Apocalipse 2 — Comentário Literário da Bíblia

Apocalipse 2

O capítulo 2 contém as quatro primeiras mensagens (convém lembrar que o gênero de Apocalipse abrange a noção de que o livro é uma carta; sobre o gênero de Apocalipse, v. Beale 1999a, p. 37-43). Essas mensagens são enviadas às igrejas da Ásia Menor; Éfeso, zelosa da verdade, mas que deixou seu “primeiro amor”; a pequena, mas fiel, Esmirna; Pérgamo, que se mantém fiel na perseguição, mas corre o risco de sucumbir por transigir com a idolatria; e Tiatira, na qual uma transigência semelhante é instigada pela profetisa Jezabel. A expressão de advertência “quem tem ouvidos, ouça” é baseada praticamente na mesma formulação encontrada nos Sinóticos, que fazem alusão a Isaías 6.9,10 (cf. tb. Jr 5.21; Ez 3.27; 12.2). Parte do objetivo da exortação de Isaías 6 era uma advertência a que o remanescente não aderisse à idolatria, e o contexto de Apocalipse 2 e 3 mostra que essa advertência ainda se aplica (cf., e.g., as cartas a Pérgamo e Tiatira; v. Beale 1997a). “Eu lhe permitirei comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus” é uma frase à qual se alude também na conclusão do livro como uma imagem do perdão e da consequente experiência da presença íntima de Deus (22.2-4). Vários textos do judaísmo mais antigo, numa linguagem praticamente idêntica, fazem referência à mesma esperança do final dos tempos (v. T. Lem 18.10-11; Sl. Sal. 14.2-3,10; 4E d 8.52; 2En 8.3-7; cf. tb. 1 En 25.4-7; 3En 23.18; 4 E d 2.12; VA .E.2.2-4; Odes Sal. 20.7). Em Gênesis 2 e 3, como aqui, a imagem da “árvore da vida”, inserida no “paraíso de Deus”, simboliza a presença vivificante de Deus, da qual Adão e Eva foram apartados ao serem expulsos do jardim paradisíaco (cf. Gn 2.9; 3.23-25 LXX; Ez 28.13; 31.8,9).

2.10 A menção de que os santos em Esmirna passarão por “uma tribulação de dez dias” é uma alusão a Daniel 1.12-15, em que a “experiência” de Daniel e seus três amigos por “dez dias” é mencionada três vezes. Enfatiza-se nesse caso um período fixo e limitado de sofrimento que o povo de Esmirna terá de suportar, assim como Daniel e seus amigos quando submetidos a provações e tentações.

2.11 Os que sofrem a “segunda morte” não participarão da ressurreição dos santos (cf. “segunda morte” em Tg. de Jr 51.39,57) nem da vida do novo mundo por vir: a parte deles é o castigo eterno (no sentido de “segunda morte”, cf. Tg. de Dt 33.6; Tg. de Is. 22.14; 65.6,15; v. McNamara 1966, p. 117-25; Fílon, Recompensas 67-73; cf. tb. Ap 19.20; 20.6,14; 21.8).

2.14 Alguns membros da igreja de Pérgamo haviam feito concessões com a sociedade idólatra da cidade, e isso é explicado pela referência ao relacionamento transigente entre Balaão e Israel, como registra Números (cf. Nm 22.5—25.3; 31.8,16). Israel foi levado a adorar ídolos e a cometer imoralidade por causa do conselho enganoso desse homem, e a igreja agora estava sendo conduzida ao mesmo caminho pelos nicolaítas. Balaão tornou-se proverbial como o falso mestre que por ganho financeiro induz os féis à infidelidade transigente. Ele foi advertido por Deus a não prosseguir e acabou punido por insistir na desobediência (cf. Nm 22.7; Dt 23.4; Ne 13.2; 2Pe 2.14-16; Jd 5-12; Filo, Moisés 1.264-314; Migração 114; v. Ginzberg 1967, 3:361, 370). Para a associação entre idolatria e fornicação, veja, por exemplo, Atos 15.29 e 21.25 (cf. At 15.20; Ap 9.20,21).

A palavra porneuõ (“prostituir”) pode ter tanto uma ideia literal quanto metafórica, uma vez que é empregada de forma dupla em ambos os Testamentos, especialmente na história de Baal-Peor, na qual os israelitas cometeram tanto fornicação física com mulheres estrangeiras quanto fornicação espiritual com os deuses delas (cf. Nm 25.1 com 25.2,3). Enfatiza-se aqui provavelmente a fornicação espiritual, ênfase apoiada ainda pela referência a Jezabel, em 2.20 (sobre a qual, v. comentário adiante), em que se percebe que o sentido espiritual ou figurado de porneia (e termos relacionados) como adoração a ídolos é predominante em outras passagens de Apocalipse.

2.5,16 Balaão foi ameaçado ser “morto pela espada” do “anjo do Senhor ”, se continuasse a se opor a Israel (Nm 22.23,31; cf. Js 13.22). Por haver ignorado a advertência, ele acabou de fato “morto pela espada”, o que na tradição judaica selou seu destino: a exclusão do mundo “por vir” (b. Sanh. 90a; 105a; ’Abot R. Nat. 31b-32a). Os cristãos de Pérgamo foram ameaçados com um castigo semelhante. Os ensinamentos de Balaão e dos nicolaítas estão relacionados entre si também pelo fato de que a etimologia de seus nomes aponta essencialmente para o mesmo significado: “nicolaíta” (nika laon) significa “conquistador do povo”, e os rabinos presumiam que “Balaão” [bl‘‘m ou blh‘m) significava “consumir o povo” (e.g., b. Satih. 105a), o que também pode ser interpretado como “dominar o povo” (e.g. b. Sanh. 105a). Não temos outras informações históricas confiáveis para a identificação precisa dos nicolaítas.

2.17a Os que se recusam a participar nas festas pagãs serão recompensados com a participação na festa do final dos tempos de Cristo, representada pelo “maná” hoje “escondido”, mas que então será revelado. O maná era uma expectativa escatológica também no judaísmo (assim b. Hag. 12b; 2 Br 29.8; Or. Sib. 7.149; Midr. Rab. de Ec 1.9; cf. Êx 16.32-36 com 2Mc 2.4-7). Essa promessa foi dirigida algumas vezes aos que não adoravam ídolos (O. Sib. frg. 3.46-49). Dizia-se também que o maná concedido a Israel no deserto estava “escondido nos altos céus [...] desde o princípio da criação” (Tg. Ps.-J. Êx 16.4,15) com o objetivo de fazer Israel prosperar “no final dos dias” (Tg. Neof. 8.16) (v. Malina 1995, p. 75-7). A igreja começou a saborear esse alimento escatológico, mas não de forma consumada.

2.17b A “pedra branca” também reforça a ideia do “maná” como recompensa salvífica celestial do final dos tempos, pois o AT registra que o maná celestial era semelhante a uma pedra de bdélio, branca na aparência (cf. Êx 16.31; Nm 11.7; v. Chilton 1987, p. 110). Em Números 11.7 LXX, o maná tem “a aparência de uma rocha de cristal”. Em h. Yom a 75a, é dito que o maná era “redondo (...) e branco como uma pérola”. Essa recompensa provavelmente já era em parte desfrutada, mas sua consumação ainda estava por vir. A cor branca da rocha retrata a justiça dos santos, que não comprometeram sua fé nem se “contaminaram” (cf. 3.4).

2.17c Saber o nome de alguém no mundo antigo e no AT muitas vezes significava ter um relacionamento próximo com essa pessoa e compartilhar de seu caráter e poder. Receber um novo nome era indicação de uma nova posição. No AT, quando o nome de Deus era aplicado a um lugar (notavelmente o Templo [v., e.g., Dt 12.5,11]), muitas vezes indicava sua presença ali. Quando alguém dava um nome a outra pessoa ou coisa, isso significava que o doador possuía aquela pessoa ou coisa (para tais associações com o “nome”, v., e.g., T D N T 5:253-8, 277; Eichrodt 1967, 2:40-5, 310-1; Jacob 1958, p. 82-5; Johnson 1981, p. 442). É provável que essas conotações de “nome” do AT estejam em vista, aqui, de uma ou de outra forma. O “novo” nome é uma alusão às profecias de Isaías 62.2 e 65.15 sobre a nova posição de Israel no futuro (cf. kaleõ [“chamar”] + onoma kainon [“nome novo”] em ambos os textos). Ali o “novo nome” designa o futuro estado régio de Israel (62.3), a restauração à presença de Yahweh por meio da aliança (62.4a [cf. o mesmo significado de “nome” em 56.4-8; 65.15-19]) e especialmente um novo relacionamento com o Senhor: o de “casado” (cf. 62.4b,5, que também compara Israel como uma “noiva” e Deus como um “noivo”; cf. tb. o “novo nome” dado à posteridade de Levi, em T. Levi 8.12-14). Em suma, o “novo nome”, em 2.17c, representa a nova identidade escatológica dos redimidos no novo céu e nova terra.

2.20 Jezabel incitou o rei Acabe e Israel a fazer concessões desonrosas e a “prostituir-se” através da adoração a Baal (cf. IRs 16.31,32; 21.25,26; 2Rs 8.18; 9.22). Da mesma forma, os falsos mestres na igreja argumentavam que era permissível algum grau de participação nos aspectos idólatras da cultura de Tiatira. Embora a adoração a Baal e alguns cultos pagãos na época de João incluíssem a fornicação literal, a ênfase aqui é na fornicação espiritual, apoiada por 2Reis 9.22 LXX, em que porneia (“imoralidade”) é aplicada a Jezabel para enfatizar seus esforços em conduzir Israel à idolatria sincretista (cf. IRs 16.31,32). A equação do verbo ponieuõ e porneia, em 2.20,21, com o verbo moicheuõ (“cometer adultério”) mostra que um conceito espiritual mais abrangente está incluído, uma vez que em 2.22 isso conota claramente o sentido metafórico dos crentes casados com Cristo, mas que flertam em intercurso espiritual com os deuses pagãos. O sentido espiritual de porneia como adoração a ídolos é atestado na LXX e também em Sabedoria de Salomão 14.12 (“A invenção dos ídolos foi o começo da prostituição [porneia]”, CNBB), Salmos 105.39 (106.39 TP), Isaías 47.10 e Naum 3.4. A nuança espiritual é também corroborada à luz do uso figurado que João faz de porneuõ (e termos relacionados) em outras passagens do livro (13 vezes fora do cap. 2, em contraste com o sentido literal: apenas em 9.21; 21.8; 22.15, embora até mesmo os dois últimos sejam questionáveis). Os seguidores de Jezabel são também chamados “filhos” dela, e a tribulação deles implicará sua morte, que também foi o castigo de Jezabel e dos setenta filhos de Acabe por causa do crime cometido contra Nabote por incitação de Jezabel (cf. IRs 21.17-29; 2Rs 9.30-37; 10.1-11 [para a expressão “matar com morte”, v. Ez 33.27 LXX]). O conhecimento que Deus tem de “mentes e corações” (nephrous kai kardias) é conceito comum para sua capacidade de julgar com justiça (LXX: Sl 7.10 [7.9 TP]; Jr 11.20; 17.10; 20.12; cf. Rm 8.27; lTs 2.4; 16.7). A mesma noção é expressa na conhecida frase: “[Deus] retribuirá a cada um segundo suas obras” (e.g., LXX: Sl 27.4 [28.4 TP]; 61.13 [62.12 TP]; Pv 24.12; Jr 17.10; v. tb. MT 16.27; Rm 2.6; 2Co 11.15). O principal texto em vista aqui é Jeremias 17.10, uma vez que as duas expressões aparecem juntas apenas nessa passagem. Além disso, a declaração em Jeremias é especialmente adequada porque se refere ao juízo de Deus sobre os membros da comunidade israelita que praticam a idolatria por motivos econômicos (v. Jr 17.3,11; cf. 11.10-17,20). Os crentes na província da Ásia podem ter sido tentados a adorar ídolos para manter seu status nas associações comerciais, muitas das quais tinham deuses pagãos como padroeiros.

2.26,27 A conclusão com a promessa de Salmos 2.9 é adequada porque Cristo se apresenta no início da carta como “o Filho de Deus” (2.18), título derivado do salmo 2. Afirma-se ainda que ele já começou a cumprir a profecia do salmo. Enquanto a LXX e o Apocalipse trazem “pastorear” (poimainõ), em Salmos 2.9 TM a palavra é “ferir”. Qualquer leitura do texto hebraico sem os pontos vocálicos é possível. João na verdade pode ter dois significados em mente: compare com 19.15 (12.5?). Ali ele usa poimainõ com o significado de “julgar” ou “destruir” (cf. o paralelismo de “ferir”, em 19.15), e em 7.17 tem a nuança positiva de “pastorear”. Assim, a “autoridade” que Jesus recebeu no cumprimento do salmo é entendida como a autoridade exercida por um rei na proteção de seus súditos e ao derrotar os inimigos.

2.28 A afirmação de que Cristo também dará ao vencedor a “estrela da manhã” reafirma o clímax da promessa já feita. A estrela provavelmente é representativa (por metonímia) do governo messiânico, como se depreende, em 22.16, da explicação adicional da profecia de Isaías 11.1, que começou a se cumprir em Jesus. Esse significado da imagem é confirmado em Números 24.14-20, em que o futuro governante escatológico de Israel é descrito como uma “estrela” e um “cetro” (cf. shêhet, em Nm 24.17; Sl 2.9) que “destruirá” os príncipes das “nações” (assim tb. Sl 2.9), “remará” sobre eles, e os receberá como “herança” (assim tb. Sl 2.8) (v. Gangemi 1978). Além dos paralelos entre o salmo 2 e Números 24, a profecia de Números se encaixa de forma natural para combinar com a do salmo 2 em Apocalipse 2.26-28, uma vez que foi proferida por Balaão, o qual, em 2.14, é um ícone da mesma heresia mencionada em Apocalipse 2.20. O texto de Números 24.17 é também interpretado de forma messiânica no judaísmo (cf. T. Levi 18.3; T. Judá 24.1 [em combinação com Is 11.1-4 em 24.4-6]; CD-A VII, 18-21; 1QM XI, 6-7; 4Q175 9-13; y. Ta‘au. 4.5).

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