Salmo 119 — Análise Bíblica

Salmo 119: Meditações sobre a lei do Senhor

Não temos nenhuma indicação do autor nem das circunstâncias em que o salmo 119 foi escrito. É, de longe, o salmo mais extenso, equivalente a cerca de vinte e dois outros salmos juntos. Essa proporção não é acidental, pois o salmo 119 é um acróstico baseado nas vinte e duas letras do alfabeto hebraico. A primeira linha de cada versículo nos oito primeiros versículos começa com a primeira letra do alfabeto; a primeira linha dos oito versículos seguintes começa com a segunda letra, e assim por diante, até o fim do alfabeto. O salmista provavelmente escolheu essa forma para ajudar outros a memorizarem e meditarem sobre suas palavras. Apesar de sua extensão, o salmo trata de apenas um tema: a lei do Senhor. O salmista se deleita nessa lei e a celebra com vários nomes. Por exemplo: “lei”, ou seja, todos os “preceitos” do AT, se refere a injunções; “estatutos” dizem respeito a registros; “palavra” é um termo usado por vezes de modo geral para se referir à revelação de Deus; e “testemunhos” são prescrições que correspondem ao padrão de conduta determinado por Deus para os seres humanos. O salmista menciona várias situações e problemas com os quais se depara na vida. Fala das tentações da mocidade (119:9) e do materialismo (119:36-37), do “opróbrio e [...] desprezo” constantes (119:22), da tristeza (119:28) e da difamação (119:69). Ao se ver diante dessas situações, ele se volta para a palavra de Deus. Devemos ter a mesma atitude do salmista diante de desafios semelhantes. A palavra de Deus deve ser nossa fonte de força, consolo, alegria, esperança e salvação. Acima de tudo, este salmo nos lembra que a palavra de Deus é poderosa. Estejamos pregando ou ouvindo, ela fala ao nosso coração porque é a palavra de Deus e a expressão de sua mente e sua vontade. Somos instados, portanto, a amá-la e, por meio desse amor, expressar nossa confiança em Deus.

119:1-32 A lei como instrutora 
Os versículos iniciais deste salmo são semelhantes em vários sentidos ao primeiro versículo do salmo 1. Os dois salmos começam com Bem-aventurado(s), expressão que pode ser traduzida por “feliz(es)”. A única diferença é que o salmo 1 fala de um indivíduo, enquanto o salmo 119 se refere a muitos, daí o plural. Tanto o indivíduo quanto o grupo são bem-aventurados porque não andam nos caminhos dos pecadores, mas nos caminhos de Deus, ou seja, vivem em obediência à sua lei (119:1,3,5; 1:1-2). Encontramos a mesma metáfora de andar nos caminhos de Deus em diversas passagens do NT (cf., p. ex., Rm 6:4; 8:4; 2Co 5:7; Cl 1:10; 2:6). Não se trata, porém, de uma caminhada penosa, como 119:32 deixa claro ao dizer: Percorrerei o caminho dos teus mandamentos, quando me alegrares o coração ou “Corro pelo caminho que os teus mandamentos apontam, pois me deste maior entendimento” (NVI). A ideia de ter todos os nossos fardos removidos para que comecemos a correr nos caminhos de Deus também aparece em Hebreus 12:1. A imagem de ser libertado pelo entendimento da lei de Deus também explica por que os bem-aventurados têm prazer (ou regozijo) em aprender os caminhos de Deus (119:14,16,24; cf. 119:20, NVI, e ainda 1:2). A palavra lei aparece várias vezes neste salmo. Traduz o termo hebraico torah, derivado de um radical que significa “ensinar”. A torah de Deus, portanto, consiste em seus ensinamentos sobre como devemos viver. O mesmo termo é usado para a instrução da mãe em Provérbios 1:8. Ao longo do tempo, o título Torá passou a ser usado para se referir principalmente à lei de Moisés, ou aos cinco primeiros livros do AT. O problema é que os judeus da Antiguidade começaram a considerar a Torá apenas como algo a ser obedecido, e não como um guia para um modo de vida no qual deveriam levar em conta o espírito e o propósito da lei. Consequentemente, alguns judeus caíram na armadilha do legalismo. Jesus condenou energicamente os líderes religiosos de sua época que se mostravam mais interessados em obedecer às leis que em andar nos caminhos do Senhor (Mt 23:23-24). As Escrituras devem ser nosso guia. Ao seguir seus ensinamentos, não teremos do que nos envergonhar (119:6,22), cultivaremos um coração íntegro (119:7) e uma vida pura (119:9), e não nos desviaremos dos mandamentos de Deus nem pecaremos contra ele (119:10,11,30). Cristo mostrou o papel das Escrituras como guia ao usá-las quando foi tentado por Satanás (cf. Mt 4:1-11). Diante dessas bênçãos, não é de admirar que o salmista peça a Deus que, em sua bondade, lhe ensine seus decretos e preceitos (119:12,26-27,29) O salmista também deseja que seus olhos sejam abertos para que possa ver as maravilhas da lei de Deus e para que Deus não oculte dele os seus mandamentos (119:18). Na verdade, ele pede discernimento para que possa compreender as Escrituras e as coisas espirituais de Deus e ser capaz de reconhecer e rejeitar ensinamentos falsos. Devemos seguir seu exemplo ao orar por um espírito de discernimento.

119:33-72 A preciosidade dos decretos de Deus
Essa seção começa com o pedido: Ensina-me, Senhor, o caminho dos teus decretos (119:33). Um “decreto” é algo que foi prescrito. Na África, quando os militares tomam o poder, é comum suspenderem a constituição do país e governarem por decreto. Neste salmo, os “decretos” de Deus são suas declarações sobre algo que têm poder de lei. O verbo traduzido por “ensinar” significa literalmente “apontar” ou “indicar”. O salmista volta a pedir que Deus aponte para o caminho que ele deve seguir (119:35). Na seqüência, o caminho é chamado também de “decreto”, “lei”, “vereda dos teus mandamentos”, “testemunhos”, “juízos” e “preceitos” de Deus. As mesmas palavras ocorrem repetidamente ao longo de todo o salmo. O salmista sabe muito bem como é fácil se distrair e se desviar dos caminhos de Deus, de modo que pede: Inclina-me o coração aos teus testemunhos e não à cobiça (119:36). Ele reconhece que a propensão ao materialismo resulta, muitas vezes, de ver o que outros possuem e, portanto, ora: Desvia os meus olhos, para que não vejam a vaidade (119:37). Em 119:38, pede que Deus confirme ou cumpra a tua promessa feita aos que te temem. Caso Davi seja o autor deste salmo, talvez tenha em mente a aliança que Deus firmou com ele em 2Samuel 7:12-16. É possível, contudo, que se trate de uma referência à promessa feita em Josué 1:8: “Não cesses de falar deste Livro da Lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido”. Ideia semelhante parece estar presente em 119:49: Lembra-te da promessa que fizeste ao teu servo, na qual me tens feito esperar. O salmista tem plena consciência de que sua fidelidade à lei e o cumprimento das promessas de Deus só são possíveis pela misericórdia de Deus, daí suplicar: Venham também sobre mim as tuas misericórdias, Senhor (119:41a; cf. tb. Êx 34:6-7). Sabe ainda que a misericórdia de Deus é sempre acompanhada de sua salvação (119:416). Não se trata apenas de salvação espiritual, mas também de livramento dos inimigos que continuam a insultá-lo e perturbá-lo (119:42). Em vários momentos nessa seção do salmo, ele volta a falar de seu sofrimento nas mãos de adversários (119:50-51,61,69). Não obstante o que eles venham a fazer, porém, ele continuará a dar graças e louvar a Deus (119:62). Além disso, começa a ver a mão de Deus mesmo em meio à aflição. Reconhece que pecou no passado, mas afirma que o sofrimento presente o ajudou a dar o devido valor à palavra de Deus (119:67). Pode dizer até: Foi-me bom ter eu passado pela aflição (119:71). A aflição o ajudou a voltar para Deus. Muitas vezes, nós também nos desviamos dos caminhos do Senhor até que ele nos disciplina e nos conduz de volta ao aprisco. Se não fosse por sua graça, misericórdia e longanimidade, seriamos consumidos por sua ira. Devemos reconhecer agradecidos o seu perdão e dizer como o salmista: O Senhor é a minha porção (119:57). Ele é tudo aquilo de que necessitamos como herança. Por que precisaríamos de alguma outra coisa se vale mais a lei que procede de tua boca do que milhares de ouro ou de prata (119:72)?

119:73-144 As injunções de Deus são um guia
Em 119:73, o salmista afirma pela primeira vez neste salmo que Deus é seu Criador. Logo em seguida, pede que Deus complemente a dádiva do corpo físico com a dádiva de uma mente que aprenda os teus mandamentos. Deseja uma fé que incentive e inspire outros (119:74,79). Sabe muito bem que esse tipo de fé não significa que ele escapará de sofrimentos (119:75); antes, significa que Deus o consolará em meio à aflição (119:76), ainda que esse consolo nem sempre venha tão rápido quanto gostaríamos (119:81-82). Na verdade, o salmista diz a respeito de si mesmo: fá me assemelho a um odre na fumaça, ou seja, ele se encontra espiritualmente seco e contaminado por seu ambiente. Nem mesmo as circunstâncias, porém, o farão esquecer os decretos de Deus (119:83). Ter uma fé que outros admiram não significa ter a admiração de todos. O salmista ainda é perseguido por vá­ rios inimigos (119:78,84-87,95). Em meio a tudo isso, no entanto, sabe que a fidelidade do Senhor estende-se de geração em geração (119:90-91). A palavra do Senhor é sua força (119:92-93). É mais perfeita e completa que tudo o que ele conhece (119:96), e a meditação e obediência a ela o tomaram mais sábio do que seus inimigos e mestres (119:98-100). Não é de admirar que ele descreva a palavra do Senhor como algo mais [doce] que o mel à minha boca (119:103). O salmista falou anteriormente de seu desejo de seguir o caminho de Deus e agora especifica como a palavra de Deus o ajuda nessa tarefa: Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e, luz para os meus caminhos (119:105; cf. tb. 119:130). No tempo do salmista, a lâmpada produzia apenas uma luz fraca. Não iluminava todo o caminho à frente, mas apenas mostrava a quem a carregava os próximos passos do caminho. Era essencial, portanto, confiar no trabalho da pessoa que havia construído o caminho. O salmista volta a afirmar sua confiança no Senhor por meio de um juramento confirmado (119:106). Está determinado a não abandonar nem esquecer a palavra de Deus (119:1090,141). 0 caminho talvez passe por lugares perigosos (119:109a), e os ímpios talvez armem ciladas para pegar os justos, mas o salmista estará seguro enquanto não se desviar dos preceitos e decretos do Senhor (119:110,118). Além de amar as veredas da retidão, ele aborrece todo caminho de falsidade (119:128). A declaração do salmista, “Induzo o coração a guardar os teus decretos, para sempre, até ao fim” (119:112) se repete de várias formas ao longo desse salmo. Era exatamente isso o que Deus exigia dos filhos de Israel (Êx 19:5) e aquilo que eles haviam prometido realizar (Êx 19:8). Devido ao seu amor à lei de Deus, o salmista rejeita quem o induz a transgredi-la: Apartai-vos de mim, malfeitores (119:115). Angustia-se quando a lei de Deus não é obedecida (119:136) e lembra ao Senhor: fá é tempo [...] para intervires, pois a tua lei está sendo violada (119:126). Sua oração por obediência, porém, anda lado a lado com a súplica por discernimento para que eu conheça os teus testemunhos (119:125), e a consciência de sua própria fraqueza o leva a orar: Não me domine iniquidade alguma (119:133). Precisamos aprender com o salmista. Ele apresenta a Deus seus problemas com inimigos humanos (119:121- 122; 134,139,143) e a situação de sua sociedade. A preocupação central de suas orações, porém, é a capacidade de viver segundo a vontade de Deus revelada em sua lei.

119:145-176 A palavra fala ao nosso coração
Um aspecto que chama a atenção na parte final do salmo 119 é a frequência com que o salmista usa as palavras “eu”, “me” e “meu(s)”. Não deixa dúvida de que é ele mesmo, e não outra pessoa, que está clamando a Deus. Muitas vezes, pedimos para que outras pessoas orem por nós, mas nós mesmos não oramos como deveríamos. Passamos a tarefa a outros e não nos preocupamos mais com o assunto. Em 119:153, o salmista volta a falar de seu sofrimento. Dessa vez, apresenta-se como réu num tribunal. Usa vocabulário jurídico ao pedir a Deus: Defende a minha causa (119:154). Lembramo-nos do NT, onde Cristo é descrito como nosso Advogado (1 Jo 2:1) que intercede em favor de nossa causa junto ao Pai (Rm 8:34). Temos um vislumbre de quem são os inimigos arrogantes do salmista quando ele diz: Príncipes me perseguem sem causa (119:161a; cf. tb. 119:23). Não sabemos se a referência é a governantes de Israel ou de nações gentias. O mais impressionante é que o salmista não teme a oposição dos poderosos, mas a palavra de Deus (119:1616). O poder de príncipes não o desviou do objeto supremo de lealdade. Eles lhe podiam oferecer todo tipo de riqueza do mundo como despojos adquiridos por um exército vitorioso, mas o salmista encontrou riqueza maior nas promessas de Deus (119:162). Continua a abominar e detestar a mentira, a amar a lei de Deus (119:163), e louvar ao Senhor sete vezes no dia (119:164). Ainda que esteja sofrendo perseguição, pode dizer: Grande paz têm os que amam a tua lei (119:165). Continuará a obedecer enquanto espera o livramento de Deus (119:166-168). Como o salmista, não nos devemos distrair com as ações daqueles que nos odeiam, perseguem e oprimem. Não devemos permitir que sejam um empecilho para nos concentrarmos nas coisas do Senhor. Antes, devemos orar com palavras semelhantes às de 119:169-176, reconhecer nossa fraqueza, tanto diante de nós mesmos quanto diante de outros, e pedir que o Senhor nos dê entendimento a fim de podermos viver segundo a sua palavra