəʾê-zeh māqôm mənûḥātî — “Assim diz o Senhor: Os céus são o meu trono, e a terra é o estrado dos meus pés; onde está a casa que construireis para mim, e onde está o lugar do meu descanso?”). A fórmula koh ʾāmar traz o verbo ʾāmar em perf. qal 3ª masc. sing., marcando o início de um oráculo solene, em que o próprio Deus toma a palavra. Haššāmayim kisʾî constrói um quadro nominal em que “céus” (pl. masc.) e “trono” se fundem numa só imagem de realeza cósmica: o universo superior é o assento do Rei, não apenas o seu “teto religioso”. A sequência wəhaʾāreṣ hadōm raglāy (“e a terra é o estrado dos meus pés”) completa o quadro de entronização: o mundo inteiro está sob os pés de YHWH, o que ecoa a linguagem régia antiga e prepara as afirmações de textos como Salmos 11:4 e 103:19, onde o Senhor é descrito como entronizado nos céus. A dupla pergunta introduzida por ʾê-zeh (“onde está…?”) mais bayit (“casa”) e māqôm mənûḥātî (“lugar do meu descanso”) tem valor retórico: o verbo tivnû-lî (impf. qal 2ª masc. pl.) sugere um “pretender construir” para o Altíssimo aquilo que, em última análise, nunca poderá contê-lo. A sintaxe trabalha a ironia: depois de declarar que todo cosmos é trono e estrado, a pergunta “que casa me edificareis?” mostra o quão inadequado é imaginar Deus confinado num edifício, por mais suntuoso que seja. Não se nega o templo como dom, mas se relativiza a sua importância frente à transcendência divina, em harmonia com confissões como a de Salomão em 1 Reis 8:27 e, mais tarde, com a citação explícita deste texto em Atos 7:49–50, onde Estêvão lê Isaías como crítica à confiança mágica na instituição do templo. Assim, a gramática simples do nominal (“céus = trono”, “terra = estrado”) sustenta uma teologia elevada: Deus é Rei de tudo, e qualquer “casa” humana é, na melhor das hipóteses, sinal pedagógico dessa realeza, nunca o seu limite.
Isaías 66:2
Todas estas coisas a minha mão fez, e assim todas estas coisas vieram a existir, palavra do Senhor. (Hb.: wəʾet kol-ʾēlleh yādî ʿāśātā wayyihyû kol-ʾēlleh nəʾum YHWH — “E todas estas coisas a minha mão fez, e assim todas estas coisas vieram a existir, oráculo do Senhor”). Aqui vale ligeira correção à tua tradução: o hebraico wayyihyû kol-ʾēlleh não diz apenas que “todas estas coisas são”, mas enfatiza que “vieram a ser”, “entraram na existência”. Yādî ʿāśātā combina “minha mão” com o verbo ʿāśāh em perf. qal 3ª fem. sing., concordando com “mão” como sujeito: é uma forma de falar antropomorficamente da ação criadora de Deus, sem atribuir-lhe literalidade física. A sequência wayyihyû (wayyiqtol qal 3ª masc. pl.) prolonga o aspecto dinâmico: não apenas foram feitas, mas permanecem como resultado de sua palavra criadora. O termo nəʾum YHWH é fórmula técnica profética, quase um “selo” que garante a veracidade do oráculo. Sintaticamente, o versículo continua o argumento do v. 1: se céu e terra são trono e estrado, é porque procedem da mão de Deus; logo, nenhum templo poderia oferecer-lhe algo que ele já não possua por direito absoluto, em sintonia com Salmos 24:1 e com a afirmação de Paulo em Atos 17:24–25 de que Deus não é servido por mãos humanas “como se de alguma coisa precisasse”. A teologia aqui é intensamente criacionista: o culto verdadeiro não começa oferecendo algo a Deus como se ele fosse carente, mas reconhecendo que tudo o que temos veio primeiro dele.
Mas é para este que olharei: para o humilde e abatido de espírito, que treme à minha palavra.(Hb.: wəʾel-zeh ʾabbîṭ ʾel-ʿānî ûnəkhēh-rûaḥ wəḥārēḏ ʿal-dəḇārî — “Mas é para este que olharei: para o aflito e abatido de espírito, e que treme à minha palavra”). Aqui tua correção é importante: em vez de “para este olhar eu olho atentamente”, que repete a ideia, o ritmo hebraico é melhor captado por “é para este que olharei”. ʾAbbîṭ é Hifil impf. 1ª com. sing. de nābaṭ (“olhar, voltar o olhar para”), indicando uma decisão volitiva: não é um olhar distraído, mas um voltar-se gracioso. O objeto desse olhar é descrito por dois adjetivos justapostos: ʿānî (“pobre, aflito”) e nəkhēh-rûaḥ (“ferido/abatido de espírito”), juntos desenhando alguém esmagado, não necessariamente socialmente indigente, mas interiormente esvaziado de pretensões. O particípio ḥārēḏ (“tremendo”) funciona como adjetivo de qualidade permanente, ligado por ʿal-dəḇārî (“por causa da minha palavra”): não é pavor irracional, mas um tremer reverente diante da voz de Deus, como em Esdras 9:4 e 10:3. A sintaxe faz um contraste discreto com o v. 1: Deus que não cabe em templo volta-se não para a grande obra arquitetônica, mas para o coração quebrantado, antecipando linhas de Isaías 57:15 (“habito… com o contrito e abatido de espírito”) e dialogando com as bem-aventuranças de Mateus 5:3–4 e com a “alegria com tremor” de Filipenses 2:12. A exegese converge para uma inversão: o verdadeiro “lugar de descanso” de Deus (v. 1) não é a casa de pedra, mas o ʿānî que treme à sua palavra; o texto desloca o eixo do culto, do espaço sagrado para a interioridade humilde que recebe a revelação.
Isaías 66:3
Quem abate o boi é como quem mata um homem; quem sacrifica um cordeiro é como quem quebra o pescoço de um cão; quem apresenta uma oferta de cereais é como quem oferece sangue de porco; quem queima incenso memorial é como quem abençoa um ídolo. (Hb.: šōḥēt haššōr makkēh-ʾîš, zōvēaḥ haśśeh ʿōrēf kelev, maʿălēh minḥāh dam-ḥăzîr, mazqîr ləḇōnāh məḇārēḵ ʾāwen — literalmente, “o que abate o boi é [como] o que fere homem; o que sacrifica o cordeiro [é como] o que quebra pescoço de cão; o que faz subir oferta de cereais [é como] aquele que oferece sangue de porco; o que faz memorial de incenso [é como] aquele que abençoa a iniquidade/ídolo”). Aqui é necessário corrigir duas partes da tua tradução: minḥāh não é “sangue de porca”, mas “oferta de cereais, oferta de manjares”, e dam-ḥăzîr é “sangue de porco” (sem feminino “porca”), de modo que a estrutura é “quem oferece minḥāh é como quem oferece sangue de porco”. Além disso, mazqîr ləḇōnāh não é apenas “faz menção de incenso”, mas “faz memorial de incenso”, ecoando a linguagem de Levítico, em que parte da oferta é queimada como “memorial” diante do Senhor. A série de particípios (šōḥēt, zōvēaḥ, maʿălēh, mazqîr) desenha tipos de adoradores, e os Hifil/Qal que os acompanham (makkēh, ʿōrēf, maʿălēh, məḇārēḵ) constroem um paralelismo chocante: cada ato cultual “ortodoxo” é equiparado a um ato sacrílego ou violento. Morfologicamente, os particípios funcionam como substantivos (“aquele que…”), e o kaf comparativo é elíptico, perceptível pelo paralelismo: “é como quem…”. A sintaxe monta quatro parelhas irônicas, e a exegese mostra a intenção: na prática, Deus está dizendo que sacrifícios e incenso oferecidos por um povo idólatra lhe soam tão repugnantes quanto homicídio, queima de cães (animal impuro), sangue de porco (claramente proibido em Deuteronômio 14:8) e bênção de ídolo. Em termos teológicos, o versículo retoma a crítica já lançada em Isaías 1:11–15 e dialoga com 1 Samuel 15:22 e Oséias 6:6: culto formal, quando divorciado de obediência, torna-se paródia blasfema; a gramática ritual permanece, mas o sentido espiritual se corrompe, e o texto desfaz qualquer ilusão de que a mera liturgia possa mascarar um coração entregue à idolatria.
Também eles escolheram os seus próprios caminhos, e a sua alma se deleita nas suas abominações. (Hb.: gam-hēmāh bāḥărû bədarkēhem ûḇəšiqqûṣēhem napšām ḥāp̄ēṣāh — “Também eles escolheram os seus próprios caminhos, e naquilo que é abominação a sua alma encontra prazer”). A forma bāḥărû é perf. qal 3ª masc. pl., marcando uma escolha já consolidada; derek no plural (darkēhem) aponta não para um desvio pontual, mas para um estilo de vida inteiro. O termo šiqqûṣîm remete ao vocabulário técnico das “abominações” idolátricas, especialmente em textos deuteronomistas. Já napšām ḥāp̄ēṣāh traz “sua alma” como sujeito (fem. sing.), com o verbo ḥāp̄ēṣ (perf. qal 3ª fem. sing.) realçando prazer, apego interior. Sintaticamente, essa frase final explica por que os sacrifícios do início do versículo tornam-se profanação: não é que as formas litúrgicas sejam em si más, mas elas foram colocadas a serviço de um coração que ama precisamente aquilo que Deus chama “abominação”. A exegese mostra um princípio de grande alcance bíblico: Deus toma a sério tanto os caminhos escolhidos quanto os afetos que os alimentam; em linguagem paulina, seria o momento em que Deus “os entrega” às paixões do seu próprio coração (Romanos 1:24–25). O versículo fecha o movimento: uma liturgia que brota de um coração que se compraz em šiqqûṣîm não é neutra; ela sela a escolha do caminho e revela que, no fundo, o “deus” adorado é o próprio desejo.
Isaías 66:4
Também eu escolherei os seus castigos e farei vir sobre eles aquilo de que têm medo, porque chamei e não houve quem respondesse; falei e não ouviram; fizeram o que é mau aos meus olhos e escolheram aquilo em que não tenho prazer. (Hb.: gam-ʾănî ʾeḇḥar bətaʿălulēhem ûməgûrōtām ʾăbîʾ lāhem; yaʿan qārāʾtî wəʾên ʿōneh, dibbartî wəlōʾ šāmēʿû; wayyaʿăśû hāraʿ bəʿênay ûḇăʾăšer lōʾ ḥāp̄aṣtî bāḥārû — “Também eu escolherei as suas taʿălulîm e farei vir sobre eles os seus temores, porque chamei e não houve quem respondesse, falei e não ouviram; fizeram o mal aos meus olhos e escolheram aquilo em que não tenho prazer”). O termo ʾeḇḥar (impf. qal 1ª com. sing. de bāḥar, “escolher”) indica que Deus responde à escolha deles (v. 3) com uma escolha judicial: ele “seleciona” para eles os próprios taʿălulîm, palavra difícil, que pode significar “tratos duros, ações vexatórias, zombaças” — muitos tradutores, por isso, preferem “castigos” ou “tratamento severo”. Məgûrōtām vem de māgôr (“terror, coisa temida”), de modo que “seus temores” são as coisas que eles tanto receiam quanto, paradoxalmente, atraem sobre si. A cláusula causal introduzida por yaʿan (“porque”) apresenta três verbos em 1ª pessoa (qārāʾtî, dibbartî, ḥāp̄aṣtî) e três respostas negativas humanas (ʾên ʿōneh, lōʾ šāmēʿû, bāḥārû): Deus chama e fala, mas eles se calam e escolhem o que ele não deseja. A sintaxe cria um paralelismo impressionante: “eles escolheram” (v. 3, bāḥărû) seus caminhos, então “eu escolherei” (ʾeḇḥar) o modo como colherão o fruto dessas escolhas. Temos aqui uma teologia da retribuição que não é mecânica, mas profundamente relacional: o juízo é descrito como Deus tomando a iniciativa de deixar que o terror que eles semearam se volte contra eles, ecoando a lógica de Provérbios 1:24–26 e Salmos 81:12. O Deus que em 66:2 se inclina ao contrito, aqui se torna o Deus que entrega os impenitentes àquilo de que mais fogem.
Isaías 66:5
Ouvi a palavra do Senhor, vós que tremeis diante da sua palavra. (Hb.: shimʿû dəḇar-YHWH, haḥărēdîm ʾel-dəḇārô — “Ouvi a palavra do Senhor, vós que tremeis à sua palavra”). O verbo shimʿû é imperativo qal 2ª masc. pl. de šāmaʿ (“ouvir, obedecer”), convocando uma comunidade: não é uma ordem genérica, mas um chamado aos que já foram descritos no v. 2 como “os que tremem” diante da palavra. Haḥărēdîm é particípio qal masc. pl. de ḥārad (“tremer”), substantivado: “os tremedores”, “os que vivem num estado de reverente tremor”. A preposição ʾel em ʾel-dəḇārô pode sugerir uma direção (“para a sua palavra”), mas, no contexto, reforça a ideia de relação intensa com a fala de Deus: são pessoas cuja vida inteira se orienta para aquilo que Deus diz, o que ressoa com passagens como Salmos 119:120 (“a minha carne estremece de temor por ti”) e com as cenas de Esdras em que os que “tremem às palavras do Deus de Israel” se juntam para confessar o pecado. Sintaticamente, o versículo marca um corte na cena: depois da denúncia do culto profanado e do anúncio de juízo, a voz profética volta-se explicitamente para o “resto fiel” dentro de Israel. A exegese mostra um movimento pastoral delicado: o mesmo Deus que pronuncia juízo não esquece os que sofrem e tremem; ele lhes dirige, em meio ao tumulto, uma palavra especial, como quem sussurra ao ouvido dos que estão sendo marginalizados pela maioria.
Assim dizem os vossos irmãos que vos odeiam e vos expulsam por causa do meu nome: ‘Seja glorificado o Senhor, para que vejamos a vossa alegria’; mas eles é que serão envergonhados. (Hb.: ʾāmrû ʾaḥêḵem śōnəʾêḵem mənaddêḵem, ləmaʿan šəmî; yikkāḇēd YHWH, wənirʾeh bəśimḥatkem, wəhêm yēḇōšû — “Os vossos irmãos, que vos odeiam, que vos expulsam por causa do meu nome, disseram: ‘Seja glorificado o Senhor, e veremos a vossa alegria’; mas eles é que se envergonharão”). Aqui a tua tradução capta bem o sentido geral, e a única correção importante é o tempo verbal final: yēḇōšû é futuro (“serão envergonhados”), não apenas um estado presente. A sequência de substantivos com sufixos pronominais (ʾaḥêḵem, śōnəʾêḵem, mənaddêḵem) desenha uma ironia dolorosa: são “irmãos” e, ao mesmo tempo, “odiadores” e “expulsores”. O particípio piel mənaddêḵem vem de nāḏaḥ (“expulsar, banir”), evocando exclusão social e religiosa, o que se aproxima, em chave neotestamentária, da expulsão das sinagogas (João 16:2). A frase “yikkāḇēd YHWH, wənirʾeh bəśimḥatkem” é profundamente irônica: pode ser lida como zombaria (“Vamos ver essa alegria aí, se o Senhor é mesmo glorificado em vocês”) ou como um tipo de piedade formal carregada de sarcasmo. A sintaxe reserva o último verbo para o veredito divino: wəhêm yēḇōšû coloca “eles” em posição enfática, dizendo que a vergonha final recairá justamente sobre os que hoje parecem vitoriosos. Exegética e pastoralmente, o versículo descreve o drama do “resto” perseguido dentro do próprio povo de Deus, algo que se espelha em Lucas 6:22–23 (“bem-aventurados sois quando os homens vos odiarem… por causa do Filho do Homem”) e em 1 João 3:13. O Deus de Isaías não apenas vê o juízo sobre o culto falso, mas também a humilhação daqueles que, em nome da ortodoxia, excluem os que tremem diante da palavra — e promete inverter, no tempo oportuno, a vergonha.
Isaías 66:6
Da cidade vem um som de tumulto, uma voz do templo, a voz do Senhor, que dá retribuição aos seus inimigos. (Hb.: qōl šaʾôn mēʿîr, qōl mēhêḵāl; qōl YHWH, məšallēm gəmul ləʾōyəḇāw — “Som de tumulto vem da cidade, voz [vem] do templo; voz do Senhor, que paga o salário aos seus inimigos”). O substantivo qōl (“voz, som”) repetido três vezes cria um crescendo auditivo: primeiro é “som de tumulto” (šaʾôn sugere alvoroço, ruído de combate ou de grande movimento), depois “voz do templo”, e finalmente essa voz é identificada como “a voz do Senhor”. O particípio məšallēm (piel masc. sing. de šālam, “retribuir, pagar completamente”) com o objeto gəmul (“recompensa, retribuição”) reforça a ideia de um acerto de contas meticuloso: não se trata de explosão irracional de ira, mas de retribuição medida. Sintaticamente, as três cláusulas se encadeiam sem verbos finitos, como se o próprio ritmo sincopado imitasse o eco de vozes e ruídos que ressoam sobre Jerusalém. A exegese observa que o cenário é ainda o templo: do lugar que eles imaginavam controlar, vem agora o som do juízo divino, lembrando cenas como Isaías 13:4 (o ruído de multidões no vale do juízo) e antecipando, em chave apocalíptica, a queda de Babilônia em Apocalipse 18, quando as vozes da cidade anunciam o fim de um sistema inteiro. Aquele que em 66:2 se inclina ao abatido e, em 66:5, consola os que tremem, é o mesmo que, em 66:6, levanta sua voz do santuário para “pagar” aos seus inimigos o que lhes é devido: o texto, assim, mantém em tensão juízo e consolo, majestade cósmica (v. 1) e cuidado íntimo (v. 2), para que o leitor perceba que o Deus que não cabe em casa alguma, ainda assim, entra na história e faz justiça com precisão.
Isaías 66:7
Antes que estivesse de parto, deu à luz; antes que lhe viessem as dores, deu à luz um filho varão. (Hb.: bəterem taḥîl yāladāh bəterem yābōʾ ḥēvel lāh wəhimlîṭāh zākar — “Antes que estivesse em trabalho de parto, ela deu à luz; antes que viesse sobre ela a dor, deu à luz um menino”). A partícula bəterem (“antes que”) abre duas orações temporais paralelas, cada uma seguida por um verbo que deveria, em português, ser lido em valor perfectivo: taḥîl é Qal imperfeito 3ª fem. sing. de ḥîl (“estar em trabalho de parto, tremer, contorcer-se”), enquanto yāladāh é Qal perfeito 3ª fem. sing. de yālad (“dar à luz”), formando o paradoxo: antes que o parto comece, o nascimento já está consumado. A segunda metade repete a estrutura: yābōʾ (Qal imperfeito 3ª masc. sing. de bōʾ, “vir”) é acompanhado de ḥēvel (“dor de parto, angústia”) e culmina em wəhimlîṭāh (Hifil perfeito 3ª fem. sing. de mālaṭ, “fazer escapar, livrar, dar à luz”) seguido de zākar (“macho, filho varão”). As formas perfectivas pós-bəterem criam uma sequência temporal invertida: o parto já aconteceu “antes” daquilo que normalmente o precede, sublinhando o caráter milagrosamente súbito e anômalo do evento, razão pela qual é melhor verter “ela deu à luz” em vez de “ela dará à luz”, como sua tradução inicial sugeria, para respeitar o choque aspectual do hebraico. As duas cláusulas “antes que...” funcionam como molduras que enquadram o núcleo semântico do versículo: um nascimento masculino absolutamente inesperado, que a tradição lê como metáfora de Sião dando à luz uma realidade nova (um povo restaurado, uma comunidade messiânica) sem passar pelo processo habitual de trabalho de parto. O efeito exegético é mostrar que, no momento em que Deus decide agir, a história não obedece mais ao ritmo lento e doloroso das gestações humanas: o que seria um processo prolongado torna-se um acontecimento instantâneo, como se a dor fosse “atropelada” pela graça.
Isaías 66:8
Quem já ouviu algo semelhante a isto? Quem já viu algo semelhante a isto? Pode a terra dar à luz num só dia? Pode nascer uma nação de uma só vez? (Hb.: mî šāmaʿ kāzōʾt, mî rāʾā kāʾēlleh, hăyûḥal ʾereṣ bəyōm eḥad, ʾim yivvālēd gôy paʿam eḥat — “Quem ouviu algo como isto? Quem viu coisas como estas? Pode uma terra ser feita dar à luz num só dia? Pode nascer uma nação de uma só vez?”). Os dois verbos iniciais šāmaʿ e rāʾā (Qal perfeito 3ª masc. sing. de “ouvir” e “ver”) em forma interrogativa indicam não apenas surpresa, mas impossibilidade histórica: ninguém jamais ouviu ou viu um parto nacional assim. Em seguida, hăyûḥal combina a partícula interrogativa hă- com o imperfeito 3ª masc. sing. de yākōl (“poder, ser capaz”), questionando se a própria ʾereṣ (“terra”, aqui provavelmente metonímia para o povo enraizado nela) poderia “ser capaz” de ser dada à luz em um único dia. O verbo passivo yivvālēd (Nifal imperfeito 3ª masc. sing. de yālad) intensifica a passividade do sujeito “nação”: ela não se autoengendra, mas é “nascida” por uma intervenção exterior. Sintaticamente, as duas perguntas finais (“pode a terra…?”, “pode nascer uma nação…?”) funcionam como desenvolvimento lógico da imagem de 66:7: se uma mulher já deu à luz antes das dores, então o que está em jogo não é apenas um nascimento individual, mas um parto cósmico, em que um território inteiro e um corpo político inteiro surgem de uma vez. A exegese do versículo, à luz das leituras propostas, converge para a ideia de que Isaías descreve um ato criador que ultrapassa todas as analogias históricas: a restauração pós-exílica (e, em leitura escatológica, a reunião de um povo definitivo) acontece com a mesma rapidez com que, no versículo anterior, o menino nasce antes das dores.
Isaías 66:8
Pois Sião sofreu dores, e também ela deu à luz seus filhos. (Hb.: kî ḥālāh gam yāledāh Ṣiyyôn ʾet bāneyhā — “Porque Sião esteve em dores, e também deu à luz seus filhos”). O kî causal faz deste membro a chave interpretativa das imagens anteriores: agora o texto nomeia explicitamente a mulher, Sião. O verbo ḥālāh é Qal perfeito 3ª fem. sing. de ḥālāh (“ficar doente, estar enfraquecida, sofrer”), aqui com valor específico de “sentir dores de parto”, enquanto yāledāh (variante fonética de yāladāh, Qal perfeito 3ª fem. sing.) retoma o verbo de 66:7 para “dar à luz”. A partícula gam (“também”) cria uma espécie de cruzamento semântico: Sião de fato passa pelas dores, mas num movimento tão imediato que a dor e a alegria do nascimento parecem coladas uma à outra. Sintaticamente, Ṣiyyôn funciona como sujeito explícito, seguido do objeto direto marcado por ʾet (“seus filhos”), mostrando que o parto não é apenas do “filho varão”, mas de uma multiplicidade de filhos. Assim, se 66:7 sugeria um nascimento quase “sem dor”, 66:8 equilibra a metáfora: há dor, mas ela é tão abreviada que a imagem continua sendo a de um parto extraordinariamente rápido. Isto prepara o leitor para entender a restauração de Jerusalém não como negação do sofrimento do exílio, mas como sua abreviação soberana: o tempo da dor foi real, mas o tempo da frutificação o ultrapassa em intensidade e rapidez, sinalizando um agir divino que encurta a noite e precipita a madrugada.
Isaías 66:9
“Acaso farei eu chegar ao ponto de nascer e não farei dar à luz?”, diz o Senhor. “Acaso eu, que faço dar à luz, fecharei [a madre]?”, diz o teu Deus. (Hb.: haʾănî ʾašbîr wəlōʾ ʾōlîd, yōmar YHWH; ʾim ʾănî hammōlîd wəʿāṣartî, ʾāmar ʾĕlōhāyiḵ — literalmente: “Sou eu que trago à quebra [do parto] e não faço dar à luz?, diz o Senhor; se sou eu o que faz dar à luz, eu mesmo fecharei?, diz o teu Deus”. ʾašbîr é Hifil imperfeito 1ª comum sing. de šābar (“quebrar”), aqui em expressão idiomática “levar a mãe ao ponto de ‘quebra’/abertura no parto”; ʾōlîd é Hifil imperfeito 1ª comum sing. de yālad (“fazer nascer, dar à luz”), e hammōlîd é particípio Hifil com artigo, “aquele que faz nascer”. Já wəʿāṣartî (Qal perfeito 1ª comum sing. de ʿāṣar, “reter, fechar”) é corretamente entendido, pelas boas traduções, como “fechar a madre”, não como “refrear” em sentido genérico. O uso do pronome enfático ʾănî em ambas as perguntas sublinha que o sujeito da ação de dar à luz é exclusivamente Deus: ele não inicia um processo para abandoná-lo interrompido. A sintaxe alterna dois pares paralelos (“trazer ao parto” / “fazer dar à luz”; “fazer dar à luz” / “fechar”) para formar uma antítese: tudo o que, no parto nacional descrito nos vv. 7-8, poderia parecer improvável ou impossível é garantido pela identidade daquele que o conduz. Na leitura do capítulo como um todo, este versículo é o selo lógico da sequência: se a nova comunidade nasce com rapidez e em número surpreendente, não é porque a própria Sião se auto-regenera, mas porque o Deus que começou a obra se recusa, por definição, a deixá-la inacabada.
Isaías 66:10
Alegrai-vos com Jerusalém e regozijai-vos nela, todos vós que a amais;... (Hb.: simḥû ʾet Yerûšālaim wəgîlû bāh kāl ʾōhăḇeihā — “Alegrai-vos com Jerusalém e exultai por ela, todos os que a amam”. Aqui, simḥû é imperativo Qal 2ª masc. pl. de śāmaḥ (“alegrar-se”) e gîlû é também imperativo Qal 2ª masc. pl. de gîl (“exultar, vibrar de alegria”), formando um par de comandos sinônimos que intensificam o convite à alegria. O objeto direto ʾet Yerûšālaim indica que a alegria é “com” Jerusalém, mas, pela preposição implícita, também “por causa de” Jerusalém, enquanto bāh (“nela”) sublinha a localização: é dentro da cidade restaurada que esta alegria será experimentada. O sintagma kāl ʾōhăḇeihā (“todos os que a amam”) funciona como sujeito coletivo alargado: não apenas os habitantes imediatos, mas qualquer um que, em qualquer lugar, ame a cidade e o que ela representa é convocado. Do ponto de vista sintático, a frase apresenta uma dupla coordenação: dois imperativos dirigidos a um grupo definido pela cláusula relativa “os que a amam”. A transição em relação aos versículos anteriores é nítida: se antes a imagem era de parto e esforço, agora o foco é o júbilo, e o amor por Jerusalém torna-se o critério para participar dessa alegria. O versículo implicitamente corrige qualquer culto meramente formal ao templo (tema forte de Trito-Isaías) e desloca a ênfase para uma relação afetiva com a cidade como símbolo da presença de Deus entre o seu povo.
Isaías 66:10
regozijai-vos com ela de júbilo, todos vós que chorais por ela. (Hb.: sîsû ʾittāh māsōś kāl hammitaʾabbəlîm ʿālêhā — “Exultai com ela em júbilo, todos os que por ela se entristeceram”. O imperativo sîsû (Qal 2ª masc. pl. de sûs, “regozijar-se, saltitar de alegria”) é reforçado pelo substantivo abstrato māsōś (“júbilo intenso”), produzindo a construção “regozijar-se com júbilo”, que no hebraico já soa pleonástica para acentuar a exuberância da alegria. O grupo destinatário é descrito como kāl hammitaʾabbəlîm ʿālêhā: o artigo definido com o particípio Hitpael mitaʾabbəlîm (de ʾāval, “prantear, fazer luto”) indica “todos os que estavam de luto por ela”, isto é, aqueles que, no período de ruína e humilhação de Jerusalém, se identificaram com a dor da cidade. Sintaticamente, o versículo equilibra a primeira metade com uma estrutura quase idêntica: primeiro uma ordem dupla de alegria, depois a caracterização de um grupo. Mas há uma inversão notável: os que choraram tornam-se, agora, o núcleo da comunidade jubilosa. Isto reforça um princípio recorrente nos profetas: aqueles que se solidarizam com a ruína de Sião são precisamente os que experimentarão, em primeira pessoa, a sua restauração (como em Isaías 40:1–2 e 61:2–3), de modo que o lamento fiel não é um fim em si, mas o sulco onde o júbilo será semeado.
Isaías 66:11
Para que mamais e vos fartastes do seio das suas consolações; para que vos delicieis com a abundância da sua glória. (Hb.: ləmaʿan tînəqû ûśəvaʿtem miššōd tanḥumêhā ləmaʿan tāmōṣṣû wəhitʿannagtem mizîz kəvōdāh — “para que mameis e vos sacieis do seio das suas consolações, para que sugueis e vos deleiteis da abundância da sua glória”). A partícula ləmaʿan (“para que”) em duplicação marca claramente o propósito dos mandatos do versículo anterior: o objetivo da alegria é que o povo seja nutrido. tînəqû é Qal imperfeito 2ª masc. pl. de nāqaq/yānaq (“mamar”), enquanto śəvaʿtem é Qal perfeito 2ª masc. pl. de śāvaʿ (“ficar satisfeito, farto”); a combinação indica não um golinho tímido, mas sucção até plena saciedade. O substantivo šōd aqui (com prefixo mi-) é interpretado pelos léxicos e interlineares como “seio”, isto é, o peito materno que dá leite, e tanḥumêhā (plural de tanhumîm, “consolos”) transforma a própria experiência de consolo em alimento. No segundo membro, tāmōṣṣû (Qal imperfeito 2ª masc. pl. de māṣaṣ, “sugar, extrair”) e hitʿannagtem (Hitpael perfeito 2ª masc. pl. de ʿānaḡ, “deleitar-se”) intensificam a imagem: o povo “extrai” alegria da zîz kəvōdāh, expressão que muitos entendem como “abundância/fluência da sua glória”, como se a glória de Jerusalém fosse um leite superabundante que transborda para nutrir. Do ponto de vista sintático, o versículo está organizado em dois fins paralelos introduzidos por ləmaʿan, cada qual com dois verbos coordenados e uma fonte de alimento, compondo um quadro em que a restauração de Jerusalém não é apenas jurídico-política, mas visceral: a cidade torna-se mãe cujo corpo inteiro é fonte de consolo e glória para os filhos.
Isaías 66:12
Pois assim diz o Senhor: Eis que estendo para ela a paz como um rio, e como um ribeiro transbordante a glória das nações;... (Hb.: kî kōh ʾāmar YHWH, hinənî nōṭeh ʾēleyhā kənāhār šālōm ûkənaḥal šōṭēf kəvōd gôyim — “Porque assim diz o Senhor: eis que estendo para ela, como um rio, a paz, e como um ribeiro que transborda, a glória das nações”). A fórmula kî kōh ʾāmar YHWH é típica de oráculos proféticos e introduz a fala divina direta; em seguida, hinənî nōṭeh combina a partícula de autocolocação “eis-me aqui” com o particípio Qal nōṭeh (“estendendo, inclinando”), o que, em contexto profético, funciona como um futuro enfático: “eis que estou para estender”. O objeto direto implícito é šālōm (“paz, bem-estar, integridade”), que é comparado a um nāhār (“rio”) de fluxo contínuo. A segunda metade apresenta o paralelismo sinonímico: kəvōd gôyim (“a glória das nações”) é como um naḥal šōṭēf (“ribeiro/torrrente que transborda”), com o particípio Qal šōṭēf sublinhando o movimento vigoroso e incontrolável das águas. Sintaticamente, os dois comparativos “como um rio” / “como um ribeiro transbordante” fazem com que paz e glória sejam vistas não como estados estáticos, mas como correntes em movimento, que invadem e enchem Jerusalém. Esta combinação de šālōm e “glória das nações” reforça a visão de Trito-Isaías em que a restauração de Sião inclui a convergência das nações e dos seus recursos (cf. Isaías 60), transformando a cidade numa encruzilhada de paz abundante e honra internacional.
e vós mamais, e sois carregados pelas laterais, e nos joelhos sois embalados. (Hb.: wînaqtem ʿal-ṣad tinnāśəʾû wəʿal-birkayim təšaʿašəʿû — “então mamareis, sobre o lado [ao colo] sereis carregados, e sobre os joelhos sereis afagados”). O verbo wînaqtem (forma plural de yānaq, “mamar”) retoma a imagem do versículo anterior, mas agora já como efeito certo da ação divina descrita por hinənî nōṭeh: não é mera possibilidade, é promessa. A expressão ʿal-ṣad aponta para o flanco ou lado, que no contexto materno/paterno é facilmente entendida como o colo onde a criança é sustentada, enquanto tinnāśəʾû (Nifal imperfeito 2ª masc. pl. de nāśāʾ, “ser levado, ser carregado”) descreve a passividade feliz dos que são carregados. Por fim, təšaʿašəʿû (Hitpael imperfeito 2ª masc. pl. de šaʿaʿ, “brincar, deleitar-se, afagar”) transmite a imagem de crianças que são embaladas sobre os joelhos, num gesto de carinho terno. Temos três verbos em sequência, conectados apenas por wə- (“e”), compondo um tríptico de intimidade: nutrir-se, ser carregado, ser afagado. A exegese do versículo mostra que, depois da figura de parto e do anúncio de um fluxo avassalador de paz, o texto se detém na dimensão afetiva: o mesmo Deus que governa as nações como rios também se inclina para segurar seu povo ao colo, corrigindo qualquer imaginação de uma restauração fria ou apenas institucional.
Isaías 66:13
Como alguém a quem sua mãe consola, assim eu vos consolarei; sim, em Jerusalém sereis consolados. (Hb.: kəʾîš ʾăšer ʾimmō tənāḥămennû kēn ʾānōkî ʾănaḥemkem ûbîrûšālaim tənûḥāmû — “Como um homem a quem sua mãe consola, assim eu vos consolarei; e em Jerusalém sereis consolados”). A primeira cláusula é muitas vezes malvertida, como ocorreu na sua versão inicial (“como a mãe consola a sua mãe”); o hebraico, porém, diz claramente “como um homem [ou: alguém] a quem sua mãe consola”: ʾîš é o indivíduo, ʾimmō o pronome “sua mãe”, e tənāḥămennû (Piel imperfeito 3ª fem. sing. de nāḥam, “consolar”) indica a ação habitual da mãe que consola aquele filho. Em paralelo, ʾānōkî ʾănaḥemkem traz Deus na 1ª pessoa (“eu vos consolarei”) com o mesmo verbo nāḥam em Piel, agora com sufixo de 2ª masc. pl., explicitando que a ternura maternal é o modelo do consolo divino. A frase final, ûbîrûšālaim tənûḥāmû (Nifal imperfeito 2ª masc. pl. de nāḥam), torna Jerusalém o lugar onde esse consolo é experimentado, quase como se a cidade fosse o útero onde o povo volta a ser aninhado. O versículo é um quiasmo: mãe → filho; Deus → povo; Jerusalém como espaço que fecha o ciclo. A leitura resultante é profundamente afetiva: o Deus que fala em 66:1 como Senhor dos céus e da terra desce aqui à imagem da mãe no quarto escuro, sentada ao lado da cama, consolando o filho inquieto — e é assim, diz o texto, que ele tratará o remanescente que tremeu diante de sua palavra.
Isaías 66:14
E vós vereis, e o vosso coração se alegrará; e os vossos ossos florescerão como a erva tenra;... (Hb.: urəʾîtem wəśāś libbekem wəʿaṣmōtêkhem kadešeʾ tifraḥnāh — “Vereis, e o vosso coração se alegrará; e os vossos ossos brotarão como a relva tenra”. O verbo inicial urəʾîtem (Qal perfeito 2ª masc. pl. com wə- consecutivo) projeta um futuro certo: “vereis”, i.e., testemunhareis com os próprios olhos as promessas realizadas. Em seguida, śāś (Qal perfeito ou, em valor resultativo, “alegrar-se-á”) com o sujeito libbekem (“o vosso coração”) desloca a cena para o interior: não é uma alegria superficial, mas um coração que salta. A expressão ʿaṣmōtêkhem kadešeʾ tifraḥnāh é particularmente rica: ʿaṣmōt (“ossos”) é frequentemente imagem da vitalidade mais profunda, que nas lamentações se seca e aqui “floresce” (Qal imperfeito 3ª fem. pl. de pāraḥ, “brotar, florescer”) como dešeʾ (“relva tenra, broto verde”). O paralelismo entre coração que se alegra e ossos que brotam cria uma unidade psico-somática: o interior emocional e o corpo físico participam juntos da restauração. A metáfora responde de modo implícito às lamentações de um povo cujos ossos foram consumidos pelo exílio e pela humilhação (cf. Isaías 58:11 e Ezequiel 37): agora, o que era ossário seco transforma-se em pasto novo, sinal de que a restauração divina atinge tanto a memória quanto o corpo, tanto a história quanto a carne.
e a mão do Senhor se manifestou aos seus servos, e ele se indignou contra os seus inimigos. (Hb.: wənōḏəʿāh yad YHWH ʾet ʿăvādāyw wəzāʿam ʾet ʾōyevāv — “e será conhecida a mão do Senhor sobre os seus servos, e ele se indignará contra os seus inimigos”). O verbo nōḏəʿāh é Nifal perfeito 3ª fem. sing. de yāḏaʿ (“ser conhecido, tornar-se patente”), com sujeito implícito “a mão do Senhor”; trata-se da mesma “mão” que, em outros contextos, pode ferir ou salvar, mas aqui é conhecida “sobre os seus servos”, isto é, como mão protetora e restauradora. Em contraste, zāʿam (Qal perfeito 3ª masc. sing., “indignar-se, irar-se”) tem por objeto direto ʾet ʾōyevāv (“os seus inimigos”), estabelecendo a dupla direção da ação divina: graça e consolo para os servos, juízo e ira para os adversários. Sintaticamente, o versículo fecha o ciclo dos vv. 7-14 com um paralelismo antitético: os mesmos acontecimentos que, para o povo de Deus, significam consolo e florescimento, para os inimigos significam exposição da ira. Na trama maior de Trito-Isaías, isto impede que o consolo maternal seja entendido como laxismo: a mão que embala sobre os joelhos (v. 12) é a mesma que, quando necessário, se ergue em juízo, de forma que a nova comunidade nascida em Sião é simultaneamente reino de ternura e de santidade, onde a alegria dos servos não pode ser separada da derrota da injustiça, porque o texto costura num mesmo tecido a festa dos que “vêem” a mão de Deus e o estremecimento dos que sempre a desprezaram. A imagem dos “ossos que florescem como erva tenra” já sugeria uma primavera do corpo inteiro, uma ressurreição antecipada em forma de metáfora; agora, o contraste com a “indignação contra os seus inimigos” mostra que essa primavera não brota num campo neutro, mas num mundo em que a injustiça é arrancada como erva daninha para que a relva nova possa crescer. A alegria do coração não é alienação espiritual, é resposta à intervenção concreta de Deus na história, que ergue os servos do pó enquanto desmascara e julga aqueles que usavam o poder contra a vida. E, assim, Isaías deixa entrever que toda verdadeira consolação de Deus tem sempre essa dupla face: é colo de mãe para quem se deixa abraçar, mas é mão que pesa, firme e justa, sobre tudo o que impede que essa ternura se realize plenamente no meio do povo.
Isaías 66:15
Porque eis que o Senhor virá em fogo, e os seus carros como um turbilhão, para descarregar com furor a sua ira e a sua repreensão com chamas de fogo. (Hb.: kî hinnēh YHWH bəʾēš yāḇôʾ wəḵəsaʿărāh merkāḇōṯāyw, ləhāšîḇ bəḥēmâ ʾappô wəḡaʿăʿarātô bəliḥē ʾēš — “Porque eis que o Senhor virá em fogo, e como tempestade virão os seus carros, para fazer voltar em furor a sua ira e a sua repreensão com chamas de fogo”). Aqui é preciso ajustar tua tradução em dois pontos: em vez de “refrescar no furor a sua ira”, o verbo ləhāšîḇ (Hifil inf. constr. de šûḇ, “fazer voltar, trazer de volta, retribuir”) indica movimento de retorno, de retribuição, não de “refrescar”; e merkāḇōṯāyw (“seus carros”) vêm “como tempestade, turbilhão” (wəḵəsaʿărāh), imagem de violência súbita. A sintaxe é construída em camadas: a partícula kî introduz a causa (“pois”), hinnēh funciona como deíctico dramático (“eis!”), e o verbo yāḇôʾ (impf. qal 3ª masc. sing.) marca a vinda de YHWH como evento iminente. O complemento bəʾēš (“em fogo”) não é mero adorno, mas modo de presença: o fogo, em Isaías, é sempre ao mesmo tempo teofania e juízo (como em Isaías 30:27–30), ecoando o Sinai e os relatos em que o Senhor é “fogo consumidor”. O paralelismo distribui o movimento: primeiro, o próprio Senhor “vem”; depois, “como tempestade” vêm os seus carros (merkāḇōṯāyw), lembrando os carros de guerra e, ao mesmo tempo, as carruagens de fogo de 2 Reis 2:11. O infinitivo ləhāšîḇ liga-se a dois substantivos: bəḥēmâ ʾappô (“em furor a sua ira”) e wəḡaʿăʿarātô (“e a sua repreensão”), ambos intensificados pelo instrumental bəliḥē ʾēš (“com chamas de fogo”). A exegese mostra que não se trata de um “mau humor divino”, mas de um retorno proporcional: a ira que se manifesta é resposta santa à violência e idolatria descritas no contexto. O fogo, que antes purificava (Isaías 6), aqui queima como vento tempestuoso que passa pelos campos, separando o que pode permanecer do que será consumido. O quadro lança luz sobre passagens do Novo Testamento que falam da vinda do Senhor em fogo e poder (2 Tessalonicenses 1:7–8), sugerindo que uma mesma realidade é ao mesmo tempo consoladora para o humilde (vv. 10–14) e terrível para aquele que permanece inimigo dessa luz.
Isaías 66:16
Pois com fogo e com a sua espada o Senhor entrará em juízo com toda a carne (Hb.: kî ḇāʾēš YHWH nišpāṭ ûḇeḥereḇô ʿal-kāl-bāśār — “Pois em fogo o Senhor entrará em juízo e com a sua espada contra toda carne”). A forma nišpāṭ é Nifal perf. 3ª masc. sing. de šāphat (“julgar”), com nuance passiva/reflexiva: literalmente “será julgado / se colocará em juízo”, porém com sentido idiomático de “entrar em juízo”, “proceder em juízo”. O uso da preposição ḇə em ḇāʾēš e ûḇeḥereḇô indica os meios/instrumentos: o fogo e a espada são duas faces do mesmo juízo divino, um queimando, outro ferindo. A expressão ʿal-kāl-bāśār estende o horizonte além de Israel: “toda carne” é fórmula que abarca humanidade inteira, como em Gênesis 6:13 e Joel 2:28. Sintaticamente, o versículo retoma e especifica o anúncio de 66:15: aquilo que era “fogo” e “turbilhão” agora é explicitamente nomeado “juízo”. A exegese mostra que o profeta enxerga a história não como sucessão cega de catástrofes, mas como cenário em que Deus se levanta como juiz universal. Quando o Novo Testamento fala de Cristo como aquele por meio de quem Deus “julgará o mundo” (Atos 17:31), é esse pano de fundo que ressoa: o juízo não será parcial, restrito a um povo, mas abrangerá “toda carne”, sem exceção.)
e os traspassados pelo Senhor serão muitos (Hb.: wərabbû ḥălālê YHWH — “e numerosos serão os mortos do Senhor”). A tua tradução “muitos foram traspassados pelo Senhor” precisa de pequeno ajuste verbal: não é passado consumado, mas uma declaração geral, sem tempo expresso, que o português capta melhor com “serão muitos” ou “são muitos”. Rabbû é perf. qal 3ª masc. pl. de rāḇâ (“ser muitos, multiplicar-se”), aqui com valor resultativo: “tornar-se-ão numerosos”. O termo ḥălālîm (aqui no construto plural ḥălālê) designa “mortos pela espada, feridos mortalmente”, vocabulário de campo de batalha, e o genitivo YHWH indica que pertencem ao juízo divino, não a mero acaso de guerra. O versículo funciona como cola entre a imagem metafórica do fogo e a realidade concreta de morte: o juízo não é apenas “clima espiritual”, mas tem consequências históricas palpáveis. Isso ressoa com textos que falam do “dia do Senhor” como dia de matança (por exemplo, Isaías 34:2–3), e prepara o leitor para as cenas de julgamento cósmico em Apocalipse, onde multidões são descritas em termos semelhantes. Há, porém, um contraste importante com os versículos anteriores: os “muitos mortos” são contraponto à “multidão de filhos” que Sião dá à luz (66:8–9) e ao povo que mama consolo (66:11–13); no mesmo cenário escatológico, uns florescem, outros caem.
Isaías 66:17
Os que se santificam e se purificam para entrar nos jardins, seguindo um no meio deles, que comem carne de porco, coisas abomináveis e rato, todos juntos serão consumidos — oráculo do Senhor. (Hb.: hammitqaddašîm wəhammitṭahărîm ʾel-haggannôt ʾaḥar ʾaḥaṯ baṯtāweḵ, ʾōḵəlê ḇəśar haḥăzîr wəhašiqṣeṣ wəhāʿaḵbār, yaḥdāw yāsûpû nəʾum YHWH — este versículo precisa de correção mais forte em relação à tua versão. O hebraico traz ʾaḥar ʾaḥaṯ baṯtāweḵ, literalmente “atrás de uma no meio”, provavelmente aludindo a alguma figura ritual (talvez uma divindade, talvez um líder cultual) que vai à frente do grupo; o texto massorético é difícil, mas não há base para “Aade” (YLT). O início com os particípios Hithpael hamm itqaddašîm (“os que se santificam”) e hammitṭahărîm (“os que se purificam”) descreve um grupo que realiza ritos de consagração e purificação, mas o propósito é perverso: eles o fazem ʾel-haggannôt (“para os jardins”), lugares de culto sincretista ao ar livre que Isaías já denunciou (Isaías 1:29; 65:3). A preposição ʾaḥar (“atrás de”) com ʾaḥaṯ (“uma”) sugere seguimento processional: eles “se santificam” para ir atrás de uma entidade ou figura em meio ao ritual. A lista de alimentos — “carne de porco, a abominação, e o rato” — reúne transgressões alimentares gritantes à luz de Levítico 11 e Deuteronômio 14. O termo hašiqṣeṣ (“a coisa abominável”) parece funcionar como coletivo para carnes proibidas ou práticas rituais impuras; o “rato” (hāʿaḵbār) é explicitamente impuro (Levítico 11:29). O clímax vem com yaḥdāw yāsûpû (“juntos serão consumidos”), verbo sûp (“se extinguir, ser levado embora”), provavelmente aqui Nifal/ Qal com nuance passiva: o fim deles é uma extinção coletiva. Sintaticamente, o versículo retoma a crítica contra o culto formalmente zeloso, mas espiritualmente idólatra, já vista em 66:3: eles “se santificam”, mas o objeto da santificação é o jardim idolátrico; por isso, o mesmo Deus que rejeita seus sacrifícios também os reúne para o juízo. A exegese faz emergir um princípio: há um “sacramento do pecado”, em que o homem usa linguagem de santidade e ritos de purificação não para aproximar-se do Deus vivo, mas para mergulhar mais fundo nas abominações que escolheu. A resposta de Deus é reuni-los “juntos” — como se fossem uma única oferenda — para o fogo que consome a hipocrisia.
Isaías 66:18
Eu, porém, conheço as suas obras e os seus pensamentos, e venho (Hb.: wəʾānī maʿăsēhem ûmaḥšəḇōṯêhem bāʾ — o texto hebraico é comprimido, e as versões costumam suprir verbos auxiliares; o sentido é: “Eu, porém, quanto às suas obras e aos seus pensamentos, venho (para julgá-los / lidar com eles)”. O pronome enfático ʾānī (“eu”) é seguido por dois objetos, “suas obras” e “seus pensamentos”, que estão sob o olhar de Deus; o verbo bāʾ (impf. qal 3ª masc. sing.) tem YHWH como sujeito implícito, indicando movimento decidido. A ausência de preposição entre “obras/pensamentos” e “venho” sugere que Deus vem precisamente por causa dessas obras e pensamentos, para avaliá-los. Sintaticamente, esta meia frase faz ponte: sai da denúncia dos ritos sincretistas (v. 17) e abre caminho para a surpresa do v. 18b, em que o mesmo Deus que vem em juízo também se revela como aquele que “reúne todas as nações”. A exegese deixa claro que, diante de Deus, não há separação entre exterior e interior: ele vê o que fazem e o que cogitam, e é em resposta a essa totalidade que “vem”.
para reunir todas as nações e línguas; elas virão e verão a minha glória. (Hb.: ləʾēsp qāl-haggōyim wəhalləšōnōṯ; ûbāʾû wəraʾû ʾeṯ-kəḇōdî — “para reunir todas as nações e línguas; e elas virão e verão a minha glória”). O infinitivo ləʾēsōp (“para reunir”) é construído a partir de ʾāsap (“ajuntar, colher”), verbo que em outros lugares descreve tanto a reunião do remanescente de Israel quanto a colheita escatológica dos povos. O objeto qāl-haggōyim wəhalləšōnōṯ reúne “todas as nações” e “todas as línguas”, ampliando de modo impressionante o horizonte: o mesmo fogo que consome a idolatria (v. 15–17) é também o fogo cuja luz chama os povos para ver a glória de Deus. Os verbos ûbāʾû wəraʾû (perf. consecutivos, 3ª pl.) projetam a cena no futuro narrado: “virão e verão”, ecoando a promessa de Isaías 2:2–3, onde “todas as nações” acorrem ao monte do Senhor para aprender seus caminhos. A sintaxe faz uma guinada teológica: após versículos de juízo interno sobre Israel e seu culto corrompido, o profeta vislumbra um ato divino de escala universal, em que Deus mesmo se torna centrípeto, reunindo povos e línguas em torno da sua kāḇôd (“glória”). Em chave neotestamentária, essa promessa encontra ressonância em textos como Apocalipse 7:9–10 (“toda nação, tribo, povo e língua”) e na imagem joanina do Cristo levantado que “atrai todos a si” (João 12:32). O fogo que julga, portanto, não é só destruição: é também a luz que, depois de purificar, se torna ponto de convergência para uma humanidade reconciliada em torno da glória de Deus.
Isaías 66:19
E pus entre eles um sinal, e dentre eles enviei alguns que escaparam para as nações (Társis, Pul e Lude, que manejam o arco, Tubal e Javã, ilhas distantes) (Hb.: wəśamtî ḇāhem ʾôt wəšillaḥtî mēhem pəlîṭîm ʾel-haggôyim taršîš pūl wəlûḏ mōšəḵê qešet tûḇal wəyāwān hāʾiyyîm hārḥōqîm — literal: “E porei entre eles um sinal, e de entre eles enviarei sobreviventes às nações: Társis, Pul e Lude, que puxam o arco, Tubal e Javã, às ilhas distantes”). A forma wəśamtî é qal perf. com waw consecutivo, 1ª sing., com valor futuro: “porei/colocarei”, não simplesmente “pus” no passado; do mesmo modo, wəšillaḥtî é piel perf. com waw consecutivo, “enviarei”, ligado por coordenação ao primeiro verbo, de modo que tua tradução fica mais alinhada ao hebraico se for ajustada para futuro: “porei… enviarei”. ʾôt (“sinal”) é termo amplo, que vai de um simples marco visível até uma ação portentosa; Isaías usa ʾôt tanto para sinais de juízo quanto de salvação, e a tradição exegética nota que aqui não se define qual é o sinal — muitos comentadores supõem que os próprios sobreviventes enviados às nações sejam esse sinal vivo da intervenção de Deus.
Morfologicamente, pəlîṭîm vem de pālāṭ (“escapar, ser poupado”) e designa “fugitivos, sobreviventes”; não são missionários de carreira, são restos de um juízo, gente que saiu viva do fogo e, justamente por isso, é enviada. A construção mēhem pəlîṭîm ʾel-haggôyim (“de entre eles, sobreviventes, às nações”) cria uma linha sintática direta: da comunidade julgada saem testemunhas para o mundo. A sequência dos nomes — taršîš, pūl, lûḏ, tûḇal, yāwān — espalha o horizonte geográfico: Társis, no longo oeste mediterrâneo; Pul (Put/Libya) e Lude (Lídia, célebre por arqueiros) apontando para a faixa africano-anatólia; Tubal e Javã ligando-se à Anatólia e à Grécia; e, por fim, hāʾiyyîm hārḥōqîm, “as ilhas/costas longínquas”, fórmula típica de Isaías para os confins do mundo conhecido.
Os nomes dependem de ʾel-haggôyim (“para as nações”), funcionando como aposições especificativas: são exemplares de um conjunto muito maior, um leque de nações que circunda Israel e o ultrapassa. Na exegese, esse versículo desenha uma cena notável: Deus promete não só reunir todas as nações para ver sua glória (v.18), mas também “pôr um sinal” no meio do seu povo e, do meio dos sobreviventes, fazer surgir enviados que partem para Társis, para as costas longínquas, carregando em si mesmos a marca de que Deus interveio. O que antes era mapa de comércio e guerra (Tarshish, Tubal, Javã em Ezequiel 27–28) torna-se agora mapa de missão: as rotas do Mediterrâneo e das “ilhas distantes” são redesenhadas como caminhos por onde a glória de YHWH será anunciada. A gramática dos futuros (“porei… enviarei”) impede que o texto seja lido como mera lembrança do exílio; é promessa empenhada: o mesmo Deus que julga em fogo faz nascer, dos escombros, um povo-sinal que atravessa mares e continentes para que até os mais remotos, que nunca ouviram o Nome nem viram a Glória, sejam confrontados com essa presença pesada e luminosa.
que não ouviram falar da minha fama, nem viram a minha glória... (Hb.: ʾăšer lō šāməʿû ʾet šimʿî wəlō rāʾû ʾet kəḇōdî — “os que não ouviram a minha fama, nem viram a minha glória”. A tua tradução está basicamente correta; só vale notar que o hebraico diz literalmente “ouviram a minha fama”, sem o “falar”, que nós acrescentamos em português por idiomatismo. ʾăšer introduz uma oração relativa, especificando quem são as “ilhas distantes”: povos sem qualquer contato prévio com a revelação de YHWH. Šāməʿû é perf. qal 3ª masc. pl. de šāmaʿ (“ouvir”), e šimʿî (“minha fama”, “meu renome”) deriva da mesma raiz de šēm (“nome”), de modo que a etimologia já costura nome e reputação: não ouviram sequer o eco do nome de YHWH na história. Rāʾû (perf. qal 3ª pl. de rāʾāh, “ver”) com o objeto kəḇōdî (“minha glória”) inclui tanto manifestações teofânicas quanto a reputação de suas obras. A coordenação negativa lō… wəlō… gera paralelismo sintático que reforça a total ignorância: nem ouviram, nem viram. Exegeticamente, o versículo desloca o centro: a glória de Deus, antes circunscrita a Sião e ao templo, é agora anunciada justamente a quem “nada ouviu e nada viu”. Quando Paulo fala dos que não ouviram o nome de Cristo (Romanos 15:21, ecoando Isaías 52:15), está pisando esse mesmo solo: a missão brota da certeza de que a glória de Deus se destina precisamente àqueles que, até aqui, viveram à margem de qualquer revelação explícita.
...e eles anunciaram a minha glória entre as nações... (Hb.: wəhiggîdû ʾet kəḇōdî baggôyim — “e eles declararão a minha glória entre as nações”). O verbo higgîdû é Hifil perf. 3ª masc. pl. de nāgād (“anunciar, declarar”), forma causativa que sugere proclamação pública, não mero sussurro devocional. O objeto direto ʾet kəḇōdî (“a minha glória”) retoma a palavra-chave do verso anterior: aquilo que estes povos jamais viram nem ouviram torna-se precisamente o conteúdo da mensagem. Baggôyim (“entre as nações”) traz o artigo aglutinado (bag-), indicando o conjunto dos povos gentílicos. A sintaxe é enxuta: sujeito implícito (“os sobreviventes que escaparam”), verbo causativo de anúncio, objeto “minha glória”, locativo “entre as nações”. Etimologicamente, kāḇôd vem de uma raiz ligada a “peso” (kbd), sugerindo a densidade da presença divina; assim, o anúncio não é de uma ideia abstrata, mas da presença pesada, densa, do Deus de Israel na história. Exegeticamente, esse meio verso é quase um esboço de missiologia bíblica: é o próprio Deus quem envia “fugitivos/sobreviventes” como heraldos, para que o peso da sua glória deixe de ser privilégio de um só povo e se torne boa nova entre todas as línguas. Em chave neotestamentária, é difícil não enxergar aqui um prenúncio dos enviados de Cristo “até aos confins da terra” (Atos 1:8), declarando entre as nações a glória de Deus revelada na cruz e na ressurreição.
Isaías 66:20
“E trouxeram todos os vossos irmãos de todas as nações, como oferta ao Senhor, em cavalos, e em carros, e em liteiras, e em mulas, e em dromedários, ao meu santo monte Jerusalém, diz o Senhor, como os filhos de Israel trazem a oferta num vaso limpo, à casa do Senhor.” (Hb.: wəhēḇîʾû ʾet kol ʾăḥêḵem mikkol haggôyim minḥāh laYHWH bassûsîm ûḇāreḵeḇ ûḇaṣṣabbîm ûḇappərādîm ûḇakkirkārôt ʿal har qodšî yərûšālayim ʾāmar YHWH, kaʾăšer yāḇîʾû bənê yiśrāʾēl ʾet hamm inḥāh biklî ṭāhôr bêt YHWH — “E eles trarão todos os vossos irmãos, de dentre todas as nações, como oferta de manjares ao Senhor, sobre cavalos, e em carros, e em liteiras, e em mulas e em carros de transporte, até o meu monte santo, Jerusalém, diz o Senhor, como os filhos de Israel trazem a oferta de manjares em vaso puro à casa do Senhor”). Aqui é melhor ajustar o tempo verbal: o hebraico projeta o futuro (“trarão”, wəhēḇîʾû), e não um passado consumado. Kol ʾăḥêḵem (“todos os vossos irmãos”) indica que os missionários gentios do v. 19 se tornam agora “condutores” do Israel disperso, trazendo-o de volta como minḥāh (“oferta de cereais, oferta de manjares”) para YHWH. O elenco de meios de transporte — bassûsîm (cavalos), ḇāreḵeḇ (carros), ṣabbîm (provavelmente liteiras ou carroças cobertas), pərādîm (mulas) e kirkārôt (veículos de luxo ou carroções) — revela um cortejo cosmopolita; morfologicamente, são todos locativos com bə/ba, pendendo de minḥāh, como se a própria diversidade dos transportes fosse parte da oferenda. A comparação final, introduzida por kaʾăšer (“como”), é crucial: do mesmo modo que Israel traz minḥāh em klî ṭāhôr (“recipiente puro”) ao templo, assim os povos trarão “os vossos irmãos” como oferta viva, em processo de purificação. A sintaxe articula, assim, uma inversão: outrora as nações levavam Israel cativo; agora o conduzem como dádiva preciosa ao Deus de Sião. O versículo costura retorno do exílio, missão aos gentios e culto, antecipando a imagem paulina de gentios trazendo a “oferta” dos convertidos a Deus (Romanos 15:16) e preparando a cena escatológica em que reis das nações entram na cidade santa trazendo sua glória (Apocalipse 21:24–26).
Isaías 66:21
“E também deles tomo para sacerdotes, para levitas, diz o Senhor.” (Hb.: wəgam mēhem ʾeqqaḥ lakkōhănîm lalwiyyim ʾāmar YHWH — “E também deles tomarei alguns para sacerdotes e para levitas, diz o Senhor”). Aqui a correção mais exata é de tempo e de escopo: não é presente genérico “eu tomo”, mas futuro deliberativo “eu tomarei”; e o sentido é “alguns deles”, não “todos”. Wəgam mēhem (“e também de entre eles”) retoma os povos do v. 20: do meio dessa multidão gentílica Deus mesmo escolherá (ʾeqqaḥ, qal impf. 1ª sing. de lāqaḥ, “tomar”) candidatos para as funções de kōhănîm (sacerdotes) e lᵊwiyyim (levitas). A sintaxe é quase escandalosa à luz da Torá, que vinculava sacerdócio e levitato estritamente à descendência de Levi e Arão; etimologicamente, porém, o verbo “tomar” aqui é o mesmo usado em contextos de eleição e separação. Exegeticamente, o verso abre uma fresta de universalização dentro da própria estrutura cultual: na visão final de Isaías, Deus não apenas aceita gentios adoradores, mas os integra ao coração do serviço cultual, desarmando barreiras de sangue. Em perspectiva cristã, isso ressoa fortemente com a ideia de um povo sacerdotal formado de todas as nações (1 Pedro 2:9; Apocalipse 5:9–10), mas já aqui, no próprio Isaías, a linha está traçada: a eleição não é um muro, é uma porta que, no fim, se escancara para acolher “de entre eles” ministros diante do rosto de Deus.
Isaías 66:22
“Porque, assim como os novos céus e a nova terra que eu faço estão diante de mim, como afirmação do Senhor, assim permanecerá a vossa descendência e o vosso nome.”
(Hb.: kî kaʾăšer haššāmayim haḥădašîm wəhāʾāreṣ haḥădašāh ʾăšer ʾănî ʿōśeh ʿōmdîm ləpānay nəʾum YHWH, kēn yaʿămōd zarʿăḵem wəšimḵem — “Porque, assim como os novos céus e a nova terra que eu estou fazendo permanecem diante de mim — oráculo do Senhor — assim permanecerão a vossa descendência e o vosso nome”. O particípio ʿōśeh (“estou fazendo”) tem nuance de presente contínuo: Deus já está, por assim dizer, inaugurando essa nova criação. O par “novos céus/ nova terra” retoma Isaías 65:17 e se tornará pedra angular escatológica em 2 Pedro 3:13 e Apocalipse 21:1. O verbo ʿōmdîm (particípio qal masc. pl. de ʿāmad, “estar de pé, permanecer”) descreve firmeza diante de Deus, como colunas que ele contempla sem cessar. Em paralelo, yaʿămōd (impf. qal 3ª masc. sing.) para “vossa descendência e vosso nome” indica continuidade ininterrupta. A sintaxe constrói um comparativo sólido: assim como a nova criação permanece diante de Deus, assim o povo renovado permanece diante dele. Exegeticamente, o texto desata a promessa da mera geopolítica: não é apenas “terra de Israel” que é garantida, mas um cosmos novo em que “vossa descendência e vosso nome” — ou seja, identidade e continuidade — são preservados. A mesma boca que promete os novos céus e nova terra é a que assegura o futuro do povo; por isso, quando o Apocalipse desenha a nova Jerusalém descendo do céu, traz também “os nomes” inscritos (Apocalipse 21:12–14): os nomes não se dissolvem, são purificados e preservados diante de Deus.
Isaías 66:23
“E tem sido de mês em mês, e de sábado em sábado, toda a carne se prostra diante de mim, diz o Senhor.”
(Hb.: wəhāyā mēḥōdeš bəḥōdeš ûmiššabbāt bəšabbāt yābôʾ kol bāśār ləhistaḥăwōt ləpānay, ʾāmar YHWH — “E acontecerá que, de uma lua nova a outra, e de um sábado a outro, toda carne virá para se prostrar diante de mim, diz o Senhor”. Aqui é importante corrigir: o hebraico não diz “tem sido”, mas “acontecerá” (wəhāyā, perf. consecutivo com valor futuro), e o foco está no movimento “virá” (yābôʾ), não apenas num estado contínuo. As expressões mēḥōdeš bəḥōdeš (“de mês em mês”, literalmente “de lua nova em lua nova”) e miššabbāt bəšabbāt (“de sábado em sábado”) formam um merismo temporal: todos os ciclos do tempo cultual convergem para esse culto universal. O sujeito kol bāśār (“toda carne”) retoma a universalidade do v. 16, mas agora não para juízo e sim para adoração. O infinitivo ləhistaḥăwōt (Hitpael de ḥwh, “prostrar-se, curvar-se”) descreve a postura corpórea da adoração diante de Deus, ecoando o gesto de Abraão, de Moisés e dos salmistas. A sintaxe é solene: um futuro certo (“acontecerá”), dois marcos temporais regulares (lua nova e sábado), um sujeito abarcador (“toda carne”) e um verbo de vinda, culminando no infinitivo de adoração “diante de mim”. Exegeticamente, esse quadro antecipa uma liturgia cósmica, em que o tempo é santificado pela presença de Deus e a humanidade inteira — não apenas Israel — curva-se em reconhecimento. No Novo Testamento, quando se fala de “todo joelho se dobrar” e “toda língua confessar” (Filipenses 2:10–11), a cena de Isaías 66:23 está ao fundo: um mundo em que o ritmo do tempo foi redimensionado pela presença do Senhor, e em que “toda carne” vem, não compelida por medo, mas atraída pela glória que viu (v. 18–19).
Isaías 66:24
“E eles saíram, e viram os cadáveres dos homens que transgrediram contra mim” (Hb.: wəyāṣəʾû wərāʾû bəpigərê hāʾănāšîm happōšəʿîm bî — “E eles sairão e verão os cadáveres dos homens que se rebelaram contra mim”). Melhor aqui ajustar para futuro: “sairão” e “verão”. O verbo yāṣəʾû (perf. consecutivo de yāṣāʾ, “sair”) e rāʾû (perf. consecutivo de rāʾāh, “ver”) descrevem uma procissão que se desloca para fora do centro de culto (do monte santo, v. 23) para contemplar um cenário de juízo. Pigerê (pl. de peger) significa “corpos, cadáveres”, não pessoas vivas; e happōšəʿîm (particípio qal masc. pl. de pāšaʿ, “rebelar-se, transgredir”) marca-os não como vítimas inocentes, mas como rebeldes persistentes “contra mim” (bî). Sintaticamente, o verso é construído como um pós-escrito à visão litúrgica do v. 23: depois de adorar, “saem” e “veem”. Exegeticamente, a cena funciona como pedagógica: aqueles que se reúnem para adorar o Deus que fez novos céus e nova terra são, ao mesmo tempo, confrontados com o destino dos que se obstinaram em não se curvar. Em chave simbólica, é como se, à saída de cada “culto cósmico”, houvesse um lembrete visível do que significa viver em oposição obstinada àquele que é Fonte de vida.
“porque o seu verme não morre, nem o seu fogo se apaga, e eles são um horror para toda a carne!” (Hb.: kî tôlaʿtām lō tāmût wəʾîšām lō tiḵbeh wəhāyû dērāʾôn ləḵāl bāśār — “porque o seu verme não morrerá, e o seu fogo não se apagará, e eles se tornarão horror para toda carne”). Tôlaʿtām (“o seu verme”) vem de tôlaʿ, vermes que devoram cadáveres; o verbo tāmût (impf. qal 3ª fem. sing.) com a negativa lō afirma que esse processo não se interrompe. ʾĪšām (“o seu fogo”) com tiḵbeh (impf. qal 3ª fem. sing. de kāḇâ, “apagar”) diz que o fogo jamais será extinguido. A combinação de putrefação interminável e fogo inextinguível gera a imagem mais forte de juízo em todo o livro, e se tornará matriz para as palavras de Jesus sobre Geena em Marcos 9:48. O substantivo dērāʾôn (“horror, repulsa”) aparece também em Daniel 12:2, ligado à expressão “vergonha e horror eterno”, criando um elo intertextual entre Isaías, Daniel e a escatologia posterior. Sintaticamente, a partícula kî explica por que esses cadáveres permanecem à vista: não são meros restos, mas um sinal permanente; e wəhāyû (impf. qal 3ª pl.) descreve um estado contínuo — “serão” e continuarão a ser — objeto de repulsa para “toda carne”, a mesma “toda carne” que em 66:23 vem adorar. Exegeticamente, o versículo não existe para alimentar curiosidade mórbida, mas como contracanto da consolação: no mundo novo, a paz dos servos e o horror do juízo convivem como testemunho de que o mal não foi relativizado, mas levado até o fim de sua trajetória e exposto diante do universo. A imagem do “verme” e do “fogo” que não se extinguem mostra, com linguagem sensorial, que rejeitar o Deus da vida é escolher um tipo de morte que nunca encontra descanso, uma anti-Páscoa em que o corpo já não reage, mas a consequência da rebelião permanece à vista como advertência — para que, enquanto ainda é tempo, os que leem essas palavras escolham estar entre os que se prostram em adoração, e não entre os que se tornam “horror para toda a carne”.