Apocalipse 3 — Comentário Literário da Bíblia

Apocalipse 3 

As mensagens às sete igrejas continuam. Sardes é avisada de que seu fracasso em perseverar pode levá-la a enfrentar problemas inesperados; Filadélfia é encorajada a suportar as calúnias da sinagoga local e a manter seu testemunho fiel; a morna Laodiceia é repreendida pelo seu estado espiritual lamentável em meio a uma aparente prosperidade.

3.4-5 — As “vestes brancas” significam a purificação da tribulação do final dos tempos em Daniel 11 e 12, em que os santos são “purificados” pelo fogo da perseguição, um significado semelhante que se encaixa bem aqui. Compare Apocalipse 6.11 e 7.14 com Daniel 11.35 e 12.1,10. Observe o hebraico לָבָן (“embranquecer”) em 11.35 e 12.10 e εκλευκαίων (“embranquecer”) em 12.10 0 (para os sacerdotes vestidos de branco, v. m. Mid. 5.4; /;. Yoma 19a).

A segunda expressão da promessa ao vencedor é que Cristo “não riscará seu nome do livro da vida”. A dupla ideia de um “livro da vida” e “livros” de juízo para os crentes e os não crentes, respectivamente, reflete a mesma concepção dupla de Daniel 12.1,2 e 7.10 (cf. Ap 13.8; 17.8; 20.12). Vemos também alusões a Êxodo 32.32,33 e Salmos 69.28; ambas as passagens mencionam o ato de “riscar” o nome dos incrédulos de um “livro” de bênção salvífica (cf. Is 4.3; Jos. Asen. 15.4). Nos textos mais tardios do AT, apenas um livro é considerado, enquanto em Apocalipse são claramente dois. O tema do livro em 3.5b e em outras passagens de Apocalipse foi modelado muito mais pela noção de dois livros vistos em Daniel: um registra apenas os nomes dos crentes, e o outro, as ações de todos os seres humanos, que se torna a base do julgamento dos incrédulos (cf. Dn 7.10; 12.1,2). O “livro da vida” citado por João em outras passagens sugere que a promessa, feita aqui, de não riscar o nome desse livro não implica o oposto (para uma discussão mais completa, v. Beale 1999a, p. 278-82).

3.7,8 — Em 1.18b, temos as chaves “da morte e do Hades”, mas em 3.7b uma citação de Isaías 22.22 substitui “da morte e do Hades”: “o que tem a chave de Davi; o que abre e ninguém pode fechar, e o que fecha e ninguém pode abrir”. A substituição tem o propósito de intensificar a ideia da frase original de 1.18b, ressaltando a soberania que Cristo exerce sobre a esfera “da morte e do Hades/Inferno”. O texto de Isaías 22 descreve o controle absoluto de Eliaquim sobre o reino de Israel, embora mais tarde ele tenha sido deposto. A referência a Eliaquim como “meu servo”, em Isaías 22.20, poderia ser facilmente associada com as profecias acerca do “servo”, de Isaías 40—53, posto que a expressão ocorre ali treze vezes (a mesma expressão ocorre apenas duas vezes em outras passagens de Isaías, em referência ao próprio profeta [20.3] e a Davi [37.35]). A descrição de pôr a “chave da casa de Davi [ = a responsabilidade administrativa do reino de Judá] sobre os seus ombros [de Eliaquim]”, a designação do rei como “pai para os moradores de Jerusalém e para a casa de Judá” e como “um trono de honra” facilita a compreensão tipológico-profética de Isaías 22.22, uma vez que essa formulação estabelece um paralelo impressionante com a profecia de Isaías 9.6,7 acerca do futuro governante israelita: “O governo está sobre os seus ombros, e o seu nome será [...] Pai Eterno”, que está sentado “no trono de Davi”. Assim, o controle temporário de Eliaquim sobre o reino como “primeiro-ministro” do rei de Israel é um padrão histórico-profético que aponta para a soberania maior e eterna de Jesus Cristo sobre um reino superior.

Se levarmos em conta a forte influência de Isaías 40—60 em 3.7-9, uma alusão a Isaías 45.1 também pode ser percebida em 3.8 — compare “para abrir diante dele as portas, para que não sejam trancadas” (Is 45.1) com “tenho posto diante de ti uma porta aberta que ninguém pode fechar” (Ap 3.8). Assim como Israel era fraco, em comparação com seus adversários, mas se tornaria forte pela obra restauradora de Deus executada por Ciro (cf. Is 45.2-7), Deus também tornaria eficaz o testemunho da pequena igreja de Filadélfia entre seus adversários (assim Lõvestam 1965).

3.9 — A expressão “farei que [ou ‘de modo que’ (Dana & Mantey 1957, p. 249)] venham adorar prostrados aos teus pés” é uma alusão coletiva a Isaías 45.14, 49.23, 60.14 (v. Gõttingen LXX aparato crítico) e Salmos 86.9. Esses textos do AT profetizam que os gentios incrédulos viriam e se prostrariam aos pés de Israel e do Deus de Israel nos últimos dias. Essa profecia foi cumprida de forma aparentemente irônica na igreja gentílica, que se tornou o verdadeiro Israel em virtude de sua fé em Cristo. Contrastando, em Filadélfia os israelitas étnicos cumprem o papel dos gentios.

Da mesma forma, a profecia de que Deus demonstrará à vista das nações seu amor pelo Israel perseguido parece ter também um cumprimento irônico: “... e saibam [eles] que eu te amo” (3.9b) aplica-se à igreja com predominância de gentios, não ao Israel étnico, como em Isaías 43.4 (e LXX: Is 41.8; 44.2; 60.10; 63.9; cf. 48.14;Jb 1.25)

A força das alusões a Isaías mostra que não se trata de um reconhecimento forçado pelos judeus (contra Mounce 977, p. 118-9; Beasley-Murray 1974, p. 101), e sim de um reconhecimento que conduz à salvação dos próprios judeus étnicos (I. T. Beckwith 1919, p. 480-2). O foco na salvação é derivado das profecias de Isaías, que se referem não só ao juízo de alguns gentios, mas também à salvação de muitos outros que reconheceram Israel como o verdadeiro povo de Deus (v. tb. Caird 1966, p. 52-3; cf. Is 42.6; 45.22; 49.1,6; 49.13 LXX; 51.4; At 13.47; 26.17,18,23). Tal conclusão é também evidente, se observarmos que a profecia semelhante de Isaías 60.11 é entendida em Apocalipse 21.25,26 como uma referência à redenção — de fato, no contexto de Isaías 60 se refere aos gentios redimidos prestando adoração voluntária (v. comentário de 21.24-26 adiante).

3.10 — É evidente que João está pensando na proteção espiritual dos cristãos que passam pela tribulação, se considerarmos que 3.10 pode fazer alusão a Daniel 12.1,10 LXX, em que “aquela hora” é também definida como “aquele dia da tribulação” (cf. Ap 7.14), quando “muitos são provados e santificados e os pecadores pecam”. Isso sugere que a provação em 3.10 tem o duplo efeito de purificar e fortalecer os crentes e de ser ao mesmo tempo um castigo divino sobre os incrédulos (assim Alford 1866, p. 586).

3.12 — Aos crentes de Filadélfia é prometido um lugar permanente no templo de Deus. Trata-se provavelmente de uma evocação de Isaías 56.3-5 (com 62.2; 65.15): “Que nenhum estrangeiro, que se uniu ao Senhor , diga: Certamente o Senhor me separará do seu povo [...]. Pois assim diz o Senhor a respeito [...] [dos que] abraçam a minha aliança: Na minha casa e dentro dos meus muros eu lhes darei um memorial e um nome melhor do que o de filhos e filhas; darei a cada um deles um nome eterno, que nunca deixará de existir”. Em vez de “memorial”, a LXX traz “um lugar designado” para os gentios, que combina com a tripla repetição de um nome escrito numa “coluna” ou no vencedor, em 3.12. Cristo diz que escreverá no vencedor “o nome do meu Deus” e o "nome da cidade do meu Deus”, o que evoca Ezequiel 48.35 (cf. IMe 14.26-49). Ali, o “nome da cidade”, a Nova Jerusalém, é “O Senhor Está Aqui”, porque ele estabeleceu seu templo dos últimos dias em seu meio, em que sua glória residirá para sempre (assim Ez 40—47; 48.10,21; Tg. de Ez 48.35; /;. B. Bat. 75b traduz Ez 48.35 como “o Senhor é o seu nome”, alterando os sinais vocálicos do hebraico; cf. Ap 21.2).

3.14 — A promessa de uma nova criação pelo fiel Deus de Israel, em Isaías 65.15,16, está por trás do título “O Amém, a testemunha fiel e verdadeira”, bem como da parte final, “o princípio da criação de Deus”. A noção de Deus e de Israel como “testemunha fiel” para a nova criação, em Isaías 43.10-12, forma o contexto para o “testemunho”. Essa alusão a Isaías 65.15,16 é usada para indicar que Cristo é o divino “Amém, a testemunha fiel e verdadeira” de sua própria ressurreição, que é “o princípio da nova criação de Deus”, inaugurando o cumprimento das profecias de Isaías sobre a nova criação (v. Beale 1996). A passagem de Isaías 43.10-12 destaca que Jesus cumpre a função do Israel fiel e verdadeiro como profetizado.